Joana Vicente é a directora do Festival de Cinema de Toronto

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]produtora Joana Vicente foi ontem anunciada como a nova diretora executiva do Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF, na sigla em inglês). A portuguesa fica assim corresponsável pela organização a par do director artístico Cameron Bailey.

“O comité de selecção ficou profundamente impressionado com o passado de Joana Vicente como produtora, defensora de realizadores independentes e com o seu sucesso em angariação de fundos e parcerias. O seu extenso conhecimento do panorama global cinematográfico em mudança solidificou a decisão”, disse, em comunicado, o conselho de administração do festival.

Joana Vicente era, desde Dezembro de 2009, directora executiva do Independent Filmmaker Project, a mais antiga e maior organização de cineastas independentes nos Estados Unidos, como recorda o comunicado do TIFF. “Sempre olhei para o TIFF como uma proeminente plataforma internacional para o cinema mundial, com um impacto local e global”, afirmou, citada pelo festival, Joana Vicente, antes de acrescentar que a visão artística de Carmon Bailey é “inspiradora”.

A organização do TIFF salienta que Joana Vicente “é uma figura de proa da indústria cinematográfica de Nova Iorque, tendo produzido mais de 40 filmes e fundado três empresas, incluindo a primeira produtora digital dos Estados Unidos e o primeiro estúdio de distribuição e produção em alta definição do país”.

Joana Vicente foi nomeada pela Variety como uma das 60 pessoas mais influentes em Nova Iorque e já recebeu o prémio “Made in New York”, que distingue figuras que tenham contribuído de forma significativa para o crescimento das indústrias de media e entretenimento da cidade.

Joana Vicente nasceu em Macau, estudou Filosofia em Lisboa, foi assistente de Maria de Lurdes Pintassilgo no Parlamento Europeu e trabalhou nas Nações Unidas até se decidir pela produção de cinema nos Estados Unidos em parceria com o marido, o produtor Jason Kliot. Ainda antes de atravessar o Atlântico, Joana Vicente foi assistente de produção de António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco e teve uma breve participação como actriz num filme de Alain Tanner.

Em Nova Iorque, onde vive há quase 30 anos, fundou com Jason Kliot a Open City Films e a HDnet Films, empresas com as quais assinaram cerca de quarenta produções cinematográficas independentes para realizadores como Brian de Palma, Alex Gibney, Steven Soderbergh, Hal Hartley, Todd Solondz e Jim Jarmuch.

Joana Vicente explicava à Lusa, em 2008, que a produção que faz “é bastante criativa”, porque o envolvimento num projecto começa quase sempre no desenvolvimento do guião, a partir de uma ideia ou de um livro. “Eu gosto imenso de produção, mas a parte que me faltava era essa parte criativa. Sobretudo quando trabalho com realizadores que não têm muita experiência dá-me imenso prazer tentar dar-lhe todos os instrumentos possíveis para que consigam realizar da melhor maneira a visão deles”, disse Joana Vicente.

A nomeação do TIFF produz efeitos no dia 1 de Novembro, perto de dois meses depois do festival deste ano, que vai contar com o filme “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, em duas secções.

30 Ago 2018

Cinema | Nicolas Cage no Festival Internacional de Cinema de Macau

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]actor Nicolas Cage foi nomeado “Embaixador de Talentos” da edição deste ano do Festival Internacional de Cinema de Macau. A notícia é avançada pelo canal de rádio da TDM, referindo-se à informação do portal Hollywood Reporter, que citava o director artístico, Mike Goodridge. Nicolas Cage deve marcar presença na cerimónia de abertura do festival, que decorre entre 8 e 14 de Dezembro, e participar numa masterclass. Já em Julho, Aaron Kwok tinha sido nomeado “Embaixador de talentos”.

30 Ago 2018

“O Caderno Negro” seleccionado para Festival de Cinema de Toronto

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] longa-metragem “O Caderno Negro”, uma co-produção luso-francesa realizada por Valeria Sarmiento e produzida por Paulo Branco, vai ser apresentada em estreia mundial na secção de cinema internacional contemporâneo do Festival de Toronto (Canadá).

O filme da realizadora chilena é inspirado na obra “Livro Negro de Padre Dinis”, de Camilo Castelo Branco, com argumento de Carlos Saboga, e foi um dos 48 seleccionados deste ano para a secção “World Contemporary Cinema”, no Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF, na sigla inglesa), que decorre entre 6 e 16 de Setembro.

Em comunicado, o festival afirma que o programa deste ano apresenta filmes “luminosos” de 30 países – com uma forte presença da América Latina e da Europa de Leste – contando histórias de identidade, descrevendo dinâmicas familiares e fazendo declarações políticas ousadas.

“Cada filme do ‘Contemporary World Cinema’ oferece um instantâneo do mundo e mostra a importância de uma produção global atraente”, disse Kerri Craddock, directora de programação do TIFF, acrescentando que “juntos, os filmes expõem a verdade, abrem fronteiras e cativam o público com as suas histórias profundas e fortalecedoras.”

“O Caderno Negro” também irá participar na edição deste ano do Festival San Sebastián, em Espanha, que terá lugar entre 21 e 29 de Setembro, onde concorre ao grande prémio.

Paixão fatal

O filme conta a história de um casal que, em pleno século XVIII, viaja de Roma a Paris, de Lisboa a Londres, e de Parma a Veneza, fazendo do espectador testemunha de “tenebrosas intrigas no Vaticano, a angústia de uma paixão fatal, um funesto duelo, a galanteria na corte de Versalhes, as convulsões da Revolução Francesa e a ascensão do general Bonaparte”, segundo a sinopse do filme.

A coprodução é assinada pela Leopardo Filmes e pela Alfama Films, em associação com a francesa CB Partners e APM Produções.

Em Toronto vai também estar o filme “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que terá a sua estreia norte-americana, ao encerrar o programa da secção “Midnight Madness”.

A organização do TIFF destaca que várias das “impressionantes” 27 estreias mundiais do programa são de veteranos do TIFF, como é o caso de “Belmonte”, do uruguaio Federico Veiroj, “The Other Story”, do israelita Avi Nesher, “Stupid Young Heart”, da realizadora finlandesa nomeada para Óscar Selma Vilhunen, “Quién te Cantará”, do espanhol Carlos Vermut, e “Look at Me”, do realizador Nejib Belkadhi, da Tunísia.

O programa também destaca selecções de filmes que já cativaram audiências em todo o mundo este ano, como “I Do Not Care If We Go Down In History As Barbarians”, do realizador romeno Radu Jude, “Birds of Passage”, pela dupla de realizadores colombianos Cristina Gallego e Ciro Guerra, e ainda “Border”, do iraniano Ali Abbasi.

16 Ago 2018

Cinema | João Salaviza e Renée Nader Messora vencem melhor filme em Lima

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]filme “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, de João Salaviza e Renée Nader Messora, venceu o prémio de melhor obra de ficção do Festival de Cinema de Lima, no Peru, anunciou a organização. O filme, que já havia recebido o prémio especial do júri da secção ‘Un Certain Regard’ no Festival de Cannes, ganhou ainda a distinção por melhor fotografia.

O 22.º Festival de Cinema de Lima contou ainda com a presença de outro português – o produtor Paulo Branco – enquanto homenageado.

A produtora portuguesa Karõ Filmes realçou, em comunicado, que “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos irá ser exibido em dezenas de festivais internacionais nos próximos meses” e tem estreia comercial em Portugal, França e Brasil prevista para o primeiro trimestre do próximo ano.

O filme foi rodado durante nove meses, em 16mm, sem equipa, na aldeia Pedra Branca, no estado de Tocantins, no Brasil. “Não há espíritos ou cobras esta noite e a floresta em redor da aldeia está sossegada. Ihjãc, de 15 anos, tem pesadelos desde que perdeu o pai. É um Krahô indígena do norte do Brasil. Ihjãc caminha pela escuridão, o seu corpo suado move-se com receio. Um cântico distante atravessa as palmeiras. A voz de seu pai chama por ele através da cascata: é hora de organizar o festim funerário para que o espírito possa partir para a aldeia dos mortos. O luto deve cessar”, pode ler-se na sinopse disponibilizada pelo festival de Cannes.

O texto acrescenta: “Negando o seu dever e para poder escapar ao processo crucial de se tornar um xamã, Ihjãc foge para a cidade. Longe do seu povo e da sua cultura, enfrenta a realidade de ser um indígena no Brasil contemporâneo”.

“Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” foi produzido por Ricardo Alves Jr. e Thiago Macêdo Correia, da produtora Entre Filmes, sediada em Minas Gerais, em coprodução com a portuguesa Karõ Filmes e com a Material Bruto, de São Paulo.

14 Ago 2018

Cinema | Filme chinês mais caro de sempre sai dos cinemas após estreia

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] produção cinematográfica mais cara de sempre na China, intitulada “Asura”, com um custo de 750 milhões de yuan, foi retirada dos cinemas após uma decepcionante estreia comercial no fim de semana.

O filme épico, baseado na mitologia budista, arrecadou 49 milhões de yuan no fim-de-semana de estreia, nos cinemas chineses, apesar de uma forte campanha publicitária. Os produtores anunciaram a retirada dos cinemas através das redes sociais, mas sem detalhar quais os motivos.

Mais de 2500 pessoas trabalharam na produção de “Asura”, filme produzido na China e cuja pós-produção foi feita ao longo de mais de um ano nos Estados Unidos. Num artigo publicado antes da estreia, Yang Hongtao, presidente do grupo Ningxia Film Group, um dos produtores, considerou o filme “muito imaginativo”. “Queremos que o filme aumente a confiança na nossa própria cultura e capacite os nossos talentos domésticos”, afirmou.

18 Jul 2018

“Pintor e a cidade”, de Manoel de Oliveira – Um amor inequívoco pelo essencial

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos abordar um filme algo esquecido da filmografia de Manoel de Oliveira. Trata-se de um documentário a cores, filmado em 1956. Grande parte daquilo que virá a ser os pilares estéticos na obra de Manoel de Oliveira – a outra encontraremos sete anos mais tarde em O Acto da Primavera – começa em O Pintor e a Cidade. Depois de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira esteve 13 anos sem filmar. Mas durante este tempo, além dos afazeres de empresário, pensava e assistia a cinema, e em 1955 fez um curso de fotografia nos estúdios da Agfa-Gevaert AG – especificamente acerca da aplicação da cor ao cinema –, na cidade alemã de Leverkusen. O Pintor e a Cidade é o primeiro filme depois desse curso. Mas as diferenças entre este filme e o seu primeiro está muito longe de se traçar em cores.

“Fiz O Pintor contra O Douro. Enquanto O Douro é um filme de montagem, O Pintor é um filme de êxtases. Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante. A imagem rápida tem um efeito, mas a imagem quando persiste ganha outra forma. O Pintor e a Cidade é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. (…) É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem.” [Manoel de Oliveira, Cem Anos, Cinemateca, pp. 56-7]

Em O Pintor e a Cidade, Manoel filma a cidade do Porto através do olhar e das aguarelas do pintor António Cruz, considerado como o maior aguarelista dos tempos modernos. Acerca dele, Abel Manta, em entrevista a Manuel Lavrador (in Sol), diz: “é sem contestação o maior aguarelista português dos tempos modernos. Tirou a aguarela da banalidade para a que a tinham arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses. Deu-lhe grandeza, ressonância sinfónica; levou-a até atingir o valor de uma alta expressão sintética e afastou-a da superficialidade habitual.” Também, décadas mais tarde, em 2015, José Emídio, pintor e responsável da Cooperativa Árvore dirá que “António Cruz é o grande aguarelista português do século XX. É um artista de uma mestria extraordinária. Além de pintor talentoso soube tirar partido das neblinas, a luz, o granítico das sombras, as pontes e o rio. Só um homem que viveu intensamente a cidade seria capaz de a mostrar com este olhar sensível.” E é precisamente estas neblinas, esta luz, este granítico das sombras, as pontes e o rio, que Manoel de Oliveira vai filmar através dos quadros do pintor e do seu olhar.

Manoel mostra claramente duas coisas neste filme, que se tornariam fundamentais ao longo da sua obra: 1) não há distinção entre real e ficção no que é captado pela câmara; 2) a câmara é uma janela para o mundo – o que se filma –, e tal como a janela de uma casa, ela não se move e força-nos à atenção daquilo que passa por ela. Várias vezes, em entrevistas, Manoel de Oliveira referiu-se à relação entre ele e a câmara e entre esta e o mundo. Dizia que a máquina de filmar não faz nada, e que o cinema é tudo o que se põe diante da máquina de filmar. Podemos mesmo dizer, de modo Copernicano, que não é a câmara que anda à volta das coisas, mas as coisas que andam à volta da câmara. A câmara está no centro do universo.

Na sua obra, em dois volumes, acerca do cinema, Gilles Deleuze escreve: “Em regra geral, os poderes da Natureza não são enquadrados da mesma maneira que as pessoas ou as coisas, e os indivíduos da mesma maneira que as multidões, e os subelementos da mesma maneira que os termos. Tanto assim é que há no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os postigos, as frestas, os vidros de um carro ou os espelhos são outros tantos quadros no quadro. Os grandes autores têm particulares afinidades com tal ou tal desses quadros segundos, terceiros, etc.” [DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Documenta, Lisboa, 2016, p. 32]

Na verdade, e em relação à primeira afirmação de Deleuze, Manoel de Oliveira é claramente uma excepção. Mais: essa excepção torna-se a sua marca, pelo menos até aos anos 90. A câmara de Manoel de Oliveira enquadra um quadro do mesmo modo que enquadra a Natureza. E não é só em O Pintor e a Cidade – embora seja aqui que começa – mas pode-se ver claramente em toda a tetralogia dos amores falhados – e de modo geral ao longo de toda a sua obra. Especialmente nos três últimos filmes trágicos da tetralogia, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca. Nessa primeira tragédia, o filme inicia-se precisamente com a câmara percorrendo os bastidores de um teatro. E, ao começar-se a cena, na cozinha de uma casa senhorial, a câmara foca uma fotografia pendurada na parede, que representa uma paisagem – muito provavelmente a paisagem exterior da casa –, e vai aproximando-se até que o quadro se torna toda a imagem captada pela câmara. Ficamos perante a evidência de que estamos no mundo da imagem, seja ela captada directamente pela câmara, seja ela captada indirectamente pela câmara. Não se distingue a imagem exterior, da imagem de uma fotografia do exterior, se a câmara de filmar fechar todo o ângulo de filmagem. Quando se começa a escutar o vento, sem que a paisagem se mova, compreende-se que estamos imersos no mundo da representação. Aquele quadro é uma janela, aquela janela é o mundo lá fora. Tudo é o que a câmara capta. Uma vez mais, e agora completamente ao encontro de Manoel de Oliveira, Deluze escreve: “Mas a única consciência cinematográfica não somos nós, cada um dos espectadores, nem o herói, é a câmara, ora humana, ora inumana ou sobre-humana.” [Op. cit., p. 40]

A câmara é a consciência do que se vê. É a consciência daquilo que se mostra. A câmara não distingue entre Arte e Natureza, filma igualmente um quadro exposto numa parede ou uma paisagem. Curiosamente, ou talvez não, Manoel de Oliveira faz precisamente aquilo que André Bazin – um dos co-fundadores dos Cahiers du Cinema – escreve em 1945 acerca dos surrealistas, num pequeno estudo intitulado “A Ontologia da Imagem Fotográfica”: “É que para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da impressão mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o real e o imaginário tende a ser abolida. Toda a imagem deve ser sentida como objecto e todo o objecto como imagem.” [BAZIN, André. O cinema – ensaios, Editora Brasiliense, 1991, p. 25]

E podemos dizer o mesmo para a obra de Manoel de Oliveira: toda a imagem é um objecto e todo o objecto é uma imagem. A câmara transforma tudo em imagem. E não há imagens ontologicamente superiores a outras. Uma imagem é uma imagem é uma imagem é uma imagem. A imagem não é realidade. A imagem é o que a câmara capta. E ela não capta apenas quadros pintados, colocando-os ao mesmo nível da paisagem, ela também capta a nossa atenção ao plano fixo da câmara. E André Bazin, na sua análise ao cinema dos anos 20 aos anos 40, escreve: “(…) eu distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências opostas: os directores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade.” [Op. Cit., p. 69]

E páginas adiante vai anda mais longe, ao encontro do que aqui temos assinalado em Manoel de Oliveira: “É que acabámos de considerar o expressionismo da montagem e da imagem como o essencial da arte cinematográfica. E é principalmente essa noção geralmente admitida que questionavam implicitamente, desde o cinema mudo, realizadores como Erich Von Stroheim, F. M. Murnau ou R. Flaherty. A montagem não desempenha em seus filmes praticamente nenhum papel, a não ser o papel totalmente negativo da eliminação inevitável numa realidade abundante demais. A câmara não pode ver tudo ao mesmo tempo mas, do que escolhe ver, ela se esforça ao menos para não perder nada. O que conta para Flaherty, diante de Nanook caçando a foca, é a relação entre Nanook e o animal, a amplitude real da espera.” [Ibidem] É preciso não confundir esta “amplitude real da espera” com realidade. A “amplitude real da espera” é um acontecimento fenomenológico, não um facto real.

João Botelho, no seu filme O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016), citando o seu mestre, diz: “A força poderosa e única do plano fixo – disse-me ele – tinha-lhe sido revelado pelo Dryer, na Joana D’Arc (1928), e pelo muito amado John Ford, aquele que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos se moviam, para não correr o risco de distrair os espectadores do essencial.” Independentemente das influências que se possam ter, a verdade é que, tal como Miguel de Unamuno escreve em Do Sentimento Trágico da Vida, nós não somos pessimistas porque lemos livros pessimistas, pelo contrário, é porque somos pessimistas que lemos livros pessimistas. Os planos fixos exercem um poder sobre Manoel de Oliveira, porque ele os entende, ele vê neles algo de profundo, algo que faz parte de si mesmo, da sua natureza reflexiva. Em O Pintor e a Cidade, ele descobre o tempo como elemento fundamental no cinema. Tempo, aqui, em sentido de duração. E duração em ligação estreita com atenção. O tempo como tempo necessário à apreensão daquilo que importa, daquilo que é preciso realmente atentar. No fundo, o tempo como a nossa vida a dar-se conta dela em confronto com a arte. Pois é preciso não esquecer que, em Manoel de Oliveira, o cinema é sempre arte e não uma imitação da vida. O filme é um objecto para ser apreciado enquanto tal e não uma coisa que faz parecer ser outra coisa, sem que nos demos conta do objecto filme. Isto tornar-se-á mais claro ainda em O Acto da Primavera.

Quase cinquenta anos depois de filmar O Pintor e a Cidade, numa grande entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura do Brasil, uma jornalista – dos seis jornalistas que se encontravam no estúdio –, pergunta porque razão é que um homem que foi campeão de atletismo, de corrida de carros, que pilotou aviões, passou a fazer filmes que são o contrário disso. Ao que Manoel de Oliveira responde: “No automobilismo o movimento é o de vencer o tempo. No cinema é o de reflectir sobre ele.” O cinema é uma arte, que como toda a arte é reflexiva, que remete para a reflexão acerca da vida e não para a vivência da mesma. Na vida, Manoel de Oliveira anda depressa, na arte anda devagar. Assim, o plano fixo não é apenas uma influência de Dreyer e de Ford, é reflexo de uma hermenêutica de Oliveira acerca da arte do cinema. Há sempre como que um fundo fenomenológico nos planos de Oliveira, um forçar a atenção, quer seja pela repetição, quer seja pela permanência, forçando o espectador a ver, a atentar naquilo que está a ser mostrado, não lhe deixando possibilidade de fuga, não lhe lançando a corda da distracção, que tanto ele acusava o cinema “americano” de fazer. O cinema americano a que aqui nos referimos, tal como também Manoel de Oliveira, era o cinema dos blockbusters. Pois John Ford ou D. W. Grifith, por exemplo, são realizadores americanos e sempre foram considerados como mestres por Oliveira.

De facto, pelo menos a partir de um certo período da história, a arte não visa o entretenimento, e foi sempre assim que Manoel de Oliveira viu o cinema, como arte. Ele nem sequer era contra o cinema de entretenimento, apenas julgava que deveria também haver espaço para o cinema arte. E a arte, para ele, está indissociável do essencial, de mostrar o essencial. Um amor inequívoco pelo essencial. E, literariamente, não podemos deixar de pensar em Cesário Verde e no seu livro acerca da cidade de Lisboa, dos seus poemas que são como telas das paisagens desta cidade.

10 Jul 2018

Vídeo | Present Future Film Festival aberto a candidaturas

O Present Future Film Festival está de volta para apresentar ao público de Macau trabalhos de vídeo e cinema de animação. A 5ª edição do festival, que ocorrerá em Setembro, já mexe e abriu a fase de submissão de candidaturas. Os projectos selecionados serão exibidos em Macau, Taiwan e Japão

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stão abertas as candidaturas para a 5ª edição do festival de vídeo Present Future Film Festival. A iniciativa organizada pelo ICenter visa “facilitar a criação de vídeos e animações”, refere a responsável pelo projecto, Sou Zoe.

Paralelamente, o evento propõe-se a levar as produções de autores locais a outros destinos, garantindo a divulgação além-fronteiras do que se faz em Macau.

Os filmes candidatos vão ser seleccionados por um júri composto por especialistas do território, Taiwan e Japão. Os vencedores , além de garantirem um lugar no programa da edição deste ano do festival, têm a oportunidade de verem os seus trabalhos distribuídos por parceiros do evento que se encontram nas três regiões. “A ideia deste festival é também construir uma plataforma para a troca de vídeos entre as três áreas geográficas e apresentar os mais recentes trabalhos em vídeo e animação que recebemos”, apontou.

Para Sou Zoe “há muitos talentos nesta área, tanto internacionais como locais” que precisam de espaço para mostrarem os seus trabalhos.

As candidaturas estão abertas até ao próximo dia 10 de Agosto e o festival no território tem data apontada para Setembro.

Nesta edição, “além do cinema do ICentre, também vamos expandir as exibições a vários cafés locais, nomeadamente, ao Macau Design Center, ao Che Che e ao Café Voyage”, esclareceu Sou Zoe.

De acordo com a responsável, a ideia é chegar a mais público e promover o interesse por este tipo de produções artísticas.

Caminho andado

Além da promoção dos criadores e públicos locais, o Present Future Film Festival tem como fim encontrar interessados na distribuição dos trabalhos premiados. Mas há objectivos maiores. Se até agora a iniciativa tem estado concentrada em Macau, Taiwan e Japão, no futuro a organização pretende passar por outros destinos. “Esperamos expandir o projecto a outros países e por vários locais do mundo”, afirmou Sou Zoe.

Por outro lado, com a apresentação de trabalhos internacionais, a organização espera que a produção local fique mais rica e que os criadores de Macau se sintam motivados a investir mais nos seus trabalhos.

4 Jul 2018

Fundação Rui Cunha | Novo ciclo de cinema arranca na próxima quarta-feira

A Fundação Rui Cunha volta a acolher o quinto ciclo de cinema, desta vez dedicado ao cibercrime. Películas como “Snowden” ou “The Girl with the Dragon Tattoo” vão passar na Casa Garden a partir da próxima semana. O filme de Oliver Stone sobre o ex-analista da CIA abre a iniciativa

 

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]lhar com outros olhos para um dos crimes que mais tem crescido nos últimos anos é um dos objectivos da Fundação Rui Cunha (FRC) com a criação do quinto ciclo de cinema, que este ano se dedica ao crime informático. O primeiro filme a ser exibido é “Snowden”, de Oliver Stone, e conta a história de Edward Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA que tornou públicos os detalhes de programas de videovigilância norte-americanos e a sua dimensão global. A Casa Garden, sede da Fundação Oriente no território, volta a ser receber este ciclo de cinema.

“Entendemos que é uma forma de falar de Direito nesta altura do ano, em que está imenso calor e ninguém tem paciência para assistir a conferências. É uma outra forma de falar de problemas jurídicos”, explicou Filipa Guadalupe, que adiantou as razões para a escolha do cibercrime enquanto tema.

“É um tema internacional e transversal, mas que tem muito a ver com Macau, até porque está na forja o projecto da lei da cibersegurança e fala-se imenso na questão da protecção de dados. Está tudo relacionado, de alguma maneira, porque o cibercrime é a consequência da violação dos dados pessoais.”

A coordenadora do Centro de Reflexão, Estudo e Difusão do Direito de Macau, entidade ligada à FRC, frisou que, nos últimos anos, este tem sido um dos crimes mais comuns e em franca expansão, incluindo no território.

“Infelizmente, tem sido o crime económico que mais tem crescido, muito por força de mais pessoas a nível mundial terem acesso à internet. Por isso é uma forma fácil de praticar crimes. Alguns estão tipificados na lei, como pedofilia ou violação de identidade, mas há outros que não estão assim tão tipificados, ou protegidos em termos jurídicos e para que é preciso chamar a atenção.”

Do clássico ao actual

Por se tratar de um crime relativamente recente, que cresceu ao mesmo ritmo da internet, não há muitos filmes que abordem esta temática. Ainda assim, a FRC decidiu incluir no programa a película “Italian Job”, de 1969. “Tem o Michael Kane e é um filme de culto, um dos primeiros que abordou esta temática.”

“Este ano não temos nenhum filme chinês mas temos um que foi filmado em Hong Kong, que é o ‘Black Heat’. Temos um filme de culto, intitulado ‘The Girl with the Golden Tattoo’, que é sueco, e vamos projectar a versão original nessa língua. Depois temos dois filmes incontornáveis sobre este tema, que é o ‘Snowden’, do Oliver Stone, e o ‘Firewall’”, explicou Filipa Guadalupe.

O quinto ciclo de cinema da FRC traz a novidade de, este ano, apresentar dois filmes com legendas em cantonês, na perspectiva de atrair alguns espectadores chineses. Prevê-se a ocorrência de debates, incluindo sobre as questões práticas da implementação da nova lei da cibersegurança em Macau, mas tudo vai depender daquilo que os convidados quiserem abordar, assegurou Filipa Guadalupe.

“Não nos limitamos a projectar o filme, convidamos sempre uma pessoa, seja jurista ou um fã de cinema, para fazer a apresentação do filme. No final pode existir um pequeno debate sobre o tema que o filme reproduziu”, concluiu.

21 Jun 2018

Artes | Festival de artes da China e PLP começa a 30 de Junho

A edição inaugural do Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa vai decorrer entre 30 de Junho e 13 de Julho. O evento vai contar com um ciclo de cinema dedicado aos realizadores locais de ascendência portuguesa

[dropcap style≠’circle’]”E[/dropcap]ncontro em Macau” é o nome da primeira edição do Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa. A iniciativa, com um orçamento de 28 milhões de patacas, está dividida em cinco secções que incluem exposições, cinemas, serões interculturais, artes performativas e um Fórum cultural. Na área dedicada ao cinema estão incluídos três filmes realizados por cineastas locais: “Imagens, Macau”, “Filmes em Chinês” e “Filmes em Português”.

O filme “350 metros”, de Fernando Eloy, é uma das películas que será exibida durante o festival. Produzido em 2008, o filme retrata o que se passa durante um dia na Rua 5 de Outubro em Macau. “Foi filmado em 24 horas non stop” explicou Fernando Eloy ao HM.

De acordo com o realizador, a ideia de registar o dia daquela rua surgiu por ser um lugar em que a vida se mantem em suspenso, imune ao reboliço do tecido urbano que a circunda. “Apercebi-me de como o tempo parecia não passar ali apesar de toda a convolução em que a cidade já vivia. Nem 7/11 tinha. Era um exemplo de uma forma de vida de Macau onde se sente a ideia de bairro de forma acintosa”, apontou. O título do filme, “350 metros”, é referente ao cumprimento da rua, e foi também o primeiro filme de Eloy.

De autoria de Ivo Ferreira, será exibido “O Estrangeiro”, uma película que retrata a história de um Portugal que já não existe em Macau. “Ina” é o filme de António Caetano de Faria que aborda a questão das drogas.

História no ecrã

Além da secção de cinema dedicada a Macau o festival vai ter também como destaque a exibição da primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, “Aniki-Bóbó”, e o documentário “Douro, Faina Fluvial” de autoria do lendário cineasta portuense.

Do lado do cinema chinês, o destaque vai para o filme mais recente do realizador Xin Yukun, “Wrath of Silence”, com exibição marcada para o primeiro dia do evento.

Além disso, serão apresentados três filmes contemporâneos da China, nove filmes rodados na África do Sul e em países de língua portuguesa, nomeadamente Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné Bissau, e ainda nove filmes em chinês e português, filmados em Macau.

No total vão ser apresentados 24 filmes em 23 sessões na Cinemateca Paixão.

O serão de espectáculos é a rubrica que apresenta as artes performativas produzidas pela China e pelos países de língua portuguesa. Além da performance vinda de Guansu, o serão vai ainda contar com música e dança tradicional de países como a Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste, e performances de artistas do Brasil e de São Tomé e Príncipe.

O serão tem lugar no dia 6 de Julho, no Centro Cultural de Macau.

Os bilhetes para o Festival de Cinema já estão à venda na Cinemateca Paixão com o valor de 60 patacas. Os ingressos para o Serão de Espectáculo está disponível na bilheteira online de Macau e custam 50 patacas.

 

20 Jun 2018

A vida não tem futuro ou “Para além do paraíso” de Jim Jarmusch

[dropcap style=’circle’] E [/dropcap] m Stranger Than Paradise (Para Além do Paraíso), Jim Jarmusch toca-nos uma das mais contemporâneas melodias acerca do não sentido da vida humana. Não há rumo, não há o que fazer, não há senão tempo para nada. Lembremos que o filme é filmado em plena ressaca do punk rock e que Jim Jarmusch, embora não esteja ligado a este estilo de música, esteve desde sempre ligado à música mais alternativa, a começar pelo actor fetiche dos seus primeiros dois filmes, John Lurie, músico de jazz. E neste filme há um blues que serve de leitmotiv ao filme: “I Put A Spell On You” [Lancei-te Um Feitiço], interpretado pelo seu compositor Screamin Jay Hawkins. Mas antes que esta canção comece a iluminar-nos o filme, é o grande lema do punk, o grito dos Sex Pistols, “No Future”, vindo do outro lado do oceano, de Londres, que parece percorrer todo o filme como um fantasma. “There’s no future. No future. No future for you”, cantavam os Sex Pistols na sua canção “God Save The Queen”, em 1977, no disco Never Mind The Bollocks Here’s The Sex Pistols. E agora, aqui no filme, estamos em 1984. Há sete longos anos que já não há futuro. Há sete anos que o tédio parece ter abafado as cidades e os campos e as existências humanas, pelo menos aquelas que têm menos de trinta anos.
O enredo é simples e talvez seja o que menos importa. Há uma prima, jovem, Eva (Eszter Balint), que chega de Budapeste a Nova Iorque, a casa de Willie (John Lurie), de passagem para Cleveland, para a casa de uma tia mais velha. Este primo, um pouco mais velho do que ela vive dos ganhos que consegue em jogos de poker e em apostas nos cavalos, juntamente com o seu amigo Eddie (Richard Edson, primeiro baterista dos Sonic Youth). Depois de poucos dias em Nova Iorque, em que espera que a tia saia do hospital, Eva ruma a Cleveland. Passado um tempo, e depois de um bom ganho no poker – 600 dólares, que os faz pensar que são ricos – Willie convence Eddie a irem até Cleveland visitar Eva, num carro emprestado. Assim fazem.
A película, a preto e branco, bastante granulada – Luís Miguel Oliveira, na folha de sala da apresentação do filme na Cinemateca de Lisboa, escreve “um preto e branco muito composto, muito granuloso e muito áspero, que passou à história como o ‘preto e branco Jarmusch’ – que se tornou uma imagem de Jim Jarmusch e do seu fotógrafo, Tom DiCillo, junto com o enquadramento de lugares exíguos e pobres mostram-nos claramente que estamos num universo de subúrbio da existência. As pessoas são o que vão sendo e não o que podem vir a ser. Tudo é um estado remediado da existência. Sobrevive-se e tenta-se a todo o custo afastar o tédio. A existência humana é a preto e branco, sem grande definição, e sem nenhum sentido, que não seja sentir o menos possível a passagem do tempo. Viaja-se para Cleveland, porque sim, sem nada para fazer, que não seja esperar que o dinheiro não se acabe depressa e que a morte e o sofrimento tardem. Quando chegam a Cleveland, numa paisagem cheia de neve, Eddie diz a Willie: “Sabes, é engraçado. Conheces um lugar novo, mas tudo parece igual.” Tudo parece igual, porque tanto de onde se veio como onde se está continuamos sem sentido. Tanto antes como agora não há sentido. A vida é como uma paisagem tolhida por uma tempestade de nevoeiro. Não se vê nada e mesmo que se visse nada haveria para ver, como na magnífica cena junto ao lago Erie, em que os personagens vão ver o lago e não se vê nada a não ser branco por todo o lado, neve e nevoeiro. O que está por vir não se vê e o que se vê entedia. Tudo entedia. O mundo é uma máquina de criar tédio. Willie responde “Não digas! Sério?” E atira pedras à neve. A frase “No future” corre pelo interior do corpo.
Ninguém se apaixona. Não há amor nem paixão no filme. Não há nem bem nem mal. Ninguém é bom, ninguém é mau. O tema do filme não é ético, é ontológico. Tudo é tédio. Ninguém tem planos, ninguém tem talento. Aposta-se nas corridas para continuar. Não há sequer paixão nas apostas. Nunca se vê os personagens a apostar e vê-se uma única vez a jogar poker. Jogam para continuar e não por paixão ou vício. Jogam como quem vai para a fábrica trabalhar (como aquele que espera pelo autocarro quando eles estão a sair de Nova Iorque). A vida é continuar e não se sabe nem porquê, nem para quê e nem sequer se pergunta. Arrasta-se a existência e atira-se pedras à neve e conduz-se um carro pelas estradas, de uma cidade até outra e até outra. “I Put A Sell On You”, é posto a tocar num pequeno gravador de cassetes por Eva, de vez em quando, como se fosse a própria vida que lhes tivesse lançado um feitiço. “I Put A Spell On You”, com os gritos e os exageros vocais de Screamin Jay Hawkins transforma-se em nós no grito “No Future” dos Sex Pistols. A vida não tem futuro. Essa, a vida que nos foi lançada como um feitiço, cheia de tédio até à medula. “I Put A Spell On You”, diz-nos ela, a vida, o tédio. E os desencontros no final do filme sublinham a impossibilidade de nós mesmos fazermos sentido da vida que levamos. É a vida que nos atira para onde quer, quando quer… Lança-nos um feitiço.

19 Jun 2018

António-Pedro Vasconcelos, realizador: “Um bom filme é uma espécie de Juízo Final”

Com mais de 50 anos de carreira, António-Pedro Vasconcelos lamenta a falta de público para o cinema que se faz em Portugal e a forma como são dados os financiamentos à sétima arte. O cineasta está em Macau para apresentar “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens” no âmbito das comemorações do 10 de Junho

[dropcap]É[/dropcap] filho e neto de juízes e começou por estudar Direito. Como é que aparece o cinema?
Estudei Direito porque a família achava que devia dar continuidade à tradição, mas isso não aconteceu. Primeiro através da banda desenhada e depois através de histórias e de romances, o meu universo sempre foi o da ficção. Sempre me interessaram as histórias. Mais tarde descobri o cinema. Acabei por sentir que tinha de passar para o lado de lá. Tinha de deixar de ser um leitor e um espectador para passar para o outro lado, para transmitir os sentimentos que a realidade me inspiravam, acerca dos meus próprios problemas e daqueles que via à minha volta. O cinema dava-me isso e foi o que me fascinou: o poder ser capaz de transmitir aos outros aquilo que sentia.

O que é para si o cinema?
O cinema foi a grande arte do séc. XX. Sempre achei que sem ficção a vida tornava-se insuportável. A ficção dá-nos a ilusão de um mundo perfeito, mesmo nas tristezas. Costumo dizer que um bom filme é uma espécie de juízo final em que decidimos quem mandamos para o inferno, para o céu e para o purgatório – agora já não há purgatório, mas era um conceito que dava jeito. O cinema tem uma coisa que lhe é particular, aliás o realizador que me marcou toda a vida, François Truffaut, numa entrevista que lhe fiz disse-me isso mesmo: no cinema, e ao contrário da literatura e de outras artes ficcionais, nós não podemos deixar que o público saia da sala com o sentimento de que a vida não vale a pena e de que é injusta. De facto, podemos escrever um mundo de injustiça, de desigualdades, de violência, de guerra até, mas o sentimento que temos de dar às pessoas é de que o facto de transmitirmos o que é mau já significa que temos uma ideia do que é justo. Apesar de ser muito céptico em muitas coisas, de ter a noção de que a natureza humana está longe de ser perfeita, que os homens não são particularmente bons, que são bons e maus, conforme as circunstâncias e conforme tudo aquilo que o Shakespeare disse, acho que cada um de nós tem de ter uma visão crítica e positiva. Não devemos aceitar a injustiça, mesmo que se saiba que nunca haverá um mundo justo, que nunca haverá um mundo solidário e totalmente livre. Temos de nos debater constantemente para corrigir as injustiças quer ao nível daqueles que nos estão perto quer ao nível da sociedade.

Quer dizer: deixar algum tipo de mensagem de esperança?
Não é bem de esperança. Acho que a esperança, como a fé, são coisas em que delegamos a responsabilidade porque não dependem de nós. Aliás, São Paulo dizia que das três virtudes – fé, esperança e amor – o amor era o mais importante. O amor no sentido da fraternidade, da solidariedade, a dádiva desinteressada e da compaixão, isso já depende de nós. Posso ter esperança que a vida me corra bem, posso ter fé que me vai acontecer alguma coisa, mas o que é importante é aquilo que depende de nós. Nós temos de ser melhores, mesmo quando não esperamos retorno. O amor tem de ser incondicional. Estou-me a referir ao sentido lato do termo e não no sentido romântico. O romantismo teve uma coisa terrível que foi confundir na expressão amor. Teve um efeito bastante perverso e negativo. Se há algum tema quase recorrente nos meus filmes, é de facto uma reflexão sobre esta ideia de que o romantismo meteu na palavra amor uma série de coisas que não são necessariamente compatíveis, ou que não coincidem com o amor. O sexo, o desejo, a paixão a conjugal idade são coisas diferentes e que às vezes até entram em conflito. A paixão, por exemplo, é uma coisa turbulenta e que, muitas vezes, conduz a qualquer coisa que pode ser o oposto do amor. Conduz ao ciúme ou ao crime.

FOTO: Sofia Mota

Traz a Macau três filmes: “Jaime”, “Os imortais” e “Os gatos também têm vertigens”. Como é que fez esta selecção?
Talvez porque são três filmes que ilustram bem a minha preocupação, sobretudo na segunda fase da minha obra. Os meus três primeiros filmes eram muito confidenciais em que o personagem principal era um pouco o meu alter-ego e reflectia muito as minhas preocupações pessoais em matéria de amor e não só. Nos outros filmes olho mais para fora de mim. São três filmes em que cada um, à sua maneira, fala de três realidades que me preocupam e que traduzem, em três épocas diferentes, as realidades do meu país. A exploração do trabalho infantil que aparece em “Jaime” é um assunto que me choca muito. “Os imortais”, porque fala de uma realidade que o cinema português fala muito pouco. Não é propriamente da guerra mas da ressaca da guerra colonial. “Os gatos também têm vertigens” foi escolhido porque tentou traduzir um sentimento que prevaleceu durante o período da chamada austeridade e da intervenção da Troika. Foi o período talvez mais negro da história da democracia portuguesa em que os portugueses foram castigados, sobretudo a classe média e os jovens. O filme não fala propriamente disso, mas dessa crise através de dois personagens que pertencem a duas gerações extremas, os idosos e os mais jovens, sobretudo aqueles que são marginalizados e que correm o risco de ficar fora da sociedade e enveredar pelo crime. Escolhi estes três filmes porque acho que traduzem bem aquilo que o meu cinema tenta ser: falar das coisas à minha volta.

Estamos no Oriente. Qual é a sua opinião do cinema que se faz aqui?
O cinema japonês foi talvez o cinema mais rico aqui no Oriente, durante muitos anos. Depois houve aqueles filmes do Bruce Lee, mas antes disso houve um grande cinema japonês que descobri nos anos 60 através de três grandes realizadores: Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi. Há também uns filmes do Wong Kar-wai que gostei muito, mas não é uma cinematografia que conheça muito bem. Não chega a Portugal e o Wong Kar Wai foi talvez o realizador que mais me impressionou.

Tem sido muito crítico no que respeita ao financiamento do cinema e da ditadura do gosto.
Todo o cinema europeu, a partir dos anos 80, entrou em declínio. Sempre me preocupei em tentar perceber porque é que isso aconteceu e o que se podia fazer para travar este declínio. Em quase todos os países da Europa chegou-se à conclusão de que o Estado tinha de intervir, regulando o mercado, criando incentivos e inclusivamente financiando uma parte da produção. Em Portugal, em 1971, ainda em pleno regime marcelista foi criado um sistema que perdura até hoje no seu paradigma que é de que o Estado deve impor taxas – na altura às salas de cinema que eram quem lucrava com os filmes, mas hoje em dia a toda uma cadeia encarregue da comercialização dos filmes. A ideia que o Marcelo Caetano impôs com esta lei foi a de que as salas de cinema tinham de pagar uma percentagem dos seus negócios para financiar o cinema português, mas como era um regime de ditadura impôs-se que em vez de se criar um regime de obrigações como acontece noutros países, esses 15 por cento sobre os bilhetes fossem para um organismo criado pelo Estado onde um grupo de quatro ou cinco pessoas ía ler os argumentos e decidir que filmes é que eram autorizados. Este paradigma, paradoxalmente, manteve-se em democracia, ou seja, hoje em dia o Estado criou uma série de taxas e de obrigações, mas, na maioria dos casos, o grande suporte financeiro obtido por essas taxas vai para o Instituto de Cinema, que por sua vez escolhe cinco indivíduos que decidem o que é que dez milhões de portugueses devem ver. Isto é uma coisa com que não me conformo há 44 anos porque este instituto depende do Ministério da Cultura que arroga-se o direito de, com o dinheiro dos outros, escolher que filmes é que se devem fazer. Não imagino o Ministério da Cultura a decidir, cada ano, se deve escrever a Lídia Jorge ou o Lobo Antunes, ou quem deve compor música, se é o Jorge Palma ou o Sérgio Godinho. Somos o único país da Europa em que o Estado não investe directamente no cinema. Isto é tudo um completo absurdo que tem favorecido um cinema muito mais autista que o público não reconhece e que não vai ver.

Está a falar do cinema de autor?
É o que eles chamam de cinema de autor. Mas o cinema de autor não é isso. Hoje em dia criou-se esta ideia em Portugal: o cinema de autor é o cinema que não tem público e o que não tem público é o cinema comercial com os preconceitos que lhe estão inerentes. O cinema deve deixar um testemunho através do reconhecimento público, não há que ter medo do público.

Quais são os filmes da sua vida?
Isso é uma longa lista. Alguns grandes autores americanos: John Ford, Capra, Samuel Fuller foram realizadores que me marcaram para a vida. Depois há toda uma escola do cinema europeu nomeadamente a escola neo-realista. O meu autor preferido sempre foi o Rossellini. Em França, o Jean Renoir e mais tarde os autores da Nouvelle Vague. Os primeiros anos do Godard e do Truffaut. Alguns filmes do Polanski, por exemplo. O paradoxo é que hoje só se fala de cinema de autor e desapareceram os autores na Europa. O único que talvez sobrevive é talvez o Nanny Moretti. O próprio Almodovar deixou de ter interesse. Ele fez um retrato de uma época em que a Espanha mudou muito e ficou desfocado da realidade. Mas não vejo grandes autores na Europa, às vezes vejo bons filmes. A partir do momento em que os autores começaram a desprezar o público, deixaram espaço para muitos filmes que não têm alma, deixaram de dar oportunidade ao público para ver bons filmes. Ao contrario de muitos realizadores, há décadas para cá que os realizadores se sentem felizes por não ter público porque acham que a grande arte não é compreendida. Para mim isto é um contra-senso.

Que filmes lhe falta fazer?
Falta-me fazer muitos filmes, sobretudo aqueles que não fiz, mas quanto a isso já não há nada a fazer. Também não vou ter muito mais tempo para os fazer. Vou fazer mais dois ou três. Tenho 79 anos e apesar de me sentir em forma não posso fazer grandes planos para o futuro. Quero fazer um filme que se passa num lar de idosos, outro sobre os filhos de pais separados. Interessa-me a sensação de insegurança em que o mundo vive. Tenho alguns projectos e espero que os tais júris pensem que os meus filmes merecem ser feitos. Preocupa-me sobretudo as novas gerações e gostava que mudassem esta visão do cinema e a intervenção do Estado. Gostava que aparecesse uma geração que tem muitas coisas para dizer e que tenha um olhar diferente do meu. O meu é um olhar, apesar de tudo, marcado pela idade com tudo o que isso tem de bom mas também já moldado. É preciso ouvir as novas gerações que obviamente têm uma visão diferente do mundo.

Está há uns dias em Macau. O que tem a dizer?
É uma cidade estranha. É uma cidade onde floresceram os casinos. Tem um lado de Las Vegas, exuberante e muito artificial e há também marcas da presença portuguesa. É uma cidade de contrastes.

11 Jun 2018

A vida vai ao cinema e o António Cabrita também

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos viajar por um livro muito especial. Um livro que parte de um personagem de cinema para levantar voo numas reflexão e diversão acerca do nosso contemporâneo, com os pólos no cinema em geral e João César Monteiro em particular, e arte e literatura em geral e Fernando Pessoa em particular.

É assim como que um livro que vai ao cinema, com toda a confluência de artes que o cinema tem. E antes de entrarmos neste texto de António Cabrita, talvez até em todos os outros que ele escreveu, convém não trazer consigo a realidade. Deixemo-la à porta. Mas se a realidade não é para aqui chamada, também não é menos verdade que ela pode ver-se reflectida aqui. Não que o texto seja ou não um reflexo da realidade, mas que esta pode ver-se reflectida nele, se tentar espreitar.

Assim, e para ser conforme a António Cabrita, que é prolixo de intertextualidades, diria mesmo que é um mestre nas intertextualidades, pois não usa outros textos para se mostrar, mas para mostrar o que está a fazer, também eu vou tentar aproximar-me de outros textos para melhor mostrar aquele que estou aqui a fazer. No seu célebre livro, Ou-Ou. Um Fragmento de Vida, a um dado momento Kierkegaard debate-se com uma tentativa de nos mostrar que o Don Juan de Mozart é a obra das obras, o clássico dos clássicos. Depois de várias páginas, reconhece que não pode apresentar prova e escreve: “Contudo, desisto de toda esta investigação.

Está escrita apenas para apaixonados. E tal como uma criança com pouco se alegra, também assim acontece, como é sabido, que uma coisa amiúde muitíssimo estranha pode alegrar os apaixonados. É como uma calorosa disputa de amor sobre coisa nenhuma, e não deixa, contudo, de ter o seu valor – para os amantes.” (p. 94) Sem dúvida, também nós ao falarmos acerca deste texto de Cabrita, deparamo-nos com o mesmo paradoxo dos amantes: o mínimo gesto tem um valor absoluto, mas ninguém repara nele sem estar apaixonado. Um pouco mais adiante, Kierkegaard escreve aquilo que dará, agora sim, entrada à nossa leitura deste livro de António Cabrita: “Qualquer leitor que ache que brincar é uma maçada, não é obviamente cá dos meus, não lhe atribui qualquer significado e, contudo, aplica-se aqui como em toda a parte: as crianças parecidas brincam melhor.” (p. 95)

Ora para Cabrita, brincar é tudo menos uma maçada. Podemos até ir mais longe e dizer que, para o autor, brincar é a verdadeira dimensão do humano. O humano aprende para poder brincar melhor. Mais: tudo no humano tem como finalidade um brincar melhor. Todo o esforço humano vai nesse sentido, mesmo que ele não se dê conta disso. Porque a brincar, o humano não só se descobre a si mesmo, como também se melhora a si mesmo.

E não foi Fernando Pessoa quem melhor nos ensinou isto? Não é o jogo da heteronímia pessoana um enorme jogo que ele construiu para poder brincar melhor, para poder ser melhor, inventando outras crianças com quem brincar, porque as “crianças parecidas brincam melhor”? Pois e a verdade é que a raiz literária de Cabrita é Pessoa, ou pelo menos uma das raízes. E isto podemo-lo ver bem neste livro. Reparemos nisto: João César Monteiro faz de João de Deus um heterónimo seu – embora lhe chamem alter-ego – e Cabrita faz dos dois e dele mesmo heterónimos de si mesmo. Sim, porque em Cabrita – se não em todos nós – a memória é sempre heteronímica. Em Cabrita, tudo vale a pena se a brincadeira não for pequena.

“Eu, João de Deus, um dos homens mais espertos da minha pessoa, estava entregue à paródia (…)” (p. 63) O jogo de Cabrita com Pessoa – crianças parecidas brincam melhor – começa logo no início e percorre o livro todo. Aliás, A Paixão de João de Deus começa com alguém a tocar realejo e a recitar o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Mas leia-se, literalmente, como se inicia o livro: “Numa amolecida manhã de domingo de 2004, de malas já aviadas para o Báltico, flanava pela Baixa. Despedia-me dos lugares e murmúrios de meia vida; esquecido de ser lince, diluído no branco imponderável do Verão; sonâmbulo, sem pressa ou rumo.

Desperta-me, algures, a repetida ladainha de um realejo. O Anacronismo levou-me até à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Aí, um homem magro, meio encurvado, narigudo, de óculos escuros e rosto bexigoso, dava à manivela num realejo velho poisado sobre uma caixa de electricidade, ao mesmo tempo que, quase em surdina, recitava algo. Apurei o ouvido: era a Tabacaria, de Pessoa.” Daqui até cairmos num anúncio de jornal para tentar encontrar a rapariga suja que comia chocolates na “Tabacaria” de Pessoa, é uma estação de metro.

O livro convida-nos a aceitar tratar-se de uma entrevista, ou do que resultou dela, a um personagem chamado João de Deus. E a primeira frase que este personagem diz, ainda antes do livro começar, ainda quando entrevistador e entrevistado estão em negociações, é uma citação de Fernando Pessoa: “Morrer é não ser visto.” Por conseguinte, a partir daqui, se aceitarmos brincar, vamos entrar num escorrega quase infinito pela contemporaneidade e as suas incongruências. O narrador a partir daqui é João de Deus / João César Monteiro / António Cabrita / Memórias de António Cabrita / Sombra Fantasmática de Fernando Pessoa.

E a técnica preferencialmente utilizada é a da aglutinação frásica de mundos completamente distintos, que exige do leitor conhecimentos prévios vários, do mesmo modo que quando se vai brincar às Escondidas ou ao Amocha (Cá vai alho!) ou à Cabra Cega tem de se saber as regras do jogo. Aqui a regra é ter estado exposto à intempérie cultural do século XX, como por exemplo na cena entre o narrador e uma loura, ao balcão de uma tasca, em que ele, de modo a impressioná-la, vai antecipando as cenas do filme que passa na televisão, The Maltese Falcon (Relíquia Macabra, em Portugal, e O Falcão de Malta, no Brasil, que é como aparece no livro do Cabrita).

Como é sabido, é um filme icónico de John Huston, com o Humphrey Bogart e a Laureen Bacall, que ainda não eram um casal, mas passaram a ser, durante anos e anos, até à morte de Bogart. E a célebre frase do filme, dita por Bacall, aparece escrita no livro: “Já sabes, se precisares de alguma coisa é só assobiares… sabes como se assobia? Põe-se assim os lábios e sopra-se…” O leitor não precisa de ter visto o filme, mas ganha em tê-lo visto, evidentemente. Assim como em relação ao compositor Robert Gerhard, bem menos conhecido do que o filme atrás mencionado. Ou em relação aos inúmeros livros, autores, quadros (estou a lembrar-me, por exemplo, da Ofélia, de John Everett Millais).

Poder-se-á objectar com a célebre tautologia de que não é um livro para todos? É evidente que não! Mas quem é que quer escrever um livro para todos? Somente um deste dois: ou Deus ou um imbecil. Por outro lado, e de um modo mais modesto, poder-se-ia ainda perguntar se todas estas intertextualidades são necessárias. Mas então, para sermos honestos connosco e com a escrita, devemos também perguntar se o que um homem vive é necessário à escrita da sua biografia. Ora, o personagem de Cabrita viveu o século XX até ao tutano do que lhe foi possível – e é sabido que o tutano do século XX tem muitos outros séculos –, espremeu os limões do cinema, da literatura, da pintura e da música como pôde. E a vida dele não é possível de ser contada apartada disso. Um homem não é apenas aquilo que come e que bebe, é também aquilo que lê e que ouve. E cá temos outra vez o fantasma de Pessoa.

Não percamos mais tempo com tautologias e adiantemos um exemplo daquele que é o recurso maior e mais característico da escrita de Cabrita: “Falta à miniatura japonesa a gordura que faz da picanha um menu e que entreabre o barroco ao infinito.” Ainda que esta frase nos chegue aqui fora de contexto, e independentemente de estar certa ou errada – como se houvesse certo ou errado numa brincadeira, a não ser tentar prolongá-la até ao infinito, até que nunca se volte a cair na hora da sesta –, veja-se os três mundos que nos abre: Haiku (a miniatura japonesa a que o autor se refere é essa forma poética); a gordura da picanha; barroco e infinito.

Ou seja, passamos da arte à sensualidade da mesa e desta à estética (enquanto reflexão sobre a arte) e à filosofia. Uma só frase dá de comer a muita gente. É um festim. Fosse eu outro, e diria que é uma frase extremamente sinestésica. Uma frase cheia de sinestesia, que nos desperta todos os cinco sentido que temos, e mais alguns. Mas reparemos melhor nesta técnica, que não é “apenas” a junção de quatro realidades distintas (haiku, picanha, barroco e infinito). Para além da metáfora, que veste esta frase, cada um dos elementos deste quarteto aparecem ainda com os ornamentos da metonímia e da sinédoque.

Por exemplo, o haiku, que nos mostra não apenas a si mesmo, mas também o bonsai e por arrasto todo o Japão; ou a gordura da picanha que nos leva para a América do Sul e para um churrasco, o calor das brasas e o barulho da gordura sobre o fogo; ou o Barroco, que nos leva para o passado e para a exuberância do detalhe, viagem que nos é imediatamente contrariada com a ideia de infinito, que aparece como que em forma de antítese. Assim, e numa mesma frase, pequena, vamos do Japão ao infinito, passando pela picanha, com uma pequena paragem na América do Sul e no barroco.

E julgo que estamos aqui diante do que podemos chamar de tipicamente cabritiano: uma sinestesia metafísica. Ou, de um outro modo, muito mais cabritiano: o mundo de calções a cavalo numa trotineta, a descer para a praia com o Louvre, Hollywood e um quarteto de cordas no bolso, e a mascar pastilha elástica Gorila. Diz o narrador para a loiraça, sentado ao balcão da tasca: “O cinema é a vida e a vida sabe-se de cor.” Se antes nos aproximámos daquilo que é a arte de Cabrita, agora aproximamo-nos do que é o Leitmotiv deste livro.

Do mesmo modo que podemos dizer que ler não é apenas ler, ler é viver, pois cada um de nós lê com o que põe na sua leitura, quer seja leituras anteriores, quer seja amores perdidos, braços partidos ou um filho morto, também o cinema não é apenas o que se vê, naquele momento em que se abrem as imagens diante dos olhos. No fundo, aquilo que perpassa por todo este livro de Cabrita é que o nosso ponto de vista existencial é hermenêutico, isto é, tudo chega até nós pela interpretação que fazemos. E tanto faz que seja através de um filme, como através de um livro, ou de um quadro, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Nós estamos sempre a ler, a interpretar, a calcorrear o mundo e nós mesmos com pés de Hermes.

O livro é absolutamente estonteante, repleto de episódios, a um mesmo momento divertidos e reflexivos, como o do hotel com o chinês Min Lau e a evocação de Genet, ou os sucessivos episódios de Porto-Sudão, onde se lê esta pequena passagem tão distante da pacata Lisboa: “Nesta vertigem, senti: a vida humana vale menos do que a de um cachorro e senti-me a perder a linguagem.” (p. 77) E, por falar em linguagem, aproveito a deixa para terminar com esta frase enigmática: “Se contar se fundisse com o que aconteceu seria proibitivo pois as retinas dos leitores seriam respigadas de cal viva.”

29 Mai 2018

Actriz de “Twin Peaks” Pamela Gidley morreu aos 52 anos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] actriz norte-americana Pamela Gidley, conhecida por interpretar o papel de Teresa Banks, a vítima de homicídio em “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, morreu aos 52 anos.

Morreu “pacificamente” em casa, em Seabrook, New Hampshire, no dia 16 de Abril, revela o obituário divulgado pela família no Domingo.

A causa da morte não foi revelada, acrescenta a BBC, que noticiou a morte da actriz.

Pamela Gidley, ex-modelo, chegou a ser considerada a “rapariga mais bonita do mundo” pela Agência Wilhelmina Modeling, em 1985.

Começou a representar um ano mais tarde, contracenando com Josh Brolin e com a futura co-protagonista de “Twin Peaks” Sherilyn Fenn, em “Thrashin’”.

Num tributo publicado na rede social Instagram, Brolin recordou “memórias incríveis e inocentes” de Gidley.

“Era uma pessoa irascível e verdadeiramente divertida”, acrescentou.

Nascida em Methuen, Massachusetts, Pamela Gidley estudou no Conservatório Stella Adler, em Nova Iorque, antes de se mudar para Los Angeles.

O papel como a jovem problemática Teresa Banks, em 1992, “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, do realizador David Lynch, mostrou a sua transformação.

Em 2016, durante uma entrevista sobre Twin Peaks, Gidley contou que Lynch a abordou pessoalmente para fazer aquele papel, apesar de, na altura, ela estar a filmar “The Crew”, nas Caraíbas.

“Ele ofereceu-me aquele papel, mas havia ali um conflito de interesses”, disse, acrescentando que David Lynch queria tanto que ela ficasse com o papel que garantiu ao outro filme que pagaria todas as viagens e seguros.

“Eu ia literalmente das Bahamas para Seattle, de Seattle para as Bahamas, praticamente a cada dez dias. Para mim era tipo ‘Wow, queres-me assim tanto? Não consigo imaginar ninguém a querer-me tanto”.

Gidley apareceu na televisão e em filmes, incluindo no clássico de culto de ficção científica “Cherry 2000” e na série dramática da CBS “Angel Street”.

A última vez que apareceu no cinema foi em 2005, no filme independente “Cake Boy”.

2 Mai 2018

250 filmes de Todos os géneros num festival

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] bertura oficial do 15º Festival Internacional de cinema de Lisboa

Carlos Ramos, Miguel Valverde, Nuno Sena, apresentam a 15 edição como “continuar a fazer do IndieLisboa uma grande festa à volta de um cinema permanentemente aberto à descoberta formal, à singularidade autoral e às convulsões do mundo contemporâneo.”

Afirmam que a programação aposta numa selecção que promove o encontro entre nomes consagrados do cinema de autor mundial e novos cineastas. A característica mais distintiva do festival é a mistura, a hibridez de géneros, e duração. No cartaz estão curtas e longas. A secção do Herói Independente é, como sempre, incontornável. Este ano faz-se com o cinema de Jacques Rozier , nome da vanguarda da modernidade cinematográfica europeia desse tempo de mudança conhecido como “nouvelle vague”. Jacques Rozier é um dos mais desconhecidos cineastas desse movimento. A sua obra vai poder ser descoberta ou revisitada numa das mais completas retrospectivas fora de França, nas salas da Cinemateca Portuguesa.

O segundo herói nesta edição, chega da Argentina e tem nome e corpo de mulher, é a cineasta Lucrecia Martel. Vai ter uma retrospectiva alargada da sua obra, desde a curta até ao filme Zama. Martel vai estar no Festival e fazer uma MasterClass onde partilhará a sua visão do cinema.

A longa metragem de André Gil Mata, ARVORE, foi título escolhido para a cerimónia de abertura do festival do realizado. O filme chega ao ecrã do cinema S. Jorge depois de ter estreado na Berlinale Forum.

Uma SOLIDÃO PÓS-UTERO. O filme tem uma belíssima fotografia assinada pelo João Ribeiro, o trabalho de som é do António Figueiredo e a montagem do Tomás Baltazar.

O filme é um claríssimo tributo ao cinema de Bela Tárr e também do soviético André Tarkovsky. Retoma a ancestral estrutura de todas as tradições das literaturas orais e escritas nas histórias dos povos do mundo, em que estão presentes a iniciação, a demanda do herói e o regresso.

O cinema desde sempre se apropriou das estruturas narrativas presentes na literatura e da tradição iconográfica e pictórica e aqui, no filme de André Gil Mata querendo e procurando uma ideia radical de cinema, é essa tradição oral e pictórica que o filme sobretudo afirma.

Aqui temos um infante que olha o mundo através da janela perto da proteção da mãe. O homem que sobe o rio carregado de garrafas vazias para encher na fonte da água inicial. O encontro do homem com o infante e o regresso à fala da mãe, esse lugar único e protetor no mundo gélido e lunar do habitar humano, ainda mais quando a memória da guerra e o e a neve do inverno se instala.

A infância, esse lugar primeiro da singularidade do humano, é sobretudo a marca de um tempo onde o calor da casa e o quente e protetor afecto da mãe protegem do exterior. O bafo quente contra o vidro embaciado da janela, olhar a neve e frio perto do calor do fogão da movimentação da mãe.

Há depois um tempo de confronto com o mundo sempre hostil, é preciso esforço sacrificial na procura da água da fonte não poluída e a metáfora instalasse por um tempo largo. Um homem caminha na terra coberta de neve e sobre com o esforço dos braços que remam o pequeno barco as águas do milenar rio que atravessa Sarajevo na direção da fonte da água limpa onde possa encher as garrafas vazias. É necessário lembrar que Saravejo é/foi recentemente na história da europa esse lugar da humilhação e do horror sangue e dólares sempre presentes nas no tabuleiro do poder do geopolítico. Fantasmas, que são afinal o que resulta desta vontade de acumulação e fixação do animal homem, ainda que efémera no habitar do tempo. Em Saravejo é um rio que assiste e lava a dolorosa memória, na atualidade na Síria são areias e pó de cimento e em muitas outras geografias muros electrificados de arame farpado, o horror, tal como a beleza, é universal.

É por isso que crescer é também este confronto com o horror, e que a criança inicial foge do homem adulto que regressa da fonte e olhado da sua perspectiva como o fascista. Crescer é difícil, e os perigos são muitos. Mas crescer é alimentar a curiosidade, dar respostas ao deslumbramento perante o espanto e a natureza do mundo. O Homem diz-lhe que sabe um segredo, é quanto basta para apaziguar os medos da cabeça do infante. Um segredo que passa por esse lugar inicial do amor da mãe como talvez o único lugar capaz da proteção e conforto perante o mundo, o mundo natural e o mundo humano.

Estamos num cinema que trabalha a materialidade, as marcas do tempo impressas no corpo das coisas, um cinema tempo de compridos travellings, e planos sequência, do escuro e da luz, da procura da revelação.

Uma obra que retoma linhas e posicionamentos formais dos grandes mestres Tarkovsky e Bela Tárr. Aliás André Gil Mata, que é Mestre em Dramaturgia e Realização pela Escola Superior de Teatro e Cinema teve uma passagem na film.factory, escola dirigida por Bella Tárr.

Macau no Indie 2018

Uma curta e uma longa, o programa foi organizado para mostrar a diversidade géneros produzidos no território.

BETWEEN THE LIES de Lou Ka Choi, Leong Kin. Animação.

ILLE GALIST   de Penny Lam

Ficção , 26 minutos , preto e branco

O primeiro filme de ficção da Penny Lam , tem como tema a imigração do continente, um para trabalhar nas obras e uma nas atividades comerciais do sexo. Mas nada é propriamente fácil.

PASS ON , de Benz Wong

Documentário que trabalha a educação no núcleo família e como pode a educação em casa influenciar o mundo.

THE LAST ROAR OF A MOTHER BEAR de Marble Leong e Zachary Fong , 80 minutos, ficção.

Dois homicídios com onze anos de distância afectam profundamente dois estranhos. Ele levou um tiro na cabeça e desenvolveu uma perturbação de Identidade Dissociativa que não conhecia. Ela foi mentalmente ferida e a sua retaliação é a única coisa que a faz, perigosamente, continuar.

Cine-performance epistolar, entre o passado e o presente. Num registo autobiográfico, um homem partilha cartas, imagens e sons que trouxe de Macau, onde viveu. Um português longe de casa mas a sentir-se em casa no meio da China.

“… a cleverly-imagined, impressionistic, well-executed and ultimately touching show.” (Peter Gordon/Asian Review of Books)

Este filme – performance teve a sua primeira exibição no território de Macau, surge aliás de um convite The Script Road – Festival Literário de Macau.

António Pedro coloca no ecrã textos selecionados a partir das 194 cartas que recebeu quando viveu em Macau. Das 194 restaram 21. António Pedro tinha em 1994, 24 anos, a questão mais central que se lhe colocava e que queria dar resposta era “ O que quero fazer com a minha vida, o que não quero fazer”. Um trabalho entre o passado e futuro com imagens captadas em diferentes suportes lidas e musicadas pelo próprio .

Concepção e direção artística António-Pedro

Apoios The Script Road – Festival Literário de Macau, DGArtes, Fundação GDA, Fundação Oriente, Bazar do Vídeo, Câmara Municipal de Lisboa

 

 

 

2 Mai 2018

“Belarmino” de Fernando Lopes, uma nova figura mítica

[dropcap style =’circle’] F [/dropcap] ilmado em 1964, um ano depois da apresentação de O Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira – filme ao qual todos os cineastas em Portugal ficaram a dever, de um modo ou de outro, como escreve João Mário Grilo em O Cinema da Não-Ilusão, “esta obra [O Acto da Primavera] explica toda a relação do cinema português com a realidade e esse espaço de relação entre a representação e o real. Todos nós, os que viemos a seguir, só repetimos esse conceito de modos muito diversos” –, o filme começa com as imagens de vários pugilistas a treinar nas instalações do Sporting Club de Portugal, e Belarmino Fragoso equipado a caminho do treino. Por fim, escuta-se a voz off [de Baptista Bastos] a dizer: “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios leves, e agora é quase um punching ball [saco de porrada]: Belarmino Fragoso.” Anuncia-se, portanto, logo no início do filme, que iremos assistir à derrocada de um homem. Ficamos a saber que foi bi-campeão nacional da sua categoria, mas a corda que tange na nossa sensibilidade é a frase “poderia ter sido o melhor”. E não foi, porque se perdeu. Como é que um homem, que ganha no ringue a todos os outros, perde para si mesmo? Esta é a pergunta fundamental, um dos vários golpes de génio de Fernando Lopes nesta sua obra prima. O que leva um campeão a tornar-se um saco de pancada? O que leva um homem a voltar a ajoelhar-se junto aos sapatos sujos dos outros (a outra profissão dele era a de engraxador)? É isso que vamos tentar entender ao longo do filme. E em busca dessa resposta, Fernando Lopes invade-nos de solidão, de solidões. A solidão é um baixo contínuo que percorre o filme de grade a grade. Em O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal – Belarmino (Novembro de 2007), José Neves diz: “O filme começa com uma grade – um grupo de pugilistas treina sozinho atrás de uma grade, de uma rede, como se fosse uma prisão ou uma jaula. (…) E o filme acaba também com grades (…)”. Entre a grade inicial e grade final, a liberdade. A existência de Belarmino, um homem marcado para se perder. Este olhar o filme como uma tensão entre liberdade e prisão, entre cidade e interior é outra das leituras legítimas. A solidão filmada no Hot Club, com a música e a banda de Manuel Jorge Veloso, que carrega as cores negras e nostálgicas da solidão em que todos se encontram nas noites do filme. Ninguém está com ninguém. Ninguém fala com ninguém. As pessoas amparam-se. Amparam-se umas nas outras (não umas às outras), como se se amparassem à morte que trazem dentro de si, como um segredo ou o dinheiro que escondiam nas meias.

 

Escuta-se e vê-se, a um terço do filme: “Voz Off: Olha lá, tu já passaste fome? / Belarmino: Fome, fome, fome, não é fome de três dias… Muitas vezes quero jantar não tenho, muitas vezes quero almoçar não tenho. Mas não quer dizer que isso seja fome, é mais um estado de fraqueza que existe em Portugal.” E aqui o filme alarga claramente do individual para o colectivo, do existencial para o social e político. E há também muitas leituras feitas ao filme através destes prismas sociais e políticos, com propriedade e justeza. Mas não é esta a leitura que aqui se faz.

 

Aqui e agora o tema de Belarmino – embora haja outros, como temos estado a ver – é a solidão. Está-se só na vida como se está só no ringue. E aqui está outro dos golpes de génio de Fernando Lopes, pois este filme não poderia ser feito com um jogador de futebol ou de hóquei patins, tinha de ser um boxeiro, como Belarmino dizia. No final do filme, Belarmino diz: “Se fosse engenheiro ou fosse médico ou fosse um arquitecto não ia pó boxe, fui pró boxe por honestidade. Porque dentro do boxe, ou de qualquer desporto, não há engenheiros ou arquitectos que vão pró desporto e que levam porrada na cabeça por gosto, são homens como eu, vadios.” Também na antiga Grécia, o desporto era sempre a expressão física da solidão. Sempre um homem só contra outro ou contra outros, ainda que representasse uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Belarmino está só no ringue, como está só frente aos sapatos de alguém que engraxa e está só nas noites, que Fernando Lopes filma magistralmente, como se a noite fosse não um mar, mas um Adamastor que nos impede de chegar a nós, que nos impede de afastar a inquietação, o desencanto, a “desalegria”.

 

A vida de Belarmino é à sua revelia. E é assim que nos é exposta pela realização de Fernando Lopes, que faz deste filme uma tragédia, no sentido clássico do termo. Belarmino aparece, desde logo de início, como aquele que poderia ter sido o que não foi ou que não chegou a ser. Mas o que agudiza o carácter trágico é que ele chegou a ser o que poderia ter sido. Por breves instantes ele foi o que poderia ter sido. Isto é, ele foi bi-campeão nacional de boxe. Durante um pequeno período de tempo ele foi o que poderia ter sido. E este ter sido o que poderia ter sido, apenas por instantes, que torna este filmes numa metáfora da existência de cada um. Todos nós fomos, por instantes, jovens. Todos nós fomos, por instantes, alegres. Todos nós fomos por instantes aquilo que poderíamos ter sido, mas que o tempo acaba por nos tirar. Belarmino, aquele que poderia ter sido o que chegou a ser, não é um personagem de cinema, é uma nova figura mítica. Como se o seu destino já tivesse sido traçado antes dele ter vindo à existência, volta à sua caixa de sapatos, ajoelha-se de novo aos sapatos sujos dos outros. Tu, humano, nunca serás aquilo que poderias ser; nunca serás aquilo que poderias ser e foste por um instante. Tu, humano, tu Belarmino.

24 Abr 2018

“O que resta?”

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] último trabalho do realizador J. Gaia – título original “What´s Left” de 2012 -, é um filme polémico, vanguardista, singular, devastador e maldito.

Apesar de vivermos numa conjuntura económica favorável, há uma grande falta do investimento, por parte do Governo, de que resulta uma certa estagnação da actividade cinematográfica. Talvez mais importante que a retracção, seja a ausência de uma orientação estratégica clara para o sector por parte das entidades competentes. Falta pensamento institucional, políticas próprias e por razões várias de decisores públicos. É tudo muito paroquial.

A cultura (cinema) é uma responsabilidade do Governo. Optar por festivais, pode não ser a melhor opção – veremos!

Sem grande pretensiosismo, J. Gaia agarra o impossível com mestria, agilidade e um talento notável. Uma “história” simples, linear, em que o realizador sem preconceitos ou conceitos, antes com desrespeito pelas regras base da cinematografia – sem grande consistência estilística – explora, experimenta, resumindo cria o retrato de uma cidade em mudança, com um quadro negro, diga-se psicológico, da sociedade. A dissolução.

Filme de palavra curta, com uma forte concisão da linguagem e, narrativamente simples. É a imagem que a dá a ver – ajuda a procurar uma saída positiva, criadora e eficiente, um meio audaz, necessário, o autor vive obcecado pela maximização (de meios e custos) e, talvez por isso surge como uma via de complemento de afirmação, sem subalternizações, como uma nova realidade estética, sem contudo cair na tentação de limitar campos, e conteúdos. Existe uma unidade entre texto e imagem que atinge pontos extremos de criatividade, elegância e invenção cinematográfica. Perfeita a montagem sincopada e electrizante.

Falar de crise através dos cúmplices, da bolsa através dos especuladores, do clima através das catástrofes, do ambiente através da destruição, da globalização através da fome, da justiça através da dignidade, do mundo através do entretenimento, jogo através de números, da palavra através de sobreviver, de presente através de consumo e futuro através de reprodução – um mundo de palavras soletradas uma a uma, de forma, solene, nobre, vigorosa e seca – em off -, doseadas com imagens digitais de um impressionante realismo atroz inquietante e perturbador. Um diálogo (palavra/imagem) existencial, sem divagações ou histerias, que se abate sobre o espectador, podendo criar ansiedade e depressão, sobretudo naquela faixa etária mais resignada.

Há duas ou três cenas, no filme – onde existe mais cinema a ver do que em algumas dezenas, mas não dizer centenas de filmes inteiros -, dessas sessões contínuas que enchem a cidade inteira.

Sem comentários adicionais, para não perturbar o espectador nas suas “leituras cinematográficas”, veja-se por exemplo a cena «Missa Dominical». Ao sair da Igreja de braço dado com a sua afilhada Joaninha, D. Amélia Cunha – grande plano da Igreja de S. Lázaro (Porquê esta Igreja?), com a figura tutelar do padre na despedida aos fiéis, ainda no adro, abre a sua sombrinha e ouve de Joaninha: “Não madrinha é um problema de inveja”.

A que D. Amélia responde – apesar da idade – em tom seco e timbrado, “não minha filha, aqui os problemas são única e exclusivamente de dinheiro”.

Surge uma «cortina», aqui necessária e obrigatória (por causa das más interpretações), mas talvez o único senão ao longo do filme, o seu uso e abuso, apesar de todos nós sabermos que a cidade deixou há muito de poder ser um estúdio ao ar livre. Fazer exteriores com orçamentos apertados, é impossível.

A cena seguinte – é digna de bom entendedor – no restaurante «Hong Feng » (Montanha Vermelha), ficam casualmente sentadas entre uma típica família chinesa e uma portuguesa. Do lado esquerdo a chinesa e do lado direito a portuguesa. O olhar silencioso e as expressões de D. Amélia e Joaninha – quase perdem o apetite. Excelente, revela dois nomes a fixar, um grande momento cinematográfico.

Por fim, veja-se como Gaia filma em poucos planos sofás, cristaleira, estante, mesa, açambarcando toda a sala da família Cunha. É de mestre. Falamos da cena em casa dos Cunhas.

A cidade dorme. Joaninha numa noite quente, abafada, húmida, noite de pesadelos e insónias, acorda e dirige-se até à sala de jantar para beber um copo de água. Na quietude na noite, olha para a estante e reflecte. Dá dois passos em frente e olha atentamente para os livros. Estende a mão e pega na “Clepsidra” de Camilo Pessanha. Abre ao acaso o livro – lê interiormente – “Quem poluíu, quem rasgou os meus lençóis de linho, onde esperei morrer…”. Um som ensurdecedor irrompe da rua. Um «gangue» perturba o silêncio, o sossego a paz, com berros, gritos e desordens várias. Joaninha estremece, deixa cair o livro e fica estupefacta. (Porquê ?)

Em todas, ou quase todas, as cenas deste filme, existe uma grande dose de nebulosidade de ideias, jogos de palavras que sugerem, não explicam. Ao espectador, sobretudo aos mais distraídos, desde já um conselho. Alerta máximo, abertura de espírito e sobretudo grande empreendedorismo mental.

“What´s Left”, não é de maneira nenhuma um filme de entretenimento de massas, com efeito psicológico aliviador ou desangustiante – não se esperam ver filas intermináveis na procura de um bilhete, ou a acotovelarem-se na busca de uma borla, nem tão pouco a entupirem a Net… É, antes de tudo, um filme de grande criatividade, um filme intimista, que terá certamente o seu grande percurso em festivais de cinema, cinematecas e plataformas de distribuição online. Apesar de a distribuição se resumir a um restrito “grupo de amigos”, não está em causa a qualidade intrínseca da obra.

Ficamos à espera, se entretanto alguém se lembrar, de uma retrospectiva integral, não só para redescobrir, mas também reavaliar a obra de J. Gaia.

Um filme com abundante matéria de análise, reflexão e porque não discussão – a Ver!!!


“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a Humanidade já estavam todas escritas. Só faltava uma coisa: salvar a Humanidade.”
José Almada Negreiros (1893/1970), artista pástico/escritor
11 Abr 2018

Chavela Vargas – Santa Pecadora

[dropcap style=’circle’] C [/dropcap] hega esta quinta-feira às salas de cinema em Portugal, distribuído por Paulo Branco, o filme documentário de 93 minutos que teve estreia no festival de Berlim de 2017 na secção Panorama.

Foram muitas as noites que terminaram no anexo da moradia em Stª Cruz de Benfica onde vivia o escritor/poeta José Agostinho Batista, para quem o México tem uma mística e um encanto muitíssimo particular, com a voz da Chavela, já antes de ali chegados ouvida no El Salsero na Rua de Buenos Aires à Lapa e, anos mais tarde, no Mezcal, na travessa da Água da Flor no Bairro Alto. Foi numa outra vida, num quotidiano de noites tequila e whisky.

O filme de Catherine Gund e Daresha Kyi, são 93 minutos com esta mulher santa e pagã, e as suas muitas vidas, e em todas elas sempre essa luminosidade telúrica incandescente, dolorosa e ardente de quem em nenhum momento nega a alma que consigo transporta em paixão ardente e solitária, mesmo quando em amor acompanhada.

Chavela Vargas pertence aquela qualidade especialíssima de seres dotados de talento e beleza inatos, capazes de surpreender o mundo, de arrastar e seduzir quem com eles se cruza. A sua voz quando canta abre rasgos no peito de quem ouve, os olhos molham-se perante a força e singularidade única de uma respiração intensa e habitada a sangue de tragédia e a paixão.

Chavela Vargas nasceu na Costa Rica em 1919, o nome de registo é Maria Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano , morreu no México em 2012. A sua vida atravessa um século, conheceu e viveu a época clássica do cinema do México e de Hollywood, é ela que no filme nos diz que no casamento da Elizabeth Taylor, num dos primeiros porque foram oito no total, quando a noite deu lugar à privacidade da cama, foi com Ava Gardner que dormiu.

Chavela Vargas é, foi, uma amante predadora, e muitas foram as mulheres de políticos e da elite artística do México que se renderam à sua paixão. A carreira deste ser telúrico deve-se em parte ao compositor e cantor José Alfredo Jiménez, com quem estabelece uma relação pessoal e artística total. O filme é uma entrevista em que Chavela Vargas nos fala em voz própria montada com depoimentos de quem com ela se cruzou e viveu, e momentos de palco.

A vida desta mulher ícone da música Mexicana não foi uma viagem pacífica nas luzes do palco. Ainda em criança era escondida dos olhares de terceiros pela sua mãe por não corresponder à imagem da menina criança esperada e desejada. Na família em que nasceu o que os outros pensam ou possam pensar determinava os comportamentos e afectos que entre si se estabeleciam. Com o divórcio dos pais foi viver com uns tios. Aos 17 anos estava sozinha na cidade do México.

Era bela, era diferente, era única, a sua singularidade levou-a a outras representações da mulher, foi ela quem pela primeira vez cantou vestida calças e poncho e não com os vestidos de folhos e rendas como era uso na época.

Os palcos dos grandes teatros só se abriram para ela na segunda fase da sua carreira, depois de uma dezena de anos sem cantar nem editar discos. Esta fase terrível, deve-se ao excesso de álcool e também à perseguição do poderoso empresário Emilio Azcárraga por lhe ter seduzido a namorada.

É Pedro Almodovar quem a resgata e conduz aos palcos de Madrid e Paris. O cineasta tem por ela um amor espelho, adora-a. A qualidade humana e artística Chavela Vargas prendem-no por inteiro.

Este filme mostra-nos a mulher de corpo inteiro, que viveu com e sem tequila, de pistola por perto, solitária e apaixonada, que com a voz inteira diz sem tremer frases pouco apaziguadoras e radicais: “Eu sempre soube. Não existe ninguém que suporte a liberdade alheia; ninguém gosta de viver com uma pessoa livre. Se você for livre, esse é o preço a ser pago: a solidão”; “Ninguém morre de amor, nem por falta nem por excesso”; “O amor não existe, é um invento de noites de bebedeira”.

São várias os personalidades intervenientes neste documentário, o já referido Pedro Almodóvar, Laura Garcia Lorca, Miguel Bosé, entre outros. Um filme que faz permanecer viva a grande diva da canção rancheira Mexicana.

 

 

 

6 Abr 2018

Blow Up de Antonioni e Hermenêutica

[dropcap style = ‘circle’] E [/dropcap] m Blow Up, de Antonioni, ficamos depostos no sentido daquilo que é o acto hermenêutico. O filme mostra a vida do fotógrafo Thomas, em Londres, em 1965-6, o período áureo da chamada swinging pop. Período em que Londres era considerada a mais avant-garde cidade do mundo. Nesse mesmo filme, quase no fim, podemos assistir a uma actuação da célebre banda Yardbirds, por onde passaram os guitarristas Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page (fundador dos Led Zeppelin). Nesta actuação já não está Eric Clapton, mas o seu substituto Jimmy Page.

E o filme começa com o fotógrafo a entrar no seu carro descapotável, de manhã, depois de passar uma noite a tirar fotos de objectos para uma revista de arte, dirigindo-se para o seu estúdio, onde estão modelos à espera para serem fotografadas. Vemos também duas raparigas que insistem com ele, para que as fotografe (uma delas é a jovem Jane Birkin), mas ele pede que venham mais tarde. Vai então fotografar a top model da época: Veruschka (é ela a fazer de si mesma). E esta parte do filme já foi considerada por várias revistas como a cena mais sexy de toda a história do cinema. Depois destas fotos, Thomas vai ainda fotografar outras quatro modelos, que acaba por despeitar e retira-se do estúdio para espairecer. Ficamos com a sensação de estar diante de alguém superficial e, sem margem para dúvidas, alguém que fazia parte do mundo da moda e da sociedade da época. Aliás, se o filme é baseado num conto de Júlio Cortázar “Las babas del diablo”, o protagonista, Thomas, é baseado no fotógrafo David Bailey, que era o maior e mais badalado fotógrafo da Swinging Pop, com inúmeros trabalhos para as maiores revistas do mundo da moda. Ele é responsável pela própria cultura pop londrina da época, que misturava pela primeira vez celebridades, modelos e músicos pop nos mesmos lugares, fomentando assim grandes eventos mediáticos.

 

É esta pessoa que, à procura de espairecer, vai dar consigo num parque nos arredores da cidade e vê um casal aos beijos, de pé, no meio da relva. Começa a fotografá-los, de vários ângulos, enquadrando também nessas fotografias as árvores e os arbustos limites. Por fim, a rapariga apercebe-se da presença do fotógrafo e corre até ele, que vira costas e desce as escadas que levam a uma das saídas do parque. Ela consegue apanhá-lo e pede-lhe o rolo. Ele não lho dá, mas diz que lhe envia depois as fotos. Ela tenta à força conseguir tirar-lhe a máquina, sem sucesso, e ele vai-se embora. Durante todo este tempo não se vê aparecer o homem que estava com ela, que era mais velho, e quando a câmara volta a mostrar o parque, e o mesmo enquadramento de câmara que antes apanhava o casal, não se vê mais o homem, como se ele tivesse fugido. A rapariga volta para o parque, atravessando toda a parte da relva onde antes estava com o homem e Thomas volta a trás e fotografa-a a correr, indo embora.

 

Mais tarde, quando o fotógrafo chega ao estúdio, a rapariga está lá à porta, o que muito surpreende Thomas, pois não lhe tinha dado nenhum endereço. Ela insisti nas fotos, que as quer. Entram ambos no estúdio. Depois de alguns jogos, Thomas decide dar-lhe um rolo, como se esse fosse o rolo das fotografias da rapariga aos beijos. Não se vê eles a fazerem amor, mas fica implícito na montagem do filme. E ela vai embora deixando-lhe um número de telefone (que se irá revelar falso, mais tarde). Depois disto, ele finalmente entra na câmara escura e vai revelar as fotos. Nesta revelação depara-se com algo estranho, como se a rapariga num dos abraços ao homem estivesse a olhar à procura de algo ou de alguém. Volta à câmara escura e revela novamente as fotos mas partes aumentadas das mesmas. Com isso consegue vislumbrar o cano duma pistola entre os arbustos, que estaria evidentemente na mão de alguém. De imediato telefona a um amigo, que já antes aparecera no filme como sendo editor de uma revista de arte, falando da sua descoberta e dizendo que tinha salvo a vida de alguém, pois se não tem aparecido naquele momento para tirar as fotos, provavelmente ele teria sido morto. O outro não lhe dá atenção nenhuma e desliga o telefone. Thomas volta para a câmara escura, faz mais ampliações das fotos e descobre, numa das fotos últimas que tirou quando a rapariga corria, aquilo que julga ser um corpo caído entre a relva e perto dos arbustos. Já é de noite, mas ele volta assim mesmo ao parque e encontra o corpo caído junto aos arbustos. Não tinha levado a câmara com ele e regressa ao estúdio. Quando regressa, o estúdio tinha sido assaltado. Estava tudo remexido, faltavam inúmeros rolos e as fotos que ele tinha revelado desapareceram.

 

Aquilo que está em causa aqui é o poder da revelação. À medida que Thomas vai revelando as fotos, ampliando mais as partes que lhe importam, mais se vai vendo acerca do que parece ter acontecido. O que parecia ser apenas arbustos, com o exercício do aumento da revelação, deixa ver que há entre os arbustos o cano de uma pistola. E isto é o que Heidegger faz em relação aos textos que lê da Grécia Antiga. Por exemplo, quando a tradição filosófica traduzia alethéia por verdade, Heidegger, no seu exercício de revelação, de aprofundamento da leitura, vai dizer que alethéia é uma palavra composta “a” (negação) + “lethe” (esquecimento) que quer dizer “desvelar” (des + velar); ou seja, a palavra quer dizer des-tapar, des-cobrir. Alethéia quer dizer que algo que estava antes encoberto, passa a ficar a des-coberto. Por conseguinte, Heidegger vai revelando mais, vai indo mais fundo na análise que faz, fazendo com que se veja o que não se conseguia ver antes, sem essa revelação. E a isto chama-se hermenêutica, o exercício de interpretar ou de revelar o texto. Podemos ver de modo muito mais alargado no texto “O dito de Anaximandro” (in Os Caminhos da Floresta, pp. 371-440, na edição da Gulbenkian, 2014, 3ª edição), onde Heidegger começa por colocar o excerto de Anaximandro em grego, seguido da tradução levada a cabo pelo jovem Nietzsche, em 1873, para depois nos “revelar” aquilo que ainda, segundo ele, ficara escondido. O exercício de pôr a descoberto aquilo que o texto esconde, mas que está lá como essencial, sem o qual ficamos apenas a ver arbustos onde estava escondido alguém prestes a assassinar outrem. Voltando ao Blow Up, se Thomas não faz esse exercício de revelação, não ficaríamos a saber o que na realidade se estava a passar no parque. Pois aquilo que parecia ser um casal de amantes num tempo idílico, era afinal uma emboscada, um plano maquiavélico para assassinar uma pessoa. Pôr a descoberto ou revelar aquilo que não se deixa ver por si mesmo é o que se chama acto hermenêutico por excelência.

27 Mar 2018

Aparição, desvio e paixão

[dropcap style= ‘circle’] O [/dropcap] filme é protagonizado por Jaime de Freitas e Victória Guerra e foi rodado na cidade de Évora, onde Vergílio Ferreira foi professor. Chegou a esta cidade em 1945 na qualidade de professor de Português após a licenciatura em Filologia Clássica na Universidade de Coimbra em 1940.

O filme que agora chega às salas de cinema teve o galardão para o melhor filme português no Festival Internacional de Cinema Fantástico do Porto 2018, e não foi aceite em Veneza, Cannes e Berlim.

Alberto Soares, é o nome do personagem e é professor no colégio Espírito Santo, nome atual do na época Liceu de Évora.. A história passa-se nos anos 50, num Portugal onde uma burguesia rural tinha evidentemente assento e vida na cidade, mas em que cidade e campo eram realidades muito diferenciadas. Évora, cidade milenar, vivia em adormecimento uma anemia do sangue onde as vontades tem normas a cumprir. P “status quo” é o de uma ordem a manter em que nada se questiona, mas, como sempre e mesmo sem que saiba porquê, é impossível estancar a curiosidade, estancar da vontade, estancar o desejo, estancar a dor. O abismo pode chegar da forma mais inesperada, pelo crime ou pelo suicídio. Por vezes, demasiadas vezes, alguém decide o tempo do fim. É uma cidade que habita uma planície onde a força telúrica da terra e o excesso do sol encontram caminho, de certa forma paradoxalmente, no gélido território da morte. Não raras vezes alguém se abraça em excesso à corda e o corpo quando impedido de respirar não vive. O Alentejo telúrico e suicidário, é nos anos 50, um lugar distante, de contrastes fortes de sol e sombra, de sonhos por vezes indizíveis, onde o desejo caminha por vezes demasiado próximo da morte.

Neste Alentejo de espaço e sol a opção do realizador foi por um tempo de inverno, nuvens e chuva, uma outra forma da dimensão trágica dos céus.

Há na postura em aula de Alberto Soares, professor, e na relação que estabelece com a turma de alunos de português, que o aproxima desse grande sucesso cinematográfico que foi, é, o “ Dead Poets Society” de 1989 , escrito por Tow Schulman, realizado por Peter Weir e genialmente interpretado por Robin Williams, um filme que aproximadamente custou $ 16 400 000 e que fez um encaixe de $ 140 000 000 . A aproximação é tímida, a relação entre os alunos e o professor e entre o universo poético e a rigidez institucional do programa escolar é um apontamento, e não o corpo do desenvolvimento narrativo do filme.

APARIÇÃO também outro orçamento, não anda longe dos € 700 000 se acumularmos os diferentes apoios nas diferentes fazes do filme e o seu box office, se cobrir se vier a cobrir esse custo já será um enorme êxito, uma aparição de sucesso na cinematografia nacional.

Contingências de um cinema produzido num país que tem a sua maior distribuidora focada no “grande universo “ doméstico, e onde muito provavelmente toda a cultura é mais uma chatice do que uma área de trabalho para os ilustres governos da nossa não menos ilustre democracia.

O caminho escolhido pelo realizador e que é também o caminho da obra literária escrita em tempo anterior ao filme referido note-se, tem o enfoque noutras relações “desviantes” não só literárias. O dos corpos habitados pela tensão de Eros.

No quadro dos comportamentos ordenados, submissos e em regra com as leis da igreja e códigos civis, quais os comportamentos que resultando da força do sangue nas enzimáticas sinapses do cérebro, capazes de alterar a cor, a dureza e a liquidez da carne, o não são? É por isso que há uma moralidade volátil que acompanha o que de alguma forma se poderia chamar alter ego dos tempos se o tempo for também metafísica, prova-o código civil de hoje não ser igual igual ao de ontem, nem ao do próximo século, e também nunca o mesmo em todos os lugares e culturas.

No filme APARIÇÃO, Alberto Soares é o Virgílio Ferreira, há uma cena já na resolução do filme em que surge como o autor, e tem na relação com a jovem Sofia, filha do médico da cidade, o Dr. Moura, amigo do pai do Alberto Soares.

A aproximação acontece no decurso de explicações de Latim , língua clássica Indo-Europeia derivada do alfabeto Etrusco e Grego e um dos mais importantes instrumentos do poder do Império Romano. À jovem Sofia as línguas mortas causam pouco entusiasmo, é mais aborrecimento mesmo do que a excitação do conhecimento, e a presença do professor, homem bem parecido e com autocontrole, – enfim o possível- das emoções e pulsões eróticas, e as aulas particulares são um momento em que o tédio dos dias pode ser anulado pela agitação do sangue no exercício da sedução, jogo sempre com perigos, mas com os prazeres do flanar nos territórios do pólen e do mel. Despertam-se outras línguas, as línguas que se tocam, e nesse toque falam e tecem a volúpia doce e húmida do prazer dos corpos.

A aparição surge nos caminhos dos territórios não inteiramente coincidentes com a vida higiénica , mas também insalubre, da vida inteiramente civilizada e normativa, da vida útil, do casamento, da igreja e dos filhos, da acumulação de património e da sucessão dos bens. A vida esperada numa cidade rural dos anos 50 em Portugal, e em tantos outros lugares no mundo.

Sofia, é uma personagem luminosa, inquieta, representada pela Victoria Guerra, com aquele ancorar movediço nas emoções do contemporâneo estou aqui mas também não estou, quero e não quero, sou poço que incendeia, fujo para me agarrares, sou livre? do amor líquido sociologicamente caracterizado pelo Zygmunt Bauman no seu ensaio sobre a fragilidade dos laços humanos. Neste sentido a Sofia é uma personagem que habita mais este nosso tempo do que os idos anos 40 e 50 na Évora das pedras caladas.

Esse jogo em que vê reflectida a beleza que encontra quando se olha no espelho, bem como os caminhos usuais dos laços sociais e económicos que os laços entre os filhos constroem nos patrimónios das famílias, leva-a um namoro com um futuro latifundiário, agora adolescente e aluno de liceu na turma do professor escritor. É o Carolino, – numa interpretação convincente e subterrânea do João Cachola-, jovem desperto para dimensões perigosas do ser nas elevações do espírito nas aulas de Português. Há um combate entre um proto-fascismo em que se percebe a presença das correntes da força futurista do inicio do séc. XX e o existencialismo que na época , e também hoje, tinha em Sartre o nome mais visível. Vergílio Ferreira, Alberto Soares, acolhe e é expressão desse existencialismo, por vezes com forte apego ao hedonismo dos sentidos, mas sempre atento ao mistério e deslumbramento. É uma batalha que vai ter um final de tragédia. Em que a violência final é uma vez mais exercida no corpo da mulher. Confrontado com a cegueira do poder e do ciúme, com afastamento da experiência do habitar o corpo do mel, CAROLINO preso a uma iluminada cegueira mata. E mais, mais uma vez, a tragédia anunciada desde o início dos tempos tem lugar, desta vez como em demasiadas outras vezes, no corpo feminino.

APARIÇÃO é uma sucessão de confrontos e descobertas onde uma certa sabedoria atávica presente no discurso do reitor, personagem interpretada por João Lagarto, quando aconselha o recente professor a outros temas nas suas redações, tipo caridade, bons costumes, bons filhos e bons pais, diz essa personagem que com esses temas tudo fica bem, os pobre os ricos e os remediados, pode parecer ter sentido. E na verdade tem, o da anemia do sentir.


A aproximação do actor Jaime Freitas ao personagem, foi segundo o próprio, muito orgânica e apaixonante dado o mergulho no universo do Vergílio Ferreira ter sido uma comunhão de sentidos e interrogações. Victoria Guerra, a protagonista, entregou-se também, como ela própria o disse, de forma aberta e orgânica à personagem, à direção do Fernando Vendrell e ao jogo próprio da representação com os atores com quem contracena, em particular com Jaime Freitas.

Há referencias cinematográficas totalmente explicitas como é o caso do desenho do enforcado que nos chega vindo do filme JAIME, do António Reis e da Margarida Cordeiro, realizado em 1974 ano do golpe de Estado que mudou a hegemonia dominante a ocupar o aparelho do governo em resultado do necessário acompanhar o movimento do mundo, coisa em se continua por aqui sempre com várias passadas de atraso, não por virtuosismo, mas por incapacidade. É sempre interessante falar do JAIME, filme surpreendente na sua materialidade completamente ao lado da agitação social da época e na sua expressão formal onde se joga a contaminação do documentário e da ficção, é como que um cometa a atravessar o céu no cinema por cá produzido nesse momento.

É talvez a uma forma, de o realizador Vendrell, afirmar o seu alinhamento com a denominada escola portuguesa de cinema.


Esta “Aparição”, teve inicio com uma proposta de escrita de argumento do João Milagre e Fátima Ribeiro, professores na Escola Superior de Teatro e Cinema, ao Produtor Fernando Vendrell. A proposta foi a concurso no ICA para apoio à escrita em 2005, teve dinheiro, e o filme foi escrito. Esteve posteriormente num concurso em que o realizador era o Mário Barroso, nesse concurso não teve apoio, e mais tarde, num novo concurso, obteve o necessário apoio para a produção.

Filme conseguido, menor que a obra literária, mas com um notável e esforçado trabalho da equipa técnica e artística. Para outros voos o filme precisaria de um segundo acto mais desenvolvido permitisse novas contaminações e folgo narrativo, isso implicaria necessariamente maior orçamento e mais tempo do que as 5 semanas de rodagem. Foi montado em 6 semanas e teve inicio conceptual em 2005, em 2018, esta semana, chega às salas de cinema em Portugal.

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no concelho de Gouveia, distrito da Guarda, a 28 de janeiro de 1916 e morreu em Lisboa a 1 de março de 1996. É considerado um dos mais importantes escritores do século XX, estando a sua produção literária dividida em dois períodos: neorrealismo e existencialismo. Enquanto adolescente estudou num seminário e mais tarde na Universidade de Coimbra sendo que da sua experiência no seminário resultou uma das suas mais importantes obras, Manhã Submersa, publicada em 1953 e adaptada para filme em 1980 por Lauro António. O autor trabalhou a maior parte da sua vida como professor em escolas por todo o país e recebeu vários prestigiantes prémios, entre eles o Prémio Femina em 1990 – um dos mais importantes galardões literários franceses – o Prémio Europália em 1991 pelo conjunto da sua obra e o Prémio Camões um ano mais tarde. A sua ligação a Évora começou, em 1945, altura em que chegou à cidade para dar aulas no então Liceu Nacional, atual Colégio do Espírito Santo – o principal edifício da Universidade de Évora – onde foi professor até 1959, o ano em que publicou Aparição. Para além do contexto autobiográfico, na criação deste livro o autor extrapolou a sua vivência pessoal de forma a aprofundar a narrativa e os temas da obra, utilizando pessoas suas conhecidas como modelos para as personagens do romance. Escrito na primeira pessoa, Aparição transporta teorias filosóficas relacionadas com o existencialismo. A partir deste momento, Vergílio Ferreira constrói uma história que dificilmente pode ser esquecida e confirma o sucesso internacional de um livro que é considerado um dos dez romances portugueses mais importantes.

27 Mar 2018

“O Grande Domador”, de Dimitris Papionnou

Um dos primeiríssimos talentos da dança contemporânea, esteve no grande auditório do CCB no 2 e 3, integrado na programação DE ZEUS A VARAUFAKIS – A Grécia nos Destinos da Europa.

Neste séc. de reorganização geopolítica do mundo, que confirma o que desde os anos 60 do séc. XX se tornou a cada dia mais claro: “A path for redefinition and strengthening of diplomacy is assumed, in order to structure and consolidate active presence in the reformulation of World Governance; this implies the expansion of and independent Chinese policy towards the consolidation of peace”1 cuja liderança é cada vez mais a RPC, confirmando o que a 14 de Setembro de 2005 no discurso das Nações Unidas, o Presidente Hu Jintao, afirmava ; a adesão da diplomacia Chinesa ao multilateralismo, abandonando a diplomacia cautelosa e defensiva dos contactos bilaterais e pouco atuante nos fóruns internacionais que desde 1978, quando a RPC decidiu abrir-se ao mundo vinha praticado, a Europa precisa de forma urgente e decida de se repensar.

Cronos, filho de Urano – o céu estrelado e de Gaia – a terra, é de facto o grande domador e também aquele que na sua forma mais traumática representa o problema da terra do humano. É dito que Cronos, o mais iniciático e arquétipo edipiano, incitado pela mãe castrou o pai.

A Terra é desta forma separada do Céu. Podemos ver aqui um paralelismo com a expulsão do Paraíso, aí não pela castração, mas pela vivência do prazer e a ousadia da interrogação ficando para sempre impossibilitada a bem aventurada e pacata felicidade dos pobres de espírito. Cronos vive ele próprio um conflito entre a força do novo e a potencia que encerra e o saber e poder que não sendo néscio a permanência no discurso do tempo permite. Torna-se o canibal que devora os próprios filhos, o mais temível e repulsivo, mesmo que a clareza do espírito afirme que o crime não é menor se o sangue tiver outra filiação. Zeus, seu filho, foi dele escondido, cresceu, combateu o pai, expulsou-o do Olimpo e obrigou-o a vomitar os irmãos.

Mas ser expulso do Olimpo por mais doloroso que possa ser não é igual à morte. Cronos está ele próprio condenado ao tempo, outros, os Deuses não expulsos do Olimpo, tem outra imortalidade, um outro eterno, onde os lábios das abelhas é generoso no sugar e na produção do mel e o sol, é sempre quente, e no sangue nunca a anemia impede a ereção dos corpos, presume-se. Talvez vidas desocupadas em demasia. Mas deixemos os deuses dado que não temos outra possibilidade que não a de sermos homens.

Já avancei por algumas vezes a ideia da Europa pós-modernista, num modelo que retome a maturidade do pensamento clássico no contemporâneo, não um regresso ao renascimento, tempo maior na história recente da Europa com os erros hoje mais fáceis de reconhecer de um exagerado positivismo, mas um Pós- Renascimento, em que o eurocentrismo definitivamente de lugar a um olhar mais próximo do olhar de deus sobre o mundo, ou se quisermos uma referencia tecnológica, um olhar a partir do satélite, global, mas com as referencias humanistas da Grécia Antiga, sem desperdiçar toda a escola filosófica, artística, cultural científica, com que se materializa este enorme e imaterial património mundial que é o espaço europeu.

O Mestre Almada Negreiros, esse Português sem mestre, como a si próprio se definiu, viu na Ibéria a cabeça da Europa. Talvez que seja tempo de ultrapassar fantasiosas barreiras dos corpos, afinal pernas sem cabeça não passam de desenhos animados. A Europa constrói-se com o mediterrâneo no seu centro e não como hoje, com o mediterrâneo lugar de fronteira.

A Europa, ou melhor, os europeus, precisam com urgência de perceber que o tempo do Eurocentrismo terminou algures antes do meio do séc. XX , e que ser Europeu é um diálogo permanente com o mundo todo, e quanto mais em igualdade, mais feliz e produtivo.

O Grande Domador, The Great Tamer, é uma criação a todos os níveis notável. O trabalho performativo com os atores/bailarinos é um plano sequência brilhante onde o tempo é matéria e os corpos se reinventam e interrogam.

Uma maquinaria cénica invisível cria a existência de 3 planos, a superfície ou crosta espaço da representação, o em baixo ou potencia de onde surgem corpos, terra, artefactos humanos, e o acima, o manto do ar respirável onde por vezes se voa e até a outros planetas de ar mais rarefeito e outra força de gravidade. A relação entre os três territórios é permanente, fluída e mágica.

Tudo acontece como num plano cinematográfico em sequência, sem cortes, numa sucessão continua de imagens que fluem com o encantamento de um discurso alicerçado na poética da imagem, construída na acção e respiração dos corpos na relação tridimensional com o espaço e o tempo da música de John Straus.

De alguma forma o que é dado a ver, continua a mais famosa elipse temporal da história do cinema, quando Kubrick, na abertura do 2001 Odisseia no Espaço, (1968), transforma o osso de fémur humano em artefacto, ferramenta e arma, em nave espacial. É uma elipse cinematográfica com o tempo da civilização, o tempo da descoberta e realização do humano.

Aqui, em The Great Tamer, o maravilhamento e a interrogação sobre o próprio, o outro, sobre o lugar, o território onde pode acontecer o maravilhamento, permanece e continua em sucessivos quadros de visualidade poética que convoca signos e quadros da história da pintura, e do cinema, como já referido.

Os corpos experimentam outras possibilidade de corpo, o género questiona-se a si mesmo, reinventa-se em novas possibilidades. O uno e o múltiplo é um movimento imparável, e o espanto, os caminhos em potencia, múltiplos. Somos confrontados com um criação artística rigorosa na execução de uma maquinaria cenográfica, na ocupação e desenho do espaço pelos corpos , na imagética conceptual performativa. Johann Strauss, na adaptação de Stephano Droussiotis, cria a dinâmica sonora perfeita para esta metamorfose e fluidez continuada dos corpos. Duas horas de grande fruição estética que terminaram com a sala do grande auditório do CCB em pé e em entusiásticas palmas.

Concepção e direcção por Dimitris Papaioannou

Com Pavlina Andriopoulou, Costas Chrysafidis, Ektor Liatsos, Ioannis Michos, Evangelia Randou, Kalliopi Simou, Drossos Skotis, Christos Strinopoulos, Yorgos Tsiantoulas, Alex Vangelis
Cenografia e direção de arte em colaboração com Tina Tzoka
Colaboração artística para os figurinos Aggelos Mendis
Desenho de luz em colaboração com Evina Vassilakopoulou
Colaboração artística para o som Giwrgos Poulios
Desenho e operação de som Kostas Micholoupos
Música Johann Strauss II, An der schönen blauen Donau, op. 314
Adaptação musical Stephano Droussiotis
Design de escultura Nectarios Dionysatos
Pintura de figurinos e adereços Maria Ilia
Produtora criativa executiva e assistente de direção Tina Papanikolaou
Assistente de direção Stephanos Droussiotis
Assistente de direção e ensaiadora Pavlina Andriopoulou
Direção técnica Manolis Vitsaxakis
Manager de palco Dinos Nikolaou
Engenheiro assistente de som Nikos Kollias
Assistente do cenógrafo e do pintor de cenários Mary Antonopoulou
Assistentes do escultor Maria Papaioannou, Konstantinos Kotsis
Assistente de produção Tzela Christopoulou
Manager da digressão e relações internacionais Julian Mommert
Assistente executivo de produção Kali Kavvatha
Produção Onassis Cultural Centre – Atenas
Coprodução CULTURESCAPES Greece 2017 (Suíça), Dansens Hus Sweden (Suécia), EdM Productions, Festival d’Avignon (França), Fondazione Campania dei Festival – Napoli Teatro Festival Italia (Itália), Les Théâtres de la Ville de Luxembourg (Luxemburgo), National Performing Arts Center-National Theater & Concert Hall | NPAC-NTCH (Taiwan), Seoul Performing Arts Festival | SPAF (Coreia do Sul), Théâtre de la Ville – Paris / La Villette – Paris (França)
Produtor Executivo 2WORKS
Com o apoio de Alpha Bank

7 Mar 2018

Produtora de cinema Weinstein Company vai declarar falência

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] empresa norte-americana Weinstein Company, de produção e distribuição de cinema, vai declarar falência depois de terem falhado negociações para venda de ativos a um grupo de investimento.
A decisão da administração foi revelada pelo jornal Los Angeles Times, depois de goradas as conversações para tentar salvar os ativos e os postos de trabalho da empresa, fundada em 2005 pelos irmãos Harvey e Bob Weinstein.
Harvey Weinstein foi afastado da empresa em outubro do ano passado no seguimento de várias denúncias públicas de assédio e abuso sexual por dezenas de mulheres no meio cinematográfico.
Segundo o Los Angeles Times, em discussão estava um acordo de 500 milhões de dólares que permitiria a um grupo de investimento, liderado por Maria Contreras-Sweet, ter o controlo total da empresa, alterar-lhe o nome e ter uma administração com um maior participação de mulheres.
O acordo incluiria ainda a criação de um fundo de 40 milhões de dólares para a empresa compensar as mulheres que acusaram Harvey Weinstein.
As negociações falharam no início de fevereiro depois de o procurador-geral de Nova Iorque ter apresentado uma ação judicial contra a empresa e os seus fundadores.
Os irmãos Bob e Harvey Weinstein, que em 1979 fundaram os estúdios Miramax, produziram dezenas de filmes e séries de ficção e entertenimento premiadas.
Entre os filmes com maior sucesso de bilheteira contam-se “Sacanas sem lei” (2009) e “Django libertado” (2012), ambos de Quentin Tarantino, “O discurso do rei” (2010), de Tom Hooper, “Guia para um final feliz” (2012), de David O. Russell, e “O mordomo” (2013), de Lee Daniels.
27 Fev 2018

Realizador Guillermo Del Toro preside ao júri do próximo festival de Veneza

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] realizador mexicano Guillermo Del Toro vai presidir ao júri da próxima edição do festival de cinema de Veneza, anunciou a organização.

Del Toro foi o vencedor, em Veneza, do Leão de Ouro no ano passado para melhor filme com “A forma da água”, filme que conta, nas categorias dos Óscares de Melhor Guarda-Roupa e Melhor Montagem de Som, com dois nomeados de origem portuguesa.

Segundo comunicado do festival de Veneza, onde Nuno Lopes venceu o Leão de Ouro para melhor actor em 2016, Del Toro disse que a presidência do júri da 75.ª edição do evento é “uma imensa honra e responsabilidade” que aceitava com respeito e gratidão.

“Veneza é uma janela para o cinema do mundo e uma oportunidade para celebrar o seu poder e relevância cultural”, acrescentou.

Por seu lado, o director do festival, Alberto Barbera, disse que Guillermo Del Toro “personifica a generosidade, um amor pelos filmes passados ou futuros e uma paixão pelo tipo de cinema que pode acender emoções, afectar pessoas e, ao mesmo tempo, fazê-las reflectir”.

“A forma da água” lidera as nomeações da 90.ª edição dos Óscares, que serão entregues a 4 de Março, em Los Angeles, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Actriz.

“A forma da água” disputa a categoria de Melhor Filme com “Chama-me pelo teu nome”, “A hora mais negra”, “Foge”, “Lady Bird”, “Linha Fantasma”, “The Post”, “Dunkirk” e “Três cartazes à beira da estrada”.

13 Fev 2018

Entre Zelig e Maigret

Pulvis et umbra sumus.
HORÁCIO

[dropcap]C[/dropcap]onforme prometido na semana passada, seguem-se algumas histórias, historietas e reflexões avulsas. Creio que, a par das que há já alguns meses vos venho confiando, serão reveladoras de um aspecto da minha personalidade no qual, modestamente, emulo o grande Comissário Maigret, criatura maior de Georges Simenon e o Zelig de Woody Allen: a vontade de ser toda a gente, de me fundir com todas as paisagens físicas e humanas com que me cruzo, o que, certamente, resulta em que seja uma pessoa de traços pouco claros, dificilmente apropriável, talvez mesmo vaga. Mas, agora, é tarde para mudar e, na verdade, não me parece que conseguisse aprender a ser de outro modo. Passemos, pois, adiante, na costumeira toada:

1 – D., arqueólogo, estava cansado de ouvir um museólogo cujo trabalho se centrava, sobretudo, nos chamados ecomuseus e cuja personalidade era, sem dúvida, algo autocentrada. Teve, então, a seguinte tirada: “É natural que te interessem os ecomuseus, porque são os únicos museus com eco: ecomuseu — eu, eu, eu…”.

2 – F., um amigo que, trabalhando para a O.N.U. e para a Cruz Vermelha, tem vivido as últimas décadas entre teatros de guerra e de fome, encontrava-se algures na Indonésia, a gozar umas miniférias da sua participação no processo de estabilização da independência timorense. Ao abandonar uma esplanada, foi abordado por um meliante local que, a cada recusa sua, lhe propunha um novo item de uma infinda ementa de iniquidades: drogas leves, drogas duras, meretrizes, mancebos, etc. Após uma última e enfática recusa, o dito malfeitor deu-se por vencido durante alguns segundos, mas, vendo, subitamente, uma luz ao fundo do túnel, aventou ainda: “Óculos escuros?”… F. não pôde deixar de sorrir face ao inesperado downgrading das mercadorias e, apesar de tudo, lá lhe comprou um par de lunetas.

3 – Ernesto Sampaio foi um dos mais interessantes escritores e críticos da segunda metade do século XX português. O seu livro “Fernanda” (editado pela Fenda em 2000, um ano antes da sua morte) é uma das mais belas elegias da língua. Ora, nos últimos meses da sua vida, tive oportunidade de beber bastantes copos com o Ernesto, num bar que então tinha no Bairro Alto (o mesmo se podendo dizer, pasme-se, de Cleonice Berardinelli, decana dos estudos portugueses no Brasil). Num texto publicado em 2013, o enorme Manuel da Silva Ramos recordaria: “(…) convidei o Ernesto para jantar n’A Provinciana, que é uma tasca ali perto do Coliseu, por detrás do Teatro Nacional. O Ernesto veio e comemos sardinhas. Ele andava cada vez mais triste mas o nosso jantar foi mais uma vez um modelo de humor, de como o riso pode ser a salvação do mundo. Rimos muito como dois desesperados absolutos e bebemos bem e no final levei-o ao Bairro Alto. Continuámos a beber e isso fazia-lhe bem. O Miguel Martins tinha nessa altura um bar na rua da Rosa e foi aí que levei várias vezes o Ernesto para ver se o trazia de novo à vida. O Miguel, grande admirador da obra do Ernesto, nunca nos deixou pagar nada. Bebíamos pois no meio da juventude, no meio da agitação geral”.

4 – Também conheci Fernando Lopes-Graça, nas comemorações de um seu aniversário na sua cidade natal de Tomar. Disse-me que, havia não sei quantos anos, não abria um piano. Para compor, bastavam-lhe a imaginação e a ciência, sem necessidade de verificação sonora. O mesmo constatei, anos mais tarde, suceder, por vezes, com António Victorino de Almeida, a meias com quem escrevi quatro canções para uma peça de Gogol encenada por Maria do Céu Guerra. Cinco linhas nas costas de um envelope ou num guardanapo de papel e a música flui.

5 – A dado momento da minha vida, após anos de audições musicais e reflexão sobre elas, decidi dedicar parte da minha limitada criatividade à “improvisação não-idiomática”, o que teve como corolário a gravação de bandas-sonoras para vários filmes e séries de televisão e, sobretudo, a edição, em 2014, do CD “Dada Dandy: A Favola da Medusa feat. George Haslam” pela prestigiada editora Slam Records, em cujo catálogo pontificam todos os nomes maiores do free-jazz britânico e, bem assim, luminárias como Max Roach ou Mal Waldron. Mas, antes disso, tocara já, por exemplo, com músicos como Anabela Duarte (dos Mler ife Dada), Beverley Chadwick (saxofonista de Robert Wyatt), Dennis González, Floros Floridis, Filipe Homem Fonseca (meu irmão siamês na música e membro do inenarrável duo Cebola Mol), Gail Brand, Jon Raskin, Ken Filiano, Patrick Brennan, Rodrigo Amado ou Wade Matthews, o que é para mim um privilégio e um prazer ímpar. Este último, no folheto do seu disco “Oranges”, escreve: “Imagine we’re eating dinner at Miguel Martins’ house. Imagine the wine is extraordinary. Miguel has brought me to Portugal to play three concerts, and I end up playing four…a real treat.”

6 – Tenho tido, também, a oportunidade de ver letras minhas registadas em disco por artistas como Marco Rodrigues, Cuca Roseta, Carla Pires, João-Paulo Esteves da Silva, Fernando Alvim ou Ciganos d’Ouro. E de ter poemas meus gravados na Sérvia e no Brasil. É uma experiência curiosa, essa de ouvi-los, em vez de lê-los.

7 – Elogio da dispersão: “Quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas, e isso é uma pena. O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo”, Agostinho da Silva.

8 – No meu caso, como em muitos outros, a acumulação destas actividades só é possível mediante o abandono das expectativas económicas que a maior parte dos cidadãos portugueses consideraria mínimas e pelo desenvolvimento de estratégias de sobrevivência quase sempre bastante fastidiosas. E é castrador que assim seja. Não posso deixar de pensar no que seria a produção de tantos e tão talentosos amigos caso não tivessem de debater-se com tais constrangimentos. Mas, pelo menos por cá, tarda em cimentar-se a percepção colectiva do facto óbvio de que ter gente confortavelmente dedicada à produção cultural é caro, mas que muito mais caro é não tê-la.

31 Jan 2018

Uma permanente obsessão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vejo um filme passado em Macau, independentemente da sua qualidade, fico sempre fascinado pelas imagens, quase estupidificado e, ao mesmo tempo, submerso numa catadupa inenarrável de emoções. A coisa agrava-se quando a história retrata gente de Macau e o seu quotidiano. Tenho então um prazer quase voyeurista em entrar na casa das pessoas, dar pelos seus objectos, pelas fotografias sobre móveis de fórmica, as músicas trauteadas, os restos das vidas espalhados pelas mesas, pelas cadeiras, pelo chão.

Produz-se em mim um estranho reconhecimento de algo que realmente nunca presenciei, uma familiaridade com o que nunca vivi, um estranho sentimento de pertença, de partilha, meramente imaginário da minha parte. Terei alguma vez entrado num apartamento parecido com aquele? Seria tarde e agora não me lembro. Ou talvez isso nunca tenha realmente acontecido.

Isto ocorreu-me ao ver o filme “Sisterhood”, da realizadora de Macau Trace Choy. Independentemente da história ou do tema, a mim bastariam as imagens para me manterem agarrado ao ecrã, invadido por uma catarata de emoções. Por quê? Afinal, os ambientes retratados não são meus conhecidos mas algo dotado de uma existência pressentida. Não são sítios onde vivi mas espaços ocultos ou inacessíveis, que fazem parte do quotidiano de toda esta gente que me rodeia, mas aos quais o meu acesso é basicamente nulo. São os milhares de vidas à minha volta, envoltas sempre no mistério da sua cultura e na abissal diferença do seus desejos. Então por que razão isto me perturba tanto? Que tenho eu a ver com isto?

O filme em si é excelente, a história transporta-nos entre a cidade pré e pós crescimento desmesurado do Jogo. Existe a nostalgia do que existiu e desapareceu e um enorme vazio, unicamente colmatado pelas relações que restam do passado, mas que os novos ritmos tornam obsoletas. Tudo isto bastaria para tornar este um bom filme. Mas, para mim, é a presença da cidade, dos perfis e dos contornos, das pessoas e dos lugares, reais, imaginários e ou desaparecidos, que realmente me fascinou e com certeza me vai obrigar a rever várias vezes. Por quê esta minha tão estranha e permanente obsessão, que me faz ir da lágrimas ao riso, da estupefacção à euforia, da saudade à tristeza e ao desespero?

29 Jan 2018