Um sim um não

[dropcap]A[/dropcap]inda há quem disfarce mal o incómodo de não poder saudar o outro quando o vê. Diz olá com as duas mãos no ar. “Pronto. Já estamos cumprimentados”. Há uns meses havia beijos e abraços.

Agora, sideramos com o olhar os que ainda não desbloquearam mecanismos antigos e só os desculpamos porque sabemos que estiveram muito tempo sem ver ninguém. Afastamo-nos uns dos outros claramente.

Criamos uma bolha tensa, com vectores centrífugos, repulsivos. Sentimos o mesmo da parte dos outros, nas filas para entrar onde quer que seja, nos momentos em que nos distraímos a olhar para os preços das coisas nas prateleiras dos supermercados, a apalpar fruta ou quando vamos a algum sítio público pela primeira vez e ainda não sabemos quais são as regras específicas de entrada e ocupação desse espaço. É diferente ir a um restaurante, a um café, a uma clínica, a um supermercado, à praia, à beira rio. Há regras comuns mas também há depois regras específicas.

A distância que criamos uns dos outros metro e meio, dois metros ou três metros facilmente é estabelecida e reposta, quando perdida. É estranho ver as filas que os lisboetas fazem. Sempre foram muito ordeiros, muito mais do que os alemães, por exemplo, para entrar nos transportes públicos. Não acho que haja sequer fila para se entrar num autocarro na Alemanha. Basta um português distrair-se e meter-se na fila, e é logo vilipendiado como se a voz popular fosse a voz de um Deus homicida. Agora, a distância é respeitada.

Fazem-se filas nos passeios opostos àqueles em que estão situadas as entradas dos locais onde se quer ir. Na praia, sabemos como há muita gente que estende a toalha em cima dos outros e levam ao limite da paciência a noção de “gregário”. Agora, eu reajo mal já a três metros, como se criaturas antipáticas me estivesse a invadir a sala de estar.

O mais estranho de tudo é o modo como encontramos as salas dos restaurantes. As mesas não estão equipadas. A toalha branca com pratos, talheres, copos e guardanapos, inexistente deu lugar à mesa despida só com a sua cor castanha, o mais das vezes. As mesas separadas umas das outras à distância milimetricamente medida dá uma sensação inóspita de mesas vazias à espera de clientes que ainda não vieram e ainda não se sabe se chegarão, porque não se habituaram ainda a vir jantar fora. Mesa sim mesa não é o que há. Retiraram as mesas não e deixaram ficar as mesas sim. Cadeira sim, cadeira não, deixam sentar as pessoas nas cadeiras sim e não deixam sentar nas não. Mesmo que não haja a marcação a interditar sentar-se, uma sala esvaziada na metade da sua lotação, as mesas não equipadas para esperar pelos clientes, os empregados de máscara, tudo muda.

O que muda mesmo é a totalidade da apresentação. Não é apenas do outro que importa guardar as distâncias, como se fosse dos outros que esperássemos a agência patogénica, seres transmissores da Covid-19. Assim, guardaríamos activamente a distância por um resguardo contra um invasor. A questão inverte-se porque podemos ser nós mesmos portadores sem sintomas da doença. Quando pensamos nessa possibilidade, é óbvio que a atenção é redobrada. Guardamos a distância proactivamente, como se nós próprios fôssemos transmitir a doença, aos mais próximos e aos mais afastados. Ao ter sempre presente essa possibilidade, a atenção dada aos gestos mais simples do quotidiano ganha um sentido que estes não tinham, porque executá-los ou não os executar significa não ser agente do mal ou ser agente do mal, transmitir ou não transmitir a doença. A guarda fechada é eficaz mas é uma medida adhoc, está na expectativa, depende da realidade a que se está exposto. A compreensão da possibilidade de que se pode ser agente patogénico muda a nossa percepção da realidade a cada instante e não só a percepção, também insta à execução que põe em prática as medidas adoptadas.

Um sim, um não. É o que é, para já. O insólito e o sinistro dilui-se, se percebermos que era o que teríamos feito se a sala do restaurante fosse a nossa sala de jantar e estivéssemos à espera de convidados que pudéssemos vir a contagiar.

O nosso ser com os outros não é nunca só passivo, reactivo, é também activo, proactivo. No modo como os outros nos aparecem não há só percepção. Toda a percepção tem de estar associada a um cuidar do outro na relação consigo. Só assim também se percebe o descuido e a negligência.
Um sim, um não.

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