Lavadeiras, privacidade e ameaças

[dropcap]P[/dropcap]or ter vivido em tempos particularmente conturbados, John Locke defendeu, no segundo ‘Tratado sobre o Governo Civil’, escrito em 1689 depois de ter regressado da Holanda a Inglaterra, que “o grande e principal fim de os homens se unirem em sociedade” (…) “é a preservação da propriedade privada”. Esta concepção de propriedade, independentemente de se aplicar a bens naturais, a instituições políticas ou a noções morais, reflecte a ideia de que a subjectividade humana é criadora e que é ela, por isso mesmo, que está na base de todos os valores (económicos, políticos, conceptuais, etc.). Apesar de outros antecedentes, esta declaração marca o início simbólico do ‘culto’ moderno da privacidade no Ocidente.

Este salto para os afãs da privacidade nunca foi linear. Em certas comunidades e bairros, a ‘sala de estar’ continuou a ser a rua. Filmes tão diversos como ‘Lisboa’ de Ray Milland (1956), ‘Canção de Lisboa’ de José Cottinelli Telmo (1933) ou ‘Amarcord’ (1973) e ‘La Strada’ (1954) de Fellini comprovam-no à saciedade. Foi Z. Bauman quem defendeu que uma comunidade não necessita de definir uma dada identidade, pois ela brota dos eflúvios que se encontram em permanência nos espaços de vizinhança. Nos bairros populares, de onde hoje em dia se está brutalmente a expulsar a memória de gerações e gerações, à custa da gula dos senhorios e do alojamento local, os remansos da vida privada sempre foram metafísica sem grande sentido.

Houve outras dimensões em que a vida moderna não deixou de provocar alergias severas aos quesitos da privacidade. Dando continuidade à ‘vida como mero trânsito’ (era essa a expressão dos místicos medievais), os monges do nosso tempo – muitos deles amantes de um cândido ‘offshore’ nas ilhas Caimão ou nas Bermudas – sempre insistiram na pertença a um deus e não a si mesmos, enquanto, noutros dogmas e catecismos, a apropriação colectiva já fez furores de multidão; nunca me sai da cabeça aquele momento do filme ‘Torrebela’ (1977), realizado por Thomas Harlan, em que um dos guias da revolução explica a um pobre proletário que a enxada deveria pertencer, a partir daquela gloriosa hora, ao povo e não apenas a ele.

À parte estes extravios aos pântanos da ‘normalidade’, é óbvio que a privacidade também teve – e tem – os seus comprimentos de onda. O mundo de cultura católica tende a ser muito mais confessional do que aquilo que acontece nas sociedades de matriz protestante. A individualização nos universos calvinistas contrasta com a roda viva dos cafés latinos onde tudo se desabafa, desoprime e muitas vezes inquina. Um bom português está sempre prestes a confessar aos amigos um impropério ou um crime. Um bom holandês prefere sofrer e monologar ao ‘seu deus’, de modo directo e sem mediações tramadas. Na realidade, o sentido de privacidade no norte da Europa nada tem que ver com a airada ‘opera buffa’ do sul. Locke deverá ter-se apercebido desta vicissitude, quando se demorou por Montpellier, década e meia antes de ter escrito os dois famosos ‘Tratados sobre o Governo Civil’.

Nos nossos tempos, muitas são as polémicas em torno da longa tradição da cultura da privacidade. Uma delas teve a sua origem na recente mediatização da violência doméstica, facto que contribuiu para que fossem transpostos – e bem – para o domínio público os crimes levados a cabo em atmosferas privadas (remando contra a antiga névoa proverbial que incitava a orações, tais como “Entre marido e mulher não se mete a colher”). Mas a mais temerária das polémicas é a que opõe a sociedade digital às imaginárias quietudes do nosso mundo. São conhecidas as denúncias dos sistemas 5G oriundos da China como são conhecidas práticas do tipo Cambridge Analytica (empresa que usou indevidamente dados de utilizadores do Facebook, tendo exposto quase 90 milhões de pessoas). Além disso, todos sabemos que basta ter um smartphone para que os nossos passos possam ser seguidos nos antípodas do planeta.

Miguel Pupo Correia escreveu há algumas semanas[1] sobre estes temas e sublinhou o facto de muitas das chamadas TV “inteligentes” – com o consentimento involuntário dos utilizadores (dando luz verde aos “termos e condições”) – recorrerem a tecnologias que capturam os sons à sua volta, para além de recolherem informação sobre os hábitos de visualização[2]. No momento em que estou a escrever esta crónica, é bem possível que alguém esteja a “atacar” a câmara do meu computador e a filmar-me, sem que disso eu me aperceba. Por estas e por outras, o autor chegou a defender a existência de dispositivos mecânicos simples (“um interruptor físico” que possa ser ligado “sem ajuda de software”[3]) e até de legislação que os conseguisse generalizar de modo a “garantir mais segurança”[4].

Locke percebeu no seu tempo a importância da salvaguarda da subjectividade e da privacidade. Os discursos sobre estes temas ‘construíram-nos’ ao longo do promissor limbo da era moderna. De repente, tudo ameaça esvair-se, vazar. Tal como as lavadeiras, que Joyce inventou em Finnegans Wake, deitavam fora a água suja da roupa que lavavam nas margens do rio Liffey. Mas é a ameaça, e não tanto o que se perde, que faz o nosso tempo. O que já foi o peso do pecado noutras eras, é hoje o peso quase apocalíptico de nos limitarmos a estar aqui de pé a olhar para a janela. Ou a olhar para o nada.



[1]Pupo Correia, Miguel. Os Big Brothers que se seguem em Público (06/05/19; 07/05/19 – 17h37)
https://www.publico.pt/2019/05/06/tecnologia/analise/big-brothers-seguem-1871532
[2] https://www.buzzfeednews.com/article/nicolenguyen/here-arethe-privacy-settings-you-shouldlook-at-if-you-have (06/05/19; 07/05/19 – 17h41)
[3] https://larrysanger. org/2019/04/vendors-must-startadding-physical-on-oè-switches-todevices-that-can-spy-on-us/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h50)
[4] https://puri.sm/learn/ hardware-kill-switches/ (06/05/19; 07/05/19 – 17h56)

23 Mai 2019

Filme cabo-verdiano inaugurou Semana de África 2019

O cinema de Samira Vera-Cruz é o encontro intimista de uma jovem realizadora com o retrato humano da sua gente. Entre o real e a superstição, a tradição e a modernidade, a lente da sua câmara vai tentando descobrir a identidade actual de Cabo Verde

 

[dropcap]S[/dropcap]amira Vera-Cruz aterrou em Macau para apresentar o filme ‘Hora di Bai’, ontem à tarde, na inauguração da Semana de África 2019. É uma jovem realizadora que tem conseguido captar a atenção dos festivais internacionais e dar crescente visibilidade ao cinema da sua terra, contando já vários títulos no currículo, entre curtas e longas-metragens.

O destaque da sua obra é o pequeno documentário ‘Hora di Bai” que, em 24 minutos, aborda o universo das tradições e superstições, a partir dos rituais fúnebres na Ilha de Santiago. É uma produção de 2017, cujo projecto venceu o concurso Curtas PALOP – TL, no quadro das comemorações do 25º aniversário de cooperação com a União Europeia.

“Eu tinha a ideia de filmar os rituais de despedida na hora da morte, na Ilha de Santiago, porque em Cabo Verde somos uma mistura entre o europeu e o africano, o branco e o negro, e isso faz com que muitos dos nossos rituais sejam mistos, nem bem uma coisa nem outra. E fiquei interessada porque sou de São Vicente, onde não há essa cultura tão forte, essa forma de velar os mortos, esse choro tradicional, como na Ilha de Santiago”.

Depois de conseguir financiamento, a realizadora teve acesso a uma residência artística e pôde conviver de perto com as personagens do seu filme, que “acabou por se tornar menos sobre os rituais em si, e mais sobre a relação das pessoas a um nível mais humano com a morte”, como recorda.

A personagem principal é, então, a Dona Gregória. “Já tinha 100 anos de idade quando a filmámos. No documentário aparece com 99, mas descobrimos depois que tinha mais um ano e não sabia, não se recordava da data”. Faleceu entretanto, em 2018, com 101. “A Dona Gregória já tinha a morte preparada há mais de 30 anos, era de um pragmatismo incrível, dizia que ‘a morte é certa, só não sabemos quando’, então para quê deixar para depois, para os filhos gastarem dinheiro, se podia ficar já tudo tratado….”, revela Samira Vera-Cruz.

As restantes personagens são a Dona Adélia, a carpideira, “que não acredita tanto nos rituais, mas segue-os porque é tradição”. E depois há o Sr. Leocádio, “que é o que nós chamamos de ‘rezeiro’, um rezador profissional, a quem pagam para ir rezar nos rituais. E ele acredita mesmo nisso, diz que libertou mais de não sei quantos espíritos, porque em Cabo Verde acredita-se numa morte violenta se o espírito fica preso”, esclarece.

Preservar a memória

O cinema de Samira Vera-Cruz tem dois propósitos fundamentais, como a própria define, “um é a preservação da memória, individual e colectiva, o outro é um lado mais moderno, mais de provocação socio-económico-cultural”. O interesse pela cultura do país, a insistência no uso da língua de Cabo Verde – o crioulo –, o papel das mulheres na sociedade local, as manifestações populares que ainda resistem, são a matéria que tem explorado na sua filmografia.

Foi assim que começou a fazer cinema, com ‘Buska Santu’, em 2016, uma pequena curta onde conta a história de um pai e de um filho, tendo como pano de fundo “a ‘tabanka’, uma manifestação cultural cabo-verdiana, muito típica na Ilha de Santiago”. Quando avançou com o projecto, “não havia muita coisa sobre o tema, havia coisas escritas, mas nada em cinema de ficção. E decidimos ir por aí”, uma experiência que lhe deu o estímulo de abrir a sua própria empresa – a Parallax Produções – e dedicar-se ao cinema.

Seguiram-se depois “Sukuru”, de 2017, a primeira longa metragem, cuja tradução para português é ‘escuro’, “um thriller psicológico sobre um jovem esquizofrénico, que acaba por se viciar em ‘crack’. É muito pesado. A saúde mental sobre foi um tema que me interessou muito, principalmente por ser tabu em Cabo Verde, não se fala sobre isso”, explica Samira, que pesquisou bastante junto da classe médica para escrever o guião, um trabalho “muito intenso”.

A curta que fez em 2018, ‘Ti Ki Nu Odja’ ou ‘Até um Dia’, é um projecto criado para o Dia da Mulher Cabo-verdiana – 27 de Março –, mas que aguarda vir a ser uma longa-metragem, talvez para o ano que vem. Surgiu como “uma coincidência, de eu estar em Maputo e passar em frente da casa de uma senhora cabo-verdiana, há mais de 60 anos em Moçambique”.

Entretanto, está ocupada com o filme que vai começar a rodar já em Junho, com o título ‘E Quem Cozinha?’. “É um documentário sobre uma jovem cega em Cabo Verde, uma história de abandono que pretende ser um retrato sobre a realidade da mulher cabo-verdiana, muito comum nos estratos socio-económicos mais baixos”. A personagem é abandonada pelo pai, e pelo pai do filho, que questionam a sua capacidade para cozinhar por serem cegas.

“Afinal, num país que já foi o segundo do mundo com mais mulheres ministras, em 2015, ainda é a mulher que tem que cozinhar para o homem. É uma sociedade muito matriarcal e, ainda assim, muito machista”, considera Samira Vera-Cruz, que vai falar mais sobre a sua obra na palestra sobre o “Desenvolvimento do Cinema em Cabo Verde”, amanhã às 18h30, na Universidade de São José, com entrada aberta ao público.

22 Mai 2019

“Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, vence cinco prémios Platino

[dropcap]O[/dropcap] filme “Roma”, do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, foi o grande vencedor dos Prémios Platino de Cinema Ibero-Americano, com cinco distinções, incluindo melhor filme e melhor realizador, foi hoje anunciado.

Com nove nomeações, o filme de Cuarón já tinha partido como grande favorito para a sexta edição dos prémios Platino, que se realizaram este domingo, pelo segundo ano consecutivo, na Riviera Maya, no Caribe mexicano.

Além de melhor filme e melhor realizador, “Roma” arrecadou ainda o melhor argumento, melhor cinematografia e melhor direcção de som.

Em nome do cineasta mexicano – que não esteve presente no evento – o produtor Nicolás Celis agradeceu o reconhecimento e exclamou: “Viva o cinema, viva o México e muito mais cinema de qualidade para todos!”.

“Roma”, o primeiro filme produzido pela Netflix a chegar aos Óscares, retrata a vida de uma família de classe média no México dos anos 70. Nos Óscares, o drama semi-autobiográfico filmado a preto e branco venceu Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Fotografia e Melhor Realizador.

Os Prémios Platino são organizados pela Entidade de Gestão de Direitos dos Produtores Audiovisuais e pela Federação Ibero-americana de Produtores Cinematográficos e Audiovisuais.

Na fase de pré-selecção havia várias obras portuguesas e de co-produção portuguesa, candidatas a uma nomeação para os Platinos, nomeadamente os filmes “Cabaret Maxime” (Bruno de Almeida), “Pedro e Inês” (António Ferreira), “Djon África” (Filipa Reis e João Miller Guerra), “Correspondências” (Rita Azevedo Gomes), “Leviano” (Justin Amorim), “Carga” (Bruno Gascon), “Raiva” (Sérgio Tréfaut) e “O homem que matou D. Quixote” (Terry Gilliam).

Havia ainda duas séries de televisão candidatas a melhor minissérie ibero-americana, mas que não chegaram às nomeações: “Sara”, de Marco Martins, Ricardo Adolfo e Bruno Nogueira, e “Três Mulheres”, de Fernando Vendrell, ambas exibidas na televisão pública portuguesa.

No ano passado, Rui Poças foi distinguido com um prémio Platino de melhor direcção de fotografia pelo filme “Zama”, da realizadora argentina Lucrecia Martel.

13 Mai 2019

Xangai recebe I Mostra de Cinema em Língua Portuguesa

[dropcap]A[/dropcap] primeira mostra de cinema em língua portuguesa arranca na quinta-feira, em Xangai, com a exibição de filmes de Portugal, Brasil e Cabo Verde para promover a cultura lusófona no maior centro financeiro da China.

O ciclo abre na quinta-feira à tarde com o filme “A Mãe é que Sabe”, uma comédia do realizador português Nuno Rocha. Para o último dia está reservada uma sessão dupla, com o drama “Florbela”, sobre a poetisa Florbela Espanca, e o documentário “O Paraíso São os Outros”, de Miguel Gonçalves, com texto do escritor português Valter Hugo Mãe e que reúne depoimentos de falantes da língua portuguesa.

O programa inclui ainda “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”, do Brasil, e “Os Dois Irmãos”, de Cabo Verde. Todos os filmes serão falados em português, com legendas em inglês.

A mostra é o primeiro evento organizado pelo recém-criado Grupo Lusófono, formado pelos Consulados-Gerais do Brasil e de Portugal na cidade de Xangai, para promover a cultura dos países de língua portuguesa “nas suas mais variadas vertentes”, disse o cônsul português, Israel Saraiva.

O ciclo, de entrada gratuita, vai decorrer na fundação Fosun, que foi estabelecida em 2012 como “braço humanitário” do grupo privado chinês. Em Portugal, a Fosun detém já a seguradora Fidelidade e a Luz Saúde, a maior participação no banco Millennium BCP e cerca de 5% da REN (Redes Energéticas Nacionais).

1 Mai 2019

Carlos Ramos, programador do IndieLisboa: “Macau está mais sólida”

Os 20 anos da transferência de soberania de Macau para a China celebram-se este ano na tela graças ao festival de cinema IndieLisboa, que tem início no próximo dia 2 de Maio. Carlos Ramos destaca a contemporaneidade dos filmes escolhidos e a evolução do cinema de Macau, sem esquecer a busca pela diversidade daquilo que se vai filmando na Ásia

[dropcap]O[/dropcap] que levou o Festival a homenagear os 20 anos da transição de Macau?
Este é o terceiro ano consecutivo em que trabalhamos com o Turismo de Macau, devido às várias ligações que existem entre o IndieLisboa e Macau, não só ao nível de alguns programadores do festival que viveram em Macau, mas também devido a um conjunto de filmes que passamos do Ivo Ferreira ou do Guerra da Mata, por exemplo. Com essa colaboração mostramos uma nova cinematografia de Macau, algo que tem funcionado ao nível de sessões de cinema, com conjuntos de curtas e longas metragens que seleccionamos da produção anual de Macau. Já o ano passado queríamos fazer um programa que juntasse o novo filme do Ivo Ferreira, mas houve agora oportunidade de o fazer, dado o mote da transferência de soberania e dos 20 anos. O Ivo também vai estar no júri. Temos a oportunidade de mostrar o foco de alguém que viveu em Macau, e o filme fala um pouco sobre isso, dessa passagem de Macau de Portugal para a China. Por outro lado, queremos mostrar o que se está a fazer de novo em Macau. Estas sessões têm sido muito bem recebidas no Indie.

Todos os filmes que vão estar em exibição foram feitos em 2018. Como chegaram a estes realizadores?
Recebemos anualmente um conjunto de filmes desenvolvidos pelos vários apoios que existem em Macau para a produção cinematográfica. Um dos critérios é a diversidade do que é feito, porque o Indie é um festival generalista e isso tem eco na programação de Macau. A ideia é ir do documentário à ficção e animação. Temos algumas animações que funcionam por desenho e formato digital, mas depois temos o documentário “The Cricket Dinasty” que fala da luta de grilos que ainda se faz em Macau e na China e que é uma tradição que se tem vindo a perder. O programa complementa-se depois com duas ficções. Uma delas é bastante divertida e fala de um grupo de avós que se juntam, embora o que está por detrás disso seja sempre uma coisa universal, um capitalismo algo latente, pois estas avós não têm meios e juntam-se para assaltar um banco. Depois há outro filme que fala de jovens que trabalham em entregas e que têm de recorrer a outros meios para sobreviver. Há uma linha que mostra a nova cinematografia de Macau, mas que endereça também questões sociais globais.

São filmes que mostram uma Macau contemporânea.
O filme do Ivo fala-nos deste hotel Império que existia ainda no tempo português, e que depois resistiu e se mantém, e fala também um bocadinho destes fantasmas e de como os vestígios da presença portuguesa vão desaparecendo. Por outro lado, faz-se um contraponto com umas curtas que mostram Macau hoje em dia.

A cinematografia de Macau está pouco desenvolvida se compararmos com o que se faz na China e em Hong Kong. Nota, ainda assim, alguma evolução? Macau já tem uma cinemateca, por exemplo.
Nota-se alguma evolução. Consegue notar-se alguma evolução nestes filmes em relação aos primeiros, e acho que isso é fruto, por um lado, dos apoios que estão a existir, e por outro do trabalho da Cinemateca Paixão, com quem nós também colaboramos e que é um dos pontos de ligação do Indie com Macau. Trazemos a Lisboa os realizadores macaenses, mas depois levamos umas curtas portuguesas para Macau para mostrar um pouco a contemporaneidade do cinema português. Esse trabalho da cinemateca tem sido muito importante para desenvolver o cinema em Macau e também a forma como ele é feito. Lembro-me que, da primeira vez que vimos algumas películas para programar para o festival, havia alguma dificuldade na obtenção dos filmes e que também não havia muitos disponíveis. Este ano foi completamente diferente. Macau ainda está longe dessas cinematografias de que falou e tem algumas fragilidades, mas está mais sólida.

FOTO: IndieLisboa

Que realizadores são mais representativos do cinema de Macau dos dias de hoje?
Ivo Ferreira e Tracy Choi são fundamentais. Mostrámos a longa da Tracy Choi na primeira edição e ela veio ao IndieLisboa. Queremos promover o contacto profissional entre os realizadores de Macau e os meios dos festivais europeus. E a Tracy é uma das pontas de lança do cinema em Macau. Na altura, os contactos que se fizeram foram muito importantes.

O que é que o público pode esperar dos restantes filmes asiáticos?
O festival tem sempre um maior pendor europeu mas procuramos sempre ter uma diversidade regional. Este ano destacaria alguns filmes, como por exemplo uma longa-metragem na secção de competição internacional que estreou na Holanda este ano, intitulada “Present Perfect”, e que é um documentário muito contemporâneo que retrata seis ou sete pessoas que vivem nas suas casas e nos seus quartos e transmitem toda a sua vida pela Internet. É uma reflexão sobre os dias de hoje, mas também sobre a solidão que a tecnologia pode trazer à vida das pessoas. Destacaria também três curtas metragens. Uma delas é uma animação delirante, com personagens que andam num autocarro e galinhas que gostariam de ir para o exército. É uma coisa muito surreal. Temos um filme do Camboja que tem uma ligação com os filmes de Macau, porque também fala de uma transição e de uma região que existia e que deixa de existir para se tornar num campo de golfe. O filme vive no presente, passado e futuro. A curta-metragem “A Fly in the Restaurant” é também um conto de animação, mas o mais interessante neste filme é mesmo a parte formal, porque funciona como se fosse uma câmara que roda à volta de si própria e as histórias vão acontecendo de forma circular.

Como descreve o cinema do sudeste asiático, por comparação com o cinema chinês? Este já é mais conhecido na Europa, o que se faz no sudeste asiático começa a despertar mais interesse?
Sempre despertou interesse. A questão é que num festival como o Indie vamos sempre à procura de novas cinematografias em todo o mundo. A China, também por causa da sua dimensão e por estar mais cimentada no cinema internacional, tem uma maior oferta. Mas não olhamos para a China como algo diferente do sudeste asiático, vamos é à procura de novas vozes e gerações de realizadores.


No cartaz

Na categoria “Especial Macau 20 anos” será exibido “Foco Macau – 20 anos depois” de Lou Ka Choi, bem como “The Cricket Dynasty”, de Chang Seng Pong, ambos de 2018. O cartaz conta também com a película “G.D.P.: Grandmas’ Dangerous Project”, de Peeko Wong, e “Rabbit Meets Crocodile”, de Sam Kin Hang, um filme de animação também produzido em 2018. “Sheep”, de Mak Kit Wai, também do mesmo ano, encerra o cartaz dedicado ao cinema local. O IndieLisboa leva também um pedaço do cinema asiático a Lisboa, com as curtas-metragens chinesas “A Fly in the Restaurant”, de Xi Chen e Xu An, bem como “Wong Ping’s Fables 1”, de Hong Kong. “A Million Years”, uma curta de Danech San, em representação do Cambodja, será também exibida. O IndieLisboa acontece entre os dias 2 e 12 de Maio em vários locais da capital lisboeta e contará com mais de 50 filmes portugueses, presentes em toda a programação, entre estreias mundiais, estreias nacionais e primeiras obras. Há 17 filmes na competição de curtas-metragens.

29 Abr 2019

Ressonâncias

[dropcap]H[/dropcap]á obras que nos tocam pela densidade humana que nelas perpassa e não por outras qualidades específicas, técnicas e formais – a obra até pode ser lisa, mediana, coxa.

No cinema isso é muito claro. Lembro-me do delicioso Saint Jack, de Peter Bogdanovich, um filme “menor” dos anos oitenta com uma personagem maior do que a vida, e onde Ben Gazzara interpreta um americano “exilado” e que actua ou como um proxeneta muito especial ou um facilitador de negócios, iluminando com a sua sageza as noites de Singapura.

A dado momento Jack é colocado diante da tentação de se tornar um delator, em troca de uma quantia que lhe permitiria regressar à terra. Mas a sua “pureza” é a liberdade com que agencia vidas sem com elas interferir, e escolhe permanecer na sua “pobreza essencial” – afinal, o seu modo taoista de “seguir a linha da água” e de estar em ressonância com o mundo, numa conectividade concreta. Revi-o agora no YouTube.

Mais recentemente recordo-me de outro filme (também está no YouTube), O Visitante, de Thomas McCarthy, interpretado por Richard Jenkins, de 2008, que a política de Trump em relação à emigração actualizou.

Um renomado professor de economia, Valter, epítome de uma classe média de sucesso, atravessa uma crise por causa da viuvez que lhe revelou a irrelevância dos seus valores. Sente-se agora um “homem sem qualidades”, que vive agarrado às memórias da sua mulher, uma pianista de carreira, ao ponto de sem qualquer sucesso querer aprender a tocar piano.

A contragosto, vai a Nova York dar uma palestra, onde mantém um apartamento. Chegando lá, descobre um casal de imigrantes ilegais a viver no apartamento, ele árabe, ela negra. Mas, sendo um homem sem reservas mentais percebe que eles foram enganados e deixa-os ficar.

Tarek, um jovem sírio-libanês, é percussionista e a música acaba por tecer entre os dois uma verdadeira cumplicidade. Valter percebe que afinal não é um caso perdido para a música, apenas estava enganado no instrumento.

Por acidente, Tarek é preso e deportado, a sua namorada tenta desaparecer no anonimato, e Valter, que luta contra a desumanidade com que as autoridades tratam Tarek, acaba por se envolver com a mãe deste, uma mulher decente e educada, chegada do lado dos derrotados da História, para se inteirar da situação do filho.

No fim ficam todos sozinhos porque a vida não se compadece, mas Valter está mudado e o filme acaba com o académico e reputado palestrante a tocar tambor no metro.

Valter toca tambor no metro para se identificar com Tarek, essa figura anónima do bem que as absurdas e cínicas leis humanas penalizam, e para tentar recuperar o que aprendeu com ele: a Ressonância, essa sílaba de uma frase que só no transporte de um ritmo (fantasmaticamente colectivo) se deixa formular como um lugar (mental, atópico) onde o mundo deixa de ser um estranhamento.

Ao resumi-lo, reduzimos à caricatura este filme sóbrio e aparentemente simples, com quatro personagens e um drama atualíssimo, mas o que nele vale é a densidade das personagens e o seu subtexto: creio que a ressonância neste filme é a metáfora para falar da escuta, o seu primeiro tema, ou antes, da escuta deficiente com que nos condenamos ao isolamento social. Vivemos em sociedades doentes porque já não nos escutamos nem aos outros nem a nós mesmos, e a pele do tambor é aqui o tímpano que nos falta.

Nas sociedades actuais, como diria Sloterdijk, somos sempre convidados a ouvir o que ajuda a não ouvir o mundo e a alteridade. Valter enganara-se anos a fio de instrumento musical porque, preso às imagens da sua mulher e à sua música sedativa e funcional, deixara de se ouvir.

O outro grande tema do filme é, concomitantemente, o da hospitalidade.

A hospitalidade não é apenas o acolhimento do outro, mas o modo como através da presença do outro no meu espaço vital eu deixo de mentir a mim mesmo. Como nos ensinou a psicanálise, a mentira a si mesmo é primeiro que tudo uma proteção narcísica, defendemo-nos contra a imagem desfavorável que podemos dar de nós mesmos; neste sentido, a mentira secunda a intenção de quem tem vontade se perseverar a si mesmo. Lidar com um outro, o que acarreta tensão, obriga-nos a resolver este estado de reféns da consciência intencional e a transitar mais rapidamente para o plano da verdade.

A hospitalidade não abriga então apenas as dimensões da fraternidade e da responsabilidade, é igualmente um passo essencial para o amadurecimento e o auto-conhecimento. É outra forma de ressonância.

E isto serve tanto para os planos individuais como colectivos.

Também no Youtube, à procura de estudar a estrutura de várias óperas, por súbita necessidade profissional descubro uma versão inteira (e legendada) da Carmen, de Bizet, com a romena Angela Gheorghiu no lugar da protagonista, que me fascina. Como até agora andava distante da ópera não tinha dado conta do trabalho desta intérprete, não só no canto como no magnetismo que transmite às personagens. E há um pormenor da encenação que amplifica a força e sensualidade da personagem: quando a Carmen está em cena há uma máquina de vento ligada que lhe electriza o cabelo e o corpo. O fito é dar-lhe uma aparência indomável, e o instrumento é, de novo, a ressonância. Três obras magnificas para rever muitas vezes.

25 Abr 2019

Manuel Antunes Amor, o primeiro realizador a retratar Macau

Em 1919 Manuel Antunes Amor foi para Macau trabalhar como inspector escolar, mas a sua paixão pelo cinema fez dele o primeiro realizador a filmar, ainda que de forma amadora, o território. A investigadora Maria do Carmo Piçarra fala hoje, em Lisboa, deste realizador e das formas como Macau, Goa e Timor foram retratados no cinema nos tempos do Império colonial português

 

[dropcap]C[/dropcap]hama-se “Macau, Cidade Progressiva e Monumental” e é provavelmente o primeiro filme feito sobre Macau. Datado de 1923, a autoria pertence a Manuel Antunes Amor, um homem que nunca fez do cinema a sua profissão, mas cujo trabalho amador acabaria por contribuir para uma representação de Macau do início do século XX.

O filme, que retrata o quotidiano da Baía da Praia Grande, das principais avenidas, dos riquexós e do jogo do “Clu-Clu”, entre outros pedaços da vida da população da altura, foi digitalizado em 2015 e pode ser visto hoje no website da Cinemateca Portuguesa.

O trabalho de Manuel Antunes Amor tem vindo a ser analisado por Maria do Carmo Piçarra, investigadora que apresenta hoje, na Universidade de Lisboa, a palestra “Cinema Império – Projecções dos arquivos e uma constelação de perguntas”, inserida no ciclo de conferências “Representações Visuais da ‘Ásia Portuguesa’ – Perspectivas críticas”.

Maria do Carmo Piçarra não tem dúvidas de que Manuel Antunes Amor “foi, de alguma forma, a primeira pessoa a fazer filmes em Goa e em Macau”.

A chegada do realizador amador ao território aconteceu em 1919, depois de uma passagem por Goa. “Ele foi convidado para ir para Macau fazer uma reconversão do ensino público. Aí passa três anos. Compra uma câmara de filmar e um projector portátil e começa a usar as suas sessões de cinema para ensinar os alunos do ensino primário.”

“Macau, Cidade Progressiva e Monumental” é, nas palavras de Maria do Carmo Piçarra, “um dos filmes mais antigos sobre as colónias e esteve, durante muitos anos, mal datado”. “Em 1922 está de regresso a Goa e faz uma série de filmes sobre as escolas locais que estão desaparecidos”, acrescentou.

Ainda em Goa, e antes do regresso a Macau, Manuel Antunes Amor já revelava uma predisposição para a sétima arte. “No final da primeira década do século XX estudou pedagogia na Alemanha e em 1915 ganhou o concurso público para ser inspector do ensino primário em Goa, para onde levou ideias muito avançadas para a época em termos de pedagogia.”

Além disso, Manuel Antunes Amor “era pintor e fotógrafo, e acompanhava a linguagem cinematográfica e tudo o que se passava no mundo nessa altura”.

Da propaganda

Com o passar dos anos, e após o regresso a Portugal ditado por motivos de saúde, em 1928, o trabalho amador de Manuel Antunes Amor acaba por ser usado pelos regimes políticos que se foram estabelecendo. Primeiro pela Ditadura Militar de 1926, depois pelo Estado Novo, em 1933.

“Ele começa a apresentar alguns filmes que fez em sessões privadas e que acabam por ser usados pelo regime português. O agente geral das colónias, Armando Cortesão, determina, com o apoio de Salazar, que Portugal deve participar nas grandes exposições coloniais da altura, e os filmes que Manuel Antunes Amor fez de Goa passam na exposição de Antuérpia, enquanto que as filmagens de Macau passam na exposição de Paris.”

O trabalho de investigação de Maria do Carmo Piçarra sobre o realizador está longe de estar terminado. “Um dos objectivos da minha pesquisa é tentar identificar materiais existentes de Manuel Antunes Amor. Desde que vim de Goa consegui encontrar o contacto de uma sobrinha, e tenho expectativas de que ela possa ter documentação ou um outro filme.”

A investigadora portuguesa regressa a Macau em Novembro para procurar mais informação sobre uma outra realizadora das primeiras décadas do século XX, de nome Lucrécia Borges, que geria uma produtora com o marido.

“Em 1925 há uma grande exposição em Macau e nesse período uma senhora, Lucrécia Borges, obtém a exclusividade para fazer filmagens no território durante um determinado período de tempo. Sobre essa senhora nunca se escreveu nada em Portugal. Tenho muita curiosidade”, frisou. Já sobre Manuel Antunes Amor, “tem-se escrito pouco e mal”.

O trabalho de Miguel Spiegel

Macau foi também retratada por Miguel Spiegel que, apesar de não ter nacionalidade portuguesa, residiu no país durante muitos anos. Este era “um grande apaixonado por Macau e fez vários filmes nas décadas de 50 e 70”.

“Alguns desses filmes eram de propaganda para o Estado português, mas também fez obras de propaganda turística e para a Polícia Judiciária sobre o consumo de ópio”, disse a investigadora. Além disso, Miguel Spiegel realizou “uma trilogia com elementos ficcionais”.

Maria do Carmo Piçarra tem vindo a deparar-se com uma quantidade de materiais dispersos que não ajudam ao seu trabalho de investigação sobre o cinema feito no antigo império português na Ásia (ver texto secundário). Macau, um território bastante retratado no cinema norte-americano e europeu a partir dos anos 50, é o território onde há uma maior organização.

“Há documentação mais bem organizada, mas não quer dizer que o acervo fílmico esteja muito bem tratado. Já percebi que não há cópias de filmes de realizadores portugueses e era importante que existissem. O último filme de António Lopes Ribeiro foi feito em Macau e não o consegui ver até hoje”, rematou.

23 Abr 2019

Ser livre

[dropcap]H[/dropcap]á umas décadas, ser livre era coisa só de revolução. Não se falava de outra coisa. E não se admire o mais blandicioso dos leitores, se o cenário se vier a repetir, pois o diabo à solta é coisa íntima destes pobres mortais que somos todos nós. Mais recentemente, a ideia de que ser livre é, também – dir-se-ia sobretudo – um ofício aplicado de cada pessoa foi-se tornando, a pouco e pouco, permeável na nossa sociedade. Por trás de cada uma destas concepções, que as mentes mais aferradas adoram opor uma à outra, respiram desígnios com tradição e com algum mar ao fundo (nem sempre com a melhor vista para a rebentação, conceda-se).

Neste mês que tem a coloração dos prodígios, o tema apetece. Mas dissertar apetecerá muito menos, até porque as folhas já encheram as árvores da Infante Santo e os sintomas dão-se agora a ver, mais por breves acenos e sinais do que por discursos que ocupariam a parede toda do tempo. Passemos então ao contorcionismo, ou seja: passemos a drapejar alguns dos sintomas. Escolhi três: escravaturas fugazes, famílias empapadas e multidões a eito.

Primeira história: quando alguém adora ser (ou confundir-se com) a linguagem que estudou.

Uma desses ‘bons espíritos’ que coloca likes nas redes sociais antes de ler seja o que for, incluindo estas minhas crónicas (sim, o afecto é o sistema solar inteiro), perguntou-me outro dia: “Do que tratam as tuas crónicas?”. Como bom actor, fingi que nada de anormal se passava da fronteira de Badajoz para cá, e respondi: “Gosto de cogitar sobre o nosso tempo, avançando e recuando como e quando me apetece, e sobretudo sem depender de heróis, ou daquilo que geralmente se designa por formações especializadas (referência a quem diplomado em X apenas fala de X ou, pelo menos, invariavelmente com o filtro de X, sem outros esforços adjacentes). A pessoa ficou sentida. A psicologia – e a linguagem técnica da psicologia que através dela falava – era a sua casa, isto é: propriedade privada em sentido estrito. Não gostou de perceber que assim era, na sequência do nosso abrasivo diálogo. Mas convenhamos que acontece tanta vez que um discurso (psicológico, filosófico ou de outra área) sobre um tema importante se torna numa verdadeira rebarbadora, por ser construído apenas por ‘palavras de ordem’ que só têm – ou teriam – vida própria no seio da redoma em que (e para que) foram criadas. Como se não se pudesse, de modo desalinhado, indagar o mundo fora desses limites. Como dizia o Jorge Silva Melo no filme ‘Ainda Não Acabámos: Como Se Fosse Uma Carta’ (2016) – “O que interessa é o início do gesto, o gesto a abrir-se”. No entanto, grassa por aí uma infinidade de ‘bons espíritos’ para quem o mundo é uma coisa fechada, feita de concordâncias fictícias e com vista apenas para remições ilusórias. Na realidade, ser-se escravo é, também, permitir que uma linguagem qualquer se sobreponha ao que uma pessoa é, enclausurando-a numa espécie de armário calafetado de onde não se vê sequer o mundo, quanto mais um bom buraco negro.

Segunda história: quando as famílias travam a redescoberta mais íntima da liberdade.

Ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças.

A minha geração passou o tempo todo a rebelar-se contra essa “vaga sagrada que é a família”, expressão utilizada por Marina, uma das personagens que expressamente o repetiu no romance Lusitânia (1980) que Almeida Faria escreveu no final dos anos setenta. Laivos e indícios do Maio de 1968, porventura. Ainda que a família dita tradicional esteja em vias de fanico, falar deste tópico, hoje em dia, é o mesmo que lucubrar sobre os falanstérios de Charles Fourier. De qualquer modo, muito do que separa os dois países onde vivi, o nosso e a Holanda, é neste campo que se encontra. Nas terras de Vermeer, os jovens saem de casa antes dos vinte e o estado há muito que se colou à itinerância e estimula até a procissão. E pode fazê-lo, claro está. Por cá, a saída de casa já está no final dos trinta e, muitas vezes, é coisa que vai para além disso. O itinerário torna-se pegajoso e é evidente que os factores materiais acabam por selar a angústia das longas e traumáticas dependências. Estou em crer que este é um dos factores que mais amarra, em Portugal, as pessoas a formas de liberdade (muitas vezes) apenas abstractas e sem grande saída. O percurso próprio e livre, esse, é sempre o mais complicado.

Terceira história: quando as multidões e as suas furiosas causas ascendem ao vazio.

Perdemos também a liberdade, quando nos deixamos arrastar pelo vórtice, mesmo se as causas forem da maior nobreza. Aconteceu comigo. Há umas semanas, quando o tema da violência doméstica atingiu o clímax mediático, eu achei que o caso da cabeça de uma mulher encontrada na praia de Leça da Palmeira passava todas as marcas. E passava e passa, como é óbvio! Sinceramente indignado, embarquei no jorro e denunciei, dando à estampa um post em conformidade. Há semana e meia, veio a saber-se que o homicídio fora obra de uma outra mulher, devido a uma dívida e não a violência doméstica. Ir no rebanho, ainda que animado pela mais alta graça dos deuses, pode ser ruinoso para a nossa própria liberdade. O ‘Me Too’ e os seus feéricos apoiantes, lá no olimpo da sua infinita ‘magistralidade,’ têm muitas vezes caído nesta armadilha soez. No meu caso, o desacerto é e foi sobretudo da minha consciência e não teve, de certeza, consequências de maior. Seja como for, ser livre implica – deixem-me empregar palavras de Heidegger que não são propriedade privada de ninguém – não estar entregue ao “ente intramundano” e ao vazio que aprisionam e que não permitem “aceder a si mesmo”. Por outras palavras ainda: ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças. Jogo complexo, é certo, mas o único em que vale mesmo a pena acreditar (até porque um clímax mediático não é, na larga maioria das vezes, um clímax efectivo e real).

18 Abr 2019

Cinema | Pequim levanta restrições a produtores de Macau e Hong Kong

O Conselho de Estado levantou várias restrições às indústrias cinematográficas de Macau e Hong Kong que queiram competir nalguns dos mais famosos festivais do continente. Macau respondeu à iniciativa com “satisfação”

[dropcap]A[/dropcap]poiar a sétima arte feita em Macau e Hong Kong é o objectivo da China ao levantar restrições de produção cinematográfica. “Após aprovação pelo Conselho de Estado, as repartições competentes do Governo Central adoptarão medidas para apoiar a indústria cinematográfica de Macau e Hong Kong a desenvolver-se na China interior”, lê-se num comunicado emitido ontem pelo Gabinete do Porta-voz do Executivo.

Entre as medidas previstas pelo Governo Central está o cancelamento de limites numéricos à participação de residentes em produções do Interior da China e o cancelamento do limite de verbas orçamentais de co-produções envolvendo a China Interior e as regiões administrativas especiais.

Paralelamente, o continente vai permitir que as obras e os profissionais do cinema destas regiões se inscrevam nas fases de selecção para alguns dos prémios mais prestigiados dedicados à sétima arte. Entre eles estão o Huabiao, Galo de Ouro e Cem Flores.

A solicitação de apoios para divulgação de obras chinesas “de excelência”, seja em Hong Kong, Macau e Taiwan, ou no exterior. Vai ainda ser permitida às empresas locais.

Empurrão de coragem

Em relação à decisão de Pequim, as autoridades de Macau acolheram a “iniciativa com satisfação e com a convicção de que encorajará a cooperação bilateral, abrindo espaço para o desenvolvimento sectorial, beneficiando a produção cinematográfica e estimulando a diversificação adequada da economia” indica o mesmo comunicado.

Por outro lado, tratam-se de medidas que vão ter “um importante efeito positivo sobre a formação de recursos humanos e produção de filmes locais” e promover “a cooperação bilateral com o a China interior”.

Com o levantamento de restrições à cooperação na área do cinema “espera-se que as obras e actores de Macau tenham ainda mais espaço no continente”, sendo esta uma “imensa oportunidade para o desenvolvimento das indústrias culturais da RAEM”.

O Executivo recorda ainda a importância da sétima arte no âmbito das indústrias culturais, salientando as particularidades do território que o tornam apetecível para produções audiovisuais. “Macau tem a peculiaridade de contar com elementos culturais chineses e ocidentais, possuindo muitas temáticas que podem ser exploradas em obras cinematográficas”, refere o documento.

A medida ganha especial relevo tendo em conta as oportunidades resultantes do projecto de cooperação inter-regional da Grande Baía, “donde se espera que as produtoras locais possam aproveitá-las, valendo-se das medidas de apoio do Governo Central e fazendo bom uso das vantagens peculiares a Macau”. Cabe agora às empresas “explorarem o seu potencial” com o objectivo de “produzir obras criativas”, conseguirem entrar no gigante mercado cinematográfico do continente e “sair para os mercados internacionais, escrevendo um belo capítulo da história do cinema local”.

17 Abr 2019

Entre amigos

[dropcap]T[/dropcap]empos estranhos estes, leitores. Mas por outro lado, terá havido alguns que o não tenham sido? Duvido. Mas é com estes dias que temos de lidar; e estes são os dias em que todos os dias existem “estudos”.

Sabeis do que falo. É difícil escapar a uma publicação que nos grita que um “estudo” decidiu que o pepino não existe; que respirar é perigoso; que usar pijama está por enquanto fora de moda; que ler crónicas de sujeitos com o apelido Guedes pode ser nocivo à saúde. E por aí fora.

A ideia que parece transversal às conclusões destes “estudos” é esta: “estudámos” o óbvio, e concluímos que o óbvio não apresenta grandes interpretações. É, como dizem os “estudos”, óbvio.

Mas pronto: toda a gente tem direito a “estudar” o que quiser, embora não me importasse nada de conhecer quem financia estas actividades. Dava um jeitão ser subsidiado para um “estudo” que concluísse que à noite temos sono, por exemplo.

Daí que sem surpresa tropecei em mais uma investigação rigorosíssima e essencial à humanidade que concluía que a amizade entre homens heterossexuais durava mais e melhor do que as relações românticas ou casamentos dos sujeitos estudados. Deixem-me colocar a coisa em termos modernos: o “bromance” – contracção entre ‘brother’ ou ‘bro’ (mano) e romance – é coisa mais perene do que namoros ou matrimónios. Ainda bem que alguém pagou a alguém este “estudo”, sob pena de vaguearmos nas trevas até ao fim dos tempos.

Mas pelo menos deu-me assunto, o que nem sempre é fácil. Numa altura em que existe uma fúria igualitária que chega mesmo ao modo de sentir, haja um “estudo” – por mais ocioso e parvo que seja – que lembre que há diferenças. E é nelas que devemos rejubilar. Não falo de hierarquias: a amizade masculina não é melhor, mais leal ou seja o que for do que a amizade entre mulheres. É apenas diferente. E sinceramente, se é ou não mais duradoura do que as “relações” é irrelevante.

Há muitos exemplos públicos e notórios deste fenómeno agora “estudado”: Sinatra e Dean Martin, Kingsley Amis e Philip Larkin, Lobo Antunes e Cardoso Pires. E tantos outros que vivem felizmente no quotidiano. Como é o meu caso e poderá ser o seu, leitor.

Eu conto, só como exemplo: há pouco tempo fiz uma longa viagem, cerca de cinco a seis horas de carro. Um terço desse período foi passado em completo silêncio, com a excepção da música que se fez ouvir na rádio. Os outros dois terços foram mais ruidosos: inventaram-se línguas estranhas para canções, partilharam-se escatologias sem pudor, disseram-se grosserias a sorrir, falou-se de cinema e de episódios marcantes da vida, lembraram-se lengalengas infantis e brejeiras. Rimos, rimos muito. O silêncio foi apenas um parêntesis necessário para tudo isto. E “isto” são quatro amigos em viagem. Nem sequer quatro amigos “íntimos”, de frequência constante e confidentes – apenas gente que se gosta e que circunstâncias profissionais junta de quando em vez.

Isto, para mim, que não tenho “estudos”, é a essência de uma amizade masculina (e pronto, no caso heterossexuais apenas porque calhou assim). A assiduidade nunca está em questão, nunca está à prova. O silêncio é suportado naturalmente e até bem-vindo. Partilhar o silêncio com uma amiga é muito mais difícil. E isto não é um julgamento, apenas uma constatação de quem tem grandes amigas mulheres.

Isso e esse regresso a uma adolescência artificial e efémera faz um pouco da amizade masculina.

Os homens adultos, quando se juntam, transformam-se em crianças velhas e livres. A escritora Iris Murdoch, que não era exactamente uma admiradora deste estado, definiu-nos bem: “ [a companhia masculina] é uma espécie de cumplicidade no crime, (…) de deglutir o presente de forma gulosa mesmo que o inferno esteja por todo o lado”. Terá razão. Mas ainda assim prefiro o que escreveu Montaigne após a morte do seu grande amigo La Boétie: “Se me obrigassem a dizer porque o amava, sinto que a minha única resposta seria: ‘Porque era ele, porque era eu’ ”.

Olho uma fotografia: mostra Humphrey Bogart a aninhar o seu grande e pequeno amigo Peter Lorre sob um enorme abraço, com o olhar benevolente de Lauren Bacall. E penso que este sim, é o mundo, e que se lixem os “estudos”.

3 Abr 2019

Hong Kong | Macau tenta atrair indústria do cinema

[dropcap]M[/dropcap]acau está desde ontem representado no “Hong Kong International Film & TV Market” (FILMART) para atrair a indústria do cinema para o território e promover o seu festival internacional, anunciaram ontem as autoridades.

Com a presença no FILMART, que decorre até 21 de Março, pretende-se “divulgar Macau como um local ideal para filmagens, impulsionar o intercâmbio entre a indústria cinematográfica e televisiva de Macau e os seus congéneres internacionais”, bem como promover o quarto Festival Internacional de Cinema.

O Pavilhão de Macau no Centro de Convenções e Exposições de Honk Kong é uma iniciativa conjunta da Direcção dos Serviços de Turismo e Instituto Cultural.

Por outro lado, “a partir de hoje[ontem], e durante quatro dias consecutivos, no FILMART, quatro entidades de produção de filme e televisão de Macau vão realizar intercâmbios e encontros com os expositores e profissionais da indústria (…), para procurar oportunidades de cooperação, e elevar o prestígio internacional da indústria cinematográfica e televisiva de Macau”, pode ler-se no comunicado.

No ano em que se celebra, o 20.° aniversário do estabelecimento da região administrativa especial, o Pavilhão de Macau mostra vários locais do território que serviram de cenários de cinema ao longo dos últimos 20 anos e, em simultâneo, exibe ainda obras cinematográficas da promoção “Sentir Macau Ao Estilo de Cinema” para promover os locais de filmagem do território.

19 Mar 2019

Cinemateca Paixão | Segundo aniversário celebrado com ciclo secreto de filmes

O segundo aniversário da Cinemateca Paixão será marcado pela exibição de um ciclo secreto composto por oito filmes. Entre os dias 30 de Março e 28 de Abril, o público apenas saberá, com certeza, que películas vão ser projectadas quando as luzes se apagarem

[dropcap]O[/dropcap]elemento surpresa é o trunfo para a celebração do segundo aniversário da Cinemateca Paixão. A festa da sétima arte, com datas marcadas entre 30 de Março a 28 de Abril, terá como prato principal um ciclo secreto composto por “oito notáveis clássicos do cinema”, afirma a organização em comunicado.

“Não fui curadora do programa, mas quando discutimos ideias para o segundo aniversário achámos que as projecções surpresas seriam uma boa ideia. São oito filmes de géneros diferentes, que serão exibidos duas vezes. Também vamos ter palestras e exposições para celebrar o aniversário”, conta Vivianna Cheong, chefe de programação e marketing da Cinemateca Paixão. Até às projecções, serão ainda dadas algumas pistas sobre os filmes que vão passar pelo ecrã da cinemateca.

O ciclo será composto por “promissores filmes de estreia, comoventes e nostálgicas histórias de amor, arrepiantes obras-primas do terror, comédias de época e cinema do mundo, até marcos do cinema de ficção científica”, lê-se no comunicado.

Em relação às sessões secretas, a directora de operações da Cinemateca, Rita Wong, explica que a noção de “nova perspectiva” tem um papel fundamental no programa de aniversário.

“O público entra na sala sem qualquer ideia prévia. Ao fazer a lista de obras, com a curadora convidada Penny Lam, decidimos escolher obras populares e de renome. Tal como o slogan do festival indica, tratam-se de narrativas que ‘transcendem o tempo’. Além disso, são apresentas em sessões secretas, o que acrescenta um sentido de aventura. Espero que o público nos acompanhe nesta aventura cinematográfica”, aponta Rita Wong.

 

Anos recheados

Desde que abriu portas, a Cinemateca Paixão tem mantido actividade constante. “Ao longo dos dois últimos anos, organizámos mais de 20 festivais de cinema, apresentámos estreias e exibimos filmes locais. O nosso objectivo é providenciar um ‘hub’ de cinema para os fãs da sétima arte e apresentar trabalhos de relevo a novas audiências. A conjugação destes dois tipos de público tem reflexo na nossa programação, que tanto pode ser peculiar e artística, como apresentar obras que metem a audiência bem-disposta”, refere Rita Wong.

À passagem de dois anos de actividade, a directora da Cinemateca Paixão mostra-se feliz com a aderência do público e acrescenta achar possível “ir ainda mais longe”.

Um dos outros rostos da casa que se dedica à paixão pela sétima arte é Albert Chu, director artístico da Cinemateca, que também aproveitou a ocasião para dirigir algumas palavras à audiência. “Gostaria de manifestar a minha profunda gratidão pelo apoio do público ao longo destes dois anos. É minha convicção que estamos a crescer juntos. Com a nossa curadoria de festivais de cinema aspiramos a mostrar grandes filmes que possam inspirar uma profunda reflexão. O que nos dá o cinema? Certamente a sua fascinante cinematografia, as suas histórias e contextos. Mas também, entre outras coisas, as memórias que suscita e o pensamento crítico que evoca. É muito encorajador ver caras novas entre o público. Espero que juntos cheguemos mais longe, público e Cinemateca.”

Os bilhetes para o ciclo secreto de cinema vão ser postos à venda a partir de amanhã e custam 60 patacas.

15 Mar 2019

Geração Z: inocências e tentações

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s palavras são nuvens que desarrumam o pano de fundo. Ao trabalhar com elas, talvez o mais importante seja a arte de saber mergulhar na própria desarrumação, do mesmo modo que, ao entrar na rebentação das ondas, há sempre um caudal que nos arrasta e um outro que nos faz seguir e olhar em frente. D. de Kerckhove escreveu há duas décadas uma frase lapidar sobre esta entrada no oceano: “Os gregos inventaram o teatro para recuperar a proximidade que tinha sido estilhaçada pelo alfabeto”*. Por outras palavras: as escritas clássicas, todas elas (incluindo as escritas do corpo), ensinaram-nos a separar as águas e a cativar, ao mesmo tempo, a distância e a solidão.

Ao invés, as escritas digitais deixaram de desarrumar, pois elas são o próprio pano de fundo: céu táctil onde deslizam os dedos e a mente no seu todo sem grande preocupação de ‘inscrever’ e sobretudo de singularizar, mas antes de reduplicar formatos que são já tendencialmente dados em fluxo e/ou gerados pelos sistemas algorítmicos. Uma revolução neural que domestica (cada vez mais) os dispositivos na sua relação com o corpo, quase inviabilizando aquela ideia milenar de que os humanos, sendo sociais, sabem estar a sós consigo mesmos.

Esta impossibilidade de se ser a sós no quotidiano do mundo digital (e de entrever uma distância, ainda que ilusória, entre si e o mundo – apanágio de ouro dos modernos) parece aflitiva. Seja como for, estou certo de que ela se irá tornar de tal modo corrente que a própria percepção da aflição (que hoje alimentamos) irá evoluir muito rapidamente para uma nova noção de normalidade. Questão de tempo.

Em O Fantasma sai de cena (2007), P. Roth atirou o seu protagonista de maneira abrupta para as ruas de Nova Iorque, dando assim conta da estranheza (profunda) que era ver toda aquela gente agarrada ao novo suplemento da mente chamado “smartphone”. Ninguém era capaz de estar consigo mesmo: ou se projectavam nas imagens digitais, ou falavam com outrem. Fluxo puro. E isto aconteceu há apenas uma dúzia de anos.

Era a fase do pasmo. Uma década depois, vemo-nos a cair (e com prazer, curiosamente) para dentro do aquário digital de tal modo que quase deixou de existir um espaço ‘de fora’ (que permitisse observar com distância, tal como acontecia no romance do Roth) e um espaço ‘de dentro’. Todo o mundo como que submergiu e se transformou na água do fantasmático agora-já-aqui, o novo deus sem forma e movido pelo espírito santo da IA. A geração pós-millenial – a geração Z – encarna como ninguém este aquário supremo e, para ela, a grande aflição seria poder imaginar um mundo sem os dispositivos que permitissem a alucinação, mas uma alucinação desprovida das peias, das vanguardas e das rockadas dos avós babyboomers.

Estamos a viver uma (belíssima) transição meteórica de que conhecemos razoavelmente os pontos (plurais) de partida, mas de que temos particular dificuldade em perceber a natureza dos pontos de chegada. Tudo à nossa volta é um indefinido batimento de claras em castelo: uma progressão enigmática ‘in media res’. Dir-se-á que estaremos a viver um novo Iluminismo (no sentido de uma ponte inorgânica entre mundos muito distintos), mas com uma carga cinética, convulsiva e de velocidade tal que supera todas as capacidades de o poder imobilizar, para depois sobre ele reflectir. Não, não haverá mais Kants.

Giambattista Vico em Scienza Nuova (1725) dividiu a humanidade em três grandes fases e na primeira os seres humanos eram vistos como meras “substâncias animadas por deuses”.  Nos dias de hoje e nos tempos que se seguirão, estou em crer que este tipo de passividade animada (agora pelas divindades da virtualidade) se irá expandir cada vez mais. Novos tipos de patologias e novas formas de propriocepção estarão a caminho. Uma nova antropologia e uma nova cultura que abandonará as linguagens com que aprendemos a trocar o desconhecido pelo conhecido e a significar a experiência estarão a caminho.

Este suave vórtice que se prenuncia tem um lado virtuoso que é o de perceber, até que ponto, tudo o que a espécie imaginou e desejou, ao longo de milénios (nos mitos, na literatura, no cinema, etc.), corresponderá a algo, ainda que em parte, concretizável. Os desejos potenciais do humano, pondo de lado a imortalidade (embora esteja hoje em voga o novo mito da juventude eterna; basta espreitar para dentro dos ginásios para o compreender), irão debater-se com novos e inovadores patamares de ‘realidade’. Veremos o que resultará desses novos interfaces. Provavelmente já não estaremos neste planeta para o aferir e verificar em pleno. Mas deverá ser um exercício fascinante. Assim será, pelo menos para quem, talvez de forma inocente, ainda cultiva alguns restos de optimismo. É o meu caso.


*Kerckhove,D., A Expo e os princípios @ (Entrevista) Indy – O Independente, Lisboa,18-09-1998, pp. 13.17.

14 Mar 2019

Branquear com sangue

[dropcap]O[/dropcap] castelo está cercado, aproxima-se o fim. O general Kurogane sobe aos cómodos reais para confrontar a Dama Kaede, astuciosa intriguista, cujas conjuras e ciladas, acrescidas de um sortilégio sexual, conduziram o clã Ichimonji à catástrofe iminente.

A câmara fixa-se nela e Kaede, niponicamente hierática, como deve ser a alteza sobretudo em face do veredicto, vai fitando um ponto infinito enquanto revela que o seu triunfo é inexorável assim alcançando a vingança por que tanto porfiara. Está iminente a aniquilação dos Ichimonji que décadas atrás haviam massacrado a sua família.

Kurogane desembainha a catana e ante o clamor de pânico das cortesãs, na parede para onde agora olhamos estampa-se um formidável jorro sangue. O realizador Akira Kurosawa oferece-nos alguns segundos de fascínio e silêncio para contemplarmos aquele esplendor vermelho.

De seguida o General Kurogane repta quem o quiser ouvir: “Preparem-se para morrer.” E parte para a batalha.

Ao longo de “Ran” o General Kurogane assassinara e cometera crimes irremissíveis porque a todos os valores sobrelevou o princípio da lealdade. Em nome dela permitiu-se executar as iniquidades que lhe foram encomendadas pelo seu Senhor; para não a desfalcar recalcou apreensões e dúvidas, comprometendo-se com franqueza em actos que sabia serem indecentes.

Mesmo que imperturbável e deixando connosco o encargo de ajuizar o que nos dava a ver, a câmara de Kusosawa, porque nada omitindo, foi-nos revelando a personagem do General Kurogane como sórdida e degradada. Um esbirro sempre teria o indulto da inconsciência e da subordinação, mas o braço direito do Senhor não tem como atenuar a sua parte de responsabilidade individual.

É inesperado, logo um golpe de génio, daqueles que desequilibram o escrúpulo do espectador, que no final de “Ran” Kurosawa conceda a Kurogane uma dádiva inestimável – a redenção. É, aliás, uma dupla e apoteótica oferta: primeiro a de acertar contas com a perfídia ao cortar o mal pela raiz acutilando a Dama Kaede, no que acrescenta mais uma grave culpa ao seu rol; mas a seguir a de resgatar a honra com uma morte em combate.

Aliás retrocedendo àquela cena capital nela descobrimos, porque só ali nos é dado saber, que afinal a odiosa Dama Kaede também agiu com abandono e sem cupidez, por motivos superiores ao seu interesse pessoal, consciente desde o início das suas maquinações de que, na melhor das hipóteses, trespassá-la-ia a lâmina de uma catana. Também ela agiu por fidelidade, neste caso à memória dos seus antepassados, desafrontando o ultraje com um castigo ainda maior do que o sofrido. Maior porque mais subtil do que a mera extinção olho por olho, dente por dente, da casa Ichimonji. A queda que ela provocou é antecedida por um apogeu de poder e força, angariados por uma sucessão de infâmias políticas, conjuras familiares e massacres militares. Não só ela fez com que os Ichimonji caíssem de mais alto como trabalhou para que merecessem a ruína.

Ou seja também com a Dama Kaede Kurosawa foi misericordioso. A economia narrativa de “Ran” ficaria estropiada se ela fosse retirada de cena de maneira inconclusiva, rendendo o seu desenlace à imaginação e à especulação dos espectadores, talvez a pior desgraça a que se pode condenar uma personagem. Esse martírio ficou reservado para o velho rei Hidetora cuja ponderação, equidade e candura no início do filme, ao dividir com isenção o reino pelos seus três filhos, desencadeou todos os tormentos e tribulações que fomos presenciando. Hidetora, o justo, acaba cego e só a tactear o vazio à borda de um precipício.

As culturas mais díspares e historicamente incomunicáveis, todas reconhecem o sacrifício da vida pela sorte das armas como um honroso resgate dos males antes praticados. “Ran” é assim um filme absolutamente japonês e absolutamente shakespeariano. A tragédia é inseparável do sangue – nos tempos de hoje talvez o elemento que mais repugna ao sentimentalismo e ao moralismo vigentes – e tem aqui como detonador a lealdade, pois é por via dela que se corre para a perdição.

Do elenco de virtudes cardinais a lealdade será a que mais a que mais sobressalta a ética com os seus dilemas, a que mais corrompe as outras virtudes e a que mais dano causa a quem a professa. Incubado nas decisões erradas que incauta e aleatoriamente por ela vamos tomando o vírus do fatalismo nela latente pode alastrar a peste da tragédia, esse ectoplasma que se apropria sem remédio de uma vida.

Pior do que a lealdade só a deslealdade.

8 Mar 2019

Curtas de animação| IC promove apresentações internacionais

[dropcap]O[/dropcap]Instituto Cultural (IC) vai promover a exibição de cinco curtas metragens de animação subsidiadas pelo organismo em 2016 dentro do programa de apoio aos criativos locais. A apresentações vão ter lugar em Macau, na China Continental, em Hong Kong, Portugal e na Grécia. “The Lighthouse”, de Lei Pui Weng, “Starry Sky”, de Ku Pou Cheng, “Father’s Lunch”, de Pun Lap Fung, “Pundusina”, de Lou Ka Choi, e “Dinzong”, de Cheong Chi Pan, foram os filmes considerados “excelentes” e seleccionados para estas mostras.

“The Lighthouse” foi finalista do 24.º Festival IFVA de Hong Kong, no Festival de Animação de Lisboa 2019 em Portugal e Athens Animfest 2019 na Grécia. “Father’s Lunch” vai participar no 15.º Festival Internacional de Cinema de Animação da China. “Pundusina”, uma obra de animação que retrata o quotidiano, será transmitida nas plataformas de partilha de vídeos e apresentada no programa de televisão Bom Dia, Macau. “Dinzong”, uma animação digital e “Starry Sky” uma animação com um estilo semelhante aos livros ilustrados, assinalam um avanço na cena da animação local vão ser apresentadas na “Exposição de Multimédia, Animação e Banda desenhada de CMM” organizada pela Associação de Arte da Animação e Banda Desenhada de Macau, a ter lugar no Centro de Arte Contemporânea – Oficinas Navais N.º 2, de 11 a 18 de Maio. Este último evento vai contar com a participação dos realizadores.

Os cinco realizadores das animações vão ainda participar no “Moving Image Programme: Independently Yours” um evento anual de exibição de produções independentes organizado pelo Hong Kong Arts Centre, que terá lugar no dia 2 de Abril.

7 Mar 2019

Cinema | Galaxy apresenta ciclo com filmes que marcaram os Óscares

Até ao dia 6 de Março, quarta-feira, as salas UA Galaxy Cinemas oferecem aos cinéfilos a possibilidade de assistirem a alguns dos filmes que marcaram a edição deste ano dos óscares

[dropcap]E[/dropcap] os óscares vão para… o Galaxy. O complexo UA Galaxy Cinemas está a passar um ciclo com filmes que foram distinguidos pela Academia dos Óscares na edição deste ano dos mais populares prémios da sétima arte. O ciclo já está em andamento e decorre até ao dia 6 de Março, com uma selecção de dez películas que marcaram as nomeações para as principais categorias dos prémios.

Entre os filmes escolhidos este ano vão ser exibidos: “Assim Nasce Uma Estrela”, “Green Book – Um Guia Para a Vida”, “The Incredibles 2: Os Super-Heróis”, “Ralph Breaks the Internet: Wreck It Ralph 2”, “Homem-Aranha: No Universo Aranha”, “A Favorita” e “Vice”.

O conjunto de filmes selecionados pretende ser acessível a todas as idades e gostos, obedecendo ao género de filme e às nomeações recebidas.

 

Por categorias

Os filmes estão a ser exibidos numa sala, portanto, cada dia será dedicado a uma das películas que foram distinguidas no Teatro Dolby. Hoje será exibido “Assim Nasce Uma Estrela”, protagonizado, escrito e realizado por Bradley Cooper e abrilhantado por Lady Gaga, arrebatou o galardão de melhor canção original.

O fim-de-semana tem uma programação dedicada à família, com a exibição de três películas de animação. Neste capítulo, destaque para “Homem-Aranha: No Universo Aranha”, dirigido por uma tripla de realizadores, Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, que ganhou o óscar para melhor filme de animação.

Durante sábado e domingo, haverá ainda tempo para os outros nomeados vencidos “The Incredibles 2: Os Super-Heróis” e “Ralph Breaks the Internet: Wreck it Ralph 2”.

Na segunda-feira será a vez de “Vice”, película que venceu apenas na categoria de melhor maquilhagem, apesar das oito nomeações que averbou.

“A Favorita” vai estar em destaque na terça-feira, dia 5, nomeado para nove categorias, mas que também apenas conseguiu arrebatar uma estatueta para Olivia Colman, como melhor actriz.

Finalmente, e para fechar com chave de ouro, será exibido na quarta-feira um filme que já havia brilhado no Festival Internacional de Cinema de Macau: “Green Book – Um Guia Para a Vida”. A película de Peter Farrelly foi um dos grandes vencedores dos Óscares 2019, ao conquistar as estatuetas para melhor filme, melhor actor secundário para a interpretação de Mahershala Ali e melhor argumento.

1 Mar 2019

MUST organiza festival de cinema dedicado a realizadores estreantes franceses

Entre os dias 18 e 21 de Março, a MUST organiza e recebe o European First Film Festival. O evento resulta de uma mostra itinerante de películas que concorreram ao Festival “Premiers Plans” de Angers, na França, e é uma montra de realizadores franceses que se estreiam em longas-metragens

 

 

“O festival pretende celebrar novos realizadores”, revela Sa Ng, director dos assuntos culturais da Alliance Française de Macau, um dos parceiros do European First Film Festival. Entre os dias 18 e 21 de Março, a MUST organiza e recebe o evento, que leva ao ecrã obras de realizadores que se aventuram pela primeira vez no formato de longa-metragem. A mostra em Macau resulta do Festival “Premiers Plans”, que decorreu em Angers, França, entre os dias 25 de Janeiro e 3 de Fevereiro. No final da competição e da entrega de prémios às melhores primeiras películas francesas, o evento parte em digressão pelo mundo, com particular ênfase na Ásia.

“Este ano, vamos ter dois realizadores na tour asiática, acompanhados pelo director do festival, Xavier Masse. Antes de chegarem a Macau passaram pelo Vietname, Camboja e Sri Lanka”, conta Sa Ng.

A edição local traz dois realizadores premiados em Angers para exibir as suas obras na MUST. Além disso, estão programadas sessões de perguntas e respostas, palestras e uma master-class sobre fotografia. Além disso, será realizada uma curta-metragem, com a colaboração dos alunos da MUST, para ser exibida em França.

 

Vacas e cozinha

A cerimónia de abertura tem como momento alto a exibição de “Petit Paysan”, um drama de 2017, realizado por Hubert Charuel, que foi apresentado em Festival de Cannes durante a Semana da Crítica Internacional. A sessão está marcada para as 19h no dia 18 de Março no Hall D do edifício da MUST.

A narrativa tem como protagonista Pierre, um agricultor de 35 anos que passa a gerir a quinta dos pais, dedicando-se 24 horas por dia a tratar de vacas. A devoção que dedica aos animais é posta à prova quando a manada é afectada por uma epidemia, algo que deixa Pierre terrivelmente ansioso. Mesmo com as garantias da irmã, Pascale, que é veterinária, Pierre não sossega. Os receios do jovem agricultor revelam-se certeiros, quando uma vaca adoece o que implica a morte de toda a manada por razões de segurança alimentar por possível contágio. A partir desse momento, a vida de Pierre é dominada pela necessidade de salvar todos os animais.

O outro dia aberto ao público, 23 de Março, tem como prato principal a exibição do filme “La cuisine des justes”, realizado por Emmanuel Morice e Nicola Thomä. No final do filme, os dois realizadores, na companhia do também cineasta Hubert Charuel, dirigem uma palestra com o tema “Como fazer o teu primeiro filme”.

 

Macau em francês

Apesar de ser organizado pela MUST, a Alliance Française, parceira do festival, tem experiência em promover e planear eventos que celebram a cultura francesa em Macau. O director dos assuntos culturais, Sa Ng, destaca o fenómeno surpreendente de proximidade. “Acho fascinante que a comunidade local, em particular a asiática, assuma um estereótipo muito positivo sobre o cinema francês, que tem uma abordagem, normalmente, muito “indie” e “artística”. Nesse aspecto, Ng salienta a boa adesão das sessões organizadas na Cinemateca Paixão, ainda para mais face ao facto de que “o cinema francês não é muito mainstream”.

Ainda assim, Sa Ng entende que não existem por cá muitos eventos que proporcionem hipóteses de experimentar a sétima arte francesa. “A interacção entre o público de Macau e o cinema francês está mesmo no início”, comenta.

27 Fev 2019

Óscares | “Green Book” arrecada estatueta para melhor filme

“Green Book” de Peter Farrelly e “Roma” de Alfonso Cuarón foram os grandes vencedores da 91ª edição dos Óscares tendo cada um arrecadado três estatuetas. A interpretação da “rainha” no filme a “A Favorita” valeu a Olivia Colman o prémio para melhor actriz indo contra as expectativas que se centravam no desempenho de Glenn Close em “A mulher”. O melhor actor foi Rami Malek na interpretação de Freddie Mercury

[dropcap]A[/dropcap]maior surpresa da noite de Óscares foi a vitória de “Green Book” como melhor filme do ano, incluindo para o realizador Peter Farrelly, que “honestamente não esperava ganhar”, disse nas entrevistas de bastidores da cerimónia, em Hollywood.

“De certa forma bloqueei, como quando vejo uma partida de futebol e saio da sala se quero que a minha equipa marque”, comparou o cineasta. “Pensei em tudo menos vencer isto, e funcionou”.

As controvérsias em redor do filme, que se baseou na história verdadeira do pianista de jazz Donald Shirley, foram “desanimadoras” para os criadores, disse o produtor Jim Burke, mas não impediram a Academia de lhe atribuir três estatuetas em cinco nomeações, incluindo melhor filme, melhor argumento original e melhor actor secundário (Mahershala Ali).

A reacção nos bastidores foi de estranheza, mesmo não havendo um claro favorito nesta edição, e depois de “Roma” já ter vencido na categoria de melhor filme estrangeiro.

Apesar de Viggo Mortensen não ter ganhado a estatueta de melhor actor pelo seu papel como Tony Lip, em “Green Book”, Peter Farrelly atribuiu-lhe todo o mérito pelo Óscar de melhor filme, nos agradecimentos.

O cineasta disse nunca ter pensado na personagem interpretada por Mortensen como algo que hoje seria apoiante do Presidente Donald Trump com um boné a dizer “MAGA” (Make America Great Again” na cabeça.

“A mensagem é, falem uns com os outros e vão descobrir que têm muito em comum”, explicou Farrelly, dizendo que se trata de uma “mensagem de esperança”, e que “a única forma de resolver problemas é a falar”.

Recorde-se que “Black Panther”, “BlacKkKlansman – O infiltrado”, “Bohemian Rhapsody”, “A Favorita”, “Green Book – Um guia para a vida”, “Roma”, “Assim nasce uma estrela” e “Vice” eram os candidatos ao Óscar de melhor filme.

Outro grande vencedor da noite das estatuetas douradas foi o filme “Roma” de Alfonso Cuarón. O cineasta mexicano arrecadou o Óscar de melhor realizador e “Roma” foi também o vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro. A película, o primeiro filme produzido pela Netflix nomeado para os principais Óscares, já tinha ganho o Leão de Ouro do festival de Veneza, em Setembro do ano passado.

A vencedora favorita

Numa das vitórias mais inesperadas da noite, Olivia Colman ficou “sem saber o que fazer” quando recebeu o Óscar para melhor actriz pelo papel em “A Favorita”, disse à Lusa a actriz inglesa nas entrevistas dos bastidores da cerimónia.

“Não faço ideia, não consigo dizer o que estou a sentir”, afirmou a actriz, que não esperava vencer numa categoria onde também estava nomeada Glenn Close e sugerindo que, “no próximo ano, talvez consiga fazê-lo”.

Olivia Colman admitiu que ficou atrapalhada durante o discurso de aceitação do Óscar e que não percebe “como é que alguém mantém a compostura” e se lembra do que dizer, “porque é uma situação muito estranha”.

A actriz, que também protagonizou a série policial “Broadchurch”, atribuiu a vitória à qualidade do argumento.

“Sem os escritores, sem palavras, estamos apenas a tropeçar por ali”, disse à Lusa, considerando que se o argumento é bom, tem tudo o que é preciso para ter sucesso.

“A Favorita” era, a par de “Roma”, o filme mais nomeado da 91.ª edição dos prémios da Academia, com dez indicações, tendo vencido apenas nesta categoria.

O campeão

O desempenho de Rami Malek como Freddie Mercury, dos Queen, em “Bohemian Rhapsody”, foi distinguido com o Óscar de melhor actor, numa categoria onde estavam ainda nomeados Christian Bale, por “Vice”, Bradley Cooper, por “Assim nasce uma estrela”, Willem Dafoe, por “À porta da eternidade” e Viggo Mortensen, por “Green Book – Um guia para a vida”.

O prémio para melhor actriz secundária foi para Regina King, no filme “Se esta rua falasse”. “Free Solo” arrecadou o galardão de melhor documentário, “Homem-Aranha: No Universo Aranha” foi melhor filme de animação, e “Bao”, melhor curta-metragem de animação. “Black Panther” venceu na categoria de melhor cenografia e melhor guarda-roupa e “Bohemian Rhapsody” foi também premiado pela montagem, montagem de som e mistura de som. “Vice” foi o vencedor da melhor caracterização, e “O primeiro homem na Lua”, pelos melhores efeitos visuais.

Outro grande vencedor da noite das estatuetas douradas foi o filme “Roma” de Alfonso Cuarón. O cineasta mexicano arrecadou o Óscar de melhor realizador e “Roma” foi também o vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro

Representação lusa

O documentário “Free Solo”, de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, produzido pela National Geographic, conta com dois portugueses, Joana Niza Braga e Nuno Bento, na equipa de som. “Free Solo”, que se estreia a 17 de Março no National Geographic, acompanha o alpinista norte-americano Alex Honnold numa escalada de 900 metros, sem cordas ou protecções, na parede de granito El Capitan, no Parque de Yosemite (Estados Unidos). O português Nuno Bento já foi distinguido nos prémios norte-americanos Golden Reel, pelo trabalho de edição de som neste documentário e Joana Niza Braga, “foley mixer” no filme, foi distinguida no fim-de-semana passado noutros prémios específicos para montagem de som: os norte-americanos Cinema Audio Society Awards.

 

26 Fev 2019

Cinema | Filme de Jorge Jácome seleccionado para festival nos EUA

Jorge Jácome, realizador que cresceu em Macau, vai estar representado num festival nos Estados Unidos, com curta-metragem

[dropcap]O[/dropcap] filme “Past Perfect”, do realizador português Jorge Jácome, foi seleccionado para o festival New Directors/New Films, que começa em 27 de Março em Nova Iorque.

O festival, que cumprirá a 48ª. edição, é organizado pelo Museu de Arte Moderna (MoMA) e pelo cineclube do Lincoln Center e “celebra realizadores que representam a actualidade e que antecipam o futuro do cinema, artistas arrojados cujo trabalho ousa entrar por caminhos inesperados”, diz a nota de imprensa, divulgada na sexta-feira.

Este ano, o programa exibirá 24 longas-metragens e 11 curtas, entre as quais “Past Perfect”, que o realizador Jorge Jácome estreou este mês, em competição, no festival de cinema de Berlim.

“Past Perfect” deriva da peça de teatro “Antes”, de Pedro Penim, na qual Jorge Jácome tinha trabalhado a componente visual. O realizador reescreveu o texto original, adaptando-o às suas interrogações pessoais e ao contexto cinematográfico. Apesar de ter feito vários trabalhos durante o tempo em que estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, Jorge Jácome considera-se realizador a partir de “Plutão”, curta-metragem de 2013. Depois dessa fez as curtas “A guest + a host = a Ghost” (2015), “Fieste Forever” (2017) e “Flores” (2017).

Jorge Jácome apresenta, então, “Past Perfect” como “um balanço e um ponto de situação” sobre o que faz e para onde quer seguir no cinema, tendo como base essa percepção da origem da melancolia, segundo descreveu o próprio em entrevista recente à agência Lusa.

“A melancolia, para mim, é uma coisa muito mais individual e pessoal, por isso é tão difícil de explicar. E este ‘Past Perpect’ está constantemente a dizer que é difícil de explicar, de traduzir, de passar para imagens e para texto o que é este sentimento”, contou.

Entre cá e lá

Nascido em Viana do Castelo em 1988, cresceu em Macau, até à transferência para a China em 1999. De regresso a Portugal, estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, sem ter ideias certas de que queria seguir cinema. “O que foi entusiasmante foi que na escola aprendi pela primeira vez a ver cinema e a ver filmes aos quais não tinha acesso. Aprendi mesmo tudo do zero. Não era cinéfilo antes de entrar para a escola”, recordou. Depois rumou a França, para uma pós-graduação na Le Fesnoy, na qual aprendeu a desconstruir os ensinamentos anteriores.

O festival New Directors/New Films, que abrirá com “Clemency”, de Chinonye Chukwu, vai decorrer até 7 de Abril.

25 Fev 2019

Hong Kong | Festival de Cinema da União Europeia a partir de 21 de Fevereiro

Hong Kong recebe de 21 de Fevereiro a 10 de Março a 10ª edição do Festival de Cinema da União Europeia. Além da apresentação de mais de 15 películas inéditas no território vizinho, está programada uma retrospectiva do cinema europeu e uma projecção especial para o Dia Internacional da Mulher. Portugal estará representado pelo filme “Mother Knows Best” de Nuno Rocha

 

[dropcap]A[/dropcap] 10ª edição do Festival de Cinema da União Europeia (EUFF na sigla em Inglês) vai levar a Hong Kong 15 filmes inéditos na região, entre 21 de Fevereiro e 10 de Março. As sessões vão ter lugar na Broadway Cinematheque, em Kowloon, e do AMC Pacific Place, em Central. A iniciativa é promovida pelo Gabinete da União Europeia para Hong Kong e Macau em associação com os países membros da União Europeia, com a Suíça e a Broadway Cinematheque.

No programa desta 10ª edição, destaque para duas projecções gratuitas de “clássicos europeus”, além da exibição de um filme, também com entrada livre, para celebrar o Dia Internacional da Mulher. Outros pontos dignos de realce são a curta-metragem “EU Through the Hong Kong Looking Glass”, da autoria de nove alunos da Escola Primária Budista Chung Wah Kornhill e uma sessão de perguntas e respostas com o realizador irlandês Frank Berry.

A cerimónia de abertura vai contar com a exibição do filme “Champions” de Javier Fesser, um êxito de bilheteiras em Espanha nomeado para 11 galardões dos Prémios Goya. O filme narra a história de um treinador de basquetebol, Marco, que tem uma particular apetência para cometer pequenos crimes. O personagem acaba por ser condenado a prestar serviço comunitário, pena que implica treinar uma equipa especial composta de pessoas com deficiência mental.

O evento de abertura será abrilhantado por um concerto da Orquestra da Universidade Politécnica de Hong Kong.

Para sublinhar a primeira década do festival, o programa inclui duas sessões especiais, de entrada gratuita, onde serão projectados “The lives of others”, filme alemão de 2016 realizado por Florian Henckel von Donnersmarck, e “Amelie”, película francesa que marcou o ano de 2001, a cargo do cineasta Jean-Pierre Jeunet.

Mulheres em debate

O Dia Internacional da Mulher não será esquecido pela organização do festival. Como tal, a 8 de Março vai ser exibido o documentário “#Female Pleasure”, de Barbara Miller, que conta a história de cinco mulheres oriundas de diferentes países, mas que partilham a existência limitada pelos deveres impostos por sociedades patriarcais. Depois da sessão segue-se uma conversa sobre direitos das mulheres a cargo de um painel de especialistas, entre os quais a directora de fotografia, Anne Misselwitz.

O encerramento da edição de 2019 do EUFF é assinalado com o último filme do irlandês Frank Berry “Michael Inside”, de 2017. A película retrata os três meses de prisão de Michael McCrea, um jovem que vive com o avô e que, aos 18 anos é apanhado na posse de droga, crime pelo qual vem a ser condenado. Protagonizado por Dafhyd Flynn, o filme aborda a violência e intimidação que impera nos estabelecimentos prisionais. “Michael Inside” foi galardoado com o IFTA – Irish Film and Televisiona Awards para Melhor Filme e Melhor Argumento. Após a exibição, está marcada uma sessão de conversa entre o realizador e o público.

Europa pelos pequenos

No início de cada sessão, o EUFF vai mostrar “EU Through the Hong Kong Looking Glass”, a curta-metragem criada por nove alunos da Escola Primária Budista Chung Wah Kornhill, que venceu o Filmit 2018, concurso organizado pela Secretaria da Educação de Hong Kong. O filme retrata os países da União Europeia através de uma viagem pelas suas características gastronómicas, arquitectónicas e artísticas.

Além dos destaques mencionados, a programação integra filmes de vários países europeus. De 21 de Fevereiro a 9 de Março vão passar pelos ecrãs da Broadway Cinematheque, em Kowloon, e do AMC Pacific Place “The best of all worlds” do austríaco Adrian Goiginger, o filme belga “After Love” de Joachim Lafosse, “With Us” da República Checa, realizado por Tomáš Pavlíček, o finlandês “The Eternal Road” de Antti-Jussi Annila.

De França vai ser exibido “Just a bread away” de Daniel Roby e da Alemanha “3 days in Quiberon” realizado por Emily Atef. Já a Hungria estará representada com o filme de Márta Mészáros “Aurora Borealis: Northern Lights e a Itália por “Dogman” de Matteo Garrone.

Antes do encerramento do evento há ainda tempo para ver “An Impossible Small Project” do holandês David Verbeek, “Breaking the Limits” do polaco Łukasz Palkowski, “Mother Knows Best” do português Nuno Rocha, “Serious Game” da sueca Pernilla August e “Eldorado”, uma abordagem ao tema dos refugiados de autoria do suíço Markus Imhoof. Os bilhetes já estão à venda.

12 Fev 2019

Ética e dignidade

[dropcap]E[/dropcap]m 2012, em Navarra (Espanha), no final de uma corrida de corta-mato, o queniano Abel Mutai, que fora medalha de ouro nos três mil metros com obstáculos numa semana anterior, em Londres, estava a pouquíssima distância da meta mas, confuso com a sinalização, parou para posar para as fotos, pensando que já a havia cortado. Mesmo atrás vinha outro corredor, o espanhol Iván Fernández Anaya. E que fez este? Gritou para que o queniano reparasse na sua falta e, como este não entendesse que não havia ainda cruzado a meta, então, o espanhol empurrou-o em direcção à vitória.

O fair-play do espanhol foi reconhecido; ninguém esperaria o que se passou depois. Um jornalista perguntou-lhe: “Por que é que o senhor fez isso?”. O espanhol não compreendeu: “Isso o quê?”. Ele não entendeu a pergunta, pois não imaginava que houvesse outra coisa a fazer além do que tinha feito. O jornalista insistiu: “Por que deixou que o queniano ganhasse?”. “Eu não o deixei ganhar. Ele ia ganhar”. O jornalista continuou: “Mas você podia ter ganho! Não estava fora das regras, ele distraiu-se…”. “Mas qual seria o mérito da minha vitória, qual seria a honra do meu título se eu deixasse que ele perdesse?”, continuando: “Se eu ganhasse desse jeito, o que ia dizer à minha mãe?”

Quem nos reporta a este episódio maravilhoso é o pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, que lembra que a mãe, como matriz de vida, fonte de vida, talvez seja a última pessoa que se quer envergonhar, e pergunto-me se as mães, pedagogicamente, não poderiam ser recuperadas para a tarefa de esclarecer que o foco obsessivo nos resultados pode não ser o mais correcto.

O foro da discussão ética tem sido excessivamente deslocado para a escola, como um tema que esta tem de assumir, quando a ética, antes de tudo, é da alçada da família. Os exemplos nascem em casa – e o ideal é que um dia possamos almejar um tipo de vida comunitária em que a pergunta feita pelo jornalista ao corredor espanhol não seja mesmo entendida.

Em tudo o que fazemos na vida quando a ânsia pelos resultados se sobrepõe ao prazer e à especificidade do processo há uma dimensão humana que se perde.

Há um filme italiano de 2008, Si Puo fare/ Pode fazer-se, de Giulio Manfredonia, que é muito engraçado e fala deste problema em situação. O filme incide sobre as cooperativas sociais que se organizaram em Itália – em articulação com um novo entendimento para a reforma psiquiátrica – e que integravam doentes mentais. E conta-nos a história de um sindicalista, Nello Treddi, demasiado honesto e demasiado reflexivo que está sempre envolvido em sarilhos e a quem o Sindicato propõe, como última oportunidade, a gestão de uma Cooperativa, a 180, que tem sede num hospital psiquiátrico e cujos membro são todos esquizofrénicos.

– “Mas que produz a cooperativa? – pergunta Nello ao director da instituição, o Dr. Del Vecchio.
– “O que é que você quer produzir? Para o município, eles colam selos. Para os supermercados, colocam os preços nas azeitonas.”

As coisas mudarão com a direcção de Nello. Para Del Vecchio, o director, “a doença mental isola do mundo”, Nello não concorda que os pacientes não sejam capazes de assumir as responsabilidades de um trabalho. A sua posição resume-se assim: “Eu não sou médico, eu não sou um director de hospital, eu estou aqui para executar um trabalho cooperativo, e dado que estou aqui vou tratá-los como trabalhadores.”

Nello acidentalmente descobriu que alguns pacientes têm uma capacidade especial para projectar figuras simétricas, e que essas figuras podem ser transformadas numa vantagem para o desenho dos pisos de parquet. Enquanto para o psiquiatra a produção dessas imagens tinha um valor mecânico e compensatório da desordem interna, Nello reconverte-as em desenhos artísticos exclusivos para vender. Tratando-os com dignidade, incitando-os a que tenham prazer no trabalho, Nello consegue transformar a cooperativa num caso de sucesso no ramo do “pavimento artístico”.

Em dois anos a empresa dá lucro e resolvem arranjar uma outra sede e sair da tutela do centro psiquiátrico de Del Vecchio. Os membros são instalados numa nova sede, onde agora são os “inquilinos” (e não internos) e outro psiquiatra controla a redução da medicação para 50%. E todos se comprometem em assembleia a viver exclusivamente para “satisfazer o mercado com o seu próprio trabalho, o seu próprio sacrifício e a sua própria capacidade”.

A meta da cooperativa é atender a demanda mas oferecendo as diferenças que as habilidades específicas dos “doentes” têm para oferecer ao consumidor e que rompem com os padrões normativos do mercado.

A crise começa quando, movido pelo entusiasmo, Nello decide que a cooperativa deve crescer e concorrer a um grande concurso para uma nova estação de metro de Paris. E aí, começando a olhar mais para os resultados, o sucesso no trabalho, do que para as pessoas que os produzem induz a “normatividade” no comportamento do colectivo, com saídas programadas à noite. Do que advém o enamoramento de alguns membros da cooperativa por mulheres de fora daquela pequena comunidade e a breve trecho, o desajuste fatal e o suicídio de um deles. Nello na mira dos resultados, esquecera-se da especificidade de cada um e como não estavam preparados para enfrentar uma decepção. As pessoas – a singularidade de cada uma – devem estar primeiro e ser ponderadas e não abstraídas em função dos resultados, é a lição do filme.

Contudo, a ética e a dignidade estão sempre no eixo do filme, que por isso contribui de algum modo para a reflexão sobre a relação entre a política e a subjectividade.

Este filme pode ver-se inteiro no Youtube.

24 Jan 2019

Elogio dos filmes longos

[dropcap]H[/dropcap]á um famigerado, sacramental e tácito postulado entre os “dealers” e leiloeiros de arte nova iorquinos segundo o qual qualquer quadro terá de caber nos elevadores dos edifícios de apartamentos de Park Avenue.

Também no cinema é princípio consuetudinário que a duração dos filmes se inscreva entre os 80 e os 120 minutos. Em ambos os casos o propósito é o mesmo: não afastar consumidores por motivos meramente logísticos. Tanto um filme demasiado curto como um desmedido desorganizam os horários das salas de cinema impedindo-as de realizar a habitual quantidade de sessões às horas do costume.

A extensão dos filmes foi o combustível de uma “cause celebre” que definiu de vez a relação de poderes da indústria cinematográfica. Em 1925 o realizador Erich von Stroheim das 85 horas que havia filmado insistiu numa versão final de “Greed” com cerca de 8 horas e o jovem Irving Thalberg, há pouco tempo posto à cabeça dos estúdios da MGM, tirou-lho das mãos, mandou-o remontar sob a sua supervisão e deu à luz uma cópia com 140 minutos. A queda em desgraça do primeiro e o prestígio do segundo consubstanciaram-se com tal desfecho, mas além desta consequência imediata o que definitivamente ficou estabelecido foi assegurar que o produtor é quem na verdade imprime a sua marca no resultado final de um filme.

De modo que os filmes longos, muito longos, passaram a ser uma raridade circunscrita a um cinema de distribuição marginal. Até porque, é uma evidência, ninguém tem vida para se enfiar numa sala durante mais de 5 horas – ou bastante mais…

Há porém outra e menos referida causa para tal raridade, que não se detém na paciência do espectador, sequer nas dificuldades de produção. Um filme de longa duração exige uma segurança e uma maestria invulgares na manipulação do elemento mais volátil, impertinente, indómito, implacável, unívoco e, no fundo, essencial do cinema – o tempo.

Na verdade o rabo é o grande sensor da capacidade de envolvência de um filme, ao qual produtores e realizadores costumam – ou deviam – dar atenção. Quando as sinapses trazem ao cérebro sinais de incómodo do rabo no contacto com a cadeira é porque o enfado está a tomar conta dos nossos sentidos. E o enfado, como se sabe, é irreversível.

Quer isto dizer que duração não é demora. Sobram por aí curtas-metragens ditas de autor que abrem num plano estático e por lá ficam. Vasculhamos com o olhar os quatro cantos do enquadramento, tornamos a dar a volta e aquilo ainda ali está sem nada mais para dizer mesmo quando tem árvores batidas ao vento. Ao cabo de um punhado de prolongadíssimos minutos percebe-se que tanta e tão pretensiosa solenidade comparece unicamente para remediar o vácuo, que a coisa tem bazófia de sinfónica, mas é composição de uma nota só. A sensação de morosidade de um filme depende, portanto, da sua redundância, não do comprimento.

Fomos acostumados a que os filmes nos exijam concentração e esperteza para seguir as subtilezas do enredo, palpitação emocional para viver as alegrias e tristezas das personagens, contemplação ou deslumbramento perante as vistas e panoramas que ele nos dá a ver. Em troca é suposto devolverem um troço de vida condensada; em 90 minutos podem passar lá dentro décadas de história ou uns intensos momentos de drama.

Um filme verdadeiramente longo obriga à disponibilidade de uma viagem de avião intercontinental, sem mais nada que fazer senão estar ali. Ora isto tem potencial para originar um enorme prazer, equivalente ao de uma imersão total num universo paralelo. Estou em condições de afirmar que me custou sair de “Satantango” (1992) de Bela Tarr com 7h30m ou do documentário “Near Death” (1989) de Federick Wiseman com 6h, porque em ambos já me havia integrado neles e acomodado a permanecer ali dentro.

Noutros casos são filmes oceânicos, nos quais mergulhamos e vamos nadando durante um tempo, sabendo que não poderemos ir até ao seu fundo nem atravessá-los com as nossas pequenas braçadas – são muito maiores do que nós. A experiência de assistir a “Hitler” (1977) de Syberberg com 7h22m ou de “Le Soulier de Satin” (1985) de Manoel de Oliveira com 6h50m é a de começar a sentir que “aquilo” subsistirá para sempre independentemente de mim.

Ver um filme longo, tal como a difícil arte de ficar um ínterim sem fazer nada, oferece-nos um benefício precioso e cabal, que é o de ganharmos uma percepção do tempo doutro modo inalcançável.

18 Jan 2019

Miguel Gonçalves Mendes pede ajuda financeira a Macau para acabar filme

[dropcap]O[/dropcap] cineasta português Miguel Gonçalves Mendes tem vindo a promover uma campanha de recolha de fundos para concluir o seu mais recente projecto, “Sentido da Vida”, tendo alargado esse pedido de apoio a Macau.

“Neste momento, e ao fim de seis anos de filmagens, encontro-me a terminar o filme ‘O Sentido da Vida’, cuja acção também se desenrola em Macau e [aborda] a nossa relação com a lusofonia. Contudo, a nossa situação financeira é tão delicada que criamos uma plataforma de financiamento colectivo para tentar concluir o filme”, escreveu em comunicado.

A campanha de recolha de fundos termina a 18 de Fevereiro e visa angariar 350 mil euros (cerca de três milhões de patacas), montante que “permitirá concluir a edição e a pós-produção do filme”. No total, o “Sentido da Vida” custa 1,8 milhões de euros (cerca de 16 mil milhões de patacas).

A produtora JumpCut, responsável pelo filme, propõe contrapartidas para aqueles que se disponham a apoiar financeiramente o projecto. “Independentemente do valor escolhido para financiar a obra, todos terão a oportunidade de dar a cara num frame do filme por 10 euros (92 patacas). Para tal, bastará enviar uma foto. Existem ainda contributos especiais para estudantes, com acesso a um workshop leccionado pelo realizador sobre o género documentário biográfico.”

“O Sentido da Vida” foca-se na história real de Giovanne Brisotto, “um jovem brasileiro com Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF, vulgarmente conhecida como Paramiloídose ou Doença dos Pezinhos), uma doença incurável, de origem portuguesa, que foi espalhada pelo mundo durante o período das grandes navegações”. No filme, “Giovane dá uma volta ao mundo, de mais de 56 mil quilómetros, desembarcando na Índia e estabelecendo depois a rota que se pensa ter sido a da primeira viagem a disseminar a doença. Segue até Macau e, depois, para o Japão, numa jornada onde ambiciona perceber qual, afinal, ‘O Sentido da Vida’”.

Ao mesmo tempo, o filme acompanha sete histórias de oito figuras públicas portuguesas, “estabelecendo uma constelação de personagens que nos faz questionar até que ponto seremos mais parecidos aos heróis que admiramos e qual a diferença entre a imagem pública e privada num mundo em rede e em constante processo de aceleração”.

Miguel Gonçalves Mendes realizou o documentário “José e Pilar” sobre José Saramago, tendo este projecto sido produzido pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar e Fernando Meirelles. O cineasta português é também autor do documentário sobre o poeta e pintor Mário Cesariny, intitulado “Autografia”.

14 Jan 2019

A mais recente provocação de Lars von Trier

[dropcap]O[/dropcap] novo filme de Lars von Trier, estreado este ano em Cannes e que tem estreia marcada para o Nimas neste início de 2019 – amanhã, 3 de Janeiro – tem como foco um serial killer, Jack (Matt Dillon), Mr. Sophistication, que vai estabelecendo um diálogo com Vergo (Bruno Ganz), numa clara analogia à Divina Comédia de Dante. Podemos ver o filme de dois modos distintos, mas que se entrecruzam: o modo literal e o modo metafórico. Irei começar pelo primeiro modo de ver. Aqui o filme terá de ser visto através do distúrbio radical que conduz um ser humano a matar outros. A história de alguém que está entre nós como se não fosse um de nós – e não é, de certo modo – e despede a grande maioria dos espectadores de identificação.

Na literalidade da narrativa, o espectador fica no lugar daquele que no início do século passado ia a uma feira ver as aberrações que a natureza produzia no ser humano. Porque, felizmente para a maioria de nós, Jack é uma aberração, um desvio radical do comportamento humano. Ele não mata pessoas por dinheiro ou porque em algum momento se enfurece e reage intempestivamente, ele mata pessoas por prazer e por considerar um acto artístico. Ele compara a morte às maiores criações humanas. Ao longo do filme assistimos a um excerto de um documentário em que aparece Glenn Gould a tocar Bach ao piano. Mas também compara a decomposição do corpo humano à decomposição da uva na criação dos vinhos licorosos como o Sauternes. Jack não só mata, como guarda os corpos numa câmara frigorífica. Estamos claramente nas franjas do humano. Ninguém ou muitos poucos se podem aqui identificar com Jack. Jack é um monstro, uma aberração humana, um erro de Deus e da natureza. Visto neste modo literal, a própria narrativa do filme torna impossível a identificação do espectador, pois a descida ao Inferno inviabiliza essa mesma identificação. Lars von Trier impede a identificação ao estabelecer a cumplicidade entre este novo Virgílio (Bruno Ganz) e Jack.

E na literalidade do filme Jack não somos nós. É também neste modo de ver o filme que explode um dos pontos mais polémicos do filme, a aproximação deste fazer a morte à arte. Jack fala mesmo de Hitler e de Estaline como ícones. Mas a pergunta mais pertinente é a que nós mesmos fazemos: aonde é que termina a violência que pode ser considerada arte? Qual é o grau de violência a partir do qual deixa de haver arte? Por exemplo, de modo geral estamos de acordo que os filmes de Van Damme, de Stevan Seagal, de Chuck Norris não são arte, mas entretenimento, e mau entretenimento. E, por outro lado, em que pé ficam os filmes de Tarantino? Desde o violentíssimo Resevoir Dogs até à parodia Kill the Bill? E filmes de autores ainda mais independentes, como sejam os casos de Pasolini – por exemplo o Salò ou os 101 Dias de Sodoma – e de Abel Ferrara – por exemplo o The Bad Lieutenant ou o Funny Games de Michael Haneke? Até onde podemos usar a violência numa obra de arte sem que a arte deixe de ser arte? A pergunta vai um pouco mais longe, pois de modo geral a aceitação da violência na arte advém da aceitação do realismo. A premissa de que temos de filmar o real, temos de filmar aquilo que se passa, aquilo que acontece. A arte não pode fazer como a avestruz e evitar ver a realidade. Assim, quando a violência filmada ou escrita advém de uma realidade ela é aceite pela arte. E do mesmo modo que o humano tem franjas, limites radicais de ser humano, como é o caso deste Jack, também a realidade tem as suas franjas. Um serial killer é uma dessas franjas. Assim como o são os traficantes de órgãos humanos, de armas e de drogas. São realidades que estão nas franjas da realidade e, por isso mesmo, ignoradas pela arte. Se a arte se atrever a tocar nessas franjas, imediatamente é transformada em entretenimento barato ou kitsch. Isto pode advir de várias razões, uma delas é que os senhores das academias, quer de áudio-visuais, quer literárias são pessoas com vidas completamente além destas realidades, eles não vivem nestas zonas do humano. Por conseguinte, o seu olhar acerca disso será sempre a menos e a mais. A menos, porque não sabem nada do que acontece, a mais porque tendem a mistificar. Mas outras razões haverá, seguramente. Seja como for, o filme levanta a desconfortável pergunta acerca do que legitima ou não a relação entre violência e arte.

Quanto ao outro modo de ver o filme, pelo seu lado metafórico, a identificação torna-se evidente, pois o protagonista representa cada um de nós cada vez mais fechados em nós mesmos, nas nossas necessidades, nos nossos caprichos, nas nossas preocupações e prazeres. Cada um de nós não levanta o olhos do monitor, seja ele do portátil, do ipad ou do iphone para atentar no outro. Os mais jovens chegam a estar lado a lado a conversar através do telemóvel. Mas não é uma crítica às tecnologias, mas a este nosso contínuo afastamento uns dos outros. Já só falamos do outro para dizer mal. Isto aparece no filme, na argumentação de Jack, por outras palavras. A vida humana está às moscas. A falta de empatia de Jack pelos outros representa a nossa crescente falta de empatia uns pelos outros. Numa cena do filme, a única em que mostra Jack próximo de uma relação com outro ser humano, e antes de assassinar essa mulher, ele incentiva-a a pedir ajuda, a grita por socorro, e ele mesmo grita na janela em busca de socorro, mostrando claramente que ninguém quer saber de ninguém, ninguém está disposto a sair de sua casa, de seu quarto para vir ajudar outrem. Várias são as palavras escritas em cartazes que Jack vai deitando fora ao longo do filme, à imagem do teledisco de Bob Dylan “Subterranean Homesick Blues”, que indicam o egoísmo da nossa sociedade actual. Não são apenas palavras que o acusam, mas que nos acusam a nós.

Que o modo metafórico seja aquele que Lars von Trier quer que vejamos parece evidente, não só pela estrutura narrativa, que é ela mesma uma metáfora, uma alegoria, um poema, mas também pelo seu fim moralista. Assim, aquele que no fim cai no mais profundo abismo de fogo do Inferno somos todos nós, aqui e agora. Não porque matámos alguém, mas porque matámos ou estamos a matar o humano que somos.

3 Jan 2019