A bela invenção

[dropcap]O[/dropcap] escritor esloveno, a viver em Trieste, Milan G., tem um texto pouco conhecido chamado «A Bela Invenção». Neste pequeno ensaio, o escritor identifica a bondade como a grande invenção humana. «O Universo é um conjunto de relação de forças. Milhões de anos mais tarde, o humano introduziu a bondade nesta relação de forças.» G. acrescenta que nada que se conheça na história do Universo se compara a essa invenção humana: «Nem o amor é uma invenção tão radical como a bondade. O amor, se visto como extensão do sentimento maternal, é uma metáfora pobre da bondade. Como invenção, nem Deus se lhe compara.»

Evidentemente, e isso aparece no texto, o amor entendido enquanto Eros, é uma força sexual e, neste sentido, parte da relação de forças do Universo. Mas o que é a bondade, a mais bela invenção humana, segundo Milan G.? Escreve assim: «Milhões de anos depois da origem do Universo, o humano inventa a bondade. Mas o que é a bondade e para que serve? A bondade afina o Universo. Como conjunto de relação de forças em expansão o Universo tende a desafinar e a bondade é o instrumento que permite afiná-lo. Fazer o bem, ser gentil, tratar bem ou cuidar do outro, isto é, da relação de forças exteriores, é aquilo que permite afinar o Universo, devolver-lhe aquilo a que o humano chamou justiça. Bondade e justiça estão interligadas. Poderíamos ser levados a pensar que foi a justiça que permitiu a invenção da bondade, visto esta servir a outra, mas não foi assim que aconteceu. A invenção da bondade surgiu da necessidade de colocar o som no seu lugar; e ao resultado chamou-se justiça. Veja-se através de um exemplo banal: a casa de um homem é destruída por um incêndio, pela relação de forças do Universo, e um conjunto de homens, seus vizinhos, reuniu-se e construi-lhe uma nova casa, isto é, afinaram o Universo, sentiram uma necessidade de repor o som justo, o som belo; e a isto mais tarde chamou-se justiça.» É preciso, contudo, não pensar que a bondade seja uma espécie de reposição de uma qualquer norma – por conseguinte, ser um instrumento normativo – ou uma reposição temporal, no sentido em que recuperava o sentido de um tempo anterior. Pode também ser isso, sem dúvida.

Mas o alcance da bondade é maior: «Afinar o Universo, não é apenas repor a nota anterior, justa, bela, pois essa nota pode ainda não existir. Assim, a bondade muitas vezes cria notas que afinam o Universo, porque o Universo assemelha-se mais a um sistema de notas do que a um piano. Para que o sistema ganhe sentido, ou não o perca, por vezes tem de se criar notas, introduzir novas notas no sistema, na escala, na composição.» Se o exemplo que vimos anteriormente, da casa perdida no incêndio, se assemelha mais a uma reposição do sentido, à imagem clássica da afinação do piano, o exemplo da criação de sentido, a introdução de novas notas no sistema, é dado pela «sopa dos pobres». E a «sopa dos pobres» assume uma dupla conotação: 1) literal, um lugar aonde o pobre se dirige e tem uma refeição grátis; 2) metafórico, onde cabem todas as estruturas socias que impliquem a irradicação ou mitigação da fome, da desigualdade do sofrimento humano, existentes e por existir. Além da sopa dos pobres, outro dos exemplos de bondade é a educação. «Educar alguém é afinar o Universo; desviá-lo da alienação também.» Não obstante, a bondade como o que ainda está por vir é o lado mais idealista do escritor. «A bondade é um iceberg, não apenas porque a grande maioria do que a constitui não se vê, mas porque a grande maioria do seu alcance, do que ela pode ser, ainda está por acontecer. A bondade é um instrumento que ainda é pouco usado, se comparado com o que ele pode fazer.» Aqui, Milan G. volta à metáfora do instrumento musical para mostrar como a bondade ainda está nos seus primórdios e acrescenta: «Imaginem um piano em que até agora só se usou uma mão! Imaginem as belas composições que ainda estão por ser criadas!»

A invenção chama-se «bela» precisamente pela sua ligação ao som. Não apenas à produção de som, mas de som belo e da possibilidade de repor ou afinal os sons maus. E devemos entender por maus aquilo que destrói, que agride. Há uma passagem enigmática que pode fazer as delícias dos mais racionalistas, esses que já vêem «som mau» com desconfiança: «No Universo não há bom nem mau, mas o ser humano fez isso acontecer através dos actos, dos gestos. Queimar propositadamente uma floresta é um gesto mau, tentar destruir o planeta é um gesto mau, matar um ser humano é um gesto mau. Mau é tudo aquilo que não deriva da relação de forças naturais, mas de uma decisão do ser humano e que implica destruição ou prejuízo de algo ou de alguém. Embora uma árvore ao cair possa matar um homem, ou um tigre na selva, nenhum ser humano pode fazê-lo. O humano não deve imitar as forças da natureza para prejuízo de outrem.»

Temos, contudo, de sublinhar a não moralidade desta passagem, assim como de todo o livro de Milan G.. O que está em causa não é a moral, mas algo mais palpável: a imitação do Universo ou, se preferirem, a concordância com o Universo. Escreve G.: «Não há destruição gratuita no Universo. Nem acto para benefício de uma parte do Universo em prejuízo de outrem. Há coisas que acabam e coisas que começam, assim como o ser humano imita essa ordem natural, à sua escala, com o nascimento e a morte. O que não imita [ou concorda, pois em outros momentos G. usa esse verbo ao invés do verbo “imitar”] o Universo é o lucro, a destruição antes do tempo, o sofrimento.»

É evidente que estamos perante uma posição política de entendimento do Universo e da bondade. É muito claro em várias passagens do livro que, para Milan G., a bondade não pode coexistir com o lucro. E, como sabemos, há centenas de milhar de posições humanas contra este entendimento da bondade. O que talvez não haja tanto, ou pelo contrário, haja até muito pouco, é alguém a tentar pensar e escrever acerca da bondade como Milan G. o fez. A despeito do que «achamos» ou deixamos de achar acerca da bondade, do Universo e da relação entre ambos, talvez fosse bom passar algum tempo reflectindo juntamente com este escritor esloveno. Pensar com ele esta «bela invenção» que é a bondade.

11 Ago 2020

O primeiro quinteto com piano

O Quinteto Opus 89 de Gabriel Fauré tem uma imagem enigmática, destacando-se de entre as obras do compositor publicadas pelo velho Gustav Schirmer em Nova Iorque, em 1924, o ano derradeiro do compositor, em parte graças à improvável acção do jovem compositor Aaron Copland, então a viver na Europa.

 

[dropcap]O[/dropcap]Quinteto Opus 89 de Gabriel Fauré tem uma imagem enigmática, destacando-se de entre as obras do compositor publicadas pelo velho Gustav Schirmer em Nova Iorque, em 1924, o ano derradeiro do compositor, em parte graças à improvável acção do jovem compositor Aaron Copland, então a viver na Europa.

O Primeiro Quinteto surgiu em 1906. Durante muito tempo, os comentadores supuseram que, por ter surgido perto da sua nomeação como professor no Conservatório de Paris, a sua criação deve ter sido apressada e atormentada por distracções, e alguns usaram isto para alimentar os preconceitos contra a obra. Mas, como o professor Robert Orledge mostra no seu distinto estudo sobre Fauré (Eulenberg, 1979/1983), a gestação tinha sido longa e problemática. Um caderno de anotações sobrevivente contém ideias usadas no Finale, juntamente com esboços para o Requiem, Op. 48, indicando que as tentativas de composição do Quinteto datam de tão cedo quanto 1887. Em 1891, Fauré considerava a adição de uma segunda parte de violino a um terceiro quarteto de piano projectado, e nesta fase reproduziu esboços de um ‘Quinteto com Piano, Opus 60’ com o Ysaÿe Quartet (Eugène Ysaÿe tornar-se-ia o dedicatário da Opus 89). O trabalho intermitente no Quinteto prosseguiu até 1894, mas depois cessou até 1903. Um grande esforço ocorreu no final de 1904, durante o qual o compositor se referiu numa carta a “este animal de um Quinteto”. A peça foi finalmente concluída no final de 1905. A estreia, no dia 23 de Março de 1906 em Bruxelas, envolvendo o Quarteto Ysaÿe, foi ensaiada pela primeira vez apenas um dia antes, devido ao estilo de vida e aos “métodos” caóticos de Ysaÿe, um fato bastante triste a juntar à já difícil génese da obra.

O tema de abertura do primeiro andamento do Quinteto com Piano No 1 em Ré menor, Op. 89, molto moderato, tipifica uma leveza distintamente arrebatada, alcançada em várias ocasiões por Fauré. À luz do caderno de 1887, podemos ser recordados do andamento ‘In Paradisum’ do Requiem. A tonalidade inicial inclina-se predominantemente para Fá Maior, conquistando a nota tónica somente quando esta gera uma cadência sombria. A característica suavidade de progressão é aparente, assim como o é alguma relação harmónica entre material secundário e o terceiro e o quarto andamentos do Segundo Quinteto com Piano, Opus 115. O tom é por vezes austero, e por outras melancólico, com algum grau de ambos na conclusão atenuada em Ré Maior.

Uma introspecção melancólica prevalece durante o andamento lento, Adagio, realizada em parte por intervalos descendentes proeminentes do tom e semitom e por clímaxes melismáticos de curta duração que desaparecem com uma tristeza peculiar. Um novo tema a cerca de um terço do caminho, apresentando uma escala decrescente de quatro notas seguida por uma quinta descendente, mostra claramente a importância dos recursos expressivos de modalidade linear de Fauré. Longe de ser um caso escrito à pressa, este andamento – especialmente na sua conclusão – causou-lhe dificuldades prolongadas.

O Finale, Allegro moderato, abre em estilo quase de “divertissement” apologético, como se hesitante em se tornar um scherzo ou passar-lhe por cima. Talvez isto seja importante, já que se sabe que Fauré se adaptou ao formato de três andamentos em Agosto de 1905. Novamente, a densidade das cordas é a força motriz e, embora o piano assuma por vezes igual importância melódica, nunca o faz com um efeito retórico grandioso. A música é rica em contraponto livre, mas quase totalmente desprovida de notas aumentadas, ligaduras ou desvios da acentuação do down beat. O relativo “músculo” pianístico da conclusão surge como uma surpresa – ou, talvez, um aceno irónico do que poderia ter sido.

O efeito compósito da Opus 89 é de uma melancolia estranhamente interior. Na década de 1880, Fauré tinha experimentado tonturas, fortes dores de cabeça e depressão, aparentemente recorrências da sua infância. Estas podem estar ou não relacionadas com a morte do seu pai em 1885 com quem teve um relacionamento difícil e reservado em criança. Da mesma forma, os seus problemas dos anos de 1880 podem ter pressagiado dificuldades auditivas posteriores; e estas começaram em 1902, pouco antes de voltar ao quinteto para o ataque definitivo. Qualquer que seja a verdade, e apesar do reconhecimento cansado do compositor de que parecia repetir-se incessantemente, os problemas desse trabalho negligenciado merecem ser vistos – ainda que especulativamente – como criativamente importantes e conscientes, não desatentamente perfunctórios ou desmotivados.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Piano Quintet No. 1 in D minor, Op. 89
Cristina Ortiz (piano), Fine Arts Quartet – NAXOS, 2009

11 Ago 2020

Tudo o Que se Atribui a Zhao Boju

Paulo Maia e Carmo

[dropcap]Z[/dropcap]hao Xigu (activo c.1195 – c. 1242) um influente crítico de arte da dinastia Song, no seu tratado curiosamente intitulado «Relação de Pura Alegria da Caverna do Eremita» (Dongtian Qinglu Ji) insurgiu-se contra os pintores que, antes de pintar, já tinham escolhido os títulos das pinturas, tornando-as assim indiferentes às surpresas proporcionadas pelo próprio acto de pintar.

Esses pintores, de entre aqueles que vieram para o Sul em 1127, «não levavam a sério a pintura, não estudavam os dez mil livros, não enchiam o olhar com pinturas antigas nem viajavam de carro ou a cavalo pela metade do território debaixo do céu.» Porque «só então podiam pegar no pincel. De outro modo não entenderiam a actividade» da pintura. Os que a entendessem, escreveu «nem deixariam traços do pincel», ideia que exprime a supremacia do espírito sobre a técnica, que é o que deve prevalecer.

Zhao Xigu alinha-se com aquela que seria qualificada como a «pintura dos letrados» (wenrenhua) e é por isso desafiante saber quem eram aqueles que ele via como pintores exemplares. De um deles a expressão «sem traços de pincel» (wubiji) noção estética e filosófica, tornar-se-ia literal e a mera alusão ao pintor, um estimado referente. Chamava-se Zhao Boju e o seu nome confundir-se-ia com o de um irmão mais novo, igualmente pintor, Zhao Bozhu no qual a mudança de um caracter quase não modifica a pronúncia do nome. Sabe-se que um deles viveu entre 1120 e 1182, do outro apenas que viveu até 1162. O facto de os dois serem muitas vezes referidos em conjunto por Chen Jiru, Dong Qichang ou Shen Hao não ajuda à distinção.

Zhao Boju foi porém um nome associado ao revivalismo da pintura dos Tang, das paisagens azuis e verdes (qinglu) e ouro e jade (jinbi) associadas a Li Sixun (651-716-18). O pintor que, segundo alguns biógrafos terá nascido na Província de Hebei e trabalharia na Academia de Huizong (r.1100-1126) tornar-se-ia um favorito do imperador Gaozong (r. 1127-1162) sendo filho do pintor Zhao Lingrang (activo em 1070-1100) que era descendente do fundador dos Song, Tazu (r.960-975). São-lhe atribuídas obras como «Cores de Outono sobre rios e montanhas» (rolo horizontal, a tinta e cor sobre seda, 56,6 x 323,2 cm) datada de 1160 e que se encontra no Museu do Palácio, em Pequim e que poderia justificar uma curiosa atribuição de uma suposta «Paisagem de Outono» que foi apresentada na corte de Hongwu, o primeiro imperador dos Ming (r.1368-1398) que sem bases factuais lhe outorga a autoria.

Muitas outras pinturas em museus por todo o mundo lhe são atribuídas sempre com um ponto de interrogação. O que não se pode negar é que, se não os traços do pincel é o espírito de Zhao Boju como queria Zhao Xigu, que permanece vivo na memória daqueles que ao longo dos séculos foram limpando a poeira para ver quais eram afinal as suas fugidias pinturas.

10 Ago 2020

Recaída

[dropcap]O[/dropcap]s distúrbios que admitem uma possibilidade crónica de recaída estão bem caracterizados. As actividades que estão associadas a tais distúrbios são preferidas a qualquer outra actividade. Tais actividades persistem a despeito das péssimas consequências. Qualquer adicção é assim.

No limite, quem está agarrado a uma substância intoxicante prefere as actividades que a promovem e estão ligadas ao seu consumo do que qualquer outra actividade mesmo que no passado lhe tenha dado um grande prazer ou em si tenha um grande valor existencial. Um consumidor de heroína ou crack vai dar-se com outros consumidores e fazer o que eles fazem para arranjarem o produto, em vez de estar com a sua família de origem ou a família que criaram, vão dedicar-se de manhã à noite a tentar arranjar droga, antecipar o próximo transe ou a ressacar a pedrada em vez de trabalhar, praticar desporto, fazer o que quer que se possa fazer no dia a dia. Por outro lado, persistirá em levar a cabo o conjunto de actividades ligadas ao consumo, mesmo sabendo que põe a saúde e em última análise a vida em perigo.

Mas o que é a recaída? A recaída é a incapacidade de parar de tomar substâncias adictivas para sempre: drogas, álcool, nicotina. Note-se que é possível a abstinência e até por períodos longos de tempo. É até possível que um a adicto nunca mais volte a usar a sua substância de eleição do momento em que suspende a toma até ao final da vida. Mas a recaída é uma possibilidade que existe na vida de uma pessoa propensa ou talvez como se deva dizer com a doença da adicção. E mais. Quanto mais tiver passado tempo desde que deixou de consumir mais iminente está o tempo da recaída. Devemos olhar para a estatística como para uma possibilidade não como para uma realidade que vai fatidicamente acontecer. Como possibilidade dá que pensar. E faz sentido. Logo a seguir à abstinência, o consumidor está num momento revolucionário, está a lidar com várias dimensões da sua vida completamente novas. Provavelmente, está num ambiente diferente do da sua casa. Está numa clínica de desintoxicação. Tem uma agenda própria, com toma de ansiolíticos e se calhar anti-depressivos. Tudo é novo para ele. Tem terapia ocupacional. O corpo regenera e sente energias que nunca tinha sentido. Mas o quotidiano há-de instalar-se e com o quotidiano, virão ocasiões que farão criar situações propícias para a recaída. Tudo o que estiver ligado a stress e ansiedade mas também a prazer e euforia, na verdade, qualquer ocasião de alteração percepcionada relativamente ao estado normal será propícia à recaída. Vem uma vontade enorme de beber um shot da bebida de eleição, dar um cheiro, um shot, tomar um comprido, dar uma passa, seja o que for. Esta vontade não é uma escolha. Vem como uma vontade que dá ao consumidor e é avassaladora, incontrolável. Contudo, o que se passa a seguir é feito sob hipnose ou resulta da sua vontade?

É sob o estado hipnótico e contra a sua vontade que vai ao ATM para levantar dinheiro? Se não tiver dinheiro, vai pedir dinheiro aos seus amigos e familiares como? Para roubar tem de tomar medidas, fazer escolhas.

Tem de ir a sítios, executar tarefas. Depois, se não arranjar dinheiro, tem de vender os bens que roubou. Tem em todo o caso de levar o dinheiro ao locar onde compra droga ou fazer vir o dealer até si. Só no fim vai para um ambiente da sua escolha onde se sente em segurança para cheirar ou injectar-se. O alcoólico tem a tarefa mais facilitada, porque pode ter tudo em casa. Ainda que se estiver sob medicação, terá de esperar alguns dias para beber sem mal estar.

Mas a ânsia, a vontade tremenda, de consumir, ficar bêbedo ou pedrado não é uma escolha. E não tem que ver com prazer. Há uma diferença fundamental entre prazer e necessidade. Querer fumar um cigarro, para inalar a nicotina, é uma vontade desesperante e não tem que ver com prazer. Há prazer associado ao alívio sem dúvida, mas haverá mais prazer ou alívio?

Na psicologia da adicção, a recaída é uma inevitabilidade como possibilidade. O facto de uma pessoa recair efectivamente não é uma inevitabilidade. É difícil de saber se alguém terá o seu sistema, a sua existência, a vida do ponto de vista biológico, cerebral, somática, mental tão limpa como a tinha quando não tinha causado danos. Não se sabe se os danos são irreversíveis. Sabe-se, contudo, que a continuação é o estado de morbidez permanente e o lento suicídio.

Mesmo com o risco da recaída, não há outra possibilidade. Não é perdido por um, perdido por mil. A abstinência, a sobriedade, é a única possibilidade de regeneração do cérebro e assim do círculo vicioso que se criou para si próprio, em que o sentido da existência é a expectativa de uma subida do prazer, de uma ida às alturas, da euforia, mas só para uma queda inevitável. Quanto mais alta é a subida, de mais alto é a queda.

Sobe-se e desce-se muitas vezes, mas nunca se chega sequer à normalidade em que as pessoas normais se encontram. Está-se mesmo lá em baixo, com uma fasquia baixíssima, sem saber se haverá outro dia. O amor por uma substância é a loucura, nem sequer é estúpido. É suicida.

7 Ago 2020

Um segundo na história do universo

[dropcap]P[/dropcap]oder-se-ia dizer que nascemos entubados, porque este pequeno passeio a que damos o nome de vida, a nível cósmico, não chega a ser um piscar de olhos. Para complicar mais, nascemos nus – em todos os sentidos. Ao contrário dos bichos que legam aprendizagem por via da hereditariedade, o humano aparece no mundo absolutamente desprovido de qualquer competência. É puro acontecimento de curiosidade. Essa plasticidade primordial é na verdade a sua grande vantagem evolutiva e, e simultaneamente, um dos focos fundamentais de ansiedade do sujeito, pois quanto mais história da espécie vai ficando para trás, mais há para aprender e o dispositivo pelo qual se dá essa aprendizagem é basicamente o mesmo há milénios. O cérebro não acompanha em termos evolutivos a sedimentação acumulativa do saber. É como escavar uma mina cada vez maior com a mesma colher com que se começou a fazer um buraco na terra.

A sobrevivência da espécie tal como a conhecemos implica a sobrevivência de um grande número de indivíduos e dos suportes de conhecimento adquiridos ao longo dos séculos. Acaso um cataclismo varresse o planeta e levasse com ele, para além da maior parte da humanidade, tudo quanto esta se socorre para não estar constantemente a reinventar a roda, outra espécie de humano surgiria, condenado – como está desde sempre – a resolver progressivamente a natureza que o rodeia. Desta feita, sem consulta aos manuais. Todo o básico da física, biologia, química e restantes áreas do saber teriam de ser redescobertos. A notícia feliz – a haver uma –, é que o conhecimento – pelo menos científico – parece ser unívoco e as suas conquistas parecem resistir ao tempo.

Para os gregos antigos, o humano é uma criatura que caminha de costas para o futuro com os olhos postos no passado. Criatura às arrecuas, condenado a desconhecer o sítio para onde caminha e impedido de voltar para trás nos seus passos. E ainda assim, mal-grado a sua aparente insignificância na ordem geral das coisas, cada sujeito comporta em si a possibilidade de mudar tudo. O conhecimento é a tentativa e erro de muitos consagrado no acerto de um. Formiguinhas laboriosas, cada uma com a sua pequena colher, procurando fendas nas rochas para se abrigarem. Cada descoberta individual beneficia toda a humanidade. Do mesmo modo, cada descoberta individual pode condená-la.

Temos a responsabilidade de proteger o nosso património de adquiridos. De cuidar do edifício que começou a ser construído muito antes de nascermos e que continuará a ser edificado muito depois de já termos desaparecido. E essa responsabilidade não se limita a preservar o conhecimento e as suas formas de transmissão do olvido mas também – e cada vez mais – dos ataques do achismo pandémico que o século XXI tem vindo a revelar. Não, a terra não é plana. As vacinas não provocam autismo. Não há nenhuma conspiração mundial que se interesse por tudo quanto fazes e dizes.

Nos últimos cem anos temos estado a assistir a dois movimentos inteiramente distintos: por um lado, a indústria do entretenimento de massas tem vindo a promover uma imbecilização crescente nos conteúdos que produz. Por outra parte, o conhecimento científico tornou-se tão complexo e especializado que para se falar sobre determinado assunto com propriedade é necessária uma precisão subatómica e uma vida dedicada a áreas cada vez mais reduzidas e precisas em âmbito.

Essas duas culturas totalmente distintas chocam quotidianamente. Não são aldeias vizinhas, são continentes distintos com linguagens mutualmente ininteligíveis. Os efeitos desses choques sentem-se de forma cada vez mais profunda, seja nas políticas de saúde ou energéticas, seja no modo como as pessoas se arriscam a contrariar tudo quanto não compreendem, confundido uma pueril revolta adolescente com um acto de liberdade. A humanidade, quando não acha perigos com que se entreter, inventa-os. E este, ao contrário do meteorito possível ou do desastre climático, está em cada um de nós.

7 Ago 2020

Holandeses voadores – I

[dropcap]P[/dropcap]rossegue ao longe entre os arbustos. A mulher dança dentro do vestido vermelho e empurra o carrinho de bebé. À medida que se aproxima, reconheço-a. Apercebo-me vagamente de quem se trata.

É um rosto que vai ficar até ao fim e eu não sei, nem nunca soube, o que quer dizer até ao fim.
Se não estivesse agora a descortinar o vulto que se torna cada vez mais visível e sólido na minha frente, poderia mais tarde concluir que o desencontro é a maior experiência das nossas vidas, sobretudo porque não damos por ele. A invisibilidade pode matar.

Nesse dia distante que continua a ser hoje – pois um dia é o olhar de uma vertigem que dá a volta a si própria ao longo de muitas estações -, eu falei pela primeira vez com ela. Voz rouca, as mãos pequenas e os olhos cheios de jangadas que apetecem aos litorais mais calmos.

Continuámos ali no meio do parque a congelar o chão térreo, ignorando os patos que já mediam as suas circunferências no ar. Ainda sentia na roupa a humidade que nessa manhã se afeiçoara às águas furtadas onde dormira. Afinal os elementos da atmosfera são os poros que nos traçam a pele.

Sorrimos um para o outro por causa da única memória que então conseguíamos partilhar. Ela estava sentada no fundo da sala e eu ao lado do piano a dizer uns tantos versos. Falámos sobre a electricidade dos gestos, porque a poesia, em recintos que se aproximam do devaneio, pode dar choque.

Estava com pressa e despedi-me. Disse a brincar, embora fosse verdade, que ia para os trópicos. Ela ficou a olhar para trás entre os repuxos da rega. Era a imagem pura de quem desce do andor e subitamente ganha volume e vida.

Enquanto conversávamos, passei metade do tempo com os olhos virados para o carrinho que não tinha dentro nenhum bebé. Estava atulhado com folhas de plátano que reflectiam as sete cores do outono: lilás violeta purpirino roxo encarniçado carmesim e coral. Era uma colecção a fungar e a espreguiçar-se, de tal modo que entrei no eléctrico a imaginar um bebé constituído apenas por folhas de plátano.

2

Os homens fumam e gesticulam junto à portada da barraquinha de arenques. Ignoram o harpão dos deuses que em tempos levantou os diques e penetrou no coração das tijoleiras, abrindo-lhe as enormes janelas de vidro com parapeito para as porcelanas brancas do oriente.

Das escadas estreitas e inclinadas, vi surgir o dono da padaria que calçava as suas socas e ria com a felicidade de um belo bovino. Vestiu o casaco branco, limpou os óculos e cobriu a testa com um gorro.

Foi nesse instante que, no outro lado do canal, ela reapareceu de dentro da loja marroquina com o pó amarelo a reluzir os traços musicais que invadiam a montra com um poderoso cheiro a hortelã. Pedalei auscultando a lama dos passeios e o som das roldanas por onde subia e descia o recheio inteiro de uma das casas da esquina mais próxima.

Constatei que não dera pela minha presença, razão por que avancei com a bicicleta na sua direcção. Logo que me encarou, ficou imobilizada e só o guiador nos separou. A roda da frente flutuou-lhe entre as pernas, levantando levemente o vestido vermelho e a minha cara ficou virada para dentro da baía afugentada pela bátega.

Os barcos ancorados a cinco metros do local onde nos encontrámos libertaram um som parecido ao alarme das suricatas e ela, com as franjas caídas sobre os olhos, produziu um rumor lento, indefinido. Vimo-nos pela primeira vez naquela proximidade em que a penumbra e a sombra mais se confundem.

E eu percebi, ao mesmo tempo, que não estaríamos ali. Tínhamos deixado há muito de correr sobre os muros de braços abertos a imitar aviões de papel. Mas não cheguei a segredar-lhe que o presente não passaria de uma nódoa de luz que se apaga rapidamente. Desejei que pudéssemos acreditar na alucinação daquele instante.

Uns meses depois, seguíamos de comboio e faltavam poucos minutos para chegarmos a Verona. No meio do escuro um cachimbo abriu a única cintilação da viagem. E foi quando ela me confessou que já tinha morrido, que já cá não estava. Tudo o que agora vivia era um acréscimo, uma adenda, uma extensão absolutamente inesperada.

6 Ago 2020

Procurador subordinado ao Governador

[dropcap]D[/dropcap]urante a Primeira Guerra do Ópio ocorrida na China de 1839 a 1842, em Macau era Governador Adrião Acácio da Silveira Pinto. Exerceu o cargo de 1837 a 3 de Outubro de 1843. Depois, foi nomeado conselheiro por o novo Governador José Gregório Pegado para ir numa missão a Cantão negociar com o Vice-rei Ki-ing novos privilégios para Macau, perante os alcançados por os ingleses em Hong Kong.

Recebido a 4 de Novembro de 1843 pelo Comissário Imperial, após a entrevista o enviado português com a sua comitiva foi residir no consulado de França, onde durante dez dias teve repetidas conferências com um segundo delegado chinês. O resultado da missão apareceu na chapa datada de 26 da 2.ª lua do 24.º ano de Tau-duang (13 de Abril de 1844) onde as autoridades de Cantão participavam ao Procurador de Macau o despacho dado pelo Imperador aos pedidos do enviado. Ki, alto-comissário, segundo tutor do príncipe imperial, Presidente do Conselho da Guerra, Vice-Rei dos Kiang, e membro da casa imperial, Chum, por comissão imperial, Vice-presidente do Conselho de Guerra, e Vice-Rei interino das províncias do Kuang-tung e Kuang-si, Cham, por comissão imperial, Soto-Vice-Rei de Cantão e Vice-presidente do Conselho da Guerra, e Ven, por comissão imperial, Administrador Geral das Alfândegas de Cantão, Beatriz Basto da Silva resume, “A missão não conseguiu da China que fosse relevado o foro pago pela colónia, a demarcação do limite para fora dos muros do Campo de St.º António; o aumento do número de navios desta praça; a permissão para construções a fazer fora dos muros de St.º António; e o reconhecimento dum ministro plenipotenciário. Quanto ao pedido do reconhecimento de um ministro plenipotenciário, .

Os chineses anuíram, porém, à igualdade de tratamento na correspondência oficial entre as autoridades portuguesas de Macau e as chinesas do distrito, mas aos altos funcionários da capital da província convém que se dirijam por cham (requerimento) ou pân (representação ou ofício de inferior para superior); ao idêntico pagamento dos direitos de ancoragem dos navios estrangeiros em Huangpu, com redução para os 25 navios portugueses de Macau; à livre construção de edifícios e barcos e à livre compra de materiais e livre emprego de operários nativos destinados para esse fim, mas dentro do limite dos muros de St.º António [sem poder de motu-próprio construir edifícios fora dos muros de Santo António, para que não haja novas desinteligências]; e à permissão para os navios portugueses poderem também comerciar nos portos de Cantão, Amoy, Fu-chau, Ning-pó e Shang-hai” [abertos ao comércio dos estrangeiros contra a vontade da China pelo Tratado de Nanjing, que encerrou a I Guerra do Ópio]. Quanto ao porto de Fuzhou, como ainda se não acha aberto, nem há negociante algum estrangeiro ali estabelecido, também não poderá ser visitado por navios mercantes portugueses, e assim esperarão até este ser franqueado ao comércio europeu.

Governador nomeado de Lisboa

A 20 de Setembro de 1844, por Decreto do Governador da Índia José Ferreira Pestana, o Governo de Macau, que tinha na sua dependência Timor e desde Dezembro de 1836 Solor, separou-se de Goa, deixando de estar sob a jurisdição do Governo do Estado da Índia. Assim se formou uma província com os territórios de Macau, Timor e Solor, ficando o governador da província a residir em Macau e em Timor, um governador seu subalterno. Esse Decreto instituía ainda uma Junta de Fazenda, tirando ao Leal Senado a administração financeira e política da cidade; mas determinou no seu artigo 7.º que o mesmo Leal Senado continuasse em todas as suas regalias que não eram alteradas por esse decreto [confirmado mais tarde pela portaria régia de 27 de Maio de 1865]. O Governador da nova e independente Província de Macau, Timor e Solor passava a residir em Macau, enquanto Timor tinha um governador seu subalterno a superintender Solor.

A 21 de Abril de 1846, o Conselheiro e Capitão-de-Mar-e-Guerra João Maria Ferreira do Amaral tornou-se o primeiro Governador-Geral de Macau não nomeado por Goa e “para remediar a precária situação financeira, impôs uma taxa às embarcações de passagem e de carga, denominadas faitiões (barcos ligeiros)”, segundo o padre Manuel Teixeira. Logo ocorreu a revolta dos marítimos dos faitiões com o apoio dos chineses da terra, que a 8 de Outubro foi prontamente sufocada.

Numa posição de poder perante a destroçada China, o Governador tomou posse das terras para além das muralhas, que envolviam o fanfang cristão português. Macau na altura era constituída por dois bairros muito distintos: a cidade cristã, confinada por a muralha e onde se encontravam as freguesias da Sé, S. Lourenço e Santo António, e o Bazar, “um emaranhado de ruas estreitas, imundas, sem condições higiénicas, e apinhado de casas de má aparência e pouco salubres, habitado exclusivamente por chineses”, segundo Ana Maria Amaro, “A partir da política de Ferreira do Amaral verificou-se uma maior aproximação entre os chineses do Bazar e os portugueses da cidade cristã.”

“Por decreto n.º 526 de 20 de Agosto de 1847 foi determinado que a Procuratura do Leal Senado (então com o Procurador Lourenço Marques, que o foi consecutivamente até 1855, assim como de 1858 a 1862 e por fim no período de 1869 a 1871) ficasse anexa à Secretaria do Governo no que respeitava a negócios sínicos, não sendo o Procurador responsável para com o Senado, senão nos assuntos puramente municipais”, refere o padre Manuel Teixeira.

Em 1847, o Procurador da Cidade passou também a ser remunerado e subordinado ao Governador, então nomeado por Lisboa.

5 Ago 2020

As Aves Brancas

[dropcap]U[/dropcap]m cisne morreu com síndrome de coração partido quando um grupo de homens lhe destroçou os ovos. O cisne macho, horrorizado, fugiu, e estes monogâmicos seres não resistem à separação nem à morte dos filhos – morreu de dor – o que acontece às espécies mais raras, elas, que são quase inefáveis, gráceis, e delicadas como as brisas. Situações que não revertem a favor de nada, de ninguém, e esta inutilidade deve ser aquilo a que apelidamos de mal, a disfuncionalidade lúdica, a desregulação dos movimentos que longe anda de uma natural condição (dado que um predador não pode ser interpretado assim, ele tem assento na matéria das combustões onde a gratuitidade não toca, e a marcha continua, cruel, sim, mas não maléfica) e certo é que por práticas tais muitas criaturas na Terra se encontram ameaçadoramente inutilizadas e sem perdão.

As cadeias dos malefícios estão muito concentradas nas esferas humanas que por gerações reconstituem as mesmas incapacidades e nem lhes notam a tragédia subjacente iludidos com a evolução e o consentimento a que se dão, vemos assim que houve na espécie qualquer coisa que correu mal. Nada nasce assim! Para tal terá sido necessário uma interrupção qualquer de um processo já esquecido e que por isso mesmo a ele já não tem direito.

E estas Aves Brancas (que também há cisnes negros) levam-nos de imediato ao poema de Yeats, a essa página tão clara como estas manhãs de Verão. É um poema tangível do outro lado do Vitral e tão sonhado se torna que deslizamos por ele como sustidos pelas asas, compreendendo bem que é esta leveza o que há de mais importante no gasoso tempo de uma vida que se escoa ainda por outras paragens. Sabemos que o poeta era uma espécie de mago celta, um habitante do silêncio desse povo das vestes brancas, corria nos mistérios e trazia os seus encantos em grandes taças de vento… Que nós, olhamo-lo nas suas Aves Brancas e nunca mais esquecemos! Ele era assim, mas o género poético, difere também do génio poético, e existe ainda aquele da máscara de ferro na pele de um caçador, onde as noites escuras se tornam um não menos importante sacramento. Têm a alma de um mamute e nas mãos as lanças alternam na busca entre o invisível e a vigília máxima, e quanto mais escondido na sombra multiforme da corrente da vida, mais viva se torna a mensagem e a sua incrível superação quase inumana. Só um caçador tem o dom da imobilidade, e uma vida por vezes até chega para lembrar aos esquecidos, das rotas essenciais, pois tudo aquilo de que os poetas falam é sempre do essencial, escapa-lhes a vacuidade, a maldição e o azar do mundo – (sobretudo para os outros) – que o hão-de encontrar tão distante, tão único, que será matéria aziaga uma qualquer vigília para o capturar.

Neste espaço branco vamos encontrá-lo, mas sabíamo-lo curioso dos limites das coisas – que as viveu- como alguém que se quer vivo em todas as direcções: choraria os ovos da ave branca sem receio algum de ficar turvado por lágrimas quentes e com o coração destroçado nessa alma que sempre dançou…e essas pequenas manifestações que nos fazem grandes são todo o contrário do rombo extravagante que provoca a desgraça: milagres, são ainda instantes transversais, tão simples, tão frescos, tão improváveis na manifestação que ficamos maravilhados… e há que os ter, sim, para ir até às suas Aves Brancas. Os bárbaros existem como grandes golfadas de terror, embora, e muitas vezes, não sintam nada de nefasto em muitos dos seus actos o que os torna grotescos e poderosos, e a legislação, essa, nunca chega a tempo de corrigir uma ausência qualquer que eles possuem perante a ordem das coisas, não se podendo condenar quando o próprio condenado não sabe da razão profunda de coisa nenhuma. Digamos em sentido figurado que a nível de uma noção mais alargada de humanidade grande parte dela anda literalmente a “pisar ovos”. Que seja os das cobras. E nós…

…. em breve, longe do lírio e da rosa, longe das tormentosas chamas viveríamos,
se aves brancas fôssemos, amada minha, aves brancas flutuando na espuma do mar! – Yeats

5 Ago 2020

Ser flor que não se cheira

[dropcap]F[/dropcap]rançois de Margaux Giraud nasce em 1890 e morre em 1946. Atravessou duas guerras mundiais, como soldado voluntário na primeira e prisioneiro na segunda, e acaba por morrer de acidente de carro numa viagem de Paris a Lyon. Era um aristocrata que se dedicava ao estudo das plantas e deixou um livro de «literatura» incompleto, sem qualquer menção de publicação, mas que o seu sobrinho editará em 1990, como forma de assinalar o seu centenário. O livro tinha o título de «O Humano Não É Flor Que Se Cheire» e é um conjunto de aforismos acerca de várias observações da vida. Giraud via as pessoas como se fossem plantas e o primeiro aforismo do seu livro é este: «Tal como as plantas, as pessoas são fototrópicas, movem-se na direcção da luz ou do que as possa iluminar.»

Este livro tornou-se um livro de culto em França entre alguns estudantes de filosofia, depois do filósofo Cristopher Badin ter-se referido a ele em uma entrevista ao Libération em finais de 1991. Além de se referir ao livro como algo fora do seu tempo e de grande valor, salientava ainda o gesto do seu sobrinho: «[…] esta edição põe a nu a contradição da vida humana: não é flor que se cheire, mas aqui e ali despontam belas flores, como é o caso deste gesto de amor do sobrinho de François de Margaux Giraud. Como podemos ler na introdução, Antoine Margaux dedicou vários anos a coligir os aforismos, que se encontravam espalhados por várias casas, alguns em muito mau estado [o sobrinho descobriu as primeiras folhas apenas em 1979]. A despeito do título do livro, os aforismos também mostram a beleza das flores humanas. François de Margaux Giraud escreve: “Quantas vezes na mesma flor, não disputam na nossa afeição o mau cheiro e a beleza da cor e da forma? Ficamos perplexos, porque os sentidos combatem entre si. A visão pede que nos aproximemos, o olfacto que nos afastemos. O nosso coração vacila.” E quando a equação se torna mais complexa, maior a perplexidade.»

Cristopher Badin fala ainda nessa entrevista que, embora não haja relação directa entre «A Metamorfose das Plantas», de Goethe, e o livro de Giraud, a verdade é que a influência é real. François de Margaux Giraud não era apenas um estudioso da natureza, era também um grande leitor. Entre os seus livros preferidos encontrava-se esse livro de Goethe, assim como grande parte da obra de Aristóteles, como se lê na introdução do seu sobrinho. Se Goethe através do seu pensamento científico e metafísico nos conduz a ver melhor a natureza e a nossa relação com ela, François de Margaux Giraud leva-nos a ver melhor o humano, através, não de uma análise científica das plantas, mas de uma fenomenologia do olhar as plantas. Nestes fragmentos (ou aforismos) não lhe interessa desenvolver um pensamento, mas antes fazer ver.

Evidentemente, neste ver o humano, através de símiles com as plantas, acabamos por também ver melhor as plantas. François de Margaux Giraud escreve: «A “ficus benjamina” apesar de poder ser plantada em vasos, nas varandas das casas, não aprecia mudanças. Estas deprimem-na rápida e profundamente, fazendo com que as suas folhas amarelem e caiam. Nela, qualquer mudança é como em algumas pessoas a mudança de país, a mudança de emprego, ou até uma inócua mudança no governo.» Mas é o filósofo Levinas que numa conferência em 1992, nos mostra que a «inócua mudança no governo» é uma crítica acurada ao que se passa nos países ocidentais em relação à política. Assim, a «ficus benjamina», usualmente vista como planta rústica, de grande resiliência, é-nos mostrada aqui como extremamente frágil às mudanças, como uma espécie de pessoa conservadora. Curiosamente, numa nota de François de Margaux Giraud, acerca precisamente do conservadorismo de algumas plantas, invoca a experiência de um amigo brasileiro, que além de botânico era especialista em peixes: «Ademar Albuquerque escreve que “um peixe da amazónia, tucunaré, é impossível de ser criado em cativeiro, a não ser que lhe seja dada continuamente comida viva. Desde muito jovem, ainda com 3 cm de comprimento [o tucunaré pode alcançar 70 cm de comprimento], não se alimenta a não ser com comida viva. A sua natureza de predador prevalece acima do instinto de sobrevivência. O tucunaré prefere morrer a comer algo que não se mova, que não esteja vivo.” É o caso mais exemplar de conservadorismo que me foi dado conhecer.»

Levinas percebeu claramente que o fundamental neste livro de François de Margaux Giraud é o modo como nos mostra o conservadorismo humano como forma de boicote à existência. Nessa conferência, Levinas escreve: «A dificuldade em mudar não revela inteligência nem estupidez, apenas a irrupção de um nada atávico que continua a habitar o humano, revelando-o como flor que não se cheira. Apesar da contradição entre um gesto de amor e um gesto de ódio, que nas plantas de modo geral é apresentado por François de Margaux Giraud como actos de resiliência ou de desistência, há um nada atávico que continua a fazer-se sentir no humano. Ser contra a mudança é uma clara defesa do nada. Por conseguinte, «O Humano Não É Flor Que Se Cheire», é acima de tudo um livro político, isto é, um livro ético.»

Em momento algum, contrariarei Levinas. Mas não podemos esquecer-nos de que quando um grande filósofo lê, não lê somente o que lá está. Não quer isto dizer que veja apenas o rosto do seu pensamento nas páginas do livro. Não. Quer dizer que, apesar de termos de agradecer essa leitura, que nos faz ver o que ainda não tínhamos visto, temos de ter em atenção que pensamento puxa pensamento e que, neste caso, «quem se lixa» é a planta.

A despeito e a proveito dos olhares da filosofia, o livro de François de Margaux Giraud é uma beleza.

4 Ago 2020

Um requiem “de embalar”

[dropcap]Q[/dropcap]uando Gabriel Fauré se sentou para escrever a obra a que chamou Petit Requiem em 1887, não pôde deixar de considerar os requiens de três dos mais ilustres compositores do século XIX: Hector Berlioz (1837), Giuseppe Verdi (1874) e Johannes Brahms (1868). Dois deles – os de Berlioz e Verdi – são de enorme escala e possuem um ímpeto dramático esmagador. O mais suave dos três, o Deutsches Requiem de Brahms, composto na sequência da morte da sua mãe, é um pária, evitando completamente os textos litúrgicos latinos com as suas imagens do inferno e de condenação eterna, concentrando-se mais nas noções de libertação do sofrimento e da vida eterna.

A abordagem de Fauré é algo híbrida, extraindo livremente textos da Missa de Requiem e de outras liturgias, de acordo com a sua própria estética. Numa entrevista em 1902, o compositor disse que o seu objectivo era “desviar-se do caminho estabelecido depois de passar anos a acompanhar funerais! Estava farto deles.

Queria fazer algo diferente.” Referiu ainda o seguinte: “Diz-se que o meu Requiem não expressa o medo da morte e há quem lhe tenha chamado ‘uma canção de embalar’ da morte. Pois bem, é assim que eu vejo a morte: como uma feliz libertação, uma aspiração a uma felicidade superior, em vez de uma penosa experiência.”

Determinados desgostos pessoais influíram na composição da obra; Fauré iniciou-a após a morte do seu pai e, antes de a terminar, a sua mãe também faleceu. Assim, o Requiem pode ser visto como uma expressão da tragédia pessoal de Fauré escrita na sequência da morte dos seus pais.

A versão original de Fauré, de 1888, foi orquestrada para um coro de cerca de 40 cantores, acompanhado por uma pequena orquestra e órgão. O uso de cordas graves e a ausência de metais visou claramente enfatizar a natureza suave e reconfortante da obra. Ao preparar a partitura para publicação em 1893, o compositor fez várias revisões, acrescentando parte do Offertoire litúrgico, e o Libera me, que tinha iniciado vários anos antes como uma obra separada para barítono solo. Acrescentou também partes para dois fagotes, quatro trompas e dois trompetes. No final do século, o editor de Fauré convenceu-o a expandir a orquestração ainda mais para incluir uma orquestra completa. O compositor concordou e, assim, produziu uma terceira versão, publicada em 1901, que foi popular durante grande parte do séc. XX. Contudo, nos anos 70 e 80 desse século, vários estudiosos de Fauré, em conjunto com o compositor e maestro inglês John Rutter, trabalharam para reconstruir a versão original da orquestração de Fauré de 1893, versão considerada por muitos a mais próxima da intenção original do compositor, embora nunca tivesse renunciado à versão maior para orquestra completa, que dizia ser apropriada para certas ocasiões de concerto.

Uma das missas de requiem mais populares, o Requiem em Ré menor, Op. 48 de Gabriel Faureé foi escrito entre 1886 e 1888 e executado pela primeira vez, ainda que apenas em parte, no funeral do arquitecto Joseph Lesoufaché na Église de la Madeleine, no início de 1888 e, em Maio desse ano, já em concerto. Ao escrever esta obra notavelmente inovadora, Fauré ajustou a tradicional ordem litúrgica omitindo a Sequence (que representa o Dies irae e o Rex tremendae) e acrescentando In Paradisum; desaparece, pois, o apocalíptico horror da ira de Deus, e há ao contrário uma serena e definitiva visão confortável do céu. Das sete secções que a compõem ( Introit et Kyrie/ Offertoire/ Sanctus/ Pie Jesu/ Agnus Dei et Lux Aeterna/ Libera Me/ e In Paradisum), o pristino solo de soprano Pie Jesu, o Agnus Dei e In Paradisum emergem como as mais gloriosas, plenas de melodias ricas e emotivas, para além do Introit et Kyrie, da poderosa ária de barítono do Offertoire “Hostias et preces tibi”, e do Sanctus.

Para muitos conhecedores da música, Fauré identifica-se quase exclusivamente com esta obra, que se converteu para muitos na quintessência do género romántico. Este Requiem, elogiado por muitos outros compositores, em especial por Camille Saint-Saëns, que o considerava divino, e também reconhecido como uma fonte de inspiração para o Requiem de Maurice Duruflé, foi executado no funeral do próprio Fauré em 1924.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Requiem in D minor, Op. 48
Sylvia McNair (soprano), Thomas Allen (baritone), Academy of St. Martin in the Fields, Sir Neville Marriner – Decca, 2012

4 Ago 2020

Magia

[dropcap]A[/dropcap] pensar que às vezes a vida tem tonalidades de um realismo mágico, que neutraliza com as cores opostas o realismo trágico que nos abala. Como uma teimosia.

Desviar os olhos e, como por magia, esquecer tudo o que não se apresenta ao imediato constatar dos sentidos. Sentir que tudo está bem. Em harmonia e à distância de tudo o que nos faz doer. Mas não agora, naquele momento, neste, aqui. Como um toque de perfeição. E apeteceria escrever algo como um nada inócuo. Ou melhor, um nada a soar cálido, envolvente, abrangente e bom. Um nada em forma do que cada um que é outro precise para sentir. Em doçura e agrado. Em prazer e embalo e em dimensão positiva de ausência de dor. Um nada, camaleão. Em forma de um pequeno tudo, preciso, exacto e transparente. A tomar as cores do real aprazível. A repetir. A confortar. A trazer um brilho ou um sorriso. Uma admissão do sol, que brilha sempre mesmo por detrás das nuvens.

Vendo bem, quando conseguimos pensar que muita da dor está sentida num tempo verbal passado ou futuro, em forma de rescaldo ou temor, recordação ou antevisão, olhamos em volta, e com um pouco de sorte sentimos que tudo está momentaneamente bem. À custa de um olhar curto, lúcido e limpo, e de uma certa cegueira para o mundo. Ou um olhar alongado mas cuidadoso a escolher a direcção e o caminho. A passar entre todos os que estão no epicentro de algo, a combater monstros ou incêndios ou à beira de vulcões. Tudo o que nos perturba em nós e no que nos cerca pode acalmar por um tempo, tréguas de convalescença ou intervalo de sono. Não se suporta inquietação e angústia a tempo inteiro, mesmo sendo assim por defeito. Há uma janela a abrir sobre o lado sereno das coisas. O lado parcial que também pode ser uma totalidade consciente e sem remorso. Mas há teatros de guerra – estranha expressão dos analistas – há incêndios a consumir a realidade e vidas e há as moscas incansáveis sobre rostos depauperados de fome, calor, doenças e futuro inóspito para corpos de criança. Que sorriem com a plenitude abstracta, que ultrapassa tudo. Há dores presentes instaladas no corpo e a minar a alma e quaisquer caminhos que desçam dela. Há tantas coisas e por vezes nenhuma nos transtorna e mesmo assim não queremos deixar de nos amarfanhar de dor de sentir, desapontamento e frustração. Como somos fúteis.

Adeptos do sentir inútil do adverso, de navegar como barco com vento de través, sempre contra a força do vento que nunca parece a favor das velas. Bolinar todos os dias cansa. Apetece a tempestade e afundar. Ou olhar de outro ângulo.

Magia, pó de estrelas, poções e luzes, que as palavras ultrapassam em intensidade e poder. Mas tão poucas benéficas, mesmo em pensamento. Ou claras. Tão poucas, mão, tão poucas, remédio e tão poucas, poema.

Há sempre qualquer coisa. Por detrás do que se faz do que se diz do que se escreve. Mas como eu gostaria no momento de pensar lucidamente o que fazer o que dizer ou o que escrever, – um dia – ser sobre nada e que nesse nada houvesse tudo para a plenitude e a emoção de alguém entender e se encontrar. Porque nada faz mais sentido do que o encontro de si, do outro ou com o outro. A transcender a seca solidão do escrever.

Mas há a inquietação e utopias de adivinhar. Uma esponja orgânica a querer fazer ou apagar o que é certo no momento certo, refazer o tempo. O contrario do relógio que avança ao ritmo prescrito inexorável e sem dó e cumpre o seu destino friamente na maior inocência. Porque o relógio tem uma inocência ignorante maior até do que o tempo em que nos envolvemos como em capas de passado ou futuro, lentas, curvas ou estonteantes. O ónus na noção que temos e no olhar que lançamos. É isso. Queria, a pretexto desse nada, algo de textura e determinação, futuro, calor e desejo. Uma amplitude de nada com delicada cadência e uma acetinada superfície em emoção e sentir, como um parque natural para viver. Uma saída do finito e precário, da transitoriedade como tontura a revolver os olhos e o estômago, no convés. Queria isso tudo e dizer tudo o mais, em nada. Mas não seria natural. Um veemente nada. Que retorna em segurança. Como um placebo que faz bem. Uma coisa benéfica e alimentar. Penso muitas vezes no sabor das palavras, dos sentimentos. Como na diferença entre apetite e fome. O que é natural e o que é cultivado. O que é gosto e o que é necessidade.

O que é vida e o que é morte diária dos alimentos, esquecidos, cumpridos e processados. Penso, porque não consigo outro modo, quando o que eu queria era ler. Sabores a transcender a alma. Queria parar, enrolar-me em mim e esperar que algo salvasse esta inutilidade.

Esse lado de mim.

Depois, entendo que está bem porque brinca com a areia. Imerso em pensamentos, é certo, mas descontraídamente esquecido. Nada me basta mais. Do que um escondido e ligeiro sorriso atrás dos olhos.

Como a cumplicidade que não necessita palavras a produzir escolhos. Amo até à exaustão de ser de sentir ou de suportar. Mesmo a montanha mais alta e o precipício mais perigoso. Quietos, por um momento. Por magia. Uma pausa a meio da ponte. Como um limbo, podia ser um mito, mas contrário ao de Sísifo.

3 Ago 2020

As Mães que são Pomares

“As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.”
Daniel Faria, Homens Que São Como Lugares Mal Situados(1998)

 

[dropcap]A[/dropcap]s mães são árvores com enxadas nas várias mãos. Para se auto-enxertarem. Ninguém espera que as mães descansem. Ninguém espera que durmam. Ninguém espera que escrevam. Ninguém espera que não trabalhem sem estarem simultaneamente a trabalhar e presentes a qualquer momento.

Ninguém espera que estejam gordas. As mães desdobram-se em várias pessoas, aguentam o peso de vários ramos que a vão tornando corcunda. Ninguém espera que tratem das costas, que encomendem comida, que contratem alguém para limpar a casa. Que não ponham a mesa. Ninguém espera que façam pausa na vida.

Ninguém espera que não amem por vezes, mas que não se amem permanentemente – isso não há problema. Mães esgotadas são fracas. Mães que pedem ajuda são fracas. Que não se ajudem a si mesmas – isso não há problema. Que se anulem – isso não há problema. Toda a gente sabe mais que as mães, toda a gente sabe o que é melhor para os filhos que pariram. Ninguém espera que se queixem, muito menos metaforicamente. As mães que não sabem pegar num carro e parir contra os sonhos. Objetos de vindima, crisântemos imediatos.

A arte de se ser puro até se ser paisagem. Uma primavera imóvel ao ritmo das ondas. Então, lá vão elas iniciar uma nova jornada. Vão até às esquinas dos silêncios parir sozinhas. Lá estão elas, incansáveis, infinitas, absolutas sem autorização para pausas. Ouvem vozes na zona dos mamilos, é leite. O tal ofício da carne. Uma cabeça e o resto do corpo em cima, ao contrário de estar de pé. Órgãos desorganizados para acolher outros mais pequeninos, quase-órgãos, tendões e músculos que quase o são, pequeninos de idade zero. Um médico espanta-se com tamanho rastejo, gordo e delicado. As mães ficam em dívida, trazem uma figueira interna com conceptáculos carnudos, sicónios domesticados até ao Monte de Vénus. Muita prática em defloramento doméstico até à concepção-intersecção de bocas penduradas em árvores, cansadas da sua mudez. Brotam forças no limite do orgânico e do psíquico, pulsões documentadas na botânica. Um lago forma-se com mucosas respiratórias e digestivas que enchem o balão líquido, visível em ecografias. Uma rotura de membrana expõe a folhagem, é o ser quase-ser quase a sê-lo. Imperatriz-criadora com membros de chumbo. Deusa húmida humilde porque reduzida ao seu ofício primário. Só ela sabe rebentar a própria pele para iniciar o mundo. Braços alheios inteiros pela vagina até ao cérvix, até ao centro do universo. Feto danado a esmurrar a alavanca. Subserviência soberana perante o ser que está quase novo. Vagina rasgada até ao altifalante, guinchos viscosos pontuados com sangue na alcatifa das pernas abertas em edifício.

Gabinete de formação para a maternidade. E o parasita na cabine, quanto dela é ela e quanto dela é ele, a administração reune-se e continua a identificar uma identidade só, embora aos ziguezagues com nódulos e deformações fluorescentes mas ainda assim uma só. Tudo bem. É externa esta dupla existência, confirma-se, em breve será nova, única, diferente, separada. Vem da carne e é humano mas diverso.

31 Jul 2020

Anhedonia II

[dropcap]N[/dropcap]ietzsche diz que os orientais e os ocidentais têm dois tipos de narcóticos diferentes. Os chineses o ópio. Os europeus, o álcool. Nietzsche acentua a diferença mais na rapidez dos efeitos do que na consequência.

Hoje, não a diferença geográfica que N. traça não faz sentido. É interessante o critério que emprega. A rapidez dos efeitos e a duração da eficácia. Quando se fala de eficácia, é de alteração do estado de consciência. A alteração do estado da consciência transforma a biologia do nosso corpo, a psicologia dos nossos comportamentos, a própria forma da nossa existência. A dimensão em que passa a existir quem usa substâncias psicotrópicas é diferente da da realidade.

Desde a antiguidade que a lucidez “seca” é diferente da lucidez “molhada”, a vida sóbria e seca opõe-se e contrasta com a vida ébria e encharcada. A invasão do álcool, normalmente, do vinho foi estudada na antiguidade como uma forma de perceber como é que a melancolia, um líquido segregado pelo corpo humano pode afluir ao cérebro e transformar o modo de pensar, a forma de agir, a mentalidade e a própria existência das pessoas.

O uso de drogas, mas também o uso das diferenças bebidas, identificam diferentes personalidades. Pode haver quem “goste” de toda a espécie de substância de que se torna adicto, pode haver que tenha substâncias de eleição e não consuma nenhuma outra. Há bebedores que não se drogam. Há quem fume, por exemplo, erva e nunca beba álcool. Há sem dúvida quem nunca use nenhuma substância nem sequer alcoólica. Há também, ainda que mais raras, pessoas que usem mas não possam ser consideradas ou adictas ou alcoólicas. A adicção é uma doença. Desenvolve-se uma obsessão compulsiva por uma substância. O elemento comum, do ponto de vista neurofisiológico, é que ficamos “viciados” em dopamina. O nosso doce preferido na infância, a nossa comida preferida nos jantares com amigos, a nossa bebida de eleição, o rosto da atração erótica, seja o que for tem uma estimulação de dopamina. O que nós chamamos sex-appeall ou sexy, o que é atraente, o que é estimulante, excitante, segrega dopamina. É por isso que o nosso cão de estimação lá de casa rouba bolo de chocolate e não puré de brócolos.

Mas o que tem a narcose? O que tem a alteração da consciência? Para quê a alteração da consciência? Há uma procura clara dessa alteração. Ou por curiosidade ou para experimentar ou porque é uma possibilidade já dada na vida. O ser humano gosta da alteração. O ser humano não gosta de estar sempre na mesma. A mudança que se experimenta com a rapidez de um rastilho a queimar-se e com a influência de uma substância do mundo é que é diferente de uma experiência da mudança que se possa ter com a alteração de perspectiva e uma verdadeira mudança de vida. O que há nas drogas, no álcool, no café, no tabaco, no açúcar, na comida ingerida em excesso, é uma busca artificial da experiência rápida da mudança. A alteração pode dar-se mas de tal forma que se ultrapassa o ponto sem retorno. Ou seja, o que gostaríamos de ter era uma consciência ainda da alteração da consciência e não uma perda da consciência ou uma abertura a uma dimensão alucinante onde não existimos, agimos sem pensar, sem ver, como se tudo fosse um sonho, ao sabor dos caprichos, daquilo para o que nos dá, mas sem sermos nós próprios.

A outra alteração da consciência seria assim a da toxicidade para a sobriedade. Podíamos pensar que estávamos sempre inconscientes e ganharíamos consciência, que estávamos a dormir um sonho, a sonhar e acordávamos. Ou então podemos pensar que estamos numa situação que os teólogos descrevem como conversão, não víamos e passávamos a ver, não éramos e passávamos a ser.

Há uma enorme dificuldade em lidar com a luz, com o estado de vigília, com a consciência que ganhamos da situação em que nos encontramos. Uma das relações que se estabelece com a sobriedade é uma relação com a lucidez, com a possibilidade de ela não se apagar nunca. É difícil viver sem nunca apagar, sem nunca descansar. Viver com a lucidez é extraordinariamente difícil, mas é por isso que algumas pessoas usam drogas ou álcool, porque não aguentam a realidade. Mas a aproximação à lucidez e à sobriedade é uma forma complexa de aproximação à aurora, à madrugada, ao nascimento, ao princípio, à infância, à atmosfera disposicional em que a vida se bastava a si própria como as vibrações sonoras e a cadência temporal da vida.

Nietzsche falava dessa outra possibilidade da vida se encontrar com o êxtase, com uma embriaguez que se dá na sobriedade e na lucidez e ainda assim nos deixa fora de nós. Dentro de nós e fora de nós, com a possibilidade mais extrema e radical musical que é a do ser humano.

Virá sempre uma fragrância, um entardecer, um lugar à mesa em companhia de amigos em que o êxtase que queremos será aquele rápido e breve, como se não houvesse amanhã, mas a nossa aventura, a nossa demanda pela música será interrompida não se sabe por quanto tempo.

31 Jul 2020

Não há paisagem

[dropcap]N[/dropcap]o meio das litanias pela inacção, pelo tédio e pela abdicação, a China aparece de repente no meio do Livro do Desassossego. Bernardo Soares podia ser o Lao Tse da Rua dos Douradores, e Pascoaes o Confúcio do Marão, mas nem por isso. De qualquer maneira, para os dois primeiros a renúncia é a libertação e é certo que só “não querer” é o verdadeiro poder. Nisso concordam, quer o mestre Lao quer o guarda-livros (quer ainda o Manuel de Barros, lá na capitania de Mato Grosso), mas o sábio assiste e dá valor às dez mil coisas, revés e convexo do vácuo. Já Bernardo nem por isso, e fica-se pela pura inação:

“Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.”

De resto, por que razão aparece aqui a China? Ela é aqui apenas uma metáfora do longe, e interessa aqui o seu uso conhecido como imagem do outro absoluto. É assim exemplo privilegiado para uma desconstrução do exotismo da viagem. A única viagem possível é a viagem interna, porque o único criador de diferenças e de exotismos é a alma.

É difícil entender esta ideia, tão habitados que estamos – ou que estávamos, melhor dizendo – à ideia de viajar, de perder países. Na verdade, viajar é apenas uma vulgaridade, como o mesmo Bernardo disse a propósito de subir à montanha. Quem está no alto da montanha está apenas a ver o mesmo que se vê de baixo, só que de uma altura maior. Quem está no alto da montanha está apenas no alto da montanha. Assim também, quem viajou apenas se moveu uns quantos passos para a frente. Da mesma forma, quem está na China está apenas na China, foi ao termo real do continente ao qual se prende a Península Ibérica: em Vladivostok ou Dalian, comendo um bom glass noodle entre as duas Coreias, aí o termo real da península dos iberos e da terra dos zuavos. Quem está na China está apenas uns quantos quilómetros mais à frente. Lá só vai encontrar o mesmo que se encontra na Serra da Arrábida ou no Cacém, com uns quilómetros de permeio.

O campo é igual à cidade, o mar é igual à terra, e esta ao rio, e assim sucessivamente. A paisagem tem sempre gente lá dentro, e essa gente é sempre e toda mais ou menos boa, ou mais ou menos má.

Como consola, como ajuda, nestes tempos em que não podemos viajar, entender que viajar é apenas uma declinação pobre da (in)capacidade de sentir! Afinal, viaje quem não pode sentir, vá quem não pode ficar. Eu só encontro aquilo que os meus e mesmos olhos mostram, e daqui até à China a glauca retina não muda de cor nem de massa. São tão pobres os livros de viagens!, diz Soares: as terras de que falam, todas iguais e daninhas, imagens baças coladas a uma retina, uma fotografia que desliza como faz um verme.

31 Jul 2020

Exílios & Insílios

26/07/20

[dropcap]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; é lá a sua pátria, onde não é profeta», cunhou Blanchot em L’Écriture du désastre. Eu sublinharia: onde precisamente não é profeta. Pelo que exilados seremos todos, desde que comandados pelo devaneio e por esse incessante ofuscamento de uma cicatriz na luz. Há vezes que dolorosa, de outras encontrando uma fraternidade na fuga. Talvez seja isto a escrita: uma fraternidade na fuga. Mas há exílios e exílios.

Também o Ovídio, exilado em Tomis (na foz do Danúbio), encontrava um remédio para o seu mal-estar no sonambulismo da escrita. Trôpega, havia perdido o seu auditório e os Getas, junto dos quais estava exilado, não o compreendiam; ao cabo de uns anos sentiu que lhe encalhava o navio na língua, perdia a linguagem, secando-se-lhe a veia poética.

Os seus poucos correspondentes suspeitavam que ele exagerava nas suas lamúrias. Quando se está longe e isolado, é difícil explicar que a distância amplifica o silêncio e vai tornando irreais, migratórios, até os espaços físicos onde exercitamos a nossa ausência. A terra estrangeira, perguntava-se Robert Bolano, é ela uma realidade objectiva, geográfica, ou é antes de mais uma construção mental em movimento perpétuo?
E no entanto, soube-o Segalen como ninguém, a nossa personalidade alimenta-se de tudo o que é o seu antípoda: «É pela Diferença, e no seio do Diverso que se exalta a existência». É bem verdade, e senti que isso actuou em mim como um anzol que foi ao fundo de mim repescar a maiêutica. Contudo, que cansaço.

Neste meu afastamento intermitente tive o tempo e a oportunidade de ler textos magníficos sobre o exílio, o ensaio de Linda Lê, as observações de Edward Said, os Diários de Gombrowicz, o texto laminar de Joseph Brodsky, donde tiro este excerto certeiro:

«(…) se há algo de bom no exílio, é o facto de ensinar a humildade (…) o exílio é a lição suprema dessa virtude. E isso é especialmente precioso para um escritor porque lhe dá a perspectiva mais ampla possível.

“E avanças em humanidade”, como disse Keats. Perder-se na humanidade, na multidão – multidão? – entre bilhões; tornar-se uma agulha naquele famoso palheiro – mas uma agulha que é procurada por alguém: é disso que se trata quando falamos de exílio. (…) Mede-te não por teus pares escritores, mas pela infinidade humana: é quase tão terrível quanto a inumana. É a partir daí que deves falar e não a partir da tua inveja ou ambição.»

Chegaram-me estas notas por causa do livro que descobri hoje que o meu amigo Nazir Can havia lançado no Brasil sobre a literatura moçambicana e que se chama: O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio (Kapulana, 2020). Fiquei preso ao substantivo «insílio», cujo significado me instigava e resolvi averiguar, tendo descoberto que ganhou a armadura de um conceito muito explorado nos ensaios do sul-americano Mario Benedetti para identificar “a condição dos cidadãos que foram forçados por poderes coactivos a adotar uma atitude passiva e uma semi-impotência que os destitui de sua autonomia moral e de sua iniciativa psicológica”.

Para ter chamado a palavra à capa é porque Nazir encontrou em muitos textos essa característica, ao ponto de a desenvolver como chave e parece-me ser um achado para traduzir o indisfarçável mal-estar de grande parte da intelectualidade moçambicana, tal como aliás “a curiosa nostalgia do exílio em plena pátria” (Benedetti), muito presente no impasse que muito para além do Covid se faz sentir no quotidiano do país.

Nós não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau, dizia Mark Twain – e poderíamos citar um hábito como o medo.

Sem o ter lido, conhecendo-lhe a inteligência e a capacidade de análise suspeito que este livro estará para Moçambique como Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, esteve para Portugal, e espero que o livro se possa comprar em Maputo.

27/07/2000

A caixa com livros estava na varanda. Abria-a e o livro que estava por cima era A Festa de Babete, de Karen Blixen. Estava o frescor que acaricia as têmporas e lhes dá a agudez da atenção. Resolvi ler finalmente a História Imortal, por causa do Orson Welles (filme que nunca vi). Fui ao guarda-fato vestir um blusão e sentei-me na varanda a ler a pequena novela. Foi como visitar uma casa mobilada com biombos que o vento vai trocando de lugar. Depois disto só um iogurte de cerejas, coisa impossível de arranjar por estas bandas. Absolutamente devastador…

28/07/20

A cultura de massas é o resultado de uma arte combinatória de tudo o que já foi assimilado. As belíssimas orquestrações das canções dos Beatles ou do Elton John, em termos de linguagem da música, mais não fazem do que usar os padrões musicais conquistados pelos movimentos musicais do século XIX. Tiveram sucesso popular, depois de um século de acomodação a essa sensibilidade musical. Parecem agora simples: houve uma educação do gosto e da sensibilidade. Quem lembra hoje as resistências suscitadas pelas dissonâncias que o jazz introduzia na música?

Isto em si é normal. Grave é que para um filho da cultura de massas não exista o mundo antes de si, a memória da tradição cultural, e o presente não passe do pomar onde supostamente colhe os lucros. Daí que um destituído como Bolsonaro consiga ser presidente e possa dizer sem ser imediatamente electrocutado por raio divino que criar uma lei de combate às fake news é uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, por não entender que a liberdade não existe em abstracto e está irmanada com a responsabilidade. Não é sequer perversão ou maldade, ele não entende mesmo. Esta incapacidade de discernimento é comum a quem teve uma exclusiva educação ancorada nos “valores” da sociedade de massas, onde até o capital se converteu, antes de mais, “numa estética mercantilizada” que fez naufragar tudo numa terrível, irrevogável, indistinção.

30 Jul 2020

Que o resto ortigas o cobrem

[dropcap]M[/dropcap]arx, Darwin e Freud descobriram, cada um a seu modo, que a história era uma mentira. Causaram, por isso mesmo, atordoamentos a muitas gerações. Nos nossos dias, estes curiosíssimos prodígios já são raros ou mesmo inexistentes. Ninguém hoje verdadeiramente se incomoda com as vertigens que nos ligam ao passado, nem com os sonhos que projectariam as cores do arco-íris nas telas do futuro.

Vivemos tempos paródicos que levam muito boa gente a crer que a contaminação pandémica é coisa de fábula noctívaga e que a Europa, uma das últimas utopias, se tornou no vulcão siciliano de que Júlio Verne se esqueceu em casa. Ao contrário da minha gata, a internet não sabe falar, mas se falasse talvez nos confidenciasse que a história é de facto uma mentira pegada, coisa de ‘stand-up’. Tratá-la-ia por larva, o que em biologia corresponde ao estágio imaturo pré-embrionário de um animal que ainda não atingiu a sua maturação sexual.

Nos tempos em que vivemos, mentir deixou de ser um problema. Acabámos de chegar à maturação celestial. Trump fê-lo três mil vezes no ano passado, segundo a CNN. Mente tão avidamente que a mentira deixou de ter sentido. Todos sabemos que a mentira atrai dimensões de actor, não é verdade? Searle caracterizou na mentira uma coexistência entre a dimensão da fraude e a dimensão de uma encenação em que não transparece qualquer intenção de enganar. O dizer-verdadeiro é, em última análise, um fazer-crer ou, se se preferir, um pacto como aquele de quem lê ficção e exige do lado do escritor verosimilhança.

Tal como os delírios de Derrida deram a ver em Histoire du mensonge, é praticamente impossível provar que alguém mente, mesmo que seja óbvio que não tenha dito a verdade. Torna-se sempre plausível alegar múltiplas alternativas entre o que foi dito, o que haveria a dizer, o que se quereria dizer, os efeitos do que se terá dito, o contexto do parece ter sido dito, a intenção inicial, a objecção intermédia, o furação da véspera, o mal-estar intestinal, etc, etc. Moral da história: a retórica do dia-a-dia é um jogo de damas sem tabus, nem tabuleiro.

Pondo de lado estas considerações próprias de quem anda de jacto privado no Atlântico à procura de deus, convém, no entanto, referir que a verdade adoeceu. Estará mesmo em coma, segundo as autoridades sanitárias. Pessoas inteligentes como o senhor Foucault já o tinham previsto há mais de quatro décadas.

Vejamos: a verdade centra-se em discursos legitimadores, porque necessita constantemente de bases, sejam elas institucionais, científicas ou tão-só de sujeitos que ainda consigam defender que a terra não é plana; submete-se à incitação dos mil poderes que vincam as sociedades com dentes cerrados; depende das escalas de difusão e de consumo (veja-se o caso da publicidade pós-‘lateral thinking’), para além de ser veiculada através de máquinas sociais que ninguém controla ao modo dos carrinhos de choque. A rematar, segue-se a apoteose final: a verdade passou a respirar a bordo de um mundo onde o sentido (ou a sua ausência) passou a ter muito mais força do que ela própria, coitada.

Num território que se veja ao espelho como livre, ou seja, que não caiba em cabecinhas como as de um Erdogan ou de um Putin, a verdade viverá inevitavelmente num mexido aquário de posições e de possibilidades cruzadas. A contaminação andará sempre por ali exposta ao virar da esquina. Isto de ser livre tem o seu preço e o seu peso, já se sabe. De qualquer maneira, tal como Hannah Arendt deixou escrito, convenhamos que as mentiras foram sempre consideradas como “ferramentas para o estado e para os estadistas”, ainda que, “quanto mais bem sucedido for um mentiroso, maior será a probabilidade de que acabe por ser vítima das suas próprias invenções”. Não iria tão longe, pois o meu optimismo é muitíssimo mais reservado. Talvez a palavra final de Fernando Pessoa aclare este mistério que tanto nos atiça a urgência de mentir:

“Se tudo o que há é mentira,/ É mentira tudo o que há./ De nada nada se tira,/ A nada nada se dá.” (…) “Mais vale é o mais valer,/ Que o resto ortigas o cobrem/ E só se cumpra o dever/ Para que as palavras sobrem.”.

Obras referidas nesta crónica: Arendt, H. Verdade e Política. Relógio d´Água, Lisboa, 1998. Derrida, J. Histoire du mensonge : Prolégomènes, Galilée, Paris, 2012. Foucault M. Microfísica do poder, Graal, S. Paulo, 1979. Pessoa, F. Poesias Inéditas (1930-1935). Ática, Lisboa, 1955. Searle, John R. Intencionalidade. Um ensaio da filosofia da mente. Relógio d´Água, Lisboa, 1999.

30 Jul 2020

O anjo do desespero

Na sombra das minhas asas mora o terror, a minha esperança é o último sopro
O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo

 

[dropcap]H[/dropcap]eine Muller é filho da R.D.A o que o torna no contexto sócio literário e dramaturgo alguém de muito especial pela sua configuração histórica e pelo elemento utópico, ao contrário de agora, não se pretendia nenhuma unificação que tendesse para uma amálgama entre partes, e esta natureza que começa por ser alinhada ao seu processo de transformação em curso, também se torna, no seu caso específico, o princípio de uma dilaceração.

Discípulo de Brecht, anotamos contudo uma maior densidade lírica, talvez, que o aguilhão da nacionalidade a que pertence torna lindissimamente amarga. Efectivamente, ele foi do Partido Socialista Unificado Alemão, dirigente de grupos teatrais cujo prestígio lhe causaria dissabores, e estas travessias são matéria de aprumo para a compreensão de toda a sua obra e a relevância dela, no lado das vanguardas e na linha do intertexto passará a “persona non grata” banido da Sociedade de Escritores, saltando assim para lá do Muro onde o seu prestígio se instala, posteriormente, será por fim bem aceite na sua sociedade de origem. Os seus textos teatrais influíram ainda toda uma geração de actores até aos dias de hoje e só tarde se adentra então no texto poético, que poética é toda esta obra, com a estranha lucidez que tal epíteto carrega.

Um Velo de Ouro negro se faz sempre sentir mergulhado numa soberba consciência das sociedades nos diversos tempos históricos, e neste caso, pelo fumo das fábricas das actividades em marcha, pelas guerras no centro do seu berço, das metralhas e do conflito de uma Europa laboral e bélica, e é na presença de realidades de transformações profundas que a sua linguagem ganha a belíssima Asa negra de uma hélice que gira sem parar. O prodigioso mundo dos “Fantasmas de Muller” muito focado no seu comprometimento, é também a do homem que fala com os mortos, e creio que só se tornará um autor mais intimista depois do suicídio da sua mulher, e aí se demora na tragédia, o que não é uma singularidade nos autores alemães “eu era Hamlet, estava à beira mar….atrás de mim as ruínas da Europa” o pós-modernismo habitando tempos vários, que a tragédia afigurava-se-lhe de grande vitalidade, oposta ao ciclo burguês de uma identidade reprimida e deprimida nas estratégias da sua consolidação de classe: ” o que há de mais estranho na nossa realidade é a beleza. Isto é a maior das provocações.”

E é esta Asa de Anjo que sempre desce para reconhecimento das nossas existências e que vem de muito distante dirigida a um não menos distante futuro em forma de corvo negro, que nele tanto nos fascina! Anjo que fala com os mortos “eu sou a faca com que o morto abre o caixão” e eis que subitamente em forma de teatro nos aparece o da Trombeta em pleno Juízo Final. E ele que alude a uma qualquer ressurreição, é na funda impressão que lhe dá, ainda o veículo de uma catástrofe porque obriga a despertar aquilo que estava parado, perdido, ele volta a reunir os ossos – aqueles que em páginas outras andavam dispersos- erguendo em colunas de assombro um projecto Vivo.

É muito revelador como os povos interpretam as presenças fictícias nas suas circunstâncias escritas e lembro «Uma frescura de Asas» de António Quadros e esta categorização de Muller, na mesma figura, a redefinição do sistema onírico dos povos é de facto matéria distante entre eles, e talvez por isso não sejam compatíveis ou não se entendam em muitos outros assuntos: redesenhados no imaginário das suas heranças históricas, podem abordar um mesmo tema de ângulos muito diferentes, no entanto, este admoestamento da imagem do Anjo é-me muito cara na visão de Muller, na mesma linha de correspondência que fez Rilke afirmar “todo o Anjo é terrível…”. Todo o futuro terá paradoxalmente um coração antigo que o transporta com a dinâmica veloz das revelações, e indo buscar as asas, trouxe-as com o desespero do mensageiro que não cabe já num tempo de mensagens vazias. Este é o testemunho de uma narração no limite da consciência, e tal como os vencedores não produzem cultura, também os trágicos não se abeiram das coisas que não os façam irredutíveis. Uma coisa não pode estar em vez da outra, pois que cada palavra aqui age para produzir o dinamismo necessário para sair do vazio que se instala na comédia humana. E acrescenta então o que gostaria de ter escrito mesmo cegando:

Eu sou o anjo do desespero. Com minhas mãos distribuo o êxtase……
A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito.
Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro.
Eu sou aquele que há-de ser.
O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.

E ainda nas « Asas do Desejo», Berlim é um local agreste.

29 Jul 2020

Sobre A Raiva (1963) de Pier Paolo Pasolini

[dropcap]E[/dropcap] então tudo explode de novo: «Silêncio absoluto» (silenzio assoluto), como exige Pasolini no seu guião. O silêncio do «inextinguível terror» atómico. O silêncio antes que a «voz da didascália» retorne, e o seu texto poético acompanhando os sóis de morte e as listras no céu: «Sonhos de morte (sogni di morte). […] Ah, crianças! (Ah, figli!) […] Não há mais nada, nada, nada (Non c’è più nulla, nulla, nulla).» Poema antes da implacável sentença de uma «voz de prosa» que afirma: «Luta de classes, razão de toda a guerra» (Lotta di classe, ragione di ogni guerra). Duas vozes, portanto, que se sucederam ou reagiram: duas vozes para dizer e repetir a posição dialéctica de Pasolini. Veja essas explosões: o ponto de vista político (a «voz de prosa») ensina-nos quais são, de facto, as «armas da luta de classes», conforme Bertolt Brecht já havia dito, e como disseram ainda Hannah Arendt ou Günther Anders nos anos sessenta.

Mas olhe para elas novamente, para essas explosões, olhe para elas mais algum tempo: o ponto de vista lírico (a «voz da poesia») sugere então que «essas formas no alto dos Céus» (queste forme nella sommità dei Cieli) são a nossa própria «realidade» (realtà).

Assim se organiza o olhar duplo de Pasolini: através de uma montagem surpreendente, ele ousa, frente a essas armas atómicas, persistir na sua pergunta poética, na pergunta dirigida – via Marilyn Monroe – à beleza das formas. Surgem então as imagens de pinturas abstractas (os quadros de Jean Fautrier, no caso), cujo «lirismo» vem sublinhar ou acusar a própria beleza dos céus perturbados por explosões atómicas. Momento intensamente lírico, mas momento que acusa tanto quanto sublinha, pois é o reflexo de uma ordem política que finalmente emerge, carregada desta vez – o detalhe é importante – pela «voz da poesia»:

«A classe detentora da beleza.
Fortalecida pelo uso da beleza,
alcançou os limites supremos da beleza,
onde a beleza é apenas beleza.»

Para quê os poetas, os pintores abstractos, os cineastas – que tantas vezes nos mostram a beleza dos corpos e dos gestos, os de Marilyn Monroe ou de Anna Magnani, por exemplo – nestes tempos obscuros em que existe uma «classe detentora da beleza»? Porquê dar a ver a beleza se mostrá-la equivale a abandoná-la entre as mãos do inimigo? Será a própria beleza um objecto da luta de classes? Uma série de fotografias mostrando típicas mulheres burguesas, caracteristicamente vulgares por estarem «carregadas de jóias» (ingioiellate) durante as noites de ópera, pontua toda uma reflexão, ainda trazida pela «voz da poesia», sobre a apropriação burguesa da beleza, mas também da natureza e da própria história:

«A classe detentora da riqueza.
Alcançou tanta confiança na riqueza
que confunde a natureza com a riqueza.
Tão perdida no mundo da riqueza
que confunde a história com a riqueza.»

Tocado – como Georges Bataille – pelas relações entre a beleza e o mal, Pasolini passará a situar o conflito dentro da própria beleza. A seus olhos, Marilyn encarna a «beleza pela obediência», a beleza de uma pessoa radiante, clássica e jovem, apropriada pela classe burguesa através do que Theodor Adorno já chamava de «indústria cultural» e do que Guy Debord ainda não chamava de «sociedade do espectáculo». A seus olhos, as explosões atómicas reificam a «beleza através do terror», a beleza de um processo de destruição absoluta nas mãos dos modernos senhores da guerra. Para ele, as pinturas de Fautrier representam – indevidamente, mas pouco importa aqui – a «beleza pela beleza» de que a burguesia de hoje, como Enrico Scrovegni na época de Giotto, se apropria a fim de apaziguar a sua má consciência (não contente em apropriar-se da história, quer também apropriar-se da história da salvação, no caso de um Scrovegni, ou mesmo da história da arte, no caso de um Henry Clay Frick ou, nos dias que correm, de um François Pinault). Eis porque, na sequência imediatamente seguinte, duas imponentes portas se fecham diante dos nossos olhos, como se a beleza nos tivesse sido negada pelos donos da riqueza:

«A classe da beleza e da riqueza,
um mundo que não [te] ouve.
A classe da beleza e da riqueza,
um mundo que [te] deixa do lado de fora da sua porta.»

E é então que os mineiros voltam do fundo do filme, como se saíssem do fundo da sua mina. É quando emerge a outra beleza, a beleza tão estranhamente bela de carregar o seu outro, a dor mais antiga. Vinte e três mineiros estão de volta do fundo da mina, carregados pelos seus camaradas e chorados pelas suas esposas ou mães. É o que vemos primeiro, como o exacto contraponto às vidas «carregadas de jóias» das burguesas da ópera, ou até mesmo à morte da própria Marilyn sob a forma de «pó de ouro». Aqui estão as mulheres de cinza, de preto, as mulheres que se debatem com o luto, que se lamentam, que se calam dignamente ou que lançam os seus gestos de raiva contra as autoridades capazes apenas de «gerir o acidente». E Pasolini compõe, através da «voz da poesia», uma espécie de ode, uma humilde canção fúnebre para esse povo atingido pela brutal explosão:

«E a classe dos xailes pretos de lã,
dos aventais pretos para algumas liras,
dos lenços que envolvem
os rostos brancos das irmãs,
a classe dos gritos antigos,
das expectativas cristãs,
dos silêncios fraternos na lama
e do cinzento dos dias de lágrimas,
a classe que dá valor supremo
às suas pobres mil liras,
e que nisso fundou uma vida
mal capaz de iluminar
a fatalidade de morrer.»

tradução de:
DIDI-HUBERMAN, Georges, Sentir le grisou, Paris, Les Éditions de Minuit, 2014, pp. 61-70

29 Jul 2020

Primeira sonata para violino

[dropcap]E[/dropcap]m 1872, Camille Saint-Saëns, ex-professor de piano de Gabriel Fauré, apresentou o jovem compositor à grande meio-soprano Pauline Viardot-Garcia e à sua família e salão musical alargados. Fauré dedicou várias das suas canções a essa influente doyenne, apaixonou-se pela sua filha Marianne (que romperia o seu noivado após três meses) e dedicou a sua primeira sonata para violino ao filho, o violinista e compositor Paul Viardot.

Foi Marie Tayau, no entanto, uma jovem estrela em ascensão e líder de um quarteto de cordas pioneiro constituído apenas por mulheres, que estreou a obra em Janeiro de 1877, com Fauré ao piano. “A sonata teve mais sucesso esta noite do que eu jamais poderia ter desejado”, escreveu Fauré a um amigo, e Saint-Saëns referiu, a propósito da obra, que sentia a tristeza que as mães sentem ao verem que os seus filhos já cresceram e que não precisam mais delas!… No entanto Saint-Saëns tinha mais a dizer: “Nesta sonata, encontramos tudo para tentar um gourmet: novas formas, excelentes modulações, cores incomuns e o uso de ritmos inesperados”, escreveu. “E uma magia flutua acima de tudo, abrangendo todo o trabalho, fazendo com que a multidão de ouvintes comuns aceite a audácia inimaginável como algo bastante normal. Com este trabalho, Monsieur Fauré ocupa o seu lugar entre os mestres.”

Essa magia é bastante aparente em momentos como a transição da secção de desenvolvimento para a recapitulação arrebatadora no andamento de abertura, Allegro molto. Essa é uma célere mas melodiosa forma-sonata, abrindo com crescente entusiasmo apenas para o piano solo nos primeiros 22 compassos. A sua frescura lírica é subtilmente sustentada por um dar e receber contrapontístico, e a sua doçura expressiva por uma técnica musculada. O segundo andamento, Andante, é uma comovente e insistentemente oscilante barcarolle, que faz um uso arrebatador de contraponto na maneira como os dois temas inter-relacionados se entrelaçam. O animado Scherzo, marcado Allegro vivo, uma espécie de brilhante hoedown francês, diverte-se tanto em sonoridade quanto em enredo rítmico e inspiração estrutural. Pontuado ligeira e nitidamente, muda de compasso e tonalidade com a audácia maníaca que Saint-Saëns assinalou. O finale, Allegro quasi presto, vai além da consumação e da adição com verve e vigor. Também bastante rápido, agita-se encantadoramente num mundo sobretudo muito suave, atingido por alguns fulgores estrondosos; “Dolce”, “sempre dolce” e “dolcissimo” parecem ser as marcações padrão de Fauré.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Violin Sonata No. 1 in E minor, Op. 13
Itazkh Perlman (violin), Emanuel Ax (piano) – Deutsche Grammophon, 2015

28 Jul 2020

Macau de fanfang a colónia

[dropcap]C[/dropcap]om Taiwan reconquistada ao neto de Koxinga em 1683, terminando com o regime dos Zheng e o seu domínio no Mar da China do Leste, o Imperador Kangxi em 1685 abriu o Celestial Império da dinastia Qing às actividades marítimas e criou quatro alfândegas para o comércio internacional. A Alfândega de Guangdong, a mais importante delas, tinha a sua mais significativa “delegação em Macau, que, por sua vez, coordenava quatro postos alfandegários montados respectivamente na Praia Grande (Nam Van), na Barra (Má-kok), na Grande Doca (perto do actual Porto Interior), e na Porta do Cerco, sendo, entretanto, extinto o antigo serviço alfandegário (Shi-Bo-Si), montado na Porta do Cerco”, escreve Victor F. S. Sit.

Para ter intermediário com os negociantes estrangeiros, um pouco mais tarde o Governo Chinês criou um sistema de fretamento representado por 13 Hongs (Casas de Negócios), que se constituíram numa instituição, o Co-Hong. Composta por comerciantes chineses de grande influência, em 1720 publicaram as suas disposições, “e nesse âmbito os comerciantes chineses conseguiram estabelecer normas para as diversas qualidades de mercadorias e fixar os preços de venda. Isso significava que os comerciantes europeus em Cantão se viam praticamente confrontados com um monopólio e que o seu espaço de manobra se reduzia”, segundo Roderich Ptak.

Huangpu (Whampoa) no início do reinado do Imperador Yongzheng (1723-1735) tornou-se o único porto onde os barcos europeus podiam ancorar, mas sem permissão dos comerciantes desembarcar.

Na tentativa de estabelecer relações comerciais com a China, o Rei Jorge III da Grã-Bretanha enviou em 1793 uma embaixada ao Imperador Qianlong (1736-1796) a pedir permissão para representantes comerciais residirem na China. Por édito foi-lhes recusada residência e os britânicos bombardearam Nanjing.

Mas, “já desde o início da década de 1780 que os ingleses mostravam um evidente descontentamento com a submissão à jurisdição chinesa em Cantão, por um lado, e à jurisdição portuguesa mista em Macau, pelo outro. Daí que não tivessem levado muito tempo a empreender o projecto de conseguir um acordo entre Calcutá e Goa, de forma a tornear o problema e passarem a gozar do mesmo estatuto privilegiado de que já gozavam em Portugal”, segundo Jorge de Abreu Arrimar, que refere, “Fechada a China aos seus planos, os ingleses passaram então a exercer pressão sobre Lisboa e Goa, de forma a poderem vir a estabelecer-se em Macau.” Citando Ângela Guimarães, “O período das duas primeiras décadas de Oitocentos é para Macau de permanente e intensa resistência ao avanço do expansionismo britânico na região, o qual se processa no contexto mais alargado da rivalidade imperialista franco-britânica.” Com o argumento de ajudar Macau a não ser invadida pelo exército francês de Napoleão, tentavam os ingleses ocupá-la.

Governador civil

Desde 1821, em Macau e nos restantes territórios portugueses ultramarinos, os Capitães Gerais passavam a ser designados por Governadores.

“As reformas políticas em Portugal levaram a um novo regime colonial que, pelo decreto real de 1834, foi adoptado para Macau tanto quanto as circunstâncias locais o permitiam. Entre outras medidas foi abolida a Ouvidoria; e a 22 de Fevereiro de 1835 o Senado foi dissolvido pelo novo governador, Bernardo José de Sousa Soares Andrea, investido de plenos poderes como governador civil. Daí em diante apenas competiriam ao Senado os assuntos municipais, embora ainda fosse chamado de Leal Senado”, Montalto de Jesus.

O Governador de Macau Bernardo Soares Andrea (1833-1837) foi o primeiro a gozar de verdadeira autoridade civil, pois desde 1623 os antecessores tinham apenas autoridade militar.

Ficava o Leal Senado na alçada do Governador de Macau, “com a recordação do que, por maiores que tivessem sido as suas fraquezas, só a sua política conciliatória podia ter vencido os dois séculos e meio de predominante intolerância da China [Qing]; que para os macaenses o Senado foi sempre um governo paternal; e que à sua histórica lealdade em muitas provações graves Portugal devia a conservação de uma colónia que, abandonada como estava, heróica e frontalmente se opôs às pretensões de sucessivos dominadores do mar”, segundo Montalto de Jesus, que adita, “Assim terminou o velho regime senatorial que um eloquente apelo às cortes, em 1837, tentou em vão fazer reviver.”

Com uma administração liberal e recta, o Governador Andrea foi um funcionário modelo, recebendo louvores da comunidade portuguesa e estrangeira e com “uma atitude firme e severa assegurava também o respeito dos chineses”, refere M. de Jesus, “Entre outras medidas salutares devidas ao regime constitucional contam-se a libertação dos escravos domésticos e a supressão das ordens monásticas, por causa da sua campanha anticonstitucional.”

Aliança com os ingleses

A arrogância agressiva dos ingleses, que faziam tudo o que bem lhes apetecia, em constantes transgressões a provocar o poder chinês e perante o assustador aumento exponencial do tráfico de ópio, o Vice-rei de Cantão enviou a Circular de 24 de Julho de 1834 aos mandarins do litoral da província mandando-lhes publicar “editais proibindo rigorosamente aos povos dos seus distritos qualquer trato, ou comunicação, com os ingleses, visto serem ”, segundo Marques Pereira.

Conscientes do perigo em ter os ingleses em Macau, (então um fanfang, território chinês governado por estrangeiros), os mandarins exigiram que as nossas fortalezas estivessem prontas e fortificadas para resistirem a qualquer desembarque das fragatas do lorde Napier, superintendente do comércio britânico na China.

O Governador de Macau respondeu às autoridades chinesas a 17 de Setembro de 1834, referindo não recear qualquer perturbação com os ingleses, visto as relações entre a Inglaterra e Portugal se encontrarem em harmonia, mas que repeliria qualquer tentativa de desembarque e que não aceitava o envio de quaisquer tropas chinesas, segundo Luís Gonzaga Gomes. O que aconteceu a seguir está a descoberto nos nove artigos publicados em 2016 no Hoje Macau entre 8 de Abril e 3 de Junho, sobre a I Guerra do Ópio.

Sob jurisdição do Governo do Estado da Índia, o Governador de Macau tinha na sua dependência o Governo de Timor e Solor desde 7 de Dezembro de 1836.

28 Jul 2020

Contra mim ou nada

[dropcap]«E[/dropcap]nquanto os outros viviam para ser alguém, para aprenderem uma profissão, um modo de ser no futuro, eu vivia para não deixar de viver, esforçava-me dia a dia para não me matar.» É assim que a escritora do País de Gales, Kelly Chester começa o seu romance «Lutar Contra Mim». Neste livro, singularíssimo, que não é um livro de ficção, mas um testemunho de vida, Chester traça uma narrativa onde nos mostra a sua vida desde a infância (pouco) a sua adolescência (um pouco mais) e a sua idade adulta (quase todo o livro). Viver o dia a dia como quem está no centro de uma guerra civil, «como nos Balcãs», escreve. O livro é publicado em 1999 e além de trazer um testemunho pessoal, faz várias referências ao conflito nos Balcãs, comparando a vida a ser-se violentado na sua própria casa. Aliás, o próprio termo «conflito» é ironizado pela escritora: «Quando leio nos jornais “o conflito nos Balcãs”, lembro-me sempre de como é difícil de vermos a vida como ela é. O pai viola a filha e a mãe esconde os acontecimentos debaixo dos afazeres quotidianos, como se isso fosse o que se espera dela; a miséria dos salários, com quem mal consegue viver, não importa a quem fala deles, porque ninguém vê vidas num discurso parlamentar; há pessoas a quem dói mais tomar comprimidos do que simplesmente deixar-se morrer. “Conflito dos Balcãs”, como se fosse tudo um desacordo universitário, onde ninguém tem mais o que fazer do que imaginar teorias para a origem do universo. Ali, no “conflito dos Balcãs”, morrem pessoas, são violadas, torturadas, assistem à morte dos que amam. Não é um conflito, é uma barbárie. É o inferno.» É claro que Kelly Chester não pretende igualar a sua tragédia pessoal com aquela que é vivida pelo povo dos Balcãs, apenas estabelece uma relação entre a falta de clareza com que olhamos o que se passa lá com aquilo que se passa com ela. Não se trata de comparar dimensões, mas comparar falta de clareza, dificuldade de ver o que se passa. A morte e a tortura de milhares de pessoas não é semelhante ao seu sofrimento, «mas não se ver o que se passa nos Balcãs, não se usarem as palavras adequadas ao que se passa, assemelha-se ao não se ver o que se passa comigo».
Kelly Chester teve uma admirável carreira como professora universitária no departamento de psiquiatria da Universidade de Cardiff e durante toda a sua vida tem feito estudos sobre vários distúrbios da «falta de vontade de viver». E aquele que ela identifica como sendo o seu distúrbio diagnostica-o como «incapacidade de ilusão». Escreve: «Para conseguirmos viver e suportar as inúmeras contrariedades da vida, é necessário que o nosso cérebro produza várias substâncias que permitam relevar ou redimensionar essas contrariedades. Substâncias que, numa linguagem pouco técnica, podemos designar por “produtoras de horizontes de sentido”, que a despeito de todas as contrariedades projectam um horizonte melhor. Estamos presos numa cela e projectamos o dia em que vamos sair; estamos numa situação de guerra civil e projectamos o dia em que conseguimos fugir dali. Aqueles que, como eu, não têm esses “produtores de horizonte de sentido” não conseguem ver além do que está a acontecer. E, de modo geral, o que acontece não é bom. Para mim, ou alguém como eu, viver comporta esforços inimagináveis para as pessoas comuns.

Pois não é contra as contrariedades que lutamos, mas contra a vontade que temos de desaparecer da vida. Ao não vermos nada adiante, ao não conseguirmos projectar nada de bom adiante, em cada instante, a vontade de desaparecer assume o controlo da existência. Esta, a existência, torna-se uma desistência contínua.»

Imaginemos que viver, para Kelly Rachel, é estar continuamente no meio de uma pandemia e não conseguir projectar uma solução ou uma melhoria da situação. Pelo contrário, sentir cada vez mais, à medida que o tempo passa, que «o mal é existir», como escreve a autora. Este salto de uma situação extremamente adversa para «o mal é existir» é devido a uma insuficiência de ilusão. «Toda a projecção é uma ilusão. acreditamos que o que projectamos irá acontecer, que virão dias melhores. Mas isso não é um ponto de vista realista. É um ponto de vista idealista. Quando num determinado acontecimento nada indica haver uma melhoria e ainda assim as pessoas acreditam que vai haver uma alteração para melhor é aquilo a que chamo de “capacidade de ilusão”, que é fundamental para se continuar a existir e talvez a maior invenção do ser humano.»

É evidente que estamos perante um distúrbio radical, mas isso não impede que, em contraposição, como Kelly Chester faz neste seu «Lutar Contra Mim», não vejamos o ponto de vista ilusório em que assentamos os pés de cada vez que nos levantamos da cama e fazemos projectos. Como pudemos ler anteriormente, a autora vai ao ponto de afirmar a capacidade de ilusão como a maior invenção do ser humano. Termina o seu livro assim: «A ilusão, que em verdade não existe e se trata de uma invenção, tem um horizonte maior do que a realidade. Sem realidade podemos existir, mas sem ilusão não há vida. Sem gota de ilusão, vejo-me a mim mesma como o inimigo de que me tenho de livrar. Vivo dia a dia contra mim, para que não me acabe.”

28 Jul 2020

Pátio interior

[dropcap]A[/dropcap] esfera e o pátio. Volto sempre, a pensar na fenomenologia de continentes e de conteúdos. Inexistentes uns sem a presença ou ausência implícita dos outros. Noções que se adivinham e se querem mutuamente. O côncavo e o convexo na consciência de lugar. O interior e o exterior, o que se incorpora e o que se expande. Quem somos e que lugar é esse que apresenta mutações e se apresenta assim e também na aparência do seu contrário, faz-me pensar que ninguém nos diz ao nascer, que vamos ficar aqui dentro. Fechados a sete chaves e a construir metrópoles. E que o desafio é não enlouquecer delas e para fora delas.

Olho o mapa estendido sobre a mesa e todas as possibilidades de caminho e, no entanto, reunido ali todo o mistério de sentido em cada escolha.

E então dobro-o, por uma vez em quatro, depois em mais quatro e ainda mais duas vezes até à aniquilação da superfície nunca possível. Muitas rugas vão advir daí. Circunscrever o macromundo a uma rua da cidade e mesmo assim sobrarem trezentos números de porta e muitos mais olhares para pátios interiores. Reabrir e poder dobrar em barco, avião ou pássaro, com diferentes feridas desenhadas no curso de rios ou na erupção de montanhas, mas amarrotar como se a rearrumar o mundo com novas e aleatórias coordenadas, numa bola. Retoma quase a forma de esfera que lhe compete, a rolar na inércia do conhecido, aqui sobre a mesa, como um dado lançado, pleno de franjas desconhecidas e abismais. E ficar, por hoje, neste simples espaço, de acesso confortável. A serenidade a excluir os ruídos da cidade em volta. Tenaz mas inglória, bem sei.

Vejo-me de alma residente numa vila meridional virada para um pátio interior, como um continente que cerca o sentido tendendo ao centro. No aveludado de tapetes berberes, que são ásperos ao toque mas amaciam os sons. Em íntimo movimento redondo, sujeito às forças centrífugas que atiram para fora o que o movimento força interior e em simultâneo às que de igual sinal mas opostas, centrípetas, que a mantêm no interior do pátio, como no circuito fechado de uma máquina de lavar, esse côncavo aconchegante ou aprisionante. O exercício da razão, como o das pseudo-forças centrífugas e centrípetas. Inimigas inseparáveis. Se inimigos são os opostos que inevitavelmente se equilibram numa espécie de anulação. E quando desaparece o atrito entre pés e terra, sai disparada e tangencial em linha recta rolando como uma esfera densa e convexa, puro conteúdo em fuga mórbida para fora. Do ínfimo individual para a grandeza do universo entrevisto. E na inércia de movimento perpétuo, mas pura ilusão, esta. O dinamismo psíquico a ensaiar o movimento para fora de si – sempre de ida e volta – e desse encerramento metafórico que é a própria noção de si, contrário ao mergulho a fundo no poço do íntimo mais íntimo desse pátio interior, para onde tende o olhar da casa. E encontra-se como em férias na pequena casa sobre penhascos. Monobloco de uma única divisão. Cristalina e estanque.

Quase nada, face ao tudo em redor. Uma esfera sólida e parada. Estável na inércia de estar.
Como um terminal de chegadas e partidas. As pessoas vêm e partem. Vêm e vão e desaproximam-se dos olhos como se nunca tivessem lá estado mas ficaram gravadas nos registos de viagem e desgravar não é competência da vontade. Como nos meios digitais, apagar de um gesto. Somos um simples banco com vista para a linha. Ou o comboio, em si. E assim se passa estar aqui e ver quem já partiu e antever quem ainda não chegou, ou partir e chegar. Com instantes de intervalo e tonalidades em blue. Fazendo companhia.

Vivo assim. No interior da minha cabeça mas com vista alternada para o espaço imenso ou para o pátio interior, esse exterior no meio da casa. No entanto apareces-me ali como além. Num, sentas-te a sós, porque te deixo entrar e estar sem interferir no teu chá. Já bastam as noites longas em que não vinhas. No outro, porque me passeias ao longe e te vejo mais perto na deambulação. E no entanto, sendo simplesmente o mesmo espaço, prefiro-te no horizonte da casa de vidro do que sentado no pátio interior, onde temo tenhas calor. Te sintas fechado e invasor. Porque eu vivo dentro deste lugar sem portas nem vocação. Perdoa-me porque entras. Sei lá tu se sabes. Bem-vindo. Nunca resisto a estes exercícios dos lugares de estar e do contraponto com os lugares de imaginar. Mas suavemente.

Eu vivo dentro da minha cabeça. Esse continente prosaico e a perder definição por fora. Nem sei como ainda consigo descer as escadas e sair dela para a sensação do mundo e da temperatura exterior. E a ver-te chegar. Tu – sim tu – aquele que é o outro. Que pode encarnar a figura do amante ou do amado, do amigo, do vizinho, ou mesmo do estranho desconhecido e que se opõe ao simples lugar de se ser só. A olhar para o pátio interior.

27 Jul 2020

Anhedonia I

[dropcap]O[/dropcap] hedonismo é uma das ideologias de mais fácil adesão na existência humana. A palavra é deriva do adjectivo grego HEDYS, -EIA, Y e tem ainda repercussões na palavra latina SUAUUIS, -E e na inglesa SWEET. O hedonismo corresponde assim ao princípio de acordo com o qual orientamos a vida por uma procura do é doce, suave, dá prazer, satisfaz, gratifica. Por outro lado, rejeita-se toda a amargura, é causa de sofrimento, frustra. A equação existencial estaria matematicamente resolvida. Escolhe-se o prazer superlativo e rejeita-se o sofrimento, também, superlativo. Em caso e impossibilidade de escolha inequívoca, há matizes na teoria abarcante de todas as possibilidades de decisão. Pode escolher-se o menor sofrimento possível em vista de sofrimentos maiores tal como se pode rejeitar prazeres menores em vista de prazeres maiores. Mas a vida parece estar decidida. Em qualquer circunstância, escolhe-se sempre o prazer como um bem. Em qualquer circunstância também, rejeita-se sempre o sofrimento como um mal.

A figura do Hedonismo considerada por si não obtém um aplauso unânime e desde a antiguidade que não foi uma ideologia simpática. Antes pelo contrário. Numa primeira leitura de Platão, por exemplo, vemos os prazeres ligados ao corpo – os prazeres sensuais, sexuais, com a comida, bebida, em geral com todo e qualquer conteúdo do mundo – liminarmente excluídos. Platão não é anti prazer e se podemos dizer que é um asceta é apenas no sentido radical da palavra grega, de alguém que se dedica a exercícios espirituais e não quer ficar sob a alçada de nenhuma obsessão compulsiva. A verdadeira história contra o Hedonismo pode ser lida na acção que lhe é movida pela Igreja Católica como uma das faces da destruição. E não sem razão. Não podemos nunca ler superficialmente as coisas.

Temos de perguntar pelo sentido das experiências que as coisas têm nas nossas vidas e nas vidas das pessoas. Qual é o verdadeiro sentido do prazer? Qual é a dimensão do prazer na vida de uma pessoa e das pessoas que estão à sua volta? Quais são as consequências para as nossas vidas das escolhas que fazemos quando nos decidimos por viver uma vida dedicada ao prazer? O que é uma vida que rejeita liminarmente toda a espécie de sofrimento?

Por outro lado, temos de perguntar também o que leva alguém a atacar os prazeres. Naturalmente, ninguém sente desgosto com as coisas de que gosta. Por isso, atacar o prazer, aquilo de que naturalmente gosta, implica uma dimensão metafísica, um sentido que vai para além da experiência sensível que está a ser tida. O que levará alguém a condenar o “bem” que fazem os prazeres sensuais e que, dizemos, nos leva à loucura ou então à procriação e propagação da espécie, ao Cocktail de hormonas que permite identificar grupos de adolescentes nas praias, locais de lazer ao entardecer, nos cafés, bares e discotecas, ao facto de se apaixonarem e sentirem tensão erótica entre si? Por outro lado, parece já compreensível o que levará à condenação da ingestão de alteradores do estado da consciência que levam a experiências que são descritas pelos protagonistas dessas alterações de estado como viagens transcendentes. Como compreensível é o que levará à condenação do jogo, quando alguém sente o prazer enorme da antecipação da possibilidade enquanto antecipação, independentemente do resultado, da perda ou do ganho. Não fará também sentido condenar a ambição de poder e da luxúria que resulta do seu exercício?

Qualquer que seja o conteúdo de prazer, um único prazer, muitos prazeres, todos os prazeres possíveis e imaginários, há uma diferença entre o que cada um de nós é e o conteúdo específico desse prazer. O amante, o alcoólico, o cocainómano, o jogador, o tirano têm uma necessidade inalienável de coisas que não têm neles próprios. São atirados para outros amantes, para substâncias: bebida e cocaína, cartas e dados, outras pessoas, povos para poderem exercerem os comportamentos que os definem. As compulsões dependem de coisas existentes fora de si. Não há nenhuma possibilidade que exista neles mesmos que os satisfaça. Nunca conseguem estar neles. Não sabem conviver com eles. Nunca estão sossegados. Não sabem o que é a tranquilidade. Não conhecem a serenidade. Estão continuamente a antecipar o próximo momento de intoxicação ou a reagir à fúria do último momento. Existem entre amantes, entre bebedeiras, entre “cheiros”, entre apostas, entre violências. O espaço intermédio é o do vazio, o do arrependimento e remorso ou só o do tédio. Depois de esquecida ou superada “a última vez”, começam logo a preparar “a próxima”.

O hedonismo é a ideologia que confunde o BEM com o PRAZER. Que bem haverá numa vida que se confunde com a erradicação da ressaca ou que espera pela próxima embriaguez, mas nunca se encontra verdadeiramente consigo nunca?

24 Jul 2020

O meu rebanho de palavras

[dropcap]H[/dropcap]á coisas que estão enterradas no chão da terra – pedra tumular da humanidade. Nela navegam todos os meus mortos, todos os meus vivos, desde que há passado, presente e futuro. É este o mundo do meu pastoreio, onde um rebanho de palavras se espalha e espera que as encontre, junte e lhes dê algum alimento. É preciso cavar, adubar, semear o campo para colher as bagas com que sobrevivem as metáforas, analogias e demais condimentos que servem a escrita, è preciso cuidar dos campos onde colhemos as palavras que empurram o mundo, escrevendo-me nele. Entre elas, ouço Zaratustra: Aquilo que chamastes mundo, deveis primeiro criá-lo para vós. O motor está ligado. O movimento começa no grande escorrega do mundo interior. A rampa alonga-se numa viagem vertiginosa sem se deter e entra no subsolo como se eu fosse um verme nas mãos de um poeta. Estava a ser escrita sem saber. Era apenas uma palavra a deslizar sem ruído e a sumir-se no chão, comovendo-se com a enorme dor humana. A humidade pesada e aglomerante da terra cola-se ao corpo, enterrando-me viva no pranto de todos os que sofrem pela mão de Pessanha, a mesma carga dos homens-ratos de Steinbeck que sustentam o peso da terra inatingível na sua imensa pobreza. Já sem saliva, já sem sentidos, fico a saber que para as palavras pastarem é preciso o exílio, a dor e estar longe em cada uma que se lança ao nascimento e que pode, uma vez nascida, nomear-se como coisa da linguagem. Não que esta seja a casa do ser, desculpar-me-à o humanismo de Heidegger, mas porque formata a cultura, a imagem e a experiência mundo – é o seu horizonte. Agora sei que quando a escrita acontece o corpo escreve-se, nasce e morre. E o mundo também. Sei que as palavras são capazes de se libertar dos limites da linguagem e da jaula onde estão encaceradas – formando a mancheia que prefiro.

O meu rebanho de palavras é o meu acervo, espectáculo que exige a todo o momento a representação do meu olhar de colecionadora. Como diz Sontag caso não saiba que fazer com os olhos ávidos, tem sempre ao seu dispor esse outro, sempre, próximo, interior: um livro. As palavras desfilam perante os meus olhos como coisas que me extasiam, fazendo de mim a leitora que, cada vez que lê, é escrita no folhear contínuo deste arquivo indecente. Grafada no jogo intenso do mundo das palavras desejadas, resgato-as como objectos raros e preciosos, ou protejo-as da incúria de um destino esquecido. Talvez seja apenas uma ladra, como Bukowski, que rouba e amealha no seu mealheiro feroz palavras cheias de raiva. E refaço-me internamente nas mãos que escrevem nesta outra rua de letras onde reconheço Plath e Nietzsche de mãos dadas, como se fossem estrelas a dançar para Platão, arrastando-me no horizonte – o grande escorrega do mundo. Nesta abissalidade sem dormência evolam-se as delicadas folhas de livros onde ecoam as vozes dos escritores.

A vida não vem empacotada em experiências de três actos – diz-me Joyce com quem deambulo no arquivo de citações do coleccionador de palavras que abriu sem medo a sacola de Odisseu, contra o aviso de Tirésias, libertando a mutabilidade maldita da escrita. É preciso uma nova linguagem, novas palavras do ver, pensar e dizer das personagens e fazê-las viajar de um livro para outro, como Stephen Dedalus, já de si trajeto de um mito, que vai parar a Ulisses. Encontro Molly Brown a dizer sim-à-vida, no lance em que Joyce iguala Nietzsche, retirando às palavras o veneno oculto que as faz serviçais da cristalização das formas, do sentido, da verdade – libertando a linguagem do seu papel de ilusão. Ando agora aos trambolhões nas palavras de um homem que cria a sua própria linguagem, em metamorfoses constantes, na fragmentação, discontinuidade, colagem, interrupção, num sem número de processos que anunciam, num gesto contemporâneo, a morte da narrativa como era conhecida até então.

Quando Pina Baush morre no café Muller, diante de mim, eu morro com ela. Mas o meu corpo não cai. Antes fica suspenso entre ser e não ser, como no laboratório que Melville criou para Bartleby, numa pura potência de se emancipar tanto do ser como do não-ser, e criar a sua própria ontologia, nas palavras de Agamben.

Também não quero sair de trás do biombo verde. Também preferia não o fazer… O escrivão acolhe-me no seu colo e embala-me até adormecer, ao som das letras que o escrevem enquanto se recusa a escrever.

Naquela contingência, acordo e flutuo no arquivo-linguagem que nos mantém suspensos em letras e palavras, com vontade de mobilizar outra imagem da literatura. O que interessa é a obra que fica e a cortante novidade que tenho de guardar. O meu corpo desfaz-se na escrita de Gertrude Stein e na sua montagem desabrida contra todos os costumes narrativos. Escrever é sempre uma matéria em devir, como diz Deleuze.

Estou exausta: é muita coisa para um pastor.

Ia dizer à escrita que estava cansada desta tarefa, mas o rosto meridional de Barthes debruça-se sobre as mãos que agora me escreviam: Até o momento só existe uma escolha possível, e essa escolha faz-se entre dois métodos igualmente excessivos: considerar um real inteiramente permeável à história e ideologizar; ou inversamente, considerar um real finalmente impenetrável, irredutível, e, nesse caso poetizar.

É como imagino o horizonte onde repouso a cabeça, quando a madrugada me deita sobre o mar e a terra, à espera do meu rebanho de almas nuas.

24 Jul 2020