Sobre A Raiva (1963) de Pier Paolo Pasolini

[dropcap]E[/dropcap] então tudo explode de novo: «Silêncio absoluto» (silenzio assoluto), como exige Pasolini no seu guião. O silêncio do «inextinguível terror» atómico. O silêncio antes que a «voz da didascália» retorne, e o seu texto poético acompanhando os sóis de morte e as listras no céu: «Sonhos de morte (sogni di morte). […] Ah, crianças! (Ah, figli!) […] Não há mais nada, nada, nada (Non c’è più nulla, nulla, nulla).» Poema antes da implacável sentença de uma «voz de prosa» que afirma: «Luta de classes, razão de toda a guerra» (Lotta di classe, ragione di ogni guerra). Duas vozes, portanto, que se sucederam ou reagiram: duas vozes para dizer e repetir a posição dialéctica de Pasolini. Veja essas explosões: o ponto de vista político (a «voz de prosa») ensina-nos quais são, de facto, as «armas da luta de classes», conforme Bertolt Brecht já havia dito, e como disseram ainda Hannah Arendt ou Günther Anders nos anos sessenta.

Mas olhe para elas novamente, para essas explosões, olhe para elas mais algum tempo: o ponto de vista lírico (a «voz da poesia») sugere então que «essas formas no alto dos Céus» (queste forme nella sommità dei Cieli) são a nossa própria «realidade» (realtà).

Assim se organiza o olhar duplo de Pasolini: através de uma montagem surpreendente, ele ousa, frente a essas armas atómicas, persistir na sua pergunta poética, na pergunta dirigida – via Marilyn Monroe – à beleza das formas. Surgem então as imagens de pinturas abstractas (os quadros de Jean Fautrier, no caso), cujo «lirismo» vem sublinhar ou acusar a própria beleza dos céus perturbados por explosões atómicas. Momento intensamente lírico, mas momento que acusa tanto quanto sublinha, pois é o reflexo de uma ordem política que finalmente emerge, carregada desta vez – o detalhe é importante – pela «voz da poesia»:

«A classe detentora da beleza.
Fortalecida pelo uso da beleza,
alcançou os limites supremos da beleza,
onde a beleza é apenas beleza.»

Para quê os poetas, os pintores abstractos, os cineastas – que tantas vezes nos mostram a beleza dos corpos e dos gestos, os de Marilyn Monroe ou de Anna Magnani, por exemplo – nestes tempos obscuros em que existe uma «classe detentora da beleza»? Porquê dar a ver a beleza se mostrá-la equivale a abandoná-la entre as mãos do inimigo? Será a própria beleza um objecto da luta de classes? Uma série de fotografias mostrando típicas mulheres burguesas, caracteristicamente vulgares por estarem «carregadas de jóias» (ingioiellate) durante as noites de ópera, pontua toda uma reflexão, ainda trazida pela «voz da poesia», sobre a apropriação burguesa da beleza, mas também da natureza e da própria história:

«A classe detentora da riqueza.
Alcançou tanta confiança na riqueza
que confunde a natureza com a riqueza.
Tão perdida no mundo da riqueza
que confunde a história com a riqueza.»

Tocado – como Georges Bataille – pelas relações entre a beleza e o mal, Pasolini passará a situar o conflito dentro da própria beleza. A seus olhos, Marilyn encarna a «beleza pela obediência», a beleza de uma pessoa radiante, clássica e jovem, apropriada pela classe burguesa através do que Theodor Adorno já chamava de «indústria cultural» e do que Guy Debord ainda não chamava de «sociedade do espectáculo». A seus olhos, as explosões atómicas reificam a «beleza através do terror», a beleza de um processo de destruição absoluta nas mãos dos modernos senhores da guerra. Para ele, as pinturas de Fautrier representam – indevidamente, mas pouco importa aqui – a «beleza pela beleza» de que a burguesia de hoje, como Enrico Scrovegni na época de Giotto, se apropria a fim de apaziguar a sua má consciência (não contente em apropriar-se da história, quer também apropriar-se da história da salvação, no caso de um Scrovegni, ou mesmo da história da arte, no caso de um Henry Clay Frick ou, nos dias que correm, de um François Pinault). Eis porque, na sequência imediatamente seguinte, duas imponentes portas se fecham diante dos nossos olhos, como se a beleza nos tivesse sido negada pelos donos da riqueza:

«A classe da beleza e da riqueza,
um mundo que não [te] ouve.
A classe da beleza e da riqueza,
um mundo que [te] deixa do lado de fora da sua porta.»

E é então que os mineiros voltam do fundo do filme, como se saíssem do fundo da sua mina. É quando emerge a outra beleza, a beleza tão estranhamente bela de carregar o seu outro, a dor mais antiga. Vinte e três mineiros estão de volta do fundo da mina, carregados pelos seus camaradas e chorados pelas suas esposas ou mães. É o que vemos primeiro, como o exacto contraponto às vidas «carregadas de jóias» das burguesas da ópera, ou até mesmo à morte da própria Marilyn sob a forma de «pó de ouro». Aqui estão as mulheres de cinza, de preto, as mulheres que se debatem com o luto, que se lamentam, que se calam dignamente ou que lançam os seus gestos de raiva contra as autoridades capazes apenas de «gerir o acidente». E Pasolini compõe, através da «voz da poesia», uma espécie de ode, uma humilde canção fúnebre para esse povo atingido pela brutal explosão:

«E a classe dos xailes pretos de lã,
dos aventais pretos para algumas liras,
dos lenços que envolvem
os rostos brancos das irmãs,
a classe dos gritos antigos,
das expectativas cristãs,
dos silêncios fraternos na lama
e do cinzento dos dias de lágrimas,
a classe que dá valor supremo
às suas pobres mil liras,
e que nisso fundou uma vida
mal capaz de iluminar
a fatalidade de morrer.»

tradução de:
DIDI-HUBERMAN, Georges, Sentir le grisou, Paris, Les Éditions de Minuit, 2014, pp. 61-70

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