Holandeses voadores – II

3

[dropcap]S[/dropcap]obre a neve molhada, os pneus das bicicletas produzem um som sem gravidade. Gestos do fundo das lagoas ao jeito daquele lança-chamas subterrâneo que nos liga o corpo à calçada como se levitássemos. O horizonte desceu rapidamente, trouxe consigo um ar ainda mais fino, frio e rarefeito. Pousei os pés no chão e apalpei a câmara de ar, emprestando alguma virilidade ao acto.

De um dia para o outro, os canais gelaram. Uma beleza momentânea. Até os topázios e as esmeraldas são existências a prazo. Acabei por estacionar a meio do arco da ponte para poder observar as muitas dezenas de planetas coloridos que eram os impermeáveis das crianças a deambular sobre o gelo branco, intensamente de cristal.

Ela apontava com o dedo para aquela vista maravilhosa e insistia no facto de as histórias serem simples meteoritos, seres inacabados por natureza. Para estarmos à altura dos milhares de anos luz que se erguem no céu – levantámos a cabeça ao mesmo tempo e contemplámos o oceano cinza que nos reflectia o canal -, basta que caibam na palma de uma mão.

É desse modo, acrescentava ela, que pego num pincel antes de me atirar a uma tela.

Ao invés, eu detinha-me num orgulho quase cego. Apetecia-me negar, negar tudo. O que sobrasse de tanta negação havia de marcar encontro comigo numa cabana qualquer da floresta para me delatar os segredos e ler um poema que condensasse todos os que já foram escritos.

Mas que segredos?
Os segredos são carros de bois de eixo móvel que conseguem circular pelos trilhos mais ásperos, escarpados e enlameados.
É uma óptima definição do poço da morte para todas as acrobacias.

Sabíamos os dois mover a linguagem como se estivéssemos a construir mais um boneco no meio da neve. Contei mais de vinte só naquele passeio. Desaparecemos pouco depois com as bicicletas embrenhadas no gelo.

Ser contemporâneo desta paisagem – acrescentou ela num último momento – é sempre uma sorte. Uma sorte quase igual à respiração.

4

De encontro à tela explodia como um galeão cheio de prata, pelo menos era essa a luz com que fiava a sua mímica tão lenta. Uma seda de pequenos gestos. Por vezes recuava com a tesoura numa mão e o tubo de cola na outra. Ficava imobilizada a tentar perceber os efeitos das linhas negras que acabara de traçar.

Os minutos distendiam-se e ela imitava a fixidez de uma escultura de gesso com as costas a empurrar a parede, o quarteirão, a via láctea. Observava os detalhes e quando ressurgia, rodava os braços com o giz à imagem da pá de um moinho. Deste modo, as folhas de plátano misturadas com a cola, com o carvão e com a tinta infringiam a abstração inicial.

Ao recuar pela segunda vez, a superfície tinha-se já transformado no volume figurado de um pássaro. Era o que saltava à vista: duas asas erguidas pelo céu limpo, apesar das manchas e das texturas criadas pela folhagem que se desprendiam do plano.

Só quando virou de vez as costas ao trabalho, como uma gárgula que ignora os contrafortes da catedral de onde pende, é que se apercebeu da minha presença. Era tarde demais, é sempre tarde demais. Eu o intruso e ela a guerreira num dia que não teria tido começo. Sobre a mesa havia um vidro de Murano com uma única tulipa adoentada. Água a mais, pensei. Talvez fosse esse o sentimento de excesso com que de novo voltou a destacar um detalhe do quadro.

Era uma abertura – um círculo vago de uma crina ao vento – na parte de baixo que engolia, verdadeiramente engolia tudo o que a tela por cima ostentava. Um sorvedouro. E ela já ria sem parar. Construíra um mundo que se deglutia e devorava a si próprio.

E eu lembrei-me do anel de fogo do cachimbo que acendia a noite no meio da carruagem. Estávamos a poucos quilómetros de Verona e de cada vez que o vulto do fumador inspirava, e fazia-o como se ingerisse todas as viagens do universo, uma vida completa anunciava-se e logo se extinguia. O quadro repetia o aviso. A tulipa de folhas mortificadas incitava-o. Foi quando aprendi que a expressão “natureza morta” corresponde a uma palavra holandesa. Ela prenunciou-a então com vagar na minha frente: “Stilleven”. Literalmente significará “ainda viva”, mas a literalidade é um país sem qualquer esperança de primavera.

(continua)

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