O Anel de Giges

[dropcap]C[/dropcap]onta Platão que um certo Giges tinha um anel com poderes extraordinários. Quando punha o anel ficava invisível. Se o tirava, podia ficar à vista de toda a gente. A experiência do pensamento leva Platão a considerar que se um justo pudesse usar esse anel, agiria de forma injusta. Tirava sem pagar o que lhe apetecesse, entrava na casa de quem quer que fosse e deitar-se-ia na cama de quem desejasse, as ruas estariam cheias de cadáveres das pessoas assassinadas por esse justo e as mulheres grávidas dele. Ele libertaria os seus amigos e meteria na prisão os seus inimigos. O justo não poderia ser já considerado justo.

Nem sequer poderia usar o nome “justo”. Todas as suas acções seriam injustas. Não esperaria pela calada da noite para praticar os seus actos. De dia ficava invisível. Não tinha de prestar contas a ninguém. Obteria sempre tudo o que lhe apetecesse ter. Não tinha de responder perante ninguém. De manhã à noite o sentido da sua vida seria o dos seus desejos e caprichos, imporia sempre a sua vontade, sem respeito por ninguém e ninguém saberia pôr-se no seu caminho. É uma tese de Sócrates que Platão quer ilustrar. Ser injusto é fazer triunfar a sua opinião de alguém sobre outrem, esteja ela ou não fundamentada. Ser injusto é fazer o que nos apetece, como se isso fosse ter muito poder. Ser injusto é usar o outro como objecto de desejo e das nossas vontades. Ao impor-se o injusto não apenas neutraliza o outro, subjuga-o, submete-o, sujeita-o, violenta-o.

Mas será que Giges ou quem tiver o anel fica invisível a si mesmo? Não se apercebe das suas acções? Não compreenderá o que é agir injustamente ou ser, mesmo que uma única vez, injusto? O pensamento na sua experiência tem de projectar a consequência possível de alguém ser injusto e fruir de todas as suas injustiças, mesmo quando achar que se sacrifica por um bem maior. Pode não ser sádico e sentir prazer sempre em ser injusto, mas nunca transformará a culpa que sente em remorso. Há-de repetir sempre o mal que faz. Nunca ser arrependerá ao ponto de arrepiar caminho. Há-de continuar a dizer o que lhe apetece, a impor a sua vontade, a fazer o que lhe apetece, a exercer a violência da mínima à máxima, física à psicológica. E servir-se-á, abusando dos outros todos ou só usando alguns.

Sob a capa do anonimato, torna-se invisível para todos os outros, para aqueles sobre quem exerce violência e aos eus próprios olhos não aparecerá como injusto, mas como alguém que forte, audaz, para quem os outros não são vítimas mas fracos. Se não for ele, serão outros a fazer o que ele tem de fazer. Continuará a tomar o que é seu sem qualquer direito a tomá-lo. Não lhe chamará roubo. Será reclamação do direito.

Continuará a entrar na casa de quem lhe apetecer e não será arrombamento mas outra coisa. Deitar-se-á com mulheres e homens porque lhe apetecerá e não será violação mas outra coisa. Matará e será execução. Meterá na prisão em nome de uma qualquer justiça. Soltará criminosos e não é por serem amigos, mas para se fazer justiça.

No exercício da violência, na expressão da vontade de poder, está a pequenez que Platão identifica. Fazer vingar a opinião não é saber. É fazer vingar a superstição pelo medo ou pelo terror ou por um qualquer sentimento a que se chamará amor mas não é amor a qualquer coisa que se chamará pátria mas não é pátria e concidadãos mas serão apenas parceiros de crime. E todos os que forem executados, todas mulheres e filhas violadas serão em nome do que é guerra, mas é outra coisa e se for guerra é em nome apenas de si, da afirmação de si, do próprio.

O injusto há-de prevalecer na sua opinião, condenando e absolvendo os seus, há-de extorquir, expulsar da cidade e matar, há-de violar, há-de fazer o que lhe apetecer.

O injusto será finalmente reduzido ao que é, um odre cheio de buracos, uma pipa gigantesca furada, sem nunca ficar cheia e quando fica cheia sem conseguir reter o que quer que seja. Todas as suas vontades são de tudo e nada. De manhã à noite, será escravo de si próprio e o próprio o que é: esse mesmo odre do tamanho do universo, um buraco negro, que aspira tudo, tudo traga e de nada se enche para todo o sempre.

Não sabemos se Giges, rei da Lídia terá tido esse anel. Se terá havido um único ou dois não pode ser a nossa dúvida.

Enquanto eu for injusto- perdoe-me o leitor falar eu agora na primeira pessoa do singular- ninguém há-se saber, no pensamento, mais do que em acto, quando em acto, é na realidade, a injustiça é bem escondida. Ou assim, acho.

Mas não nos enganemos.

O anel cai-nos do dedo, mesmo quando em nome da transparência defende o inominável, a injustiça.
É que mais vale sofrer a injustiça do que cometê-la. Ao sofrer-se, dói. Mas ao ser-se injusto, perde-se a humanidade. Convidamos a grande besta!

28 Ago 2020

Holandeses voadores – IV

[dropcap]A[/dropcap]gora que o céu começou a abrir, reconheço no ar uma voz que desfalece nas clareiras dos pinheiros mansos e no lago do parque. Uma rememoração de abelhas, paixões e pequenas fugas. A paisagem faz eco das chuvas silenciosas do passado, das melodias de circo, e dos casais inflados da belle époque a desvairar por um remanso de pele nua onde tocar com os dedos. Um fogacho tão breve como o dos gansos que esvoaçam em frente às vidraças onde aguardo o meu aluno.

Dava aulas no Instituto Real dos Trópicos, razão por que todos os dias viajava do bairro do Jordaan até perto de um equador imaginário, liso como uma iluminura. Os alunos aprendiam Português antes de seguirem para Moçambique, Brasil, S. Tomé ou Angola onde iriam trabalhar. Geralmente eram pequenos grupos, mas, durante esses meses em que o céu me permitiu reconhecer memórias alheias que afinal me pertenciam sem eu saber, apenas tive um único aluno, um médico chileno.

Curiosamente, o médico falava Português. Articulava a língua com a mestria dos flamingos que tingem a plumagem com os caranguejos que devoram. A sua presença no curso era meramente burocrática, embora fosse um requisito obrigatório da bolsa que o levaria depois até à Guiné, seu destino final. Confessou-me logo de início que as semanas de curso que iríamos partilhar seriam um enfado, um despropósito, uma aura em ponto morto. Mas eu continuava a olhar para as vidraças, por trás da fisionomia sonolenta do meu aluno, e reconhecia naquela visão uma paleografia familiar. Era como se este trecho de vida já tivesse sido escrito.

No segundo dia de aulas, levei comigo um livro de John Ruskin que me tinha sido oferecido por um amigo de passagem pela Holanda. Ao ver o livro, o médico ficou esfuziante, mesmo perturbado, pois a sua primeira viagem na Europa concluíra-se em Veneza e ficara alojado precisamente no hotel onde o romântico inglês tinha vivido. Na hora de conversa que se seguiu, percebi que o meu aluno era um esteta que estaria a fugir para África, devido a uma tragédia amorosa e não à habitual generosidade do seu ofício sem fronteiras. Talvez tudo isto não passasse de um sinal.

Foi no último dia do curso que a bicicleta surgiu do outro lado das vidraças. Em vez do carrinho de bebé, era num cesto de verga que ela agora transportava as folhas dos plátanos. Dançava ainda dentro do vestido vermelho do dia anterior. Fiquei paralisado, diluído no éter. O médico usurpou-me o mutismo e sorriu com ventania de gávea, parecendo conhecer uma longa história que não era a sua e que há poucas horas se iniciara. É verdade que só voltei a vê-la quando, dias mais tarde, a vi reaparecer de dentro da loja marroquina. Nesse fim de tarde, dadas as coincidências, o meu aluno contou-me tudo. E eu então desapareci a bordo daquela pequena morte que mal sacia os ossos, quanto mais um remanso de pele nua a arder. Talvez tudo isto fosse de facto um sinal.

8

Há asas que só batem no infinito. São aquelas que eu suporto nos meus braços. Sempre temi os animais com penas, mesmo os cisnes que vivem cem anos em paciente monogamia e que em terra vagueiam com pouco jeito, desequilibrando prumadas. No entanto, acabadas as aulas, o que mais desejava era espraiar o tempo e, nessa operação de perda voluntária, vê-los a deslizar na água e perceber na sua navegação uma vasta epopeia em silêncio.

As linguagens dos humanos não conseguem captar uma tal gesta, como também não conseguem detectar a matéria escura do universo. Os cisnes não proferem matemática, nem gastam palavras, preferem concentrar o esforço nos movimentos do seu longo pescoço, uma verdadeira galáxia branca ligada gravitacionalmente a formas secretas de compaixão. Até que a chuva miúda reaparecesse, sentava-me no banco do parque a observar aqueles relatos que vibravam como se fossem um irrepetível amor à primeira vista.

Até que nos encontrámos os dois na cidade de Utreque para ver e ouvir tocar Astor Piazzola e, no intervalo, eu rumorejei-lhe estas teorias idiotas ao ouvido. Ela adorou a ideia de uma compaixão que não se reduzisse ao esquisso “dói-me a dor do outro”. Não é o luto do desperdício que cura a existência, segredou, e, de seguida, agarrou-me no braço e conduziu-me para o palco em contradança sem que as palhetas livres do bandoneón sequer nos vislumbrassem.

A chuva miúda regressaria ao fim da tarde sem um foco definido. Um tango sem o propósito de ser tango para que amar pudesse ser a transcendência dos mundanos. Estava cansado de horas e horas de aulas, mas persistia. Observava cuidadosamente a locomoção dos cisnes e percebia nela cada vez mais uma fala que se desvanece. Como se o dizer do apaixonado fosse a alegria do desperdício, o verbo que desaverba.

Nesse tempo eu fumava cigarros de enrolar, ou seja, fazia de mim uma nuvem ou uma tenaz e manuseava a febre dos objectos metálicos que se transformam em fogo ou nos acessos em labareda da música de Piazolla. O privilégio do fumador é atar os pulmões às suas paixões, respirando os andamentos dos cisnes com a dupla profundidade de um tango. Por isso, cobria a cabeça com o capuz e preferia não subir para o eléctrico. Seguia a pé durante alguns quilómetros pela margem do Canal dos Príncipes, entrava e saía sempre que me apetecia no palco por entre as palhetas livres do bandoneón e lembrava-me demasiadas vezes da história do médico chileno de que, entretanto, me despedira.

(continua)

27 Ago 2020

A palavra e a teia

[dropcap]T[/dropcap]erça-feira, dia 25, no Teatro da Rainha, terá lugar mais uma sessão do Diga 33, as conversas em torno da poesia moderadas pelo Henrique Fialho, e desta vez o convidado sou eu. Imprudência minha em ter aceitado e do Henrique em dirigir-me o convite pois sou um medíocre orador.

Chego depois de uma semana no Algarve, assombrada pelo “esplendor” ártico das águas; mas onde, com um entusiasmo juvenil me apanhei numa actividade que há décadas não praticava: a apanha de conquilhas na maré baixa, única forma exaltante de não pensar no frio. Não as sondava com o pé, drago as areias com as mãos, penetro com os dedos os seus mantos suaves para lhes perscrutar os nós, os bivalves.

Ainda tenciono ler um ensaio sobre a metáfora da filósofo e poeta de Barcelona Chantal Maillard, que me ajudará a aclarar algumas ideias para a conversa, pois tenho muitas afinidades com o que ela pensa.

Mas poderei desde já apontar alguns princípios, os meus “nós”:
– a poesia e a ciência são as duas formas de conhecimento que admitem por atracção e desencadeamento o desconhecido;
– o poema não é uma transcrição de um mundo conhecido de antemão mas sim um processo em que a intercepção e a descoberta andam a par;
– o poeta não escreve só para expressar-se mas igualmente para orientar-se dentro da sua própria vida ;
– a realidade não pode ser postulada sem o esforço simultâneo para a compreendermos, sendo a arte e a poesia, como processos contínuos, um testemunho desse desejo;
– a palavra é na verdade uma fibra e o poema um feixe de fibras que se organiza como uma intrincada rede de densidade semântica. O mais próximo do poema é a teia de aranha, visto que no poema como naquela “o todo está inteiro em cada uma das suas partes” (logrando uma dimensão fractal) e que, igualmente, quando algo toca um fio da teia do poema esta vibra inteira; daí que uma só palavra errónea possa destruir o poema;
– o poema arma a teia para capturar insectos mas a qualidade da atenção que desperta, a intensidade da sua atracção, só eclode quando lá caem pássaros e essa eclosão do inesperado é que abre espaço para o mistério (uma forma de inteligência não circunscrita cujas leis clamam por tornar-se conhecidas) que todo o verdadeiro poema sonda;
– a este “inesperado” que rompe o fluxo chama-se comumente irracionalidade, imaginação, compulsão isomórfica ou revelação – quatro maneiras de designar o mesmo: há níveis diferentes de realidade e modos distintos de percepção duma mesma realidade;
– o realismo, como se diz na Índia, é apenas um dos quarenta modos de decoração da realidade, i. é, a sê-lo não se equivale ao modo restringido e em auto-decapitação como é de uso concebê-lo nas poéticas hoje mais em voga na nossa tradição mas antes como um modo de abrir “poros” na realidade;
– o poema abre “poros” para além da esquadria da retórica e de uma visibilidade à cabotagem;
– um bom poeta aprende a utilizar em seu proveito as forças do acaso para as reenquadrar na sua pauta de referências, não para as sufocar, mas antes como um plinto ou um “acelerador de partículas” e a um ponto que, paradoxalmente, não pareça haver nada de casual na sua obra, nem nenhum elemento gratuito que obscureça a percepção do poema;
– há uma irracionalidade descendente e uma irracionalidade ascendente: Eugenio D’Ors, chama a esta o “nível angélico” (uma espécie de supraconsciência, que material e fenomenicamente é o polo contrário do subconsciente freudiano), embora este possa ter pouco de pio, sendo apenas o acesso a um nível cognitivo onde voltam a re-ligar-se os padrões e pulsa uma nova inteligibilidade da totalidade, que no plano anterior era apenas intuída; admitida a hipótese de que haja devir e seja fito do homem superar-se;
– a um ateu como eu é mais fácil admitir com o Fausto de Pessoa, que os deuses têm os seus próprios deuses, e que no fundo o sentimento do religioso é um saudável princípio de proporcionalidade que o poeta não se deve abster de possuir; no que ajuda ter a honestidade de integrar-se numa tradição e num sistema de “admirações” que lhe dão lastro e perspectiva, sabotando de antemão o seu ego q.b.;
– toda a simplicidade é um resultado e não um postulado criativo; ou seja, é mais fácil a um barroco ser simples quando o texto assim o exige do que a um “militante da austeridade” ser criativo;
– a quantas palavras deve recorrer o poeta, na sua paleta, ou qual deve ser a extensão do seu léxico? As suficientes para lembrar a pertinência com que Wittgenstein observava que os limites do nosso mundo são os limites da nossa linguagem. Se numa cesta de frutos só houver nozes, o nosso conhecimento dos insectos será mais limitado do que se houver um pomar na nossa cesta. É neste sentido que Harold Bloom defendeu, num livro de setecentas páginas, que Shakespeare (que usou quase trinta mil palavras) foi quem “inventou o humano”. Este pôde entender novos e mais subtis modos de relacionamento humano e político e até de afecções sentimentais porque as iluminou pela primeira vez num plano distinto de acções com a amplitude das modulações da sua imersão numa linguagem total;

– “Quando encontro/ neste meu silêncio/ uma palavra/ está fundida na minha vida/ como um abismo”, escreveu Ungaretti, descrevendo com exactidão a minha relação com a palavra: por estar imerso no silêncio e no deserto é-me mais difícil falar do que escrever.

Não sei se vou conseguir explicar estes meus princípios, ou se me evadirei contando histórias.
Fica o esboço.

27 Ago 2020

Os dias não podem continuar

[dropcap]N[/dropcap]athalie Delacroix já sabia muito bem que a tristeza é o céu que se avista da terra quando escreveu o seu romance «Estes Dias Não Podem Continuar». Com apenas vinte e sete anos viu os nazis invadirem a França, a sua mãe morrer de apoplexia e nunca tivera pai. Para piorar as coisas, desde a adolescência que sempre gostara de mulheres que nunca gostaram dela. No seu livro, escreve de modo mais universal: «Não é novidade nenhuma gostarmos de quem não gosta de nós. Foi assim que viemos ao mundo.

A história do mundo é a história de alguém que não de outro. Foi assim com Eva e Adão, embora poeticamente tenham falado de uma cobra, e foi assim com deus e os homens, embora estupidamente tenham falado de livre arbítrio.» Embora se trate de um livro político, no sentido em que fala da ocupação alemã em França, de uma mudança impensável no mundo – «Só faltava agora começarmos a não podermos sorrir uns para os outros, a não nos podermos abraçar. O medo não pode ser a coleira com que alguém nos leva à rua […]» –, é acima de tudo um livro que fala da impossibilidade do humano ser feliz. Escreve à página 56: «Há apenas três modos de se ser escritor e o resto são subdivisões: aqueles que escrevem porque gostam muito de si mesmos; aqueles que escrevem porque se detestam; e aqueles que escrevem em busca de uma redenção de não gostarem de si. Os primeiros são alucinados, os segundos realistas e os terceiros ingénuos. Infelizmente suspeito fazer parte deste último grupo.» Nathalie, como é sabido, morreria numa rua de Par Há uma passagem muito conhecida deste livro de Nathalie – como ela é nomeada em França –, que Beauvoir costumava citar: «Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar o sexo de um beijo bom que nos fosse dado? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar a cor da pele cujo toque nos extasiasse? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos capazes de identificar a religião de alguém que dissesse “amo-te”? Será que de olhos fechados e coração aberto seríamos realmente capazes de viver?»

Não se entende bem porque um autor passa a não ser lido, esquecido. E menos ainda quando ele tem tudo o que precisamos, não apenas o nosso tempo, isso é evidente, mas também os nossos corações. Nathalie Delacroix tem tudo o que precisamos de ouvir, mas também tem muito do que não gostamos e esse é o problema, principalmente nos dias de hoje onde tudo precisa «ser sexy» para ser escutado ou visto. Nathalie não fala apenas dos escritores de modo rude e desencantado, fala também de nós, ao falar dela. No seu livro acerca de Nathalie, Beauvoir escreve uma passagem das Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, «A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento da linguagem.», à qual Beauvoir acrescenta: «e assim também a vida de Nathalie.»

«Os Dias Não Podem Continuar» é uma espécie de auto-ficção em que a autora proclama não apenas o fim do mundo – evidente ao tempo da escrita com o nazismo e o comunismo –, mas a completa ilusão que temos acerca do humano. Escreve: «Como não quer saber quem é, por medo, por suspeitar que há um mal terrível que o habita, inventa tudo o que pode para esquecer não apenas a sua vida, mas o próprio mundo. Os humanos os futuros dinossauros.»

Há páginas do livro em que vemos a rapariga que Nathalie amava: «Jacqueline trazia sempre os seus olhos azuis a combinar com os cabelos loiros caídos sobres os ombros e sobre a testa. Abria um sorriso quando me via e dizia com aquela sua voz doce, que não existe: “Olá, bela!” E por momentos o mundo deixava de ser o que era. Eu mesma deixava de ser o que era para ser o que via nos seus olhos, no seu rosto, no seu corpo. O mundo transformava-se através da beleza diante de mim. Só se vê o mundo se o transformarmos. E, nesse tempo já o sabia, o amor é o grande transformador.» Mas não nos enganemos. O amor, embora transformador, é raro e não dura. Escreve: «Jacqueline durou o tempo de um fósforo.»

Nathalie esforçava-se por não se enganar a si mesma, isso perpassa por todo o livro e é difícil para nós leitores estarmos constantemente a lembrarmo-nos de quem tentamos não tentamos procurar, isto é, de nós. Leia-se esta passagem à página 134: «E seria possível que tentássemos de verdade ver quem somos, se não investigamos com seriedade as palavras que usamos, se não sabemos o que elas querem ou podem querer dizer? Que queremos dizer quando dizermos “amor”? Que queremos dizer quando dizemos “detesto”? Que queremos dizer quando dizemos “conheço bem”? E não me refiro a falar com os outros, que outro dê uma conotação diferente da minha, refiro-me a mim mesma, a quando penso para comigo acerca do que penso.» Como também outro filósofo escreveu acerca dela, E. M. Cioran: «Nathalie aproximava-se de Kierkegaard, mas sem Deus. Aproximava-se de si mesma sem Deus e consciente de não saber quem era.

Não procurava sequer, como Kierkegaard, ser honesto, procurava a solidão perfeita. Que conseguiu nas páginas do seu livro.»

«Estes Dias Não Podem Continuar» não é apenas um livro sobre a ocupação nazi, é fundamentalmente um livro sobre a ocupação do humano, pela indiferença, pela incultura, pelo desconhecimento e, desconfia-se, pelo contínuo crescimento desta ocupação que, contrariamente à nazi, parece não ter fim.

26 Ago 2020

Brevíssimo ensaio sobre o ciúme

Este fogo
Que só com fogo
Se pode apagar
Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu

 

[dropcap]H[/dropcap]á pouco tempo aconteceu isto: um jantar de amigos a decorrer segundo todas as normas de segurança, pelo menos aparentemente. No essencial, que é a amizade e a alegria, as normas foram mandadas às urtigas que não há máscara que sustenha este contágio benigno. Mas divago. Um jantar, dizia. A dada altura aproxima-se da nossa mesa um cavalheiro que saúda todos mas em particular a mulher de um dos amigos que jantava à minha frente. Trocaram meia dúzia de palavras, um sorriso e o homem despediu-se e foi à sua vida. Mas eu, que estava à frente do casal vi: a face em chamas do meu amigo, o olhar rútilo em direcção ao estranho, dardejante, violento. Espantei-me, nunca o tinha visto assim. Perguntei a quem estava a meu lado se tinha reparado naquela extraordinária reacção de um indivíduo que eu tinha como pacato e fleumático. «O tipo que veio aqui dizer olá foi namorado da mulher dele. Aquilo que viste são ciúmes».

Ciúme! Que emoção injustamente esquecida, filtrada como podemos pelas nossas convenções e educação. Algo que parece anacrónico e remoto. Mas existe, oh se existe. E toca a todos, direi. A minha amaldiçoada memória musical atacou de imediato, lembrando uns versos de Cruel dos Prefab Sprout, talvez uma das melhores canções sobre essa inquietação em labareda e a forma como lhe tentamos fugir sem êxito. Diz o narrador: “I’m a liberal guy, too cool for the macho ache” e daí segue para a afirmação de que apesar disso não suporta a visão da mulher que ama a dar atenção a outros.

Há uma longa herança de anatomias do ciúme. O que não existe é muitas formas magnificas de o confessar. Othello de Shakespeare leva a coisa ao limite e pelo caminho é um aviso ao que somos como humanos – mas esta conclusão é a que podeis esperar deste nem por isso solar cronista.

Vou talvez dizer algo que não vos importa mas que cabe aqui: o amor não é livre, caramba. Implica desejo, amizade, toque, proximidade e sim – posse. Posse recíproca, acordada, enfim não sei. Tudo menos livre no sentido de “vai e faz o que te apetecer”. Quando esta formulação aparece quem já viveu um bocadinho sabe que não é um convite mas sim um desafio.

Querer que alguém que amamos nos dedique toda a atenção é parvo e pode ser perigoso. Se realmente amarmos esse alguém o que nos pode confortar e envaidecer é justamente o contrário: que os outros se encantem com o nosso ser amado, que o deixemos ser o que sempre foi e – eis o milagre! – que depois dos olhares regresse para o pouco e tudo que somos. Se é fácil? Não. O ciúme é um exercício de insegurança e de vaidade que afecta todos os que amam com variados graus de intensidade. Mas é um instinto primevo e o desgraçado do bardo inglês percebeu-o: o monstro de olhos verdes. Não faz distinções nem poupa ninguém, mesmo o que lhes querem fugir, por mais eruditos e ponderados que sejam. Vede como a história do grupo literário de Bloomsbury correu. Ou a patetice do “amor livre” da contracultura beat e hippie. Ou todas as tentativas civilizadas e cultas que o mesmo tentaram professar. Nem Byron, nem Casanova nem os libertinos nem mesmo os Cínicos de Diógenes conseguiram escapar a esta jaula gentil que o amor traz. Só que não é a jaula que importa mas sim lidar com as chaves.

A ilusão da fronteira do amor é desenhada pela forma que se ama. Não há melhor nem pior e nem sequer aquela que parece mais descontraída é a menos possessiva. Por mais vividos, urbanos e mais coisas que sejamos o que tememos sempre é a perda, neste caso de alguém que amamos muito. Ou seja: muito parecido com o provável sentido da vida.

26 Ago 2020

Indie Lisboa 2020 / 17ª Edição

[dropcap]E[/dropcap]ntre o dia 25 de Agosto e 5 de Setembro esta edição do Indie Lisboa leva às salas dos cinemas S. Jorge, cinema Ideal e Culturgest, 240 filmes seleccionados de cinematografias “periféricas” à grande indústria americana.

Se é demonstrável que o cinema contemporâneo não vive a dicotomia indústria versus arte, é igualmente demonstrável que fora da majores da grande indústria dificilmente os orçamentos permitem que se ultrapasse o regime da contenção, o que nem sempre é necessariamente mau, diga-se.

O cinema Indie, é esse vastíssimo universo de filmes produzidos fora dos grandes orçamentos e também, da pressão de sucesso de bilheteira da grande indústria.

Neste dia de abertura destacamos os filmes da secção Silvestre, assim apresentada pela organização: “… obras de jovens cineastas e autores consagrados, esta secção competitiva encontra na singularidade a sua norma. Mostramos sobre a asa do Silvestre, obras que rejeitem fórmulas consagradas, que despertem novas linguagens e cuja rebeldia espelhe o espírito do festival” e um documentário na secção IndieMusic.

À sala Manuel de Oliveira no cinema S. Jorge, chega à tela, a longa metragem documentário State Funeral de Sergei Loznitsa, realizador Ucraniano. O filme teve a sua estreia mundial a 6 de Setembro de 2019, no Festival de Veneza .

A morte de Josef Stalin em Março de 1953 foi um acontecimento de dimensão planetária, o líder da “revolução proletária internacional” tombava na efemeridade da universal condição humana. Como se sabe, as narrativas dos homens precisam dessa força icónica que ata o humano, mesmo quando com fios que se corroem com as sucessivas abordagens dos tempos que vão chegando, a dimensões próximas do mito. É essa não só a razão das histórias da história, como um dos motivos do fascínio perante a tela cinematográfica. O poder e os homens de Estado precisam e são investidos colectivamente nessa narrativa, a dos homens condutores de homens, gigantes na banalidade quotidiana. Todo o funeral de um homem de estado é investido formalmente nessa carga simbólica. Quando se trata de alguém que liderou uma visão e organização do mundo com a dimensão de uma União da Repúblicas Socialistas Soviéticas, essa morte é a ascensão ao território do mito, um híper acontecimento político.

Sobre o filme, quando da estreia em Veneza, Anton Dolin escreveu na revista Meduza: “Este funeral é uma produção notável, uma performance grandiosa. Como se costuma dizer hoje, envolvente. Os espectadores são seus participantes de pleno direito, sem os quais a acção não teria ocorrido. O público na sala onde o filme de Loznitsa é exibido também. Stalin transformou-se num artefacto, ele está prestes a se tornar uma múmia, para sempre encarnado de um objeto físico em um símbolo. Mas as pessoas vivas estão olhando para ele, de quem nada sabemos, mas cuja realidade está além de qualquer dúvida. Embora os motivos permaneçam incrivelmente vagos: e se eles não sofrerem realmente, e se estiverem interiormente regozijando-se? Se disserem adeus não ao seu amado tirano, mas à era da tirania que vai embora sem deixar vestígios? No final, nós também ficamos hipnotizados por essa ação sem pressa, esse ritual sagrado.”

Trabalho ficcional construído com recurso ao arquivo onde os procedimentos desde o anúncio da morte às cerimónias do mega funeral de estado são tema e matéria fílmica.

Antes, às 19 horas, também na mesma secção e na mesma sala, é exibido o filme “ La femme de mon frére”, ficção, 107 minutos, uma produção canadiana realizado por Monia Chokri que, conjuntamente com Justine Gauthier, também assina a montagem. O filme tem nova sessão no dia 3 às 21h30m no Grande Auditório da Culturgest.

Foi o filme de abertura no Festival de Cannes 2019 da secção “ Un Certain Regard”, onde foi vencedor no júri “coup de coeur”. Já exibido no Festival de Hamburg, Motovun Film Festival, é a primeira longa metragem da realizadora. A crítica em Cannes não efusivamente favorável, construído numa sucessão de skectchs é um filme que chega a Lisboa e que desperta curiosidade. Se o jornal “Le Figaro” lhe atribui uma estrela, e o L´Humanité duas, os Cahiers du Cinema , Paris Match, Liberacion, Elle, ou Les Inrockuptibles atribuíram 4 . O filme é apresentado como: “… inscrito na tradição do filme familiar quebequense, mas também na subtileza e cosmopolitismo de autores como Noah Baumbach ou Greta Gerwig, esta é a comédia dramática acerca de uma jovem já não tão jovem, recém doutorada, que, sem planos de futuro, procura compensação emocional na relação com o seu irmão. A ironia constante é a grande arma de boa disposição maciça, mas, através da alternância entre o cómico e a dor verdadeira – algo que a adtriz Anne-Élisabeth Bossé domina na perfeição – as personagens geanham outra vida e profundidade.” (Carlos Natálio – catálogo do festival) . Um filme e uma actriz a ver nesta ou noutras oportunidades.

Ainda nesta noite, na sessão IndieMusic, secção com filmes que trabalham temas de músicos e bandas, e os contextos políticos e sociais em que existem, sempre muito do agrado do público, chega ao ecrã do grande auditório da Culturgest às 21h30m, o documentário Billie de James Erskine. É uma produção do Reino Unido de 2019, 96 minutos.

Billie Holiday é uma lenda do jazz norte-americana.

No final dos anos 60, enquanto preparava uma biografia, o jornalista Lipnack Kuehl gravou mais de 200 horas de entrevistas com outros músicos, familiares, amigos e amantes da cantora. James Erskine com este material, registos de performances, e outras imagens de arquivo, constrói um filme sobre a vida de Billie Holiday . A cantora é uma das mega vozes do século XX. Nasceu em 1915, viveu em excesso e euforia, em 1959 era admirada por Duke Ellington, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald.

Vamos acompanhar com atenção a edição do Festival que se apresenta como uma “ aposta na exibição de obras que preencham o vazio da circulação cinematográfica moldado pela produção mainstream que domina o mercado.” Assunto nada displicente e que nos merecerá a devida atenção.

26 Ago 2020

Tudo é montanha para o homem se

Palhavã, Lisboa, segunda, 10 Agosto

 

[dropcap]S[/dropcap]ujeito que sofre a acção do verbo, assim apresenta a senhora gramática o paciente. Segundo a raiz latina é aquele padece, que sabe esperar e sem pressa, por exemplo agudo, os efeitos da passagem do tempo. Conformado e submisso, isso se espera final e oficialmente daquele que está sob tratamento médico, dentro ou fora do hospital. Ser paciente implica serenidade, a aceitação não apenas do que acontece, mas daquilo a que o sujeitam. A gente sujeita-se. O doente perde, além de saúde e bem estar, direitos. Perde, além de massa muscular por estar quieto, parte da matéria que o faz sujeito. Com simpatia, logo o infantilizam: muda o tom de voz com que se lhe dirigem, os gestos de afecto ou pena com que é dirigido, a que se deve somar os exames e testes intrusivos, a entrega a conta-gotas da informação, os longuíssimos silêncios. Talvez não possa ser de outro modo, para que o tratamento seja exacto há que esculpir em cada o objecto. O ser demasiado humano torna-se intratável, só lhe acedemos pelo amor. O amor cura, mas a medicina não é amante. A actualidade, tão rica e com protocolos de resposta tão pouco subtil, faz-nos sujeitos passivos, tombados na declinação desafinada do verbo obedecer. Obediência é maca de urgências, cama de hospital, leito de cuidados continuados. Pacientar, a isso estamos condenados. Não somos todos e por completo doentes, ainda assim. Já pacientes será inevitável: o tempo não castiga, mas mastiga.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 12 Agosto

Creio que nunca como hoje se produziram profissionais da indignação, mestres da amargura, agentes do contra. Mas contra quê? Tudo o que mexe. E a gente gosta. Habituados que fomos à sujeição durante décadas a fio, a gente bem pensante passou a gostar de valorizar quem se diz do contra. Só porque sim.

Contudo, os tempos mudaram, desde logo nas consequências para quem resolve desafinar. Hoje não há coro nem harmonia, e ninguém sofre por desatinar sem razão nem objectivo. Punk’s not dead, mas envelheceu muito e tristemente. Seria longa a lista de exemplos, mas peguemos-lhe pelo humor, aliás território seríssimo e habitual. A propósito do centenário do jornal anarquista A Batalha, no ano anterior ao da desgraça, a Biblioteca Nacional organizou exposição e nesse âmbito foi editado este «Renda Barata e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha» (ed. Chili Com Carne/A Batalha), onde se reúne em pequeno formato uma quase centena de trabalhos daquele grande do desenho de humor. Para se erguer uma bandeira, por estes dias, há logo que afiar o mastro e assim o tornar lança. António Baião, organizador e prefaciador, trata de disparar pontos para os is: «as várias monografias acerca da vida e obra de Stuart, citadas neste intróito, pecam todas pela quase total omissão da sua passagem pelos periódicos libertários.» Gosto logo da «quase total», no fundo a gente gostaria que fosse toda, mas em não sendo é quase. Faltam parcelas na totalidade. E uma delas, um dos alvos da diatribe, foi organizada pelo autor destes linhas e não ignora a passagem do desenhador pelas páginas daquele jornal («Stuart – A Rua e o Riso», ed. Assírio & Alvim). Só não afirma o indefensável: que foram fulcrais na obra do autor ou na identidade do famoso periódico. Stuart assinou milhares de desenhos e por todo o lado, desenhou uma cidade e as suas personagens, obedecendo muito libertariamente apenas a apetites e outras necessidades, sem que se detecte programa. Mas nada disso interessa, a este amargo radicalismo. Começa sempre pela vitimização. O anarquismo é tão maldito que ninguém lhe liga nenhuma, ainda que aconteça quando uma instituição formal da memória do Estado celebra o jornal, mas não basta a força de uma ideia. Respira-se mal na trincheira. O livro vale pela recolha «quase total» dos desenhos, sem grande investimento na qualidade das reproduções. Mas pouco acrescenta. Nada nos diz sobre a autoria das legendas, se pertencem a Stuart ou à redacção, como era prática comum. Não aborda as diferenças de estilo, quando ali se encontram alguns dos mais negros desenhos de Stuart, de par com outros que se limitam ao espelhar de um quotidiano citadino e burguês. Stuart, muito dado ao gozo, havia de se rir disto, de o fazerem bandeira quando era do vento (algures aqui na página vai um dos seus cartoons, datado de 1925 e tendo por título «Radicalismo», onde alguém oferece uma coroa em funeral de republicano: «É por essa falta de convicções que isto está como se vê!»).Triste me parece este modo de operar, vendo inimigos em tudo o que mexe, em nome de ideias que até podem ser generosas. Para os profissionais da indignação, tudo se resume ao gesto desembestado. Que jeito dá ser sempiterna vítima, para estes arremedo de pensamento!

Apesar disto e do mundo, apesar dos pesares, perante este modo pesado e mastodôntico de ver, rio-me (que belo verbo que implica o sujeito na reflexão!), na boa companhia de Stuart e Ramón [Gómez de la Serna], no seu gozoso «Humorismo».

«Lo que de mastodónico y aplastado tiene el mundo, sólo lo compensa la mirada humorística. Todo es montaña para el hombre si el hombre no es humorista. Frente al humoristo, que debe ser una maravilla de dosificación — y en eso entra el estro poético del humorista y sy verdadera vocación –, está el amarguismo.

«El humorista debe cuidar, por eso, de que ni el cómico ni lo amargo domine su creación, y una bondad ingénita debe presidir la mezcla. Al humorista ha debido comverle lo que ha escrito, aunque a los otros les haga reír o les anonade con su burla.

«El amarguismo hace doloroso el humorismo y antipático, e es obra del mal genio, en vez de ser obra del mejor genio».

Horta Seca, Lisboa, quinta, 20 Agosto

Amarga justaposição: o dia em que nos chega finalmente a esmola a que o Estado chamou apoio, em processo desajeitado e amorfo, corresponde ao pagamento de famigerado imposto e acerta em cheio no valor. De um bolso para outro, portanto, mas do mesmo casaco. A intempérie vai continuar a marcar-nos a carne. Obrigadinho é o que eu lhe desejo!

26 Ago 2020

Derradeiro e único

[dropcap]G[/dropcap]abriel Fauré é legitimamente considerado o compositor francês mais avançado da sua geração. O seu estilo musical altamente personalizado, reflectido em melodias modais cheias de alma e numa linguagem harmónica colorida, influenciou bastante as gerações de compositores subsequentes. Acima de tudo, Fauré era um professor venerado e um administrador proactivo em nome da música. Tornou-se professor de composição no Conservatório de Paris em 1896, tendo como alunos, entre outros, Maurice Ravel, Georges Enescu e Nadia Boulanger. E quando foi nomeado director do Conservatório em 1905, reformou ardentemente o currículo dessa instituição musical de maior prestígio na França. Durante grande parte da carreira composicional de Fauré, a música para e com o piano ocupou o centro do palco.

Para a sua composição final – o Quarteto de Cordas em Mi menor, Op. 121, o único quarteto de cordas que compôs, concluído em 1924, pouco tempo antes de falecer com 79 anos, o compositor afastou-se do seu instrumento favorito, o piano, e, em vez disso, escreveu música para o género prototípico de agrupamento da Música Clássica, quarteto de cordas. Ravel tinha-lhe dedicado o seu Quarteto de Cordas em 1903 e ele e outros incitaram-no a compor o seu próprio quarteto; Fauré declinou alegando que era muito difícil. Quando finalmente se decidiu a compô-lo, fê-lo com receio. A obra foi composta em Annecy-le-Vieux, em Paris e em Divonne-les-Bains entre Setembro de 1923 e Setembro de 1924. “Iniciei a composição de um quarteto de cordas, sem piano”, Fauré escreveu à sua mulher, que se encontrava em Paris, a partir de Annecy. “Este é um género tornado particularmente famoso por Beethoven, e por isso quem não seja Beethoven tem pavor de o fazer”.

O Allegro de abertura proporciona um início tranquilo e contemplativo banhado na linguagem melódica e harmónica tipicamente etérea de Fauré. Um diálogo musical tranquilo entre o primeiro violino e o violoncelo domina grande parte deste andamento, senão toda a composição. Breves intensificações da linguagem musical à parte, com o violoncelo incitando a conversa musical, este andamento nunca se desvia de um estado de emotividade contida. A estética musical contemplativa introduzida no primeiro andamento é ainda mais ampliada no lento Andante, já que Fauré fornece um coro instrumental de lamento. Na Allegro conclusivo, que combina as funções de scherzo e finale, o violoncelo canta uma melodia insistente, acompanhada por cordas superiores em pizzicato. Na verdade, o acompanhamento de pizzicato fornece o pulso musical a grande parte do andamento, permitindo apenas uma explosão emocional singular nos compassos finais da peça.

A obra tem sido descrita como uma meditação íntima sobre as últimas coisas, e uma obra extraordinária, independentemente do ponto de vista, etérea e de outro mundo com temas que parecem ser constantemente ser puxados “em direcção ao céu”. O quarteto foi estreado após a morte de Fauré, pois o compositor declinou uma oferta deste ser executado em privado para si nos últimos dias, pois a sua audição tinha-se deteriorado ao ponto dos sons musicais soarem horrivelmente distorcidos aos seus ouvidos.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: String Quartet in E minor, Op. 121
Leipziger Streichquartet – Musikproduktion Dabringhaus und Grimm, 2007

25 Ago 2020

Respiração

[dropcap]P[/dropcap]ara o pensamento arcaico a sede das emoções e da consciência era o diafragma (R. B. Onians 1951). Não era o coração. Muito menos o cérebro. Para os velhos estoicos, o “eu” estava localizado no externo, porque um grego gesticula como qualquer mediterrânico e toca com o dedo no externo quando diz eu ou bate com a mão violentamente no peito para se revelar corajoso. Para nós, contemporâneos, o coração está arraigado nos nossos idiomas. Aprendemos coisas “de cor”, usando a palavra latina no original para coração. Alguém tem bom coração. Há quem não tenha coração. Acedemos ao passado pela memória, mas quando queremos entrar por ele adentro é pela re-cor-dação, um modo de reverberar o coração. O coração bate rápido e depressa com medo e na excitação do amor. Cai-nos o coração ao chão, quando ficamos para morrer, pelo susto que apanhamos. O valente tem coração de leão. Os santos aproximavam-se do santo dos santos com o coração nas mãos, como oferta, símbolo vivo da vida. A simbologia do coração foi destruída (Sloterdjik 1988) com o advento da anatomia contemporânea. Passamos a falar de “máquina”. A metonímia faz perceber que o coração perdeu a riqueza semântica capaz de significar o aprender, o ficar em pânico, sentir-se apaixonado, lembrar-se do passado, ser corajoso, expor-se vulneravelmente à fé em Deus.

Agora, o batimento cardíaco, a pulsação, o ritmo, são interpretados de acordo com a metáfora da máquina como se o coração fosse um motor, com peças substituíveis. O próprio coração pode ser substituído. Não é pessoal nem intransmissível. Já não é pessoal. Lá não estou eu. Nem a quem pertenceu. Um dia poderá ser produzido por material ainda mais consistente do que a carne humana, talvez. Vemos o “coração” como objecto, tal como o coração é, sem aura pessoal, sem metáforas nem símbolos. O ganho claro e maravilhoso da ciência é a perda da metáfora. Onde estou eu senão no coração. A que chamo eu coração então?

Para o pensamento arcaico, era no diafragma que se situavam as emoções e a consciência. Não é metafórico também este pensamento? O que é que eles queriam dizer com isto? No oriente ainda há uma atenção dada à respiração completamente diferente da que lhe damos no ocidente. Os guerreiros árabes antes do combate estavam um dia inteiro a fazer colectivamente hiperventilação. Para se perceber o estado em que ficavam, experimentemos inspirar pela boca e expirar violentamente pelo nariz durante umas 20 vezes. Ficamos embriagados. A oxigenação transtorna. O sangue transforma-se. O batimento cardíaco altera-se. Se googlarmos “The Iceman”, verificamos que Wim Hof tem o mesmo método de respiração com preparação para mergulhar nas águas frígidas que congelariam qualquer um. A respiração Luta/Fuga (ofegante) dá lugar à respiração Sossego/Digestão. O controle da respiração tem de ser feito consoante a situação. Se um perigo nos aparecer não vamos querer respirar como o fazemos depois de um almoço tradicional de domingo ou a dormitar em frente à TV. Se quisermos adormecer, não vamos querer ter uma discussão acesa. Como inverter as respirações? O ponto é este. No controlo respiratório, na sua plasticidade, é possível alterar o estado de espírito.

A palavra para espírito em grego diz-se pneuma, sopro. A vida para os gregos era um sopro. Todas as formas de respiração não são interiores apenas. São o nosso contacto com o mundo exterior, com a atmosfera, com o ar que respiramos. O ar está em nós e fora de nós. Circula através de nós. Inspiramos oxigénio e libertamos óxido de carbono. A respiração tem uma inspiração que não pode ser infinita e uma expiração que não pode ser infinita. Se inspirarmos e não expirarmos ou se expirarmos e não inspirarmos, morremos. É simples.

Qualquer situação tem o seu modo passivo correspondente de respiração. Foi isso que o pensamento arcaico percebeu. No diafragma manifesta-se exteriormente o modo como alguém lida com a situação. Não há interior nem exterior. O ser humano é atmosférico. Há bafos de sorte e podemos ser bafejados. Há algo que “cheira” bem ou mal, que não nos cheira. Sopramos para arrefecer ou bafejamos para aquecer. A palavra para alma em grego, psychê, quer dizer refrescar, sopro vital, dentro de cada um de nós e a envolver-nos a todos nós. Respiramos de alívio, depois de termos ficado sem respirar. Caímos em situações de cortar a respiração. Expiram prazos. Nós próprios entre a primeira inspiração e a última expiração, datamos a entrada do espírito e a saída do espírito.

Deus, dizem, não se manifesta no trovão, nem na tempestade, nem no tremor de terra, nem no fogo, mas no “murmúrio de uma leve brisa”. (1 Reis 19:12).

24 Ago 2020

Dia acima

[dropcap]T[/dropcap]odos os dias um estado inicial. Uma exaltação de sentidos a reter. A rever. A esquecer ou a ignorar. A libertar. A procurar. Uma estrutura e tudo reside aí, mesmo no mistério do caos. E até para as leis da gravidade há um antídoto que nos protege de afundar terra adentro, forças em equilíbrio. Sobra o etéreo mas férreo domínio das ideias. Como perscrutar os pontos cardeais. Uma orientação física no universo de extensões em que se distende o pensamento. Como viadutos sobrepostos.

O que se procura em frente. Quando se caminha – foge. A fuga para a frente, é ter o acordar congénito de todos os dias. Temer a queda. Esquecendo que um percurso, como um passado estimado ou não, retoma o seu lugar de partida, onde chega por inerência do que se é e da eterna questão que se revolve por detrás de brumas, mas volta. Volta irreversivelmente em qualquer curva distraída. Às vezes como uma terra estranha. E lastro, esse passado, mas necessário à definição de futuro. De sentido. Sem peso a mais nem a menos.

Sempre esta impressão de que é ascendente, o dia. Como a acompanhar o sol na sua ilusória subida no horizonte, levando consigo a inclinação das plantas, porque é natural e o olhar de algumas. Uma inclinação que dificulta, ou a subida para uma ideia acima e uma etapa a conquistar. Difícil. Carregamos sobre os ombros o peso de tudo o que temos e tudo o que não temos. Dos que nos amam e dos que não nos amam.

Dos que nos respondem e dos que não nos respondem. Do que fizemos e do que não fizemos e de uma relação estranhamente aleatória entre as coisas e a reacção do mundo a umas ou outras. Num requebro amargo, como ombro amigo, de vez em quando, penso nos que se recusam a perdoar. O que lhes fizemos e a si próprios o que nos fizeram. Neste mundo de humanos e de ideias. Os seus duplos em palco ou sombras produzidas para dentro. Anjos que se recusam a salvar ou que se lhes acalme as feridas. Não são anjos, simplesmente dores. E nenhum anjo gosta de as ser, nem o humano de as ter.

O mito do peso. Do que é árduo de levar e do esforço sem recompensa. De novo o Sisifo. E a pedra que carregamos dia acima. Com o peso dos sentidos e da procura obsessiva mas também o deslumbramento de encetar o dia novo das mesmas questões, com a possibilidade de um olhar lavado. Pequenas tonalidades a diferenciar uma cor forte da véspera. O que parecia definitivo, a mudar com a luz, a diluir com uma lágrima, que mancha inesperada a forma global. Uma nódoa que desfeia. Poeiras que atenuam. Um redundante início, como uma emenda ao inevitável. As inércias inalteráveis e as predisposições difíceis de mover. Ou em face de Jano, deus das transições, a contemplar o que ele vê: passado e futuro. As portas, sempre entrada para o que se entrevê ou saída em renúncia. Um início ou um fim. Um olhar como da primeira vez. Porque da véspera não transitou um sentido.

O meu ombro está carregado. É isso. Do peso que obriga a procurar. E peso é essa força da gravidade boa, que nos mantém ligados a terra. Comprometidos.

Um novo registo: peso e medida. O que é o peso que nos arrasa os ombros e nos curva para a frente e dói. O que é a medida certa. Um artefacto de alumínio, de boca em corte oblíquo e que se enterra fortemente numa saca de arroz para dizer um litro e o que pagar por um litro. De assentimento e continuação De lealdade. De amor ou amizade.

E o que são dois pesos e duas medidas, nesta economia de trocas? Há uma ética. Estruturas, preconceitos. A diferença entre estar fora ou por dentro a subverter. Ou, afinal e dizendo melhor, alicerces. Que nos ajudaram a construir e que é necessário verificar. A sua própria corrosão a abalar o todo. Existem sempre. mas temos talvez desonestidade afectiva. Podemos deixar de parte preconceitos éticos e analisar. Quem tem, por pequena que seja, uma dose de poder, esquece o poder que esse poder tem, ou não esquece, e faz justiça ou injustamente o usa. Com critérios restritos e orlas que se quedam de fora. Favorecimento ou prejuízo. Num exercício simultâneo de coragem e cobardia. A coragem de fazer bem fazendo mal, a coragem de fazer mal e a cobardia de não fazer bem. Ou de não fazer bem nem mal. O que às vezes é bem e outras vezes é mal. É arrasador verificar até à profundidade do sentir. O que se desculpa e o que se institui como culpa.

Um estudo diário que sintetiza as estruturas confortáveis e estabelecidas. Ética, moral, todos os dogmas, egoísmos. Afectos. Um Deus que não ajuda mas pune. E à sua semelhança um mundo que parece castigar diariamente, por causa desconhecida. E nos devolve a desconfiança de que algo teremos feito mal. A culpa desde os confins do tempo, que advém desta procura, destes erros ou de um gesto sem intenção. Mas nenhum gesto é inocente. Nenhum vazio. Rebelamo-nos desde cedo. Tudo é útil, nos sentidos que nos propõe e tudo é contestável. Há que fazer as contas. Escrever o sentido. Caminhar sobre ele.

Acordo de madrugada e abro a janela às flores que me alegram os olhos e me prendem. De uma utilidade por defeito e que não é sentido nem ofício, mas a inerência do seu papel no equilíbrio de tudo. Essa utilidade que não temos. E se não temos, não há equilíbrio no desgaste que produzimos ao todo.

Aquieto-me. Sinto. Faço isto todos os dias muitas vezes. É talvez só isto que faço e o resto são intervalos. Ficar quieta e pensar que é isto viver. Olhares circulares por aquilo que me cerca, as flores, as dificuldades das minhas flores, o mistério das portadas a regular o sol que até ele pode ser demais neste habitat construído para descansar os olhos. Distrai-los, serenar a respiração que tende a sinais de inquietação. Paro todos os dias porque algo em mim dispara todos os dias. Um disparate de sentir. Uma pele mista de zonas frágeis e de carapaças. Porque, por mais que acorde de madrugada, com o dia ainda a custar a romper das sombras do sono, tenho sempre à beira a desconfiança de que o dia traz a dúvida de sempre. Como resolver a questão? A do sentido e da inutilidade de tudo. Esta procura de definição de sentido. Assim uma coisa como: temos que ser livres, ser felizes. Úteis. Por exemplo.

24 Ago 2020

Os portos francos de Macau

[dropcap]A[/dropcap]inda antes de João Maria Ferreira do Amaral ser nomeado Governador-Geral da Província de Macau, Timor e Solor, o que ocorreu a 22 de Dezembro de 1845, já Macau no mês anterior se tornara porto franco. A 20 de Novembro, “por Decreto da Rainha a Senhora D. Maria II, referendado pelo Ministro da Marinha e do Ultramar Joaquim José Falcão, foram declarados francos ao comércio de todas as nações os portos de Macau, – tanto o interno, denominado do rio, como os externos, da Taipa e da Rada, – podendo ser neles admitidas a consumo, depósito e reexportação todas as mercadorias e géneros de comércio, sem pagamento de direitos”, segundo Marques Pereira. Assim, Ferreira do Amaral trazia já como propósito fazer uma fortificação na Taipa quando tomou posse a 21-4-1846.

A Taipa, Tanzai para os chineses, era então formada por duas ilhas, Taipa Grande separada da Taipa Pequena por um canal de mar. O Governador Ferreira do Amaral encarregou o então Capitão do Porto, Tenente Pedro da Silva Loureiro, para levar a cabo a construção da fortaleza na ilha da Taipa Pequena, de frente para a Fortaleza do Bom Parto em Macau, e localizada “na Xisha, ou Ponta do Areal Ocidental”, como refere Pedro Dias, que lembra, “Na verdade o Governador José Gregório Pegado tinha iniciado em 1842 conversações com o Vice-Rei de Cantão, ou alto-comissário imperial Ki-Ying, com vista à ocupação e posse efectiva da ilha, sendo tal desiderato facilitado pelo governante cantonense. Três anos depois, o Governo de D. Maria II declarou o Porto da Taipa como porto franco, tal como já era o de Macau” desde 4-10-1844. O porto da Taipa era onde hoje está o Campo da Corrida de Cavalos, refere Domingos Lam. Ferreira do Amaral em 1847 tomou posse da ilha e “decidiu-se pela efectiva ocupação, com a construção de uma fortaleza,” onde foi hasteada a bandeira portuguesa a 9 de Setembro desse ano.

A Taipa, cuja entrada se assemelha a um semicírculo, era designada na dinastia Ming por Long Wan e o Mou Tai Miu, construído em 1488 e dedicado ao deus da Guerra, era o templo mais antigo da ilha.

Nos finais do século XVII outra referência à Taipa, quando a população da ilha recebeu mal o ancorar de um barco inglês. Passou a ser porto de aguada aos navios que daí seguiam para em Cantão comerciar, quando em 1717 o governo chinês proibiu os juncos dos mercadores chineses de comercializarem com estrangeiros, exceptuando Macau, o que traz à cidade um novo dinamismo. Benjamim Videira Pires refere, em 1717 “a Cidade do Nome de Deus recebeu, transmitida pessoalmente pelo Vice-rei de Cantão, a seguinte ordem do Imperador Kang-shi (Kangxi, 1662-1722): . Por influência, contudo, do jesuíta, Pe. André Pereira, conseguiu-se isentar Macau dessa lei, facto que trouxe, de novo, à Cidade, durante quatro anos, o monopólio do comércio externo da China, sobretudo com Batávia”. Já Pedro Dias ressalta, nesse ano, a ordem do Imperador da China “mandando que todos os navios que desejassem subir para Cantão, até ao porto de Whampoa, tivessem que embarcar um ou mais intérpretes e um piloto nesta ilha, autorizando simultaneamente que os habitantes locais fizessem trocas comerciais com os passantes.”

“Inicialmente, antes dos portugueses se interessarem em ocupá-la, só era habitada por pescadores congregados em pequenas aldeias, como as de Linjiacun e Zuojiacun”, prossegue Pedro Dias, que refere, “Em meados do século XIX a Ilha da Taipa passou a ter algum comércio, com mercados e lojas, seis templos e uma igreja católica. O seu ancoradouro principal, conformando uma baía pequena e suave, era refúgio seguro contra as forças da Natureza, e até assaltantes, para muitas dezenas de barcos de pesca.”

Expulsão do Mandarim

O Capitão-de-Mar-e-Guerra Ferreira do Amaral era maçon e viera como Governador preparar a colónia a tornar-se politicamente independente do governo chinês e logo concebeu o plano de despojar o Mandarim de parte dos poderes de que estava revestido, ampliando a esfera de atribuições da Procuratura, único tribunal em Macau para julgamento de chineses. Segundo Carlos José Caldeira, ordenou “a supressão dos direitos de tonelagem, chamados medição, que abusivamente se cobrava para o imperador, sobre os navios portugueses, que entravam no porto de Macau” e “mandou fechar definitivamente a Alfândega Chinesa de Macau”, segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, ter o Governador a 5 de Março de 1849 proibido aos Hopus de Macau “cobrarem quaisquer direitos às mercadorias exportadas de Macau para os portos da China, pedindo ao Vice-Rei de Cantão que mandasse retirar os funcionários chineses que exerciam os seus cargos em Macau, dentro do prazo de oito dias.”

Assim foi abolido de Macau o Hopu, Alfândega Chinesa, o qual já só exercia jurisdição no Hopu Grande da Praia Pequena (Largo da Ponte e Horta), o mais antigo e importante da cidade, pois o Hopu Pequeno da Praia Grande, de menor importância, encerrara em 1847.

Como o Vice-Rei de Cantão não ordenara a retirada dos funcionários do Hopu, a 12 de Março o Governador mandou fechar a porta principal do Hopu Grande e colocou em frente um piquete de soldados e uma canhoeira de mar “para protegerem o desembarque de todas as mercadorias e víveres, acabando assim com o último vestígio da interferência chinesa na administração desta Colónia.”

Encerrada a alfândega chinesa em Macau, os funcionários desta repartição foram expulsos. “O governo de Cantão respondeu com a transferência dos mercadores chineses para Huangpu, o que resultou na depressão do comércio em Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra.

Sendo Macau porto franco, tornava necessário a supressão da alfândega portuguesa [criada em 1784], única fonte até ali da receita pública. Para remediar a precária situação financeira, o Governador logo estabeleceu um novo sistema de impostos, reformando em vários pontos outros ramos da administração, e reduziu as despesas dela a dois terços do que antes consumia.

Ainda em 1849, decretava o fim do pagamento do foro pelo arrendamento de Macau, assente desde 1573, e tomou posse de toda a península, tornando-a colónia portuguesa. O mandarim, com jurisdição em Macau sobre os chineses, fugiu para Chin-san e o Procurador ficou então também com esse encargo.

A 22-8-1849, junto à povoação de Monghá o Governador Ferreira do Amaral foi assassinado por sete chineses. Segundo João Guedes, estes pertenciam à Sociedade dos Rios e dos Lagos (ou Irmandade dos Primogénitos), no que parece ter sido a primeira grande manifestação de força das seitas em Macau. A 16 de Setembro, o Vice-Rei da Cantão participou ao Conselho Governativo de Macau ter sido já preso e executado Sen-Chi-Leong, o verdadeiro assassino do Governador, cuja mão e cabeça levadas para Cantão e expostas pelas ruas, foram restituídas a Macau em 16 de Janeiro do ano seguinte.

24 Ago 2020

Holandeses voadores – III

5

[dropcap]C[/dropcap]orria a passos largos com as musselinas a enfunar o fantasma que revia nas paredes. Um ombro que se levanta, um cotovelo que desce. A cabeça que rodopia, os dedos a macaquearem a boca de um lobo. Ou a cauda do diabo. A noite afoga todas as evidências.

Por vezes, levantava muito alto uma das pernas para que a sombra amarelada e movediça se transformasse num cinema envolto pela poeira. Também eu, imbuído pelo marulho das coisas sombrias, me pus com gesticulações agitadas e o ecrã de caliça branca a desfazer-se reproduzia-as porventura à procura de ouro.

Assim ficámos os dois em frente à enorme lanterna do candeeiro a provocar aquele teatro de sombras, de que éramos os únicos espectadores. A certa altura, estatelámo-nos com a dolência de um adágio. Os meus óculos voaram até à beira do canal e ela, vincada pela geada da noite, viu os cabelos submersos na pedra e nos musgos frios onde nos deitávamos.

Por cima, a lua confluía num único traço entre as nuvens rápidas e as texturas do breu. Era o sabre comprido que sucede ou precede a lua nova. Ou a cauda do diabo, como ela incessantemente repetia sem conseguir parar de rir.

Haveria acasos na vida, sim, persistia eu, mas ela não queria acreditar. Preferia ver o destino inscrito até na forma das grades que nos protegiam da água sebenta do canal. Foi nesse ápice que me veio à cabeça a cavalgada – ou a motorizada – que Schubert compôs no mês em que morreu (tinha decorado a fórmula há muito: “trio número dois, ópus cem, andante con moto”). Tentei trautear, mas era um esforço inglório, semelhante ao de plantar uma buganvília no gume cortante da lua. Ela continuou a rir, o combustível advinha da falta de nitidez das minhas bilabiais.

Mas era verdade, pura verdade. Só o acaso permitiu que hoje se pudesse ouvir Schubert. Schumann desvendou uma sinfonia em casa do irmão e dois ingleses, os senhores Grove e Sullivan, desenterraram mais cinco na cave de uma editora. Também a sinfonia inacabada foi descoberta numa arca, enquanto, já no fim século XX, os esboços da décima sinfonia foram fortuitamente encontrados num arquivo de Viena.

Não, não foi o acaso, afincava ela. O destino é o cume da cordilheira que reúne todos os acasos. Como o de hoje. Por exemplo: o que fez com que hoje déssemos um com o outro no bar dum teatro ainda em obras? Continuou ela.

E o que faz com que uma coisa seja o que é? perguntei eu.
A sua essência. respondeu ela. Como vês, ganhei, concluiu ainda com todo o desplante.

6

A mistura de moliço e enxofre embrenha-se nas dunas e o rufar das vagas irrompe subitamente. Foi nesse repente que o vento colocou os lóbulos temporais nas nuvens, quase que tocámos com os cabelos nos altos da siderurgia. Foi assim que chegámos à praia de Zandvoort.

Três ou quatro gigantes agarram as cordas e içam os papagaios coloridos que desempenham o papel de planadores trágicos. Cada corpo é um rio compulsivo a preencher as margens que julga ocupar, segredou ela. Uma ópera rasgada pela forte ondulação. Se houvesse música seria a dos penhascos subterrâneos.

Ela mantinha-se perfeitamente ciente de que a praia de Zandvoort é composta por destroços de um grande navio caído no fundo do oceano. Falava de facto como se passeássemos a quatro mil metros de profundidade, debaixo daquela água negra espurca azulada que se desfaz em espuma gelada.

A sequência de prédios é uma imensa bigorna de betão com vidros granitados, esplanadas para astronautas e o amontoado final de escombros e taipais que se desvendam a partir do casco imaginário. A paisagem condiz com os despojos de guerra que terão submergido muito lentamente, acabando por assentar nas entranhas do talude, tomado por cracas e algas.

A proa, a popa e os mastros desapareceram. Ficou apenas o âmago das varandas a cheirar a crude e ao verdete da ferrugem. Com extremidades pontiagudas, o perfil da cidade dá a ver uma ou outra faceta proeminente. É o convés de aço alimentado pelas patines da maquinaria e das caldeiras. Às janelas deste santuário oxidado, dia e noite, há sempre holandeses muito felizes a comerem batatas fritas com maionese.

Ela admirava o horizonte e os rochedos submersos como quem avidamente pesquisa com sonar. A praia expunha-se ao avesso de todas as geografias, mas o mar é sempre o mar. Vi-a sentar-se no coração da intempérie com a concha da mão encostada ao ouvido. Fiquei atrás sem quase conseguir manter-me de pé. O chão mole de estornos e cardos-marítimos oscilava ao sabor das requebras do vendaval. Foi então que me revelou que, um dia, já tinha visto o paraíso.

(continua)

20 Ago 2020

Uma palavra onde qualquer coisa

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 3 Julho

 

[dropcap]D[/dropcap]eu umas voltas, logo depois das que contém desenhadas. Diz o carimbo que é oriundo do Alto Minho, embora a assinatura marque Caldas da Rainha. Estou em crer que a matéria do meu corpo outra não é senão papel. São páginas do diário da Isabel Barahona (algures na página), reproduções enriquecidas de modo a que o objecto se torne único: rostos, casas riscadas, começos de textos, uma folha de papel copiador kores 420 fabricado em Portugal, com aquele azul tão especial, «turbulento negro e tónico/ poço fundo do ventre-coração», corpos em linha, rasuras, palavras manuscritas redondamente, aqui maiusculadas: «re-escrever re-começar». Há gente do lado de lá em busca de um rosto-casa, (des)inquietados por um qualquer sentido, uma demanda. Amizade será este modo de abrir janelas nestas paredes. Abandono-me neste espreitar.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 3 Agosto

No meu calendário, o ano veste à justa o confinamento. Logo cedo recebi mensagem de «força» do José Ricardo [Nunes] sob a forma deste redondo e apuradíssimo objecto, «Si dispensa dai fiori» (ed. Volta d’mar). Demorei tempo a lê-lo. Passei muito tempo com ele. Fez-se-me refrão, tatuagem: «a minha cabeça é o meu castelo// o meu corpo cabe à justa/ dentro destas paredes». O meu corpo exigiu atenções, foi-se (des)fazendo parede caiada, plena de fissuras magnéticas, até esconsos ressonantes. Segui as pontes de onde provinham os versos, a figura inquietante de Gesualdo, música e fantasma, a pintura de Caravaggio, carne e luz, modelo e tema, raiz concreta e imanência volátil, «até não me lembrar de nada/ estratégia nenhuma,/ tudo fazer parte/ não haver sempre». Deixei, de súbito, de ter o sempre que afinal não havia.

Noutro poema, sempre em voo picado, encontro-me nos «manuscritos atirados para um canto/ deixados semanas sobre uma cadeira/ o espírito da carne/ os saltos bruscos no tempo/ os alongamentos da memória// tudo o que somos/ desfeito por tudo o que somos// sem ser conhecido início/ nem haver propriamente fim».

Agrada-me esta perseguição, este jogo de escondidas com o espelho, a deitar a língua de fora à morte, a desfiar memórias com vista à ressurreição, a regar e dispensar flores, rasurando os monólogos interiores com que ajustamos contas, com que nos ajustamos. Contas feitas, «o que sobra de um homem/ é o seu início». Tens razão, pouco mais resta, mas podemos ainda por uma vez reiniciar, preparar a tela e acertar-lhe com a cor, inventar-lhe um corpo. Podemos ser homem só de inícios? Há muito encontrei uns quantos a quem a vida assenta como luva, que a vestem sem dor nem atrito, enquanto noutros só o gesto singelo de respirar implica esforço e balanço, ranger de arestas, dispêndio de energias. Vou continuar a regressar a estas goivas, de modo a amaciar o madeirame das paredes, que continuam a estender-se em castelo. Ou para lhe escavar os veios em busca de sinais no sangue. Ou com delicadeza para nelas marcar os dias. Para contagem posterior, talvez memória futura.

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 4 Agosto

Chegamos ao livro pela autora, Nathalie Sarraute, antes mesmo de no detalhe encontrarmos Luísa Dacosta como tradutora com voz própria, ou (re)pararmos na capa de Sebastião Rodrigues, antes e depois da leitura, para perseguir a ideia movediça que se esconde na elegância das formas. Uma mão negra com as suas linhas marcadas e explicadas a branco, ligações aos ritmos e pulsações de um universo mai-las suas narrativas a prometer facilidades, fios que suspenderão a marioneta. Mas não sei, confesso, se isto queria dizer o desenhador acerca de «Planetarium» (Editorial Minerva). O amarelo parece ter contaminado o miolo, com as páginas quebradiças, como se os olhos tivessem sido pequenos sóis a consumir o branco líquido das páginas. Alguns mistérios se conservam, para além do que as palavras contam, uma dança estonteante de subtilezas, de agudas observações à volta do que mobila as existências, portas e tapetes, cadeiras ou bibelots, assim mais objecto o coro de vozes que desvela modos de ver, as carambolas que resultam do entrechoque singelo entre cada um e o outro, o quase nada que pode tornar-se carne da existência. Cada monólogo um planeta em sistema nem sempre solar, rodando sobre si e projectando nos outros o olhar respectivo, visão com sombras. «Não há união completa com ninguém, são histórias que se contam nos romances – todos sabem que a intimidade mesmo a maior é sempre atravessada a todo momento por relâmpagos silenciosos de fria lucidez, de isolamento…» E o narrador faz de força gravítica, não o lemos apesar de omnipresente, ou só o lemos a ele, que lhe pertence a transparência onde o todo navega, se distende, procura e talvez encontre lugar. Assmi pele da casa – o espelho, por exemplo, mas podia ser quadro ou jarra –, queda et pur em vibração. Encontro inusitado conforto nesta interpretação do título, talvez sítio de encostar a cabeça e ficar a olhar as revoluções dos planetas solitários em que cada um se pode fechar em movimento. Mas pensava há linhas atrás no enigma que me propõe aquela página rasgada ou esta outra por abrir. O anterior leitor saltou estes momentos? Não lhe faltaram o pensamento e a voz das personagens para avançar? Os dedos não soltaram estas duplas? E o rasgão resultou do descuido, de faca torcida, ou do avesso, navalha demasiado afiada para o papel? As páginas rangem agora de tão secas, libertam cheiro acre, soltam pequenos fragmentos, talvez hastes de uma letra, restos de pontuação, provável que seja apenas papel. «Sente-se descontraído, tem vontade de se abandonar», oiço dizer, lá para o final, o personagem (quase) principal. «A vida pode ser agradável. É loucura tomar as coisas demasiado ao trágico, caminhar sempre em cima de andas, empoleirado sobre grandes precipícios…» A vida pode ser tão só livro talvez velho e meio a desfazer-se. Sacudam-se os fiapos, talvez ecos de frase ou palavra, levantemo-nos do sofá e procuremos um objecto com o qual encetar diálogos. «Da mesma maneira que uma mulher abandonada nas ruínas da sua casa que uma bomba destruiu, fixa com olhar embotado no meio dos escombros seja o que for, um objecto qualquer, uma velha faca torcida, uma velha tampa de cafeteira em estanho toda cheia de mossas, e a apanha sem saber porquê, num gesto maquinal, e se põe a esfregá-la, fixa-a com olhar vazio, no meio da página inacabada, uma frase, uma palavra onde qualquer coisa… mas o quê?»

Horta Seca, Lisboa, quarta, 5 Agosto

Tantos meses depois, regresso com corpo novo e quase não reconheço este. Diria que está tudo na mesma, mas descortino-lhe na (des)arrumação um ar de ruína. Obediente ao tema dos «arquivos pessoais» da próxima «Torpor», cometo o que me parece agora um erro. Vasculho nos arquivos, mergulho na correspondência. Dou de caras com olhares velhos de décadas projectados no que terei sido, ainda sou, empilho projectos fixados para sempre nisso mesmo, potencialidades sem mais fruto além do acto de semear. Esta fúria de fazer serviu para quê? Embrulho muito rapidamente umas partes, escolho uns livros (de poesia) por verificar que me acompanham há varias décadas e catástrofes e corro a fechar-me à justa na minha cabeça. Ainda não sei como regressar.

19 Ago 2020

A arte do reencontro

[dropcap]O[/dropcap]lhem, amigos: agora mesmo e enquanto escrevo esta crónica atipicamente não tenho mais nada que dizer que não seja o que me esforço por fazer passar. Não tenho episódios veraneantes, explicações da ausência, citações pretensiosas, indignações sortidas, confissões de estados de espírito ou, como é o estilo desta coluna, tudo isso misturado. Irá acontecer, não duvido. Mas por agora só esta vontade única e irreversível de me sentar convosco para conversar. A minha ambição como cronista é esta: olhar toda a gente nos olhos e conversar e ouvir. Talvez seja pouco mas sinceramente esta atitude tende a ser menos praticada. Seja por escrito seja na chamada “vida real”.

Então, pela primeira vez desde que aqui estou não tive dúvidas: isto é um regresso e já aqui falei de como prefiro regressos a partidas e de como a segunda é essencial à primeira. É certo que o conceito não terá sido bem tratado pela literatura clássica e que Ulisses não teria necessidade de chacinar 42 pretendentes de Penélope (aceito correcções sobre o número de baixas, escrevo de cor) quando voltou a Ítaca. Mas quem sou eu? Respondo: sou o tipo que prometeu não fazer alusões pretensiosas no primeiro parágrafo. Enfim.

Ao que interessa, então. Numa destas crónicas tentei sinceramente partilhar o que é uma perda de amizade. Coisa dolorosa, maléfica e que tantas vezes deixa mais mazelas do que a perda romântica. Ainda continuo a acreditar no que escrevi. Mas e o reencontro com a amizade perdida, amigos? Esse momento extraordinário em que depois de tanto tempo e de argumentos de que já nem nos lembramos somos devolvidos de forma bruta mas ao mesmo tempo familiar ao que nunca nos terá deixado? Isso é precioso e feliz e quando acontece deparamos com uma estranha mistura de sentimentos, resumidos em duas frases: “O que aconteceu?” e “Agora quero lá saber”.

A amizade é livre, mais livre do que o amor. Isso não a torna moral ou eticamente melhor, até porque seria falácia a comparação. No amor conseguimos perceber quando acaba ou falha; na amizade – e falo da grande amizade – não é assim: a menos que de permeio exista pulhice à séria de uma das partes, fica-se num limbo de perguntas e respostas. E os dias, e as horas e os minutos vão passando. Nós vamos passando, passando como podemos com um vazio qualquer que nos chama nos momentos mais inoportunos e que são todos.

Depois, se tivermos sorte, existe um instante mágico – esse do recomeço. E estranhamente tudo parece familiar, como se todo o tempo que passou tivesse sido congelado num frame da nossa vida e finalmente libertado por um demiurgo benigno. Sim, amigos: o regresso da amizade contém todos os regressos. Vinicius dizia, provavelmente com razão, que a vida é a arte do encontro. Eu acho que é a arte do reencontro. E apetece escrever ou reescrever o mundo. Ou mais simplesmente frases ditas no cinema, como agora o faço: acho que este é o reinício de uma bela amizade.

19 Ago 2020

Virar do avesso

[dropcap]J[/dropcap]une Hull, escritora inglesa, tem um pequeno ensaio (99 páginas) pouco conhecido chamado «All is not Everything» – «O Todo não é Tudo» ou «Tudo não é Tudo» – que começa assim: «Há em tudo o que somos e em tudo o que podemos saber acerca de nós muito de desconhecido ou, pelo menos, algo que desconhecemos.» Partindo desta premissa, Hull liga-a à descoberta feita pelos Gregos jónicos, os chamados primeiros filósofos, principalmente a Anaximandro e ao seu «ápeiron». É preciso fazer-se aqui um parêntesis contextual. Nesta aurora do pensamento ocidental, na Jónia, mais precisamente na cidade de Mileto – que se situa hoje a oeste da Turquia, junto ao Egeu –, os pensadores procuram saber qual a origem do Universo ou, de um outro modo, a origem de todas as coisas. Se Tales afirmava que o «arché» – a origem de todas as coisas – é a água, e Anaxímenes o ar, Anaximandro afirma que o arché é o ápeiron. «Ápeiron não quer dizer apenas sem limites ou sem fronteiras [«a-peirón», é uma palavra composta pelo substantivo «peirón», que diz limite, fronteira, e «a(n)», que diz «sem» ou «ausência»; Hull desmonta o termo grego «ápeiron» de modo mais alongado, mas que não cabe aqui.], isto é, sem forma, mas diz também que a origem não participa da actualização. Aquilo que originou tudo não se encontra junto com o tudo.» Podemos resumir o alargado contexto de June Hull acerca de Anaximandro, nas primeiras páginas do livro, deste modo: «ápeiron» é sem limite, sem fronteira, que implica a ausência de forma, pois só há formas porque há limite, evidentemente; mas, acima de tudo, Hull sublinha que para Anaximandro é a separação do antes e do depois que mais importa ver em ápeiron, isto é, a separação entre o momento criador e a criação, a separação entre o arché e o Universo. Este não contém em si o seu arché, a sua origem. Anaximandro cria assim, pela primeira vez no pensamento ocidental, uma clivagem racional entre criador e criação. Para June Hull, este é o momento em que fica claro [sublinhado meu] ao ser humano que «o todo não é tudo». «Claro», porque através da razão, isto é, do acto de pensar, e não da crença, do mito. June Hull escreve: «Anaximandro dá-se conta de que há um excedente no conhecimento, que é um excesso de sentido, um para além do que se pode conhecer. Ora, é este para além que vai dar origem ao que mais tarde – pois a palavra ainda não existia – se chamará metafísica.»

A partir deste momento, June Hull irá mostrar como esta consciência de um excedente irresolúvel na pesquisa pela origem de todas as coisas irá determinar o pensamento humano. «A pergunta pelo que é uma coisa, ou pelo que são as coisas não é da mesma ordem da pergunta pela origem do Universo. A partir de Anaximandro isso fica claro. Assim, também a pergunta pelo que é o humano não é da mesma ordem da pergunta pela origem do Universo. Mais tarde, será este modo de pensar que influenciará toda a teologia cristã (embora sem que haja referências explícitas aos Gregos Jónicos) a pergunta pelo humano não é da mesma ordem da pergunta por Deus.»

Depois da apresentação da aurora do pensamento metafísico, Hull identifica outro momento essencial na história deste modo de pensar: «[…] também a morte, como impossibilidade de conhecimento, determina o pensamento metafísico. Não é só a origem que leva o humano a pensar metafisicamente, o fim também o faz.

E, neste sentido, será Heraclito que tornará isso claro. O pensamento «idealista», iniciado por Pitágoras não dava conta do problema. A ontologia de Parménides também não. Será o jónico de Éfeso [Heraclito], ao colocar no centro do pensamento o “devir” e o “logos”, que vai inflectir o pensamento na direcção de pôr a morte como termo fundamental na equação metafísica.» Hull vai ainda mais longe, identificando este momento da história do pensamento como o momento em que o acto de pensar começa a «virar do avesso o humano». Diz: «Ao introduzir o movimento e a transformação como fundamento da existência e do Universo, Heraclito introduz duas perplexidades tremendas, que vão justificar muitos séculos depois a frase de Goya “A razão produz monstros”. Mas quais são essas perplexidades? 1) Como funciona a memória, como segura ela o que não existe mais? Ou seja, por que razão o humano está deposto ao devir, como o Universo, mas ao mesmo tempo mantém em si o que já não é, o que nunca será mais? O exemplo maior é na velhice ainda termos presente a nossa infância e a nossa juventude; a coabitação de diferentes tempos em nós distorce o que sabemos da Natureza, do Universo; 2) A morte, como lugar para onde estamos a ser levados para acabar, é a possibilidade do fim do devir? Ou seja, há um lugar onde o devir também tem fim? Este lugar e este fim, que para Heraclito é o “Logos” (podemos aqui traduzir por consciência), é a ideia mais aterradora que o cérebro concebeu. É aqui que nos viramos do avesso. Dar-se conta do que aconteceu e do que irá acontecer, ainda que de modo muito nublado, é um desdobramento temporal. E este desdobramento temporal, operado pela consciência, é o que pode chamar-se “um humano a virar-se do avesso”.»

Hull explica assim o que entende por essa expressão: «Virar-se do avesso é ter-se a si mesmo como espectador de si. Olhar-se ao espelho e ver-se como se foi e projectar como se será. Mas mais do que uma imagem física, o espelho com a ajuda da consciência projecta uma imagem existencial, uma imagem não apenas por fora mas por dentro.» Independentemente de podermos estar ou não de acordo com a autora do livro, talvez não seja superficial lembrar que Parménides, com a sua divisão de águas, isto é, com as duas vias possíveis para o humano levar a sua vida, a via da opinião e a via da verdade, estivesse também ele a virar-nos do avesso ou a fazer virar-nos do avesso.

Por fim, June Hull retorna ao título do livro, mostrando que «virar-se do avesso» tem a sua origem na consciência de que «o todo não é tudo». Darmo-nos conta de que tudo tem um excesso de sentido que não acompanhamos, até nós mesmos, que somos limitados por dois infinitos, ou seja, dois completos desconhecidos, o nascimento e a morte, precipita-nos em uma tentativa de nos virarmos do avesso, de tentarmos ir para além de nós, para além do que nos é apresentado como sendo nós mesmos. Nós não somos o que vemos de nós, nem tão pouco o que sabemos de nós. E é a falta do que não sabemos que nos leva a querer saber quem somos. A fazer virar-nos do avesso.

18 Ago 2020

Visitas para jantar

[dropcap]A[/dropcap]doráveis convidados domésticos. De todos os dias.

Há um lamento animal que sua da pele, quando menos se espera. Do estoicismo, que esse é humano. Um uivo à noite. Aprendi com eles. E que mesmo a letra que não se pronuncia tem uma anatomia própria.
Impreterível sonho. Insuficiente o que as manhãs trazem em si. Inventar tardes que sejam mais, noites de plenitude, um olhar refrescado para o dia de amanhã. Uma orla de ilusões quase realidade. Não inventar o que não existe, mas o que pode vir. Esperar e desejar. O que nunca é a mesma coisa. O nome e o olhar. Mas que seja, pelo menos a coisa igual a si própria. Contra as desnecessidades de sentido. Intermitências como interruptores que avariam.

Haverá sempre quem entenda mal, quem julgue o mistério excessivo e quem culpe de realidade crua, quem nos tema a crítica ou a melancolia. Quem julgue pelo excesso a fantasia ou a racionalidade, o dramatismo a serenidade, a intensidade e o frio. Ou, na aparência distante, a secreta garra férrea com que tudo nos marca.

Haverá sempre uma coisa e o seu contrário no olhar que se assesta sobre nós. Numa alquimia de opostos. Há que fazer a síntese. Por cada qualidade que nos dizem há sempre quem a sonhe contrária. O problema é nunca sabermos com clareza onde estamos nos outros e onde estão os outros.

Este desgastante casamento. Com os outros, com o olhar dos outros. Dependência de migalhas e gestos a brindar à ausência. Tanto e tão pouco às vezes numa só vez. Mas chegar àquele ponto, finalmente, em que cada coisa já não coloca questões sobre ser, mas sobre os outros e, um dia, nem isso. Têm que estar lá. Com todo o seu dramatismo e intensidade. No lugar que é seu. Para o melhor e para o pior. Até que a morte nos separe.

Distanciação social. Expressão absurda do figurino actual. A Vogue sobre a mesa de café. Mas em casa não há distância possível e sentamo-nos todos os dias à mesa com os nossos monstros, os nossos fantasmas, os desejos, as recordações. No recolhimento em que estamos confinados ao interior da cabeça. E às vezes perdemo-nos ou encontramos na amplitude de tantas latitudes. Longitudes ilusórias. E estas visitas de casa.

Esses convidados domésticos, queridos, que nunca deixam de pedir o jantar e esperam mesmo por horas pouco convencionais. Mas estão sempre lá a fazer companhia.

Passados os primeiros momentos de cerimónia, estão eles já tontos de bebidas secretas, ruidosos e de cotovelos sobre a mesa. A servirem-se com as mãos. Mas eu gosto. De os ver lamber os dedos – alguns até com uma delicadeza infinita, a da timidez que nunca fica mal – e mangas arregaçadas, os que as têm porque a alguns a pelagem não o permite. Uma barulheira. Animada, inquietante ou irritante. Coisas de família. A tentar que nunca seja angústia para o jantar. Mas uma outra coisa em aberto. E com conforto a dar o título.

Rejeitar as trevas, como a luz esmagadora. Tudo a seu tempo. A intensidade de um meio-dia a pique, não se quer às cinco da tarde. Como as trevas ao amanhecer. Tudo deve fluir a um ritmo que é seu. Tudo é bom. A penumbra de um crepúsculo lento. Há que deixar vir cada coisa ao seu lugar. Anjos de um lado, unicórnios do outro. O boneco chorão envelhecido de poeira, também. Talvez a meio. Há que pensar o protocolo. À mesa.

Restrições alimentares que a delicadeza torna subtis e atendidas. Sorrisos e sobrolhos franzidos. Olhos esquivos ou impolutos. A cerimónia é densa e longa e deve contentar a todos. Poiso travessas ornamentadas de folhas frescas com pernas de frango e asas, fritas acerejadas, com aquele toque avinagrado no final. O mundo doméstico também se divide entre quem gosta de pernas e quem gosta de asas. Depois da sopa fria porque é verão, ou antes, que façam como preferirem.

E depois, já todos à mesa e etérea sou eu. Encantada ou presa de encantamento. Paralisada de existência discutível. Vejo-me à mesa e vejo-me a atrapalhar-me na porta com a travessa enorme. O cesto crispy comestível e os panadinhos com surpresas de camarão e aqueles pimentos imprevisíveis. Rio para dentro e espero ansiosamente para ver a quem calha o insuportável picante esperando a rezar que seja ao unicórnio querido que nunca vi corar. Ou atrapalhar-se e tossir. Uma coisa linda de se ver.

E todos os monstros estão serenos e bonitos a retirar o pano de linho da argola de prata e a colocar nas pernas, cada um no seu modelo de colo, mas civilizados e benignos porque à mesa manda a etiqueta. E portam-se bem. Cada um precisa do seu sítio da casa onde pernoitar depois. Quando o cansaço se instalar e o sono, a única fuga possível. E quando já dormem, fico à mesa a lembrar os que vieram o que disseram se comeram bem. Só, mas não completamente. Do outro lado a ovelha negra que fica para ajudar a levantar a mesa e que é a minha preferida porque é diferente mas sempre a que emperra a contagem para o sono final.

E fico a lembrar os detalhes. O Adamastor que não chega a horas – um problema para o arrumar à mesa com aquele tamanho. Sentado, depois, de lado sem espaço para as pernas. A pisar a asa de um e a crina do outro.

Adiante. Para ele era um gelado de espuma doce para limpar o palato, à chegada, das intempéries do ofício, a ver se se tinha quieto e calado. Para não incomodar os vizinhos com os rugidos do costume. Vem muito para afundar inutilidades e afogar mágoas. Mas nunca se sabe como reage a uns copos a mais e às espumas e vapores das sobremesas de cozinha molecular que não sabe com que talher abordar nem eu. Mas olho-o sempre atentamente e, num assomo de melancolia, fico na dúvida se não será o tempo. Cronos. Que não costumava chegar atrasado nem fora de horas, mas agora cada vez mais, ou antes da hora. Observo-o na dúvida. Mas é mesmo o tempo, talvez. E nunca está a mais.

18 Ago 2020

Os Nocturnos: poesia, lirismo e estilo refinado

[dropcap]G[/dropcap]abriel Fauré compôs em muitos géneros, incluindo canções, música de câmara, orquestral e coral. As suas composições para piano, escritas entre os anos 60 do século XIX e os anos 20 do século XX, incluem algumas das suas melhores obras. Os nocturnos, em conjunto com as barcarolas, são geralmente considerados como as maiores obras para piano do compositor. Fauré admirava muito a música de Chopin, e gostava de compor em formas e padrões estabelecidos pelo compositor polaco. O crítico musical inglês Richard Morrison observa que os nocturnos de Fauré seguem o modelo de Chopin, contrastando secções exteriores serenas com episódios centrais mais espirituosos e turbulentos. O filho de Fauré, Philippe, comentou que os nocturnos do seu pai “não são necessariamente baseados em rêveries ou em emoções inspiradas pela noite. São peças líricas, geralmente apaixonadas, por vezes angustiadas ou totalmente elegíacas.”

Com a sua poesia, o seu lirismo apaixonado e íntimo, o seu estilo refinado que gradualmente revela intensidades ocultas, os treze Nocturnos de Gabriel Fauré são o grupo mais significativo de obras na sua produção para piano solo. Compostos durante um período de quarenta e seis anos (entre 1875 e 1821), testemunham a notável evolução estilística do compositor. De uma forma de expressão enraizada no romantismo, a uma estética totalmente alinhada com a modernidade do século XX, pode-se dizer que Fauré moldou a sua personalidade musical como um escultor. Os seus treze Nocturnos não são todos de igual importância, mas como um todo a sua diversidade e desenvolvimento oferecem um panorama perfeito da sua arte.

O musicólogo francês Jean-Michel Nectoux classifica o primeiro nocturno, o Nocturno para Piano No 1 em Mi bemol menor, Op. 33/1, composto c. de 1875, como um dos melhores trabalhos iniciais do compositor. É dedicado, como a famosa canção de Fauré “Après un rêve”, à sua amiga e mecenas Marguerite Baugnies. O crítico musical inglês Richard Morrison considera a peça “enclausurada e elegíaca”. Embora publicada como a Op. 33/1 do compositor em 1883, foi escrita consideravelmente mais cedo. O trabalho contém muitos traços distintivos do estilo de Fauré, incluindo “ritmos ondulantes, sincopação do acompanhamento de encontro à melodia e texturas em camadas já estão em evidência.

O sexto nocturno, o Nocturno para Piano No 6 em Ré bemol Maior, Op. 63, datado de 1894, dedicado a Eugène d’Eichthal, é amplamente considerado um dos melhores da série. O famoso pianista francês Alfred Cortot referiu a propósito da obra: “Existem poucas páginas em toda a música comparáveis ​​a estas”. Morrison considera-a “uma das mais ricas e eloquentes de todas as obras para piano de Fauré”. A pianista e escritora Nancy Bricard chama-lhe “uma das as obras mais apaixonadas e comoventes da literatura para piano.” Fauré escreveu-a após uma pausa de seis anos na composição para piano. Aaron Copland escreveu que foi com este trabalho que Fauré emergiu totalmente da sombra de Chopin, e referiu sobre a peça: “A respiração e a dignidade da melodia de abertura, a inquieta secção em Dó sustenido menor que se segue (com as peculiares harmonias sincopadas tão frequentemente e tão bem usadas por Fauré), a graciosa fluidez da terceira ideia: todos estes elementos são levados a um clímax tempestuoso na secção curta de desenvolvimento; então, depois de uma pausa, vem o retorno da consoladora primeira página”.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: 13 Nocturnes
Jean-Philippe Collard (piano) – EMI, 1987

18 Ago 2020

Governador ocupa a península de Macau

por José Simões Morais

[dropcap]O[/dropcap] Governador-Geral da Província de Macau, Timor e Solor, Conselheiro e Capitão-de-Mar-e-Guerra João Maria Ferreira do Amaral (1846-1849) vinha nomeado de Lisboa e não, como até então, por Goa. Tomou posse a 21 de Abril de 1846 e trazia o propósito de preparar a colónia a tornar-se independente do governo chinês. Assim, em provocação, logo contrariou pelos seus passeios a cavalo as chapas dos mandarins que advertiam serem os verdadeiros limites do fanfang as portas de Santo António e do Campo.

Cinco meses depois, o Procurador Manuel Pereira propôs ao Governo que “as embarcações chinesas de passagem e carga, denominadas , fossem registadas na procuratura, e pagasse cada uma o imposto mensal de uma pataca à fazenda pública”, segundo A. Marques Pereira, que refere, o Governador, em sessão do Senado por ele presidida, “aprovou a proposta, – e, constando em seguida que as ditas embarcações se recusavam a obedecer ao edital do procurador que ordenava o registo, mandou que de 3 de Outubro [1846] em diante fossem retidas todas as que teimassem na recusa. Começaram desde logo os chineses dos faitiões a reunir-se a miúdo no Pagode Novo [mais tarde Templo Lin Fong], consultando aí com os principais do bazar sobre o modo de resistirem àquela determinação. Ao mesmo tempo moviam os mandarins a oficiar para Macau em seu apoio, e afixavam pelas ruas proclamações instigando à revolta.

Amaral, o enérgico e venerando conquistador da autonomia portuguesa de Macau, não costumava hesitar. As medidas convenientes tinham-se tomado sem demora. A alfândega fortificara-se. A tropa estava em armas.” Na noite de 7 para 8 de Outubro, os faitiões encostados à cidade eram trinta e sete, de onde ao amanhecer “desembarcou grande número de lancháes, armados todos, e com três peças de artilharia. Engrossando com os de terra, a multidão hostil era em breve de mais de mil e quinhentos homens” e ao seu encontro logo marchou “uma força de quarenta soldados. Os chineses dispararam sobre ela as três peças, e avançaram pela travessa fronteira à igreja de Santo António, apesar do fogo vivo que se lhes fazia. Não tardou porém que recuassem, reforçados os nossos com uma peça da alfândega e vinte soldados, e outra da fortaleza do Monte com alguns soldados e muitos cidadãos.”

Com grande perda de gente, abandonando o armamento os lancháes chegando “de roldão aos faitiões, trataram de fazer-se de vela para fugir, mas aí os esperava já uma escuna do governo, que naquele tempo servia de registo na Taipa, e várias embarcações armadas, de particulares, que todas romperam sobre eles um fogo activo. Alguns dos faitiões foram abordados e tomados, muitos metidos a pique, e oito ficaram encalhados.” Nenhum português saiu ferido, mas nada sabemos sobre as baixas dos lancháes.

“As lojas do bazar fecharam-se todas. Fora de antes sempre esta manifestação a grande arma dos chinesas, pois importava a subsistência da cidade. Quando os lojistas se conluiavam por este modo, o senado concedia o que lhe era exigido e amiudava as súplicas aos mandarins, que deliberadamente espaçavam a graça, fazendo sentir o valor dela. – Era esta prática mediocremente eficaz e aceitável para que Amaral a seguisse. Declarou por editais, na mesma tarde do dia 8, que, se no espaço de vinte e quatro horas as lojas se não abrissem, o bazar seria arrasado pela artilharia do Monte. Na manhã de 9 as lojas abriram todas, sem excepção de uma. No dia 10 apresentaram-se às portas da cidade dois mandarins, a quem o governador fez saber que deveriam deixar fora a sua comitiva armada. Retiraram-se, e no dia 11 tornaram sem comitiva. O objecto da sua visita era certificarem ao governador os seus sentimentos de amizade.” António Marques Pereira, que narrou esta história, refere ainda, ter em Macau fundeado na rada às sete horas da manhã do dia 9 de Outubro de 1846 a fragata a vapor Vulture, comandada por o capitão-de-mar-e-guerra Dougal com ordem do Governador de Hong Kong para se pôr à disposição do Governador Macau, “e, posto que à sua chegada tudo estivesse acabado, só em 12 regressou a Hong Kong.”

Procurador remunerado

Após a revolta dos faitiões [da qual não conhecemos a versão chinesa], o Governador Ferreira do Amaral a 17 de Outubro de 1846 organizou o Batalhão Provisório de Macau para resistir a qualquer ameaça e destinado a auxiliar a Força mista de 1ª linha, ou Batalhão de Artilharia de Primeira Linha, criado por decreto a 13 de Novembro de 1845 para substituir o Batalhão Príncipe Regente. Aprovado por Portaria Régia de 12-3-1847, o Batalhão Provisório de Macau foi instalado no extinto Convento de S. Domingos e por Decreto de 10-12-1847 “teve como Major-Comandante o macaense Francisco José de Paiva, Comendador da Ordem de Cristo e Cônsul Português em Hongkong”, segundo Beatriz Basto da Silva. O denominado Batalhão de Macau conjugava o Batalhão (de 1.ª linha de Infantaria) de Macau e o Batalhão Provisório, que durante vinte anos prestou bons serviços. O Batalhão de Infantaria de Macau seria extinto a 18-4-1876 e estava já desde 30-12-1866 instalado no quartel construído no local do antigo Convento de S. Francisco.

“Em Macau, a maioria das vias públicas, eram conhecidas, pelos nomes dos seus principais moradores não havendo, nomenclatura oficial. Assim, podia haver mais de um nome para a mesma rua”, segundo Ana Maria Amaro. Para solucionar possíveis confusões, o Governador a 23 de Novembro de 1847 mandou dar o nome às ruas que não o tinham e mudar muitos dos repetidos.
Já anteriormente, a 27 de Fevereiro de 1847 Ferreira do Amaral manifestara uma posição de poder, sem se importar com os interesses chineses, e tomou posse das terras para além das muralhas a envolver a cidade cristã portuguesa. Mandou rasgar três estradas nos terrenos fora das muralhas da cidade, onde se situavam antigas campas chinesas e por onde constantemente os britânicos se passeavam a cavalo. A primeira estrada, desde a Porta de S. João até ao Pagode; outra rodeando a colina de Mong-Há e a terceira, desde a Porta de St.º António até às Portas do Cerco, ligando-se junto ao Pagode Novo com a primeira. Para construir a terceira estrada deu um prazo até ao fim de Março para os chineses removerem desse local todas as sepulturas.

Nesse mesmo dia 27, o Leal Senado enviou para Lisboa uma queixa, reclamando contra a obra governativa do Governador.
Com a chegada do Governador Ferreira do Amaral, as atribuições da Procuratura do Leal Senado foram ampliadas, pois era o único tribunal em Macau para julgamento de chineses, e a 20 de Agosto de 1847 passou a estar anexa à Secretaria do Governo, no que respeitava a negócios sínicos.

Para o ano de 1847 era Procurador Lourenço Marques, filho do Comendador Domingos Pio Marques, que exerceu ininterruptamente o cargo até 1855. Como Procurador passou desde 20 de Agosto de 1847 a ser remunerado e a estar subordinado ao Governador e no Senado apenas tratava dos assuntos puramente municipais.

17 Ago 2020

Estágio para a morte

[dropcap]Q[/dropcap]uando era criança, só os velhos morriam. Era uma coisa natural, eram velhos. Às vezes era até uma coisa bondosa: depois de anos a sofrerem avcs até perderem o mais básico controlo dos seus corpos ou carcomidos pelo cancro, o acontecimento da morte acabava por ser o momento pelo qual uma luta inglória e injusta encontrava finalmente o seu fim. Embora ninguém o dissesse abertamente, sob pena de censura social, era um alívio para quem ficava.

A morte, quando eu era criança, ainda estava em processo de mudança para os lares de terceira idade e era-nos mais próxima. Aparecia nos velhos com a boca ao lado, vítimas das tromboses que agora inspiram outro cuidado hospitalar e um desfecho bastante menos incapacitante. Aparecia nas estradas secundárias portuguesas, repletas de carros em terceira mão (antes do dinheiro da Europa) e de condutores incapazes de recusar o quinto digestivo e agarrados à ideia de que o cinto de segurança era uma mariquice passageira. A morte, apesar de não vir por mim, andava muito mais na rua.

Neste jogo em que participamos simplesmente por assistir à passagem do tempo vemos a morte acercar-se todos os dias cada vez mais. Toda a gente conhece as regras: à medida que o tempo decorre, as hipóteses diminuem. Não dá para protelar nem desistir. Desistir é, aliás, entregar o jogo e antecipar o desfecho.

Mas a morte está muito diferente. A massificação dos lares de terceira idade transformou a experiência da morte para a família dos velhos e moribundos. Há quarenta anos não havia tantos lares; as famílias eram ainda mais remediadas do que agora. Na maior parte dos casos, os velhos eram cuidados em casa até chegar a sua hora. Não subjazia a este hábito nenhum princípio humanitário: apenas não havia dinheiro para ser de outro modo.

A omnipresença dos lares e a imperiosa necessidade do trabalho feminino (eram as mulheres e as crianças sob supervisão das mulheres que cuidavam do acamado) acabaram por introduzir uma espécie de estágio para a morte. Já é muito raro os velhos passarem os últimos anos das suas vidas em casa ou na casa dos seus filhos, cuidados por estes. E, provavelmente – não tenho números, apenas a evidência anedótica de estar atento ao que me rodeia – cada vez mais cedo. A morte vai acontecendo cada vez mais longe: na cama do lar, no leito do hospital.
Teoricamente, não tenho nada contra o conceito dos lares. Até sei – todos sabemos, pelas migalhas de notícias cândidas que intervalam os desastres em série que são os o grosso dos telejornais – de histórias enternecedoras de velhos que foram para lares e que se apaixonaram e tiveram direito a uma última e inesperada volta no carrossel antes de serem expulsos da feira.

A especificidade desta pandemia global – cuja mortalidade é directamente proporcional à idade de quem vai infectando – revelou sem margem para grandes dúvidas aquilo que todos sabíamos sem o querermos admitir: que a maior parte dos lares, dos mais baratos aos mais caros, são verdadeiros entrepostos de corpos frágeis e mal cuidados alternando períodos semi-comatosos resultantes da sobremedicação com intervalos de rara lucidez desesperada. Não há nada de bondoso no lar, nada que o redima. Os velhos são postos lá para morrer e tudo corre contra eles.
Os filhos lá vão cuidando das suas vidas, uns visitam os pais nos lares, outros só lhes ligam de duas em duas semanas, outro nem isso. Até um dia chegar a notícia da morte. E porque os filhos são pais e os pais têm filhos e o tempo passa, de espectadores mais ou menos interessados acabamos por passar todos a utentes.

14 Ago 2020

Tentações

[dropcap]N[/dropcap]ão, por hoje. Hoje, não. “Hoje” é muito tempo. Agora, neste instante, por exemplo, o não, não é bem não. Não estou a negar nada. Não me passaria pela cabeça negar o que quer que fosse. Não declino nada, porque nada me é proposto nem por mim. Não me dá para nada. Não tenho vontade disso agora. O tempo do não é o tempo do sim. O tempo da inclinação é o tempo da queda e da possibilidade de me agarra ao que for para não cair. Mas agora, “não” é uma palavra, não tem significado, não é uma intenção, não faz sentido, a minha vida não depende disso. Ah! “Não”, “não”. Falta o quero. Quero não querer. Mas não me dá vontade nenhuma de querer. Para dizer não a sério, com convicção, para mostrar personalidade e carácter, tenho de estar a lidar com a tentação. Tem de ser a hora do diabo. E o diabo não é horrível, nem feio, nem repulsivo. É exactamente o contrário. O diabólico é encantador. Reveste-se de diversas formas, arma-se em toda a gente que nos fascina e oferece-nos toda a ocasião de queda. Aí sim, temos tudo para cair, para dizer sim e outra vez.

Pode ser uma rendição triunfante, acompanhada com um “que se lixe!”. Pode inaugurar-se com pompas e circunstâncias: “estão abertas as hostilidades”. Pode ser sem querer. Foi e pronto. Pode ser contrariados, porque não fomos capazes de evitar e estávamos a ver onde íamos parar na loucura já do mundo que se estava a abrir. Aí, sim. O não faz sentido. É naquele instante da loucura. Breve, brevíssimo em que podemos dizer. Agora, não. Podemos dizer de nós para nós. Dura pouco tempo a dizer não. Muito menos tempo do que o tempo do dia a passar. Mas a rendição pode dar-se já neste instante. É agora que é preciso estar atento. Não é de fora, quando ninguém quer a coisa, quando nos propomos a não, que podemos dizer “hoje, não”. Temos de começar por um “agora, não”. E temos de tentar agarrar-nos como uma tábua de salvação ao “não”, mesmo que seja só da boca para fora e repeti-lo como um mantra. “Agora, não”. Acrescentar o “agora” ao “não”. E um “obrigado” antes de toda e qualquer explicação que não virá. O diabo encontra sempre alguém para nos oferecer o que nos quer dar, são sempre pessoas próximas e as mais insuspeitas ou então estranhos que por serem estranhos também são insuspeitos e a hora pode ser uma hora qualquer do dia. E quando é essa hora do dia é a sério. Vem com um cheiro de uma fragrância que nos deixa acesos, vem como os acordes de uma melodia, vem com uma memória de dentro da nossa cabeça. Vem de repente não se sabe de onde e dá-nos uma vontade absurda.Olha para o que nos deu e para o que nos dá e são sempre vontades insanas. Aí a resposta convicta: “Agora, não” pode vir com um “Obrigado”.

Tudo fica preso da tentação, da nossa inclinação, da nossa tendência. É só aquilo que há, no que pensamos é só nisso, em queda livre. É o caos. Tudo isso é um breve instante. Um brevíssimo instante. A insanidade é que a alteração da existência dá-se na realidade mais neutra que possa haver. Pode ser no trânsito, pode ser na sala de estar, pode ser no meio de uma qualquer actividade do quotidiano. E não menos insana é a possibilidade de lhe cedermos, de cairmos, de arriscarmos. Tudo tem estado aí e não é como se não víssemos que tem estado aí, todos os objectos da tentação estão lá e é como se estivessem tapados mas à vista de toda a gente.

O nosso olhar não é transparente a maior parte do tempo para as nossas inclinações e desejos. Mas também é verdade que não é para sempre que eles estão resolvidos e que é para todo o sempre que lhes estamos insensíveis. O debate pode ser menos frequente, as vontades podem dar-se com menos violência, o desejo pode não ser o mesmo e pode parecer que se ausentou e nós somos outros e ficamos diferentes. E vem como uma vaga, uma onda. E é a sério o que dizemos. Não é por um dia. Hoje, não. Só por hoje, é a eternidade. Tem de haver estratégias para adiar um pouco mais a vontade. Ainda não. Um pouco mais de tempo. Cinco minutos é muito tempo, exposto à vontade tremenda que me dá. Um minuto é insuportável. O poeta contava os minutos em colheres de chá. É ao segundo. Segundo a segundo, trava-se uma batalha tremenda.

Estar por cima e estar por baixo torna-nos grotesco. A reflexão cartesiana é originariamente desejo logo existo, mas sou eu que sinto a falta de mim com o meu desejo “matado”. Sou eu que tenho de matar o desejo com o objecto de desejo que eu projecto e que depende dessa projecção que me usa para existir. “Agora, não. Obrigado”. Ainda resisto. Agora, a escrever não faz sentido. Não me apetece nada, não sinto desejo de nada, nada me faz falta. Agora, não obrigado” pressupõe um querer. Agora, não quero. Mas o querer não está vivo, não está activo. Mas quando está é tremendo. Segundo a segundo: não, ainda. Quase a ceder, mas resisto ainda. Como é a súplica? Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. O mal é “isto”. “Isto” é um conteúdo diferente para cada pessoa e para a mesma pessoa pode ser diferente ao longo do tempo. Há pessoas que têm muitos “males”, estão mais expostos e são mais vulneráveis.

A multiplicação dos males acelera e alarga o campo de obsessão compulsiva. Os objectos podem não ser nocivos e podem ser tão nocivos que nos convertemos nos escravos desses mesmos desejos e impulsos, só tendo sossego na terra de ninguém, depois da vergonha de lhe termos cedido e quando ainda não estamos a combater pela nossa subsistência, como Santo António e os seus pecados. As faltas, os pecados, as obsessões, as ideias fixas, os desejos, os amores, são o que temos na nossa agenda. A nossa própria existência é propulsionada por um motivo e um objectivo que nos faz estender e ir por aí além, mas resulta de uma saudade de ser independente e autónomo, livre, a olhar para cima e para a frente e não, como os gregos diziam dos animais no prado, a olhar para baixo e a esgotar o horizonte com o tempo breve em que se engole o que há para devorar.

14 Ago 2020

Separados pelo vírus

[dropcap]E[/dropcap]le desapareceu no outro lado do mundo. A oriente do oriente do oriente. Regressou ao desgoverno urbano e à incurável vedação do seu espaço mental, fecharam as portas, não o deixaram sair, a mim não me deixaram entrar.
Um vírus cansado a voar sobre os assuntos todos. Um soco nos nervos, uma mescla de fé com morbilidade. Um rebento vedado, restos de céu entre os meus braços durante cinco meses. Vultos instáveis a subirem pelas paredes da antiga casa da vila, onde os mortos e os recém-nascidos passam uns pelos outros como relâmpagos. Onde os traumas de infância amamentam a minha adolescência como um vento já conhecido porque já passou mais do que uma vez.

A minha mãe, força suspeita nas torrentes noturnas da serotonina anciã. Dar mais do que o que se pode, só quem pode. Um pânico por lavar deixado na sombra que abandonei no meu berço. Mas o destino! Cuidador informal deste ladrar cínico nas paredes do crânio. A doutora nunca esperou muito do meu sentido de identidade, por isso não se surpreendeu. Sou esboço em cãibras semi-legíveis, às vezes aspiro a ser agradável. Sentido de ego adaptado às características da vossa personalidade. Analisar, repetir. A informalidade mas a conversa certa para a ocasião, a conversa de ocasião numa ocasião de sorrisos obedientes, contagem dos mortos à hora de almoço. Por vezes louco, um sorriso insano no vislumbre da treva e nunca serei validada como como acima da média nacional. Toda lágrimas amadoras de ingratidão ao Serviço Nacional de Saúde. Meu amor, perdido no glitch nocturno de uma foto em Shenzhen. Esqueci-me do respeito que temos pelo silêncio. Desfiz-me desse silêncio prático das sirenes, do lixo tombado que insinua coisas terríveis, desperdício de ânimo nas hortas da banalidade que nos recusamos a cultivar. Aqui, aculturei-me de mim mesma, cobri-me de ruído à hora das sestas, das tantas sestas que faço e que preocupam as pessoas.

Meu amor, há entusiasmos assim ingénuos facilmente ofendidos, que não trazem certificado de presença. Entram só, assim, como um chamamento ao mundo como as fraldas que gostavas de estar a cheirar mas não podes, o sorriso que rebola terno entre o pretexto e a utilidade concreta de evitar o abandono. A madrugada que lhe chora por dentro. A quarentena desnecessária aos dois meses de idade. Mas diz-me, amor, sentes a mão sobre o peito do teu filho nas tuas cinco da manhã, nove da noite cá? Sentes o mar próximo da entrada de metro, o ar puro nos rostos bloqueados por questões de segurança, no vírus que viste à paisana e que tiveste quando tiveste dúvidas sobre nós? Só quero saber se vais voltar. Mesmo que intruso deste espaço-pátria vigiado pelo passado, sair do futuro – vigiado pelo governo, vais ser o presságio das coisas concisas, dos dizeres lacónicos, da desadequação necessária à sobrevivência das ideias únicas. Como regressar a ti quando regressares cá? Tão acima da média nacional, tanto extensão da carne nas veias do rebento, o sangue desagua-nos no mar onde estaremos de rastos, numa palavra-cabana sem leme possível, só o amor-instinto na ajuda à navegação, a divagar entre todas as linguagens que evitamos ensinar à criança.

14 Ago 2020

Holandeses voadores – II

3

[dropcap]S[/dropcap]obre a neve molhada, os pneus das bicicletas produzem um som sem gravidade. Gestos do fundo das lagoas ao jeito daquele lança-chamas subterrâneo que nos liga o corpo à calçada como se levitássemos. O horizonte desceu rapidamente, trouxe consigo um ar ainda mais fino, frio e rarefeito. Pousei os pés no chão e apalpei a câmara de ar, emprestando alguma virilidade ao acto.

De um dia para o outro, os canais gelaram. Uma beleza momentânea. Até os topázios e as esmeraldas são existências a prazo. Acabei por estacionar a meio do arco da ponte para poder observar as muitas dezenas de planetas coloridos que eram os impermeáveis das crianças a deambular sobre o gelo branco, intensamente de cristal.

Ela apontava com o dedo para aquela vista maravilhosa e insistia no facto de as histórias serem simples meteoritos, seres inacabados por natureza. Para estarmos à altura dos milhares de anos luz que se erguem no céu – levantámos a cabeça ao mesmo tempo e contemplámos o oceano cinza que nos reflectia o canal -, basta que caibam na palma de uma mão.

É desse modo, acrescentava ela, que pego num pincel antes de me atirar a uma tela.

Ao invés, eu detinha-me num orgulho quase cego. Apetecia-me negar, negar tudo. O que sobrasse de tanta negação havia de marcar encontro comigo numa cabana qualquer da floresta para me delatar os segredos e ler um poema que condensasse todos os que já foram escritos.

Mas que segredos?
Os segredos são carros de bois de eixo móvel que conseguem circular pelos trilhos mais ásperos, escarpados e enlameados.
É uma óptima definição do poço da morte para todas as acrobacias.

Sabíamos os dois mover a linguagem como se estivéssemos a construir mais um boneco no meio da neve. Contei mais de vinte só naquele passeio. Desaparecemos pouco depois com as bicicletas embrenhadas no gelo.

Ser contemporâneo desta paisagem – acrescentou ela num último momento – é sempre uma sorte. Uma sorte quase igual à respiração.

4

De encontro à tela explodia como um galeão cheio de prata, pelo menos era essa a luz com que fiava a sua mímica tão lenta. Uma seda de pequenos gestos. Por vezes recuava com a tesoura numa mão e o tubo de cola na outra. Ficava imobilizada a tentar perceber os efeitos das linhas negras que acabara de traçar.

Os minutos distendiam-se e ela imitava a fixidez de uma escultura de gesso com as costas a empurrar a parede, o quarteirão, a via láctea. Observava os detalhes e quando ressurgia, rodava os braços com o giz à imagem da pá de um moinho. Deste modo, as folhas de plátano misturadas com a cola, com o carvão e com a tinta infringiam a abstração inicial.

Ao recuar pela segunda vez, a superfície tinha-se já transformado no volume figurado de um pássaro. Era o que saltava à vista: duas asas erguidas pelo céu limpo, apesar das manchas e das texturas criadas pela folhagem que se desprendiam do plano.

Só quando virou de vez as costas ao trabalho, como uma gárgula que ignora os contrafortes da catedral de onde pende, é que se apercebeu da minha presença. Era tarde demais, é sempre tarde demais. Eu o intruso e ela a guerreira num dia que não teria tido começo. Sobre a mesa havia um vidro de Murano com uma única tulipa adoentada. Água a mais, pensei. Talvez fosse esse o sentimento de excesso com que de novo voltou a destacar um detalhe do quadro.

Era uma abertura – um círculo vago de uma crina ao vento – na parte de baixo que engolia, verdadeiramente engolia tudo o que a tela por cima ostentava. Um sorvedouro. E ela já ria sem parar. Construíra um mundo que se deglutia e devorava a si próprio.

E eu lembrei-me do anel de fogo do cachimbo que acendia a noite no meio da carruagem. Estávamos a poucos quilómetros de Verona e de cada vez que o vulto do fumador inspirava, e fazia-o como se ingerisse todas as viagens do universo, uma vida completa anunciava-se e logo se extinguia. O quadro repetia o aviso. A tulipa de folhas mortificadas incitava-o. Foi quando aprendi que a expressão “natureza morta” corresponde a uma palavra holandesa. Ela prenunciou-a então com vagar na minha frente: “Stilleven”. Literalmente significará “ainda viva”, mas a literalidade é um país sem qualquer esperança de primavera.

(continua)

13 Ago 2020

Um Festival de resistência fílmica em contexto de pandemia

[dropcap]O[/dropcap]AVANCA 2020, decorreu entre 22 e 26 de Julho na aldeia de Avanca, em Estarreja e em Ovar, sempre cumprindo as medidas de segurança que a pandemia obriga, seguindo as orientações e recomendações da DGS e do Governo, convém lembrar que Avanca faz fronteira administrativa com Ovar, território que esteve sitiado, em contexto de saúde pública, na situação pandémica atingiu Portugal.

Para além das habituais sessões no auditória da paróquia da freguesia de Avanca, no cine teatro de Estarreja e salas de cinema de Ovar, teve um cine drive onde se fizeram ouviram efusivas buzinas após as projeções de filmes, e intervenções dos convidados.

O GLOCAL, tendência que tem vindo a ser afirmada e que concilia o Global e o Local como modelo de desenvolvimento, activando sinergias, comércios e culturas, sem se fechar ao mundo e sem negar identidades e formas particulares de vida das comunidades, foi, nesta edição mais visível.

A habitual presença física de cineastas e investigadores de países distantes na geografia e por vezes formas culturais, foi este ano mais apagada, embora as tecnologias da web.0.2, e a plataforma Zoom em particular, tenha permitido presenças e encontros digitais.

Ainda em contexto de pandemia o Festival quis afirmar-se como peça de resistência, afirmando a necessidade de permanecer enquanto evento cultural cinematográfico de referência no tecido sócio cultural local e da região e dos festivais nacionais.
O Festival exibiu 111 filmes, entre curtas, documentários, e longas metragens de ficção. Foi neste ambiente de contenção de proximidade física, e de proximidade emotiva às histórias visíveis no ecrã que a competição nacional e internacional, o espaço de workshops, as conferências, exposições e debates, tiveram lugar, afirmando a resistência e a vontade de dar a ver e pensar cinema do AVANCA FILM FEST em direção à 25 ª Edição em 2021.

O grande vencedor do “24º Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia – AVANCA 2020”, foi a longa metragem Diapasão, do Iraniano Hamed Tehrani .

Venceu nas categorias: Prémio Cinema para a Melhor Longa Metragem; Prémio Melhor Argumento, e o Prémio D. Quixote da FICC – Federação Internacional de Cineclubes.

Nesta edição, para além de jornalista, estive na condição de júri em 3 competições. Na competição sénior – cineastas com mais de 60 anos, de forma colegial o filme ganhador foi The Prague Orgy de Irena Pavlásková | Rep. Checa / Czech Republic (112′) ficção / fiction

O filme dá-nos a ver uma reconstituição social e política de um período recente de um tempo de equilíbrio geopolítico bipolar traduzido na “guerra fria” e na cortina de ferro, bem como nas asserções de mundo livre ocidental e ferocidade totalitária nas repúblicas socialistas da União Soviética. Reconstituição cuidada, “décors”, guarda-roupa, exteriores e interiores, excelente casting, que serve uma narrativa fílmica que trabalha literatura e política, dando a ver o temor da vigilância totalitária em espaços aceites onde circulam as elites artísticas e políticas na cidade de Praga, após a invasão Soviética, num mundo anterior à vigilância global web.0.2. contemporânea. Interpretações consistentes, com destaque para protagonista feminina.

O festival fechou, a noite da última sessão, com o filme documentário “Por detrás da Moeda”, 93 minutos de Luís Moya.

Esta é uma das muitas produções locais presentes nesta edição. É um trabalho que conta duas histórias, dá-nos a ver os músicos de rua da cidade do Porto, as suas motivações, dificuldades e alegrias, entre as quais a experimentação de uma ideia radical de vida livre. Entre os vários personagens que vão surgindo, surge um músico de um grupo dos anos 80, os Peppermint Twist, a partir desse encontro, o documentário dá-nos a ver com particular insistência esse grupo, os contextos da época, e dois dos seus elementos.
O AVANCA é uma organização Cine Clube de Avanca e Município de Estarreja, com o apoio do ICA / Ministério da Cultura, do IPDJ, da CIRA, da Junta de Freguesia de Avanca, do Agrupamento Escolar de Estarreja, da Escola Egas Moniz, da Paróquia e das Associações de Avanca, tem ainda o apoio de várias universidades e escolas de ensino superior do país, empresas e outras instituições da região.

13 Ago 2020