Recaída

[dropcap]O[/dropcap]s distúrbios que admitem uma possibilidade crónica de recaída estão bem caracterizados. As actividades que estão associadas a tais distúrbios são preferidas a qualquer outra actividade. Tais actividades persistem a despeito das péssimas consequências. Qualquer adicção é assim.

No limite, quem está agarrado a uma substância intoxicante prefere as actividades que a promovem e estão ligadas ao seu consumo do que qualquer outra actividade mesmo que no passado lhe tenha dado um grande prazer ou em si tenha um grande valor existencial. Um consumidor de heroína ou crack vai dar-se com outros consumidores e fazer o que eles fazem para arranjarem o produto, em vez de estar com a sua família de origem ou a família que criaram, vão dedicar-se de manhã à noite a tentar arranjar droga, antecipar o próximo transe ou a ressacar a pedrada em vez de trabalhar, praticar desporto, fazer o que quer que se possa fazer no dia a dia. Por outro lado, persistirá em levar a cabo o conjunto de actividades ligadas ao consumo, mesmo sabendo que põe a saúde e em última análise a vida em perigo.

Mas o que é a recaída? A recaída é a incapacidade de parar de tomar substâncias adictivas para sempre: drogas, álcool, nicotina. Note-se que é possível a abstinência e até por períodos longos de tempo. É até possível que um a adicto nunca mais volte a usar a sua substância de eleição do momento em que suspende a toma até ao final da vida. Mas a recaída é uma possibilidade que existe na vida de uma pessoa propensa ou talvez como se deva dizer com a doença da adicção. E mais. Quanto mais tiver passado tempo desde que deixou de consumir mais iminente está o tempo da recaída. Devemos olhar para a estatística como para uma possibilidade não como para uma realidade que vai fatidicamente acontecer. Como possibilidade dá que pensar. E faz sentido. Logo a seguir à abstinência, o consumidor está num momento revolucionário, está a lidar com várias dimensões da sua vida completamente novas. Provavelmente, está num ambiente diferente do da sua casa. Está numa clínica de desintoxicação. Tem uma agenda própria, com toma de ansiolíticos e se calhar anti-depressivos. Tudo é novo para ele. Tem terapia ocupacional. O corpo regenera e sente energias que nunca tinha sentido. Mas o quotidiano há-de instalar-se e com o quotidiano, virão ocasiões que farão criar situações propícias para a recaída. Tudo o que estiver ligado a stress e ansiedade mas também a prazer e euforia, na verdade, qualquer ocasião de alteração percepcionada relativamente ao estado normal será propícia à recaída. Vem uma vontade enorme de beber um shot da bebida de eleição, dar um cheiro, um shot, tomar um comprido, dar uma passa, seja o que for. Esta vontade não é uma escolha. Vem como uma vontade que dá ao consumidor e é avassaladora, incontrolável. Contudo, o que se passa a seguir é feito sob hipnose ou resulta da sua vontade?

É sob o estado hipnótico e contra a sua vontade que vai ao ATM para levantar dinheiro? Se não tiver dinheiro, vai pedir dinheiro aos seus amigos e familiares como? Para roubar tem de tomar medidas, fazer escolhas.

Tem de ir a sítios, executar tarefas. Depois, se não arranjar dinheiro, tem de vender os bens que roubou. Tem em todo o caso de levar o dinheiro ao locar onde compra droga ou fazer vir o dealer até si. Só no fim vai para um ambiente da sua escolha onde se sente em segurança para cheirar ou injectar-se. O alcoólico tem a tarefa mais facilitada, porque pode ter tudo em casa. Ainda que se estiver sob medicação, terá de esperar alguns dias para beber sem mal estar.

Mas a ânsia, a vontade tremenda, de consumir, ficar bêbedo ou pedrado não é uma escolha. E não tem que ver com prazer. Há uma diferença fundamental entre prazer e necessidade. Querer fumar um cigarro, para inalar a nicotina, é uma vontade desesperante e não tem que ver com prazer. Há prazer associado ao alívio sem dúvida, mas haverá mais prazer ou alívio?

Na psicologia da adicção, a recaída é uma inevitabilidade como possibilidade. O facto de uma pessoa recair efectivamente não é uma inevitabilidade. É difícil de saber se alguém terá o seu sistema, a sua existência, a vida do ponto de vista biológico, cerebral, somática, mental tão limpa como a tinha quando não tinha causado danos. Não se sabe se os danos são irreversíveis. Sabe-se, contudo, que a continuação é o estado de morbidez permanente e o lento suicídio.

Mesmo com o risco da recaída, não há outra possibilidade. Não é perdido por um, perdido por mil. A abstinência, a sobriedade, é a única possibilidade de regeneração do cérebro e assim do círculo vicioso que se criou para si próprio, em que o sentido da existência é a expectativa de uma subida do prazer, de uma ida às alturas, da euforia, mas só para uma queda inevitável. Quanto mais alta é a subida, de mais alto é a queda.

Sobe-se e desce-se muitas vezes, mas nunca se chega sequer à normalidade em que as pessoas normais se encontram. Está-se mesmo lá em baixo, com uma fasquia baixíssima, sem saber se haverá outro dia. O amor por uma substância é a loucura, nem sequer é estúpido. É suicida.

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