Votos para 2019

[dropcap]E[/dropcap] de repente faço sessenta anos (sou capricórnio) e recebo a visita de um neto, antes mesmo de ter tido um béguin com a Stephanie do Mónaco. A vida é ingrata!

Esta falha horroriza-me, nem sequer consegui ser guarda-costas da filha da Grace ou segurar-lhe as maças no circo. E em que zona das omoplatas me enxertaram um neto, se as minhas células continuam a regenerar à velocidade com que os supersónicos engolem nuvens de algodão doce e, por amor, me dispunha a renunciar aos princípios republicanos, de tal modo que ambos no fim tatuaríamos no peito um Leão da Tasmânia?

«Estamos alegres. Nem rato/ porá a casa em desacato,» sentencia o Robin de Sonho de Uma Noite de Verão, que acabo de reler, e sinto que o desacato personificou no rapaz gentil e falador de 9 anos que me entrou em casa nestes festejos e me desviou o pensamento da estratégia de me aproximar do Mónaco para conhecer a alvorada na intimidade de uma mulher que, dizem as revistas cor de rosa, choca os seus súbditos por não aparecer maquilhada nem esconder as rugas. Tudo o que me convinha.

O importante é que ela não cantasse, pois eu sou um gnomo honesto e seria incapaz de mentir-lhe.

E espero que o puto não me volte a visitar antes de me apresentar à Beth Hart, a cantora de blues, e de interpretarmos os dois no duche Caught Out In The Rain, fazendo disso cicatriz do destino.

Não esperem menos de mim que do Dominguín, o toureiro que foi amante de Ava Gardner e a deixou sozinha na cama às duas da manhã; respondendo, face ao espanto dela por ele sair da cama, Desculpa lá, mas agora tenho de ir ao bar contar que ando a comer a Ava Gardner, pois para mim metade do gozo está em contá-lo.

Fui sempre um rapaz recatado, mas esta onda de pez em que o «politicamente correcto» nos promete naufragar dá-me uma vontade irredutível de vos anunciar como vai ser, em 2019.

Na primavera rumarei à Escócia para dar uma oportunidade à Ali Smith para me conhecer. Depois proponho-lhe uma viagem no tempo, recuaremos vinte e cinco anos. Após o que talvez nos despenhemos no amor. A imaginação dela convém-me muito.

No verão, não regressarei imediatamente a Portugal depois da viagem que, está estabelecido, farei a Lisboa com a mulher e as filhas. Armarei uma estratégia para elas regressarem sem mim, e ala para a Bordéus, onde se encontra a escritora galega Luísa Castro. Do mais seria indecoroso falar, mas com certeza que a interrogarei sobre Los versos del eunuco, Los hábitos del artillero ou Una patada en el culo y otros cuentos, livros dela que me agradam muito.

Em Outubro deslocar-me-ei ao Canadá para discutir alguns tópicos de Oedipal Dreams com a sua autora, Evelyn Lau. Tudo dependerá de muito, mas se averiguar que ela não teve qualquer relação com o poeta americano Charle Simic – para mim, mulher de amigo é homem -, não me farei rogado e pode sair que algo corra entre nós, por exemplo, um livro a meias e em alexandrinos.

No Inverno repousarei.

A filha de Bukovski tem-me escrito, quer vir fazer-me a receita favorita do pai: bifes com ervilhas. Mas resguardo-me de quaisquer encontros com os mitos, temo a sua senescência.

O meu neto é que a sabe, fala como já floresceram as varandas em Verona.

Nos intervalos que a visita obrigatória ao Kruger com o miúdo me deixou, li dois livros deliciosos: Retalhos do Tempo/ Um memorial de Dublin, de John Banville, absolutamente recomendável, e a comédia de Shakespeare, numa excelente tradução de Maria Cândida Zamith.

O que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é pensar como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreira do bardo. A peça é estruturalmente enxuta e perfeita, mas a surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece elitista) sem a menor reserva e aprendendo trechos de cor.

Veja-se este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos (- que fui buscar à tradução brasileira, que li primeiro, e que é o único trecho que prefiro a esta nova tradução da Relógio D’Água):

«Demétrio

O rapaz que jaz é um ás da morte.

Lisandro

Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.

Teseu

Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador elisabethiano acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.

Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.

Hoje o Shakespeare não teria editor e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.

E agora deixo-vos com uma variante minha à última fala de Oberon, na peça: «Agora, até à alvorada,/ Vá pela casa cada foda/ A melhor noiva escolher,/ Sua cama abençoar;/ (…) Cada foda vá voando/ Cada quarto abençoando/ Neste palácio amoroso: /E o seu dono, venturoso,/ Sempre descanse feliz./ Que se faça o que se diz».

São os meus votos.

28 Dez 2018

A Desordem e o Ódio

[dropcap]É[/dropcap] famosa a fúria de Samora Machel quando descobriu que afinal Mutimati Barnabé João (autor de “Eu O Povo”) fora uma invenção de António Quadros e não um guerrilheiro frelimista, morto em combate.

Percebe-se mas denota a ingenuidade do líder moçambicano, nesta matéria. Não se fazem bons poemas por ordem e graça do Espírito Santo. E a poesia não brota da sageza, da espontaneidade, ratice ou boa vontade, mas do domínio, técnico, e duma feliz dosagem entre as valências da memória e da imaginação, e quando a uma certa tradição retórica se conjuga a circunstância e a oportunidade. Ademais, por gracioso que seja António Aleixo não se compara a Fernando Pessoa.

Durante o regime socialista, como aconteceu nos outros países da mesma feição política, Moçambique foi habitado pelo dogma de que toda a gente era poeta ou artista. O que é confundir os iguais direitos que a todos cabe a montante com o que cada um faz disso a jusante.

Do mesmo modo que não me tornei cientista atómico nem escultor, a poesia não é para todos. Embora continue a haver muitos mais imitadores de poetas do que poetas.

O Cartier-Bresson fez dos mais notáveis enquadramentos da fotografia do século xx porque tinha atrás de si um curso de pintura – arte a qual abdicou, depois de ter interiorizado toda a história da disciplina. Não nasceu do nada aquele “vício natural” de enquadrar as fotos como se cristalizasse num clic a harmonia condensada de um universo.

Sim, o desejo é capaz de produzir objectos ou acções que transmutam o saber em novas formulações ou relações, mas para isso é necessário sublimar algo já existente, seja da ordem da sexualidade, duma crença ou de qualquer repertório técnico-discursivo.

Vale o mesmo para a rebeldia política, como movimento capilar, se por um lado fascina o apelo romântico da luta hoje é um crime abstrairmo-nos da história política dos últimos cem anos, pois esta destruiu a idade da inocência, e não foi só para os militantes.

Já estes caracterizam-se por presumirem uma unidade formal para a luta por via de uma transcendência – personificada no comité central do partido, ou nos dogmas da ideologia ou do nacionalismo, como realidades superiores. Depois, com mais ferocidade acrescida exercem as suas tarefas de organização e de exterminação. E os fins valem sempre os meios.

Sempre preferi os rebeldes, aquele que actualizam uma potência sem o filtro de uma filiação, que a uma necessidade visceral de justiça ou de mudança aliam uma causa concreta ou uma reavaliação dos valores. O que por vezes deu mudança de paradigmas, como em Maio de 68.

Mas isso assusta. Daí que Carvalho da Silva, o antigo dirigente sindical, tenha dito sobre os “coletes amarelos”:

“Não há democracia sem estruturas de mediação, os sindicatos, como muitas outras organizações, existem para representar interesses específicos, e a quem a sociedade pode responsabilizar; nestes movimentos inorgânicos perante a ausência de estruturas de mediação, isso torna-se uma bagunça e nega a democracia”.
É uma evidência que a democracia pode ser a primeira vítima do seu próprio sucesso mas esta será uma forma simplista de colocar as questões.

Como não simpatizar com os “coletes amarelos”?

Ainda que a sua força seja a sua fraqueza: a sua recusa de líderes e porta-vozes é eficaz (já foi) numa acção pontual, em prolongando-se pode cair na indistinção e na instrumentalização por grupos radicais.

Macron começou arrogantemente e afinal a sua inflexão neo-liberal dobrou como o junco diante da violência da realidade. Agora, dada a capilaridade da comunicação hoje em dia e os contágios que daí advêm é de perguntar se a reivindicação de que Macron abdique não terá já uma dedada da extrema-direita.

Em Portugal o movimento tem a sua primeira manifestação marcada para esta semana. O poder está apreensivo – foi de cem euros, a cedência de Macron no aumento do ordenado mínimo – e curiosamente a UGT e a CGTP já se colocaram de fora das reivindicações. Não querem estar “fora do sistema”, serem considerados arruaceiros.

Entretanto, o que mais desconcerta e ninguém quer pensar é a atmosfera de uma crispação latente que borbulha quer nas redes sociais, quer no descontrole com que num ápice os comentários dos leitores nos jornais se aproximam da arbitrariedade do ódio. É um sintoma acabrunhante.

O ódio toma conta das sociedades. Com profetas eleitos: Trump e Bolsonaro, que elevaram à legitimidade a arbitrariedade, o espírito arruaceiro e a impunidade. Tudo o que é arcaico, as pulsões mais retrógadas têm agora uma âncora para se assumirem sem vergonha.

A notícia mais simples e anódina é trampolim para exercícios de picardia e de desqualificação mútua entre os comentadores, o objecto da notícia não passa de um pretexto.

Na semana passada, António Lobo Antunes deu uma entrevista em que se afirmava a favor de uma só nação ibérica. Com raras excepções não se trocaram argumentos nos comentários que se lhe seguiram, não se discutiu uma ideia; antes se amontoaram as notas denegridoras sobre o escritor, as sentenças e a condenação sem freio que roça o ódio.

Todavia, há vinte anos, se um Virgílio Ferreira, um Eduardo Lourenço, um Prado Coelho, uma Agustina ou o Abelaira, manifestavam uma ideia considerada controversa havia em primeiro lugar uma suspensão da opinião. Se aquela criatura dizia tal, ponderava-se, porque a autoridade de milhares de páginas escritas por aquele autor pesava.

Agora há uma manifesta falta de humildade e a sentença de um mecânico de automóveis, de um marceneiro, de um polícia, de uma empregada doméstica, de um trolha, de um enfermeiro, parece equivaler-se à de um escritor consagrado. Também as democracias liberais caíram na distorção do socialismo e confundem o justo direito à igualdade a montante com a propriedade da opinião a jusante. Todos pensadores de primeira água, todos são poetas e artistas.

E entretanto esconde-se um fascista não declarado entre cada três comentadores.

20 Dez 2018

Lisboa-Porto

[dropcap]N[/dropcap]a plataforma dos comboios da estação do Pragal, a vassourinha da mulher da limpeza empurra heroicamente a beata para a pá de plástico. O pé direito segue o ritmo da canção popular que um aparelhómetro enganchado no bolso da bata emite a plenos pulmões, ainda que roufenhos: Milho verde milho verde, ai à sombra do milho verde namorei uma cachopa.

A senhora tem o ar empanado de não lhe sobrarem ilusões numa única das células e as rugas, só no queixo – cinquenta anos incrustados em setenta e oito de aparência -, desenham-lhe o mapa do metro de Londres. Porém, o pé não se alheia do ritmo, enquanto a pá, focada, atrai as beatas, os recibos, bilhetes, os invólucros dos sugos, e os lábios mimam a música, dando um semblante de vida à sua irrelevância. Muda a cantiga (brega, piorou muito), que ela continua a partilhar com os passageiros: é o seu ponto de equilíbrio.

No átrio da estação, ao balcão do Café Delta, aquele jovem mulato continua a servir bicas. Com o cabelo rapado até à linha da trepanação, de onde desponta um tufo com pretensões a ser onda, num stile japónico mas em carapinha. Ressalta o seu olhar vivo na face macilenta, acostumada a ver repetidos os gestos de uma existência tartamuda. Sem dúvida que o penteado é o que lhe dá ainda um arremedo de identidade, a ilusão de que tem uma ponte para a vida, apesar da merda que ganha, das varizes que lhe ameaçam as pernas.
O nosso ponto de equilíbrio é tão frágil e imaterial. Não vos digo o meu.

Escrevo: «Que dia penumbroso/ e perlado de verde, compreendo/ porque hibernam as abelhas/ enquanto os pés se me enregelam e aqui e ali// reluz o dourado dos olmos. / Belíssima a paisagem,/ paira como um solo de John Surman,/ ou o porfiar da cegonha que perfura/ o mais espesso da melancolia. //Começa a ser tarde/ na minha vida/ e pela primeira vez intuo quem sou:/ o macio intervalo/ entre os pinheiros.»
Seriam olmos, interrogo-me? A impropriedade com que designo a natureza desgosta-me, mas que fazer se sou um rapaz da cidade?

O Camus, nos seus Cahiers refere a nossa inabilidade para designarmos os viventes e os processos na natureza e define-a como um dos cancros do século (XX). Piorou, entretanto.
E recordo um verso do poeta e cineasta António Reis que nunca mais esqueci: “Soletrar olmo como quem ouve um trovão distante”. Que invejável exactidão.

As sílabas do cansaço são mais extensas e friáveis. É o que se sente quando a insónia nos visita, no comboio.
As palavras, que também necessitam de dormir, desprendem-se do corpo, autonomizam-se e impedem que nos acostemos em quietação.

Quem viu os olhos de um insone percebe-os fugitivos e luminescentes como os comboios que cruzam a noite. Por muito que isso torture a vítima, os seus olhos nessa altura não são enjoadamente neutros.
Fui demasiadas vezes atravessado por períodos de insónia e tempos houve em que andava muito de comboio, de Lisboa para o Porto, ou para Coimbra, em viagens semanais a que obrigavam o trabalho.

Pelo menos metade das viagens fazia-as de noite e gastava-as lendo e escrevendo. Escrevia para evitar ser cavalgado pela insónia, imprimindo eu as pausas, os ritmos e os temas às palavras para não ter de enfrentar o nó corredio das frases ininterruptas. E enchia os cadernos de anotações variadas, de ideias volantes e anotações à leitura, de esboços de contos, poemas ou artigos, de crónicas e registos de coisas que ouvia no comboio, etc. Durou três anos esse meu período de viagens consecutivas de comboio.

A esses cadernos julgava-os ter perdido quando me mudei para Moçambique. Afinal deixara-os em casa de um familiar que mos devolveu dez anos depois de me ter tornado emigrante. Guardados numa caixa, dezassete cadernos cartonados de capa preta de linho, que acabaram por se revelar um viveiro.
Os argumentos da maior parte dos meus contos, desde então, nasceram dessas anotações apressadas e até muitos diálogos neles limitei-me a deslocá-los e transcrevê-los, correspondendo a registos de conversas avulsas ouvidas na viagem.

Como agora vivo noutro território desloquei o lugar da acção nalguns deles, como em Cabriolices das catatuas ou em O Triunfo do Amor, cujos enredos no essencial foram-me dados nesses trajectos.

A Arca (publicado na revista Caliban) nasceu de uma converseta anotada entre um pai e um filho, e ocorrida no troço entre o Entroncamento e Santarém, segundo a anotação apensa ao texto. A criança, de uns seis anos, começou por perguntar ao pai o significado da palavra «lotado», para depois passar à dúvida excruciante:

Pai, o Céu nunca fica lotado?

Esse breve diálogo anotado em dez linhas, impeliu-me ao conto quinze anos depois e escrito de jacto.

Este vaivém dos comboios leva-me a um dos títulos que vou apresentar agora ao editor a quem proporei reeditar todos os contos em dois volumes: Comboios Astrologicamente Vigiados.

Rio-me a bom rir quando ouço a avó perguntar às duas garotas gémeas que foram aos lavabos: Então, as meninas fizeram xixi? Sim, responderam as miúdas. E puxaram as “iáguas”, pergunta ansiosa a avó.
Rio-me por dentro, a pensar na Francisca do Oliveira, onde se ouve aquela bela frase, “a ialma é um vício!”, e a lembrar-me que depois um “chato” numa crítica quis explicar que “a fórmula” não passava de um efeito inane de estilo, tendo invertido a frase, para demonstrar a sua insubstancia: “um vício é uma ialma!”.
E não é que todos tinham razão, até esta avó que nunca confundiria iáguas com águias!? E como explicar esta diferença às duas belas ucranianas que viajam no banco ao lado?

Devia sair com elas agora, em Aveiro, para, pelo menos, me banquetear com um dos meus pratos: ensopado de enguias. Despeço-me de tudo.

13 Dez 2018

Sujata Bhatt

[dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes .

Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder.


UDAYLEE

Apenas papel e madeira são imunes
ao toque de uma mulher menstruada.
Então, eles construíram este quarto
para nós, ao lado do estábulo.
Aqui, estamos autorizadas a escrever
cartas, a ler, e este recolhimento dá azo
a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha.

À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas.
E quando não consigo dormir, desato a marchar
ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo,
de minha estreita rede para a estante
aboletada de jornais, empoeirados,
e de búzios castanhos brilhantes e uma concha,
que fazem de pisa-papéis.
Quando não consigo dormir, pego na concha
e encosto-a à orelha
só para ouvir a torrente do meu sangue,
o latejar de uma canção, o rufar
lento, dentro da minha cabeça, dos quadris.
Esta dor é o meu sangue a fluir contra,
apressando-se contra alguma coisa –
as ancas nodosas do meu sangue,
é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas
levantavam-se com a espuma,
subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia
abafavam os ovos de tartaruga recém-postos.

AS VOZES

Primeiro, o som de um animal
que tu nunca imaginaste.

Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe.

E então as vozes tornam-se berrantes.

A voz de um anjo falecido recentemente.
A voz de uma criança que recusa
terminantemente tornar-se um anjo com asas.

A voz dos tamarindos.
A voz da cor azul.
A voz da cor verde.
A voz dos vermes.
A voz das rosas brancas.
A voz das folhas arrancadas pelas cabras.
A voz da cobra da mina.
A voz da placenta.
A voz do couro cabeludo de uma caveira
cujo cabelo cai atrás do vidro
num museu.

Costumava pensar que eram
só uma voz.
Costumava esperar
pacientemente que uma voz regressasse
e começasse o seu ditado.

Estava enganada.

Não consigo acabar de contá-las desde agora.
Não consigo deixar
de escrever tudo o que tem para dizer.

A voz do fantasma que deseja
morrer de novo, mas desta vez
num quarto brilhante com flores fragrantes
e diferentes parentes.
A voz de um lago congelado.
A voz do nevoeiro.
A voz do ar enquanto neva.
A voz da rapariga
que continua a ver unicórnios
e fala com os anjos que conhece pelos nomes.
A voz da seiva dos pinheiros.

E então as vozes tornam-se berrantes.

Às vezes ouço-as
Rindo da minha confusão.

E cada uma das vozes insiste
E cada uma das vozes sabe
que isto é a verdade mesmo.

E cada voz diz: segue-me
segue-me e eu levo-te …

CIÚMES

Vou para a cama e então aquele homem
senta-se no quarto ao lado e continua
rindo, dos seus próprios escritos.
E então eu bato na porta
e digo, ‘agora Jim,
pára de escrever ou pára de rir!
Nora Joyce

Uma mulher come o seu coração exposto
e a janela de perto de sua cama é muito pequena
e não vai fechar
correctamente — o seu coração tem um gosto
doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura –
mas a lua quer lá saber
de qualquer maneira a lua parou
há muito de ajudá-la.

A ópera acabou
e uma multidão de passos lépidos,
tantos saltos altos, tamborila
rente à sua janela.

Não há estrelas esta noite.
Somente nuvens que se movem
muito rapidamente para a porem tonta.

Ela vai fechar os olhos
mas não vai dormir
vai continuar a comer o seu coração
exposto a noite toda –

e de manhã há-de pensar numa maneira
de encaixar a janela.

O ESCRITOR

A melhor história, é claro,
é aquela que não podes escrever,
a que não vais escrever.
Eis algo que só pode viver
no teu coração,
não no papel.

O papel é seco, liso.
Onde está a terra
para as raízes, e como faço para levantar aí
árvores inteiras, a imensidão da floresta
chegada do coração do espírito –
transumância no papel,
sem perturbar as aves?

E o que dizer da montanha
em que esta floresta cresce?
Das cataratas
tecendo rios,
rios com multidões de árvores
acotovelando cada uma a do seu lado
para lançar um relance
ao peixe.

Abaixo do peixe
flutuam nuvens.
Aqui, o céu ondula,
encrespa no rio os trovões.
Como se movem as coisas no papel?

Agora observa a maneira
como os tigres andam
e rasgam o papel.

SHÉRDI*

E deste modo aprendi
a comer cana-de-açúcar em Sanosra:
rasga-se com os dentes
a espessa bainha da folha
depois, às dentadas, arranco as tiras
do branco coração fibroso
— e raspo, chupo intensamente com os dentes,
aspiro até me aflorar na língua o caldo.

Manhãs de Janeiro,
o agricultor corta a tenra cana verde
e vem depositá-la à nossa porta.
Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam,
esgueiramo-nos com as longas e leves varas.
O sol aquece-nos, os cães bocejam,
os nossos dentes crescem vigorosos
e deixam os nossos queixos dormentes,
por tantas horas a sugar o russ, o caldo
que gruda na mão.

Por isso esta noite
quando me dizes que use os meus dentes
para chupar com força, intensamente,
vem-me do teu cabelo o cheiro
a cana de açúcar
e imagino como gostarias de ser
shérdi shérdi ali nos campos
ali os longos talos se mexem
abrindo sendas à nossa frente.
*cana-de-açucar

OLHAR FIXO

E há aquele momento
em que a criança humana
fixa
a cria de macaco,
que olha para trás –
inocência partilhada
inocência no espaço
onde o jovem primata
não está em cativeiro.

Raia aí a pureza
orbita uma transparência
neste olhar fixo
que dura muito tempo…
olhos de água
olhos de céu
tem ainda tempo a alma de cair
porque o macaco
tem de aprender o medo –
e ao humano
cabe igualmente aprender o temor
e amenizar a arrogância.

Testemunhando tudo
agora
podem-se contar os cílios,
contem-se os caracóis
na relva,
enquanto se espera
que os olhos pisquem
ou para ver quem
primeiro desviará o olhar para longe.
Ainda o macaco não olha
o humano da mesma maneira
que olharia para as folhas
ou para os seus próprios irmãos.

E o humano fixa
o macaco adivinhando-o
um ser totalmente diferente de si mesmo.
E, contudo, é tanta a boa vontade
brilha uma tal curiosidade
nos seus semblantes.

Gostaria de escorregar para dentro
daquele olhar fixo, saber
o que a criança pensa
o que o macaquito ajuiza
naquele exato momento.

Esclareço que o garoto
está naquela idade
em que começa a usar o poder
das palavras
embora ainda sem a distância
dos alfabetos, de abstrações.
À menção de pão
ele pede
uma fatia, com manteiga e mel –
imediatamente.
Menciona-se o gato
e ele apressa-se a correr
para despertá-la.
Uma palavra
é a própria coisa.
A linguagem é simplesmente
uma música necessária
de repente conectada
ao batimento cardíaco da criança.

Enquanto o macaquito
cresce num âmbito diferente,
olha uma árvore, um arbusto,
a criança humana
e pensa …
Sabe-se lá o quê!?
O que continua a relampejar
é esse momento
de enlace:
as duas cabeças recém-formadas
equilibradas em tão frágeis pescoços
inclinando-se uma para a outro,
a cara do macaco
e a cara do garoto,
absorvendo cada uma a outra
com uma magnífica gentileza …

6 Dez 2018

Um acto solitário

[dropcap]A[/dropcap]terrei em Lisboa. Que amigos vou rever, que livros vou comprar – são sempre as questões que se impõem.

Abro a mala em casa de familiares e antes de qualquer outro movimento os meus olhos embatem na lombada da última edição do tomo que reúne toda a poesia do Herberto Helder. Imediatamente me estico na cama, num relance sobre os últimos livros do poeta os Poemas Canhotos e A Morte sem Mestre, que faltam no meu volume, efeito de ser emigrante há década e meia.

E relembro um texto que escrevi no Facebook em defesa do poeta:
«Várias vezes escrevi sobre o Herberto, nenhuma bem. Também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar.

Não admira que me espante o carácter peremptório do que leio.

Rebato um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no I e replicado no seu blogue, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.

Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, com Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.

Há é vários tipos e graus de magia.

Um homem envelhece e tem os gestos represos de quem é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, percebendo finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro. E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou.

Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Sigamos a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender: desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada.

Golpe contra golpe, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.

As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
– que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados os cinquenta anos que o separam do vate e que as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganarão todas as teses;
– depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta” em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
– por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».

Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua “ascuidade”.
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto não merecerá, aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.

Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo que li sobre ele, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.

Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade, uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Presumo que o Herberto se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.

E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome.

Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. Desenharia com a merda que fizesse, disse. Quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.

O que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática… ou do aroma.

O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece decoro e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.

O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.

O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.»

O crítico não tinha razão, o livro do Herberto é um magnífico acto solitário.

29 Nov 2018

Ars moriendi

[dropcap]U[/dropcap]m produtor americano, depois de visionar o material da primeira semana de rodagem, levou as mãos à cabeça, impotente, e disse ao realizador: “Nos primeiros cinco minutos dás-nos dezanove mortos. Não vejo o que possa acontecer mais no resto do filme!”

O número de armas que pululam nos filmes extenua o folego de qualquer maratonista etíope. Ninguém dissuade ninguém, atirando-lhe à mona a Suma Teológica do S. Tomás de Aquino, é de balázio para cima, e ficamos convencidos do que me dizia o Gilinho, amigo do meu prédio de infância: “só matam as balas que não querem enferrujar!”

Faço zapping e colecciono os mortos: uma doçaria excelsa, é um verdadeiro “mil-mortes” com uma barra de diabetes por cima.

Nem persuasão, nem perdão: ninguém ouve o Unchain my Heart, do Joe Cocker? Quando muito a morte adia-se pagando, sendo a vida outro modo de designar o juro – sempre a acumular.

O que afinal não difere do modo platónico de encarar o corpo como o túmulo da alma; o cinema devolveu-nos ao ponto de onde nunca saímos. Admira que o Sloterdijk nos esclareça que, para esta tradição, pensador que se preze é uma espécie de morto em férias? É bem-apanhado e próximo do que dizia o Godard quando adiantava que o cinema é o aparato que “filma a morte no trabalho”.

Uma morta em férias: a mulher de Michel Piccolli, no fantástico Dillinger Morreu, do Marco Ferreri, que exasperava os espectadores por ser todo em tempos reais. Era assim:

Glauco, um desenhador industrial, chega a casa e encontra a sua mulher já a dormir e uma refeição fria. Resolve confeccionar qualquer coisa e comer sozinho, vendo a televisão. Depois projecta vários filmes de férias e mima idiotamente alguns momentos. Por acaso, encontra na dispensa um revólver embrulhado numa velha reportagem sobre a morte do gansgster americano Dillinger. Pinta a arma de vermelho com bolinhas brancas. Depois da tinta secar sobe ao quarto, mete uma almofada sobre o rosto da mulher e dispara dois tiros. Sai, guia até ao porto e vê que num iate um marinheiro morto é lançado à água. Nada então até ao iate e pergunta quem morreu, respondem-lhe que o cozinheiro e ele oferece-se para ocupar o lugar.
Volto a fazer zapping. Para o cinema mais comercial, que encharca os canais do meu pacote televisivo, a vida é uma retrete abandonada, um epitáfio inacabado.

Conheço um livro brilhante de epitáfios dum poeta italiano, Giorgio Bassani, Epitafio, talvez na esteira do americano Edgar Lee Masters, mas preferia o livro do transalpino, que infelizmente extraviei. Há pouco tempo também escrevi um epitáfio. Reza assim (o verbo não podia ser mais justo):
“Meu querido, enquanto não me enviares os teus pulmões em encomenda registada eu não abro mão da tua laje no jazigo da família!”.

Deve-se a outro poeta, o checo Miroslav Holub, esta Breve reflexão sobre a morte: «Agitam-se alguns/ como se ainda não tivessem nascido./ Entretanto um dia/ Williams Burroughs, intimado por um estudante a dar/ opinião sobre uma/ eventual vida póstuma, replicou:/ – Mas quem lhe disse que você não está já morto?»
Holub foi um poeta e eminente imunologista checo, a quem a especialidade não resguardou da crua pergunta de Burroughs, feita pela própria morte em 1998.

Sugere o poema que estamos sempre desconectados, num estado de extenso sonambulismo, e pouco nos é dado fazer, para além de nos agitarmos demais ou de colocarmos perguntas desnecessárias, ie., rebarbativas: póstumas. Talvez consigamos aceder momentaneamente à consciência que nos cede o poema, num breve interregno, ao flagrante de uma sintonia, mas estou certo de que Holub, ainda para mais com a sua especialidade, não declinou num assédio de consciência: terá sido mais à má fila, por um efeito adverso, que a morte o visitou.

Há várias formas de partir da vida e de chegar ao último apeadeiro. Vitorino Nemésio no hospital, conta-se, tinha um medo que se pelava.

Para os indianos a morte é apenas o lambril de um palácio cuja planta está por desenhar.

Desconsidero-me um arquitecto a tal altura. E seria preciso a energia de imaginar a experiência da morte multiplicada por éne, labirinto em que me vejo mais escamado do que a barracuda na banca de Neptuno.
Contento-me com uma morte que o poeta moçambicano Heliodoro Baptista definiu bem, deste modo: “Antes da merda obnóxia me exaurir de todo”.

Todavia, reconheço-o, surpreendem-se várias faces para a morte, como esta que achei nos meus diários:
«O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia (em espanhol) alentada do poeta polaco Tadeus Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, ou, das Balcãs, Vasko Popa.

Abro o livro ao calha e sai-me isto:

CORREÇÃO/ A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora// uma má metáfora é imortal//o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto// o aborrecido trás a morte aborrece/ o estúpido vomita cretinices/ desde a própria tumba.
Estupidificado na própria cama, abala-me o susto. Uma má metáfora é imortal. De quantas já fui responsável, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto o ranço das más metáforas é imortal.
Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?»

Aparador não tenho, mas tenho à mão este verso do Heliodoro: “Já alguém deu de comer ao vento?”. Refrigeração.

22 Nov 2018

Carta ao artista Jeff Koons

Meu caro amigo,

[dropcap]o[/dropcap] filósofo polaco Laszek Kolakowski inicia assim o seu livro Horreur Méthaphysique: “um filósofo moderno que nunca se sentiu um charlatão demonstra uma tal ligeireza intelectual que a sua obra não merece a pena ser lida”. Como isto se aplica a um poeta pós-moderno! É o meu caso. Aquele que nunca se sentiu um charlatão é vítima de insuficiência ou de cinismo.

Quem não me parece ter dúvidas é o amigo Jeff Koons, mas já lá iremos. Escreveu John Cage que imaginava facilmente um mundo sem arte. Aqui para nós, a coisa sempre me soou a bazófia: que lhe faltou para abandonar a arte e tornar-se mecânico de automóveis? Já o Claes Oldenburg – suponho que conheceu – dizia preferir uma loja de ferragens a um museu – e é mais entendível, aceitando a afirmação como sucedânea do que confidenciou Duchamp sobre a impossibilidade da arte superar a perfeição formal da hélice de avião.

Todavia, e suponho que aqui não concordará comigo, o que se produziu a partir de tais configurações havia-se mostrado até hoje manifestamente chocho e roçava a irrelevância. A estetização do quotidiano condicionou a criatividade, conformou-a, à medida que o gosto médio se mostrou impositivo e a arte volveu “o espelho” que o Jeff se propôs refinar.

Desta vez, chapeau, o Jeff Koons elevou a irrelevância a um supremo acto de tauromaquia de salon. Parabéns. É a terceira vez que uma peça sua, da série Banality, peças feitas a partir de fotos de publicidade, é acusada de plágio. A justiça deu razão a Franck Davidovici, o autor do anúncio publicitário da marca de roupa francesa Naf-naf.

Cito o Diário de Notícias, para não me enganar: “o anúncio de Davidovici, intitulado Fait D’Hiver, mostrava um leitão, que era a mascote da marca Naf Naf, com um barril ao pescoço, muito parecido àquele que os cães São Bernardo usam nas suas ações de socorro na neve, ajudando uma jovem morena. A obra de Jeff Koons não é uma fotografia a preto e branco. É uma escultura colorida que também se chama Fait D’Hiver e que mostra uma mulher deitada na neve e a ser ajudada por um porco com um barril e uma coroa de flores ao pescoço. Ao lado estão dois pinguins”.

O fulcro, a verdadeira essência da arte, mostrou-a o Jeff agora: a sua escultura foi leiloada em 2007 pela Christie’s de Nova Iorque por mais de quatro milhões de dólares e agora, o tribunal condenou-os, a si e ao Centro Pompidou, a pagar a Davidovici, em conjunto, a quantia de 148 mil euros. Realce-se que o juiz não ordenou que a obra de arte fosse confiscada, outro dos pedidos do publicitário, e que agora, dada a publicidade de que a sua peça beneficiou, ela vai ter um reforço de valor.

Esta desproporção terá sido devidamente calculada pelo Koons, que fez aquela série para ser acusado de plágio. As esculturas eram o simulacro para favorecer o que importa: a operação financeira.
Só lhe falta, meu amigo, realizar o acto de síntese, a sua obra magna – aquele haiku do samurai no acto da harakiri: reproduzir num friso escultural um leilão da Christie’s.

Não sou invejoso, escrevo-lhe, saudando-lhe a inteligência, para lhe propor ser plagiado por si. É nesta intenção que aqui divulgo a minha fotografia O Banho da Musa Intermitente.
A foto tecnicamente é mazita, mas o que importa é o teor, o teor, O TEOR (- peço-lhe, imagine esta frase dita pelo Brando).

Saberá, meu caro Jeff, as culturas dividem-se entre as que querem conversar com os mortos e aquelas que querem conversar com os vivos. Uns querem aplainar o mundo, os outros aceitam as suas rugosidades. Eu, e imagino que o meu amigo também, bandeio para o lado dos que aceitam as rugosidades e entendo que o plágio possa ser apenas mais uma dobra da arte, quando o fito é outro. Nisto estou por si, por nós.
Estou certo que o nosso trato lhe convém – encontramo-nos depois nas barras do tribunal. Verá que exporei o meu dorso a uma das suas bandarilhas.

Não pense que só me move o interesse e por isso conto-lhe uma história. Passa-se em Nampula. Daniel conseguiu penhorar todos os seus mortos. Com uma pistola na cabeça do penhorista, que frequentava o mesmo culto que o seu, da igreja Zione. “Tanta cerimónia aos espíritos, tanta saudações aos antepassados”, censurava, Daniel, puxando o cão da pistola, “e agora não os aceita como penhor, para si valem menos que uma torradeira!”

Só não o liquidou ali porque o penhorista, na aflição, antecipou o equivalente a quatro gerações de antepassados. Embora isso não o tivesse livrado da coronhada.

Vê, meu caro Jeff Koons, andamos todos ao mesmo.

Antes pensava, coitada da arte que é apenas combinatória, pois acosta rapidamente ao reino das quantidades, quando a vulcanologia e a formação dos vulcões nos ensinam que há estados que nascem por dentro, com mínima contribuição do exterior – e com um furor que pelo contrário vai, ele sim, mudar a paisagem exterior

Contudo, agora que estou doente, começo a pensar com os tomates, com o coração e os pulmões. Não enxergo modo de pensar que não seja um inquilino do meu corpo (ainda que admita um por outro clandestino). E comecei a entender Parménides, para quem ser e pensar eram o mesmo, pois “raciocino” primeiro com a natural sintaxe do meu corpo o que depois as palavras traduzirão; daí que alinhe com Michel Barat quando ele aventa que a boa nova dos Evangelhos é anunciar não a imortalidade da alma, mas antes a ressurreição do corpo. O que aqui para nós, convém admitir: fica cara.

O seu gesto esclareceu-me: há que aprender a arte dos toreros de salon. São esses quem,
no fim, mais lucra.

Impaciente pelo seu plágio, sem cerimónias, o seu
António Cabrita

15 Nov 2018

Dos jornais

[dropcap]T[/dropcap]omé não planeou enfiar-se no chapa e raspar-se com a viatura quando a viu estacionar à frente da barraca Trinitá e topou o motorista a esgueirar-se – torcido pelo gotejar de uma mija – para as traseiras. O apagão que logo a seguir, com artes de cleptómano, fez desaparecer a cidade é que lhe ondulou na cabeça e aí limitou-se a obedecer ao impulso.

Entrou na cabina, rodou a chave na ignição. A carrinha deslizou suavemente por entre os volumes enegrecidos (experimentou os óculos Ray-Ban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.

Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no breu, mansas criaturas amodorradas, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba – gado bom de ordenhar.

Era estranha a música que o leitor de dvds emitia, uma toada electrónica que parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça um refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Vacilava, se achava mais bizarro o gosto musical daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam na mente, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Deixou a música fluir, a ver onde aquilo ia.

Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people, botões que se acotovelavam na gana de aninharem em casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Quase gala-gala, mas não conhecia. Voltou a pisar o play. Algas com ferrugem num mar electrónico – como vira uma vez na Costa do Sol. Já apinhado o carro, deu conta que aquele chapa andava sem cobrador – melhor, cobrou ele logo à cabeça.

Era vinte e duas horas em ponto e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade.

Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando sacou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais ruído que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez – ajudaram.

O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros, no calado de um navio de muitos quilates, miravam as vítimas de cabeça pendida. Atingira um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço gorgolejante. Uma mulher gritou, pela última vez na sua vida. Remédio santo para os demais.

Disse-lhes:
– Bradas, passem tudo o que têm nos bolsos.

Depositaram tudo no lugar do morto. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até camisinhas. Encheu os bolsos. Depois fechou as luzes do chapa e articulou, pausadamente:
– Zuca lá para fora mas easy, relax, vamos pôr os mortos onde devem estar…

Aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava metálica, não se apercebia. Desceram do chapa retardando o passo, mais enfiados que o esterco no rabo do cabrito.

Veio-lhe ao nariz a certeza de que um gordo se borrara. Depois do gordo desceu um madala com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando-lhes o estupor, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os, eram treze. Abateu o gordo:
– Crazy, não gosto do treze e o camone fedia…

Uma mulher soluçou. Baixinho. Grossas bátegas de calafrio entrechocavam-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecido. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado e observou:

– Black é assim mesmo, vive da bacela do medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro…

Os homens superam-se. Os cadáveres rebolavam sobre si mesmo, impulsionados à justa. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, somou uma reviravolta ao trajecto e pairou no ar antes do ombro esquerdo ir embater no topo do muro fazendo-o girar para o outro lado. Suspiros. Não ficaria mal aqui a ratonice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, Há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu!

Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
– Somos melhores que os mambas… os moçambicanos só precisam de uma motivação… – e atirou para o ar – Alguém guia?

Um rapaz novo, receoso, levantou a mão. Tomé – deu-lhe um súbito cansaço – deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, atencioso:
– Leva-os daqui… – após o que sorriu, antegozando a ideia – Para os jornais digam que foi um comando da Renamo, e largou uma gargalhada.

Num ápice, desapareceram. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando.

Tudo correra pelo melhor. O apagão, a hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói… até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom.

Encaminhou-se para casa, ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. Os óculos Ray-Ban ficavam-lhe a matar.

Glossário: madala, cinquentão; bacela, brinde; mambas, equipa moçambicana de futebol

8 Nov 2018

As varreduras

[dropcap]V[/dropcap]arrem e varrem – ad eternum – e nesse gesto dactilografam as manhãs. Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano.

Pianíssimo num repertório monocórdico, interminável. Ruge-ruge em surdina, como uma nuvem de mosquitos enredada nas micaias.

É incalculável o apego colocado na mão que abraçaa cintura da vassoura e lhe comanda a dança, o desenho das parábolas ou de outras figuras geométricas na varredura – embora nem sempre se conjugue o tanto que foi varridocom o que haveria a varrer.

Ainda a alba se espreguiçae assoma aquele arrumo ou raspagemfugida à insonorização da noite; furtiva, antes de ser um mantoe do som das cerdas -nas placas de cimento,à diante dos portões,das portas, dos túneis, dos degraus,em redor da caldeira das figueiras-da-índia -,do seu raspar, se elevar acima do passodos guardas, cobrindo a cidadede uma redoma sem nome.

Varrem, varrem, varrem – escavam uma fonte? Num frenesim que fosforesce na mais inexplicável mansidão.

Terá sido a noite a levedurade uma culpa que anseiam agora apagar,extinguir, sem deixar rasto -amortalhada no ar?

Maputo não desperta, Maputo varre-se para debaixo de um tapete inexistente até à madrugada seguinte quando os guardas, unânimes no hipnotismo da sua insónia, repegam na vassoura.

Quatro horas depois, no bulício, já a urbe se enovela em babugem e lixo e voltou aos ritmos do desconcerto e à intimorata prioridade aos chapas, enquanto se ouvem ao longe as goteiras do impasse e fungos nascem à sombra dos ”works in regress” da política.

Mas volta a chegar a noite; cansados de frango, de xima, da matapa, de esmolas, do calor brutal dentro dos chapas, do uísque martelado, vem a noite sem aplausos, envolta na dor que se sente pelo demente que se arma em chefe. E a quietude impõe-se como baforadas de cego, arcando os desejos de um milagre impossível.

O vento encostado ao escuro tubula, sonda a ferrugem dos fusos horários, ou cai a chuva num alarde de praga.

Raramente, contudo, mesmo em corda, a chuva ultrapassa o dealbar da alba, e aí, parecendo nascer directamente das axilas de todos os anjos caídos,recomeça o ruge-rugedas vassouras, alastram-se as cerdase o seu vaivém, fazendo-se uno, espesso,contínuo,  como se a madrugadanão passasse do sonho intempestivo de milhões de limpa-chaminés.

Embora o como eles varrem, o que varrem, o quanto varrem –  buscam afanosamente o bíblico buraco da agulha? – raramente se ajuste ao que haveria de ser varrido.

Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano. Julgava eu, até este domingo vinte e oito ter visto a varredura que correu no Brasil.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas.

Vai ser varrida a Amazónia, para dar lugar às manadas de bois.

Vai ser varrida a preguiça dos indígenas e quilombolas, depois os próprios índios; as onças, as anacondas e piranhas serão esquartejadas e amontoadas no bojo de grandes betoneiras eléctricas para o fabrico das rações para os bois.

Os peixes-boi, tão ternos, irão ser varridos para as piscinas das esposas dos grandes diplomatas dos países latino-americanos “sem viés ideológico”, homens imensamente ocupados em rápidas de xadrez e leituras do Levítico.

Os botos da Amazónia (os seus golfinhos) irão ser varridos para dentro dos selos comemorativos do complexo de campos de golfe que o amigo Trump irá fazer depois de resgatar da selvática floresta os arredores de Manaus.

Vão ser varridos os homossexuais, que irão conhecer as provações que Job não teve.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas

Vão ser varridos os morros onde se acumulam as favelas, ou melhor terraplanados, e a nuvem de coca que se adensar sobre os escombros será aproveitada para melhorar os records de todas as modalidades desportivas, catapultando o Brasil para a elite do desporto.

Vão ser varridos para o Atlântico todos os remédios que não sejam placebo, porque na terra do Corcovado homens não têm fracalhadas.

Vão ser varridas todas as ex-criaturas humanas que não cerrem as pálpebras, devotamente, para rezar o Padre Nosso com o seu presidente.

Fora com os depravados, Chico Buarque, Caetano, Gil, e Jó Soares, varridos para Cuba.

Varridas serão as pistolas de plástico das crianças e substituídas por verdadeiras, com balas de borracha até aos dezasseis anos e, após, de aço; para usarem em legítima defesa.

Varridas também as cotas raciais na universidade, até porque os negros serão convertidos em varredores – os melhores do mundo.

Teses universitárias que se debrucem sobre Drummond ou Villa-Lobos serão varridas, doravante só interessa o conhecimento aplicado: como transformar o bafo de onça em sabonete ou introduzir o sincronismo das bailarinas do Bolshoi em relógios de quartzo.

Varrida a educação sexual das escolas, substituída pelas prenhezes prematuras e as ladainhas do Círio de Nazaré!

Bom, nem tudo será mau nesta varredura:  o candidato eleito prometeu ainda que vai procurar “relações com países que possam agregar valor económico e tecnológico aos produtos brasileiros” e isto pode ser um “negoçião” para Moçambique, se quiser exportar milhares de cerdas – que a oportunidade não se malogre.

2 Nov 2018

Braco, a alegria do espargo

[dropcap]D[/dropcap]obra quase um século sobre o que o poeta T. S. Eliot escreveu «Onde está a sabedoria,/ que se perdeu com o conhecimento?/ Onde está o conhecimento/ que se perdeu com a informação?»

Vivemos sob a orbe de uma sociedade da informação cujos fluxos são disparados, com consentimento ou não, e quantas vezes basta conectarmo-nos à Internet para colher os frutos de um maravilhoso pomar de dados, embora tema que estejamos mais isolados e intolerantes.

E talvez o mais vital não se situe na comunicação, mas no conhecimento. Que é? Temos demasiada pressa para o identificarmos enquanto nos lambuzamos nos novos hábitos de recolectores da informação. Radicará nesta falsa aurora, como um remix de fragmentos chegados de fora de nós, a facilidade para nos julgarmos com opinião sobre tudo, presumindo que agora a esfera pública está confinada às irrelevâncias que nos permitimos em privado? Morreu a esfera pública, ou emudeceu, como a crítica.

Entretanto, enquanto o velório prossegue, faço meu um dito de Ezra Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.» A comunicação é tudo que está exterior a nós, na horizontal, já o conhecimento atinge-nos como uma reminiscência, abrindo horizontes na vertical como se raiasse de dentro. O que só acontece pela duração e não na instantaneidade da comunicação porque o tempo é suado e denso e não superficial e rápido, como o mercado ou as redes sociais afirmam.

E isto ocorre no rasto da mudança de paradigma na nossa relação com a palavra. A tendência niilista que se manifesta nesta reviravolta política para uma direita populista advém entre outros factores de uma desvalorização da palavra e de um descarrilamento na trivialização.

Aparentemente estamos mais conectados, contudo ao ser-nos repetido que tudo se mercantiliza descremos do valor da palavra e caímos no cinismo.

É sintomático que o actual guru de maior sucesso na Europa seja Braco, o Mudo. Braco o Contemplador, que cura as pessoas olhando-as por alguns minutos. Centenas afirmam que os seus padecimentos desapareceram por completo após terem fitado os seus olhos pacíficos. Parece que também funciona em animais, que provoca látegos de ternura nos frangos congelados e orgasmos nas ervilhas. O croata de 46 anos é popularíssimo na Europa e já é um fenómeno crescente nos EUA.

Ele não fala em público nem dá entrevistas; só se ouve a sua voz “amorosa” através de seu DVD. Consta que perderia os seus poderes especiais se falasse.

Um jornal americano chamou-lhe «o guru de uma nova era sem nada para dizer». Explicitamente, o seu silêncio é uma inscrição oracular onde cada um vê, encontra, o que julga precisar. Ressalta daí que já não se busca nem se acredita numa experiência partilhável pela mediação da palavra, que seja comum, pública: estar a sós com a mudez do olhar de guru basta.

Hoje, morta a esfera pública, as convicções e crenças pessoais repudiam os factos. Um dia, em 2007, na universidade em Maputo, cheguei à aula e os meus planos foram furados por uma reportagem televisiva que urgia, diziam os alunos, ser debatida. Nos subúrbios, uma rapariga parira um bule e duas chávenas. Metade da turma rejeitava a hipótese, alguns hesitavam e outros defendiam a sua possibilidade. Foi inútil explicar-lhes as leis da biologia e o que fosse o ADN.

Contra convicções não há factos: faça-se silêncio sobre séculos de ciência. O olhar de Braco desautoriza Einstein.

Igualmente, o inexplicável no fenómeno das fake news (que “industrializou” uma prática que se ocultava) é que face à sua motivação política tão descarada a sua implaubilidade concite afinal adesões tão maciças, sem que o crédulo interrogue os efeitos de se institucionalizar a mentira. O militante crê, afasta qualquer crivo de análise: basta-lhe o olhar bovino do candidato, daquele que prescindiu de debates, e tudo devém credível.

É absurdo que no fito de exprimirmos a insatisfação contra um sistema estabelecido aceitemos um conservador autoritário que usa processos desonestos e nem cumpre as regras do jogo, alheando-nos de que ele nos está a avisar que não tem valores e o seu programa viverá da vantagem, do oportunismo e da violência; para ele o passado não é uma inscrição na memória mas narrativa morta, que qualquer alusão revisionista desmancha, reverte e desclassifica.

As pessoas sérias da direita democrática não separam o trigo do joio? O ensaísta Bruno Carvalho, professor de Harvard, mete o dedo na ferida: «O facto de o eleitorado mais de direita optar por um radical, ao invés de outros candidatos da direita mais comprometidos com a democracia, indica uma necessidade urgente de autocrítica entre elites conservadoras e liberais».

A confirmar-se a eleição de Bolsonaro a hecatombe não é só para a esquerda, a direita democrática fica sem legitimidade ou recuo moral.

Reagia Bolsonaro às acusações sobre a Caixa 2: embora reconheça a ilegalidade do acto, no fundo é uma vítima da liberdade das pessoas que se organizam para divulgar mensagens em massa em seu benefício, sejam militantes ou empresários… pelo que é inocente. Há alguma coisa de que este homem se sinta responsável?

É uma resposta tão cínica e destituída do factor humano como a reacção de Trump à queda das Twin Towers: «A Trump Tower voltou a ser a mais alta!»

Por que é que se fica cego a estas evidências, achando que são apenas minudências de um orador desastrado, um mal menor? Porque na generalidade as pessoas vêm preferindo a trivialização da comunicação ao conhecimento, que exige outro comprometimento e a manutenção duma esfera pública: ou seja, de critérios fora de nós.

Há décadas que Bauman preveniu que a paulatina primazia que se dá à segurança sobre a liberdade pode resultar na paranoia que anseia por liquidar o exterior, o espaço público. Que São Braco, Deus dos espargos, nos acuda!

25 Out 2018

Um milhão resto zero

[dropcap]E[/dropcap]stou realmente divertido e explico-vos: foi dada ao camarada Trump uma oportunidade para se rir com a sua ignorância.

Lembram-se do famoso milhão que o pai lhe havia dado, um milhão conta redonda; afinal subtraído dos impostos? Sei de onde picou a lenda, foi do primeiro vigarista que aparece a Lemuel Pitkin, a cândida personagem de Nathanael West, no comboio para New York – da curta e delirante farsa Um Milhão Conta Redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, que Trump há-de ter lido a pensar que versava sobre casinos. Mr. Mape, penteava os cabelos no reflexo dos seus sapatos de janota e contou a Lemuel: «O meu pai deixou-me um milhão, conta redonda, e por isso não preciso de trabalhar». Claro que endrominava Lemuel para lhe esmifrar os parcos trinta dólares que ele tinha no bolso.

Todavia, devido ao vício com que Trump pinta as suas histórias, abana com um milhão conta redonda à esquerda e à direita, entre promessas, astúcias e gracejos. Agora, morreu pela boca. Há uns meses, partira os pratos com a senadora democrata Elizabeth Warren porque a loura criatura reivindicava uma origem índia. Trump dobrou o riso e chamou-lhe Pocahontas. O que acintosamente repetiu em várias ocasiões, como quem aponta A Louca da Casa. E num comício em Julho, a infabilidade do seu feeling levou-o ao temerário desafio:”Darei um milhão de dólares, conta redonda, à sua organização de caridade favorita, se ela fizer um exame e demonstrar que é indígena. Tenho a impressão de que ela dirá que não!”, sentenciou.

Tivesse o incauto como eu uma filha absolutamente sueca parida por uma mãe indiana e teria pressentido que a genética presta boas partidas. Foi o que lhe sucedeu. A Pocahontas provou a veracidade de sua origem indígena depois de submetida a um teste de DNA que apresenta “forte evidência” de que tem ancestrais nativos. Os resultados confirmam “a existência de um ancestral nativo americano puro”, informa o jornal The Boston Globe.

Vai arder o presidente com um milhão, conta redonda.

Estou realmente deprimido com o que se passa no Brasil e são dispensáveis as explicações.

A irracionalidade e a desinformação galopam para uma calamidade que representará um retrocesso civilizacional. Não se trata unicamente da derrota de um partido ou da repulsa contra o PT, a vitória de Bolsonaro institucionalizará a violência: os comportamentos irracionais que já instalaram o medo e o ódio no país multiplicar-se-ão num “estado de excepção” protegido pelo poder do voto. É presumível que se seguirá um clima de guerra civil e uma repressão geral em nome da segurança, e só tarde demais os ingénuos que queriam sobretudo castigar o PT ao votar contra Haddad descobrirão que há portas que não se devem abrir; de antemão as que permitem que a «besta negra» e o impensado penetrem no nosso condomínio.

Vejo duas motivações erróneas para tal descalabro.

A primeira prende-se a um aspecto que as democracias se alheiam de discutir e que só uma aposta intensiva no domínio da educação poderá eventualmente atenuar. O relativo desenvolvimento das democracias e o incremento dos media como “quarto poder” foi disfarçando até ao fim do século XX o que o poder das redes sociais destapou e tornou visível: é que não vivemos todos no mesmo tempo histórico.

Aquilo que para Walter Benjamin era um sinal de esperança: a saber, que a cada momento se colocaria a hipótese de que a face do presente surpreendesse porque afinal recuperava pontos de vista “derrotados” no passado e reemergidos ao arrepio de uma concepção linear e previsível da História, desencadeando uma lógica do reverso que transmitiria aos movimentos sociais uma maior complexidade e arejava a saturada polarização das narrativas oficiais; essas “anacronias” que segundo Benjamin injectariam na actualidade do presente um factor mais humano – posto que a perspectiva do passado deixa de ser um facto objectivo para passar a ser uma cunha da memória, menos técnica e mais emocional -, essas “anacronias” mostram que podem padecer igualmente de um lado negro.

O Brasil é uma sociedade clivada por diversos e inconciliáveis níveis de consciência da realidade e sem um desígnio transpessoal que apazigue as tensões no rasgado tecido da memória histórica. O que separa um votante de Bolsonaro do de um Haddad não é uma mera diferença de opiniões: vivem isolados por antagónicas percepções do seu tempo histórico.

O que se observa, por entretenimento, nos risíveis e delirantes grupos no FB que defendem a Terra Plana, toma no plano político perspectivas sombrias e traz à tona anacronismos perigosos para uma época de “relativismo”, de perda de universais e de pensamento débil. Quando não se reforça a educação é o que acontece.

A segunda motivação ao lado prende-se com a crédula fulanização com que se associa a corrupção ao PT. O PT ficou evidentemente refém na armadilha do polvo e julgou que só podia fazer passar algumas leis contra o atavismo dos costumes alimentando o monstro, em vez de ter intentado mudar o sistema. Porém, o problema da corrupção é mais endémico do que se julga e continuará com Bolsonaro; o seu governo, que há-de ser fortemente corporativo, só aumentará o problema.

Faz anos que Alain Badiou diagnosticou de que modo a corrupção se tornou a lei íntima das sociedades actuais, a sua fissura invisível, e que é para dissimular essa corrupção sistémica que o escândalo aponta aquilo ou aquele que, no fim de contas, não passam de bodes expiatórios. Numa sociedade que tem no lucro o único motor viável para fazer funcionar a sociedade, a corrupção é um seu efeito capilar.

O problema prende-se com a orfandade dos valores e é gravíssimo mas não nasce com o PT e julgo aliás que muitos votantes do Bolsonaro não serão contra a corrupção, sentiam-se apenas excluídos da rede.

O que tornará mais violento o despertar.

18 Out 2018

A educação sentimental

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro objecto que recordo é um avião de lata. O primeiro toque de que me lembro não é o de uma pele mas o da lata. Havia intrusa em casa, reclamada de mão em mão, armada de fraldas, pulmões, vagidos de aço e com regurgitos múltiplos. A minha irmã. Levei dias a lançar o avião de lata sobre o berço, num pretenso bombardeio. E não é que falhei, na mira e na aviação?

Aos cinco anos, apanhando a minha avó a urinar de porta aberta, eu, no corredor, fiz o pino para ver se lhe via o… O quê, espicaçou uma vez o Piruças. O ouriço, respondi-lhe pronto.

Aos seis anos tive o primeiro sonho erótico e percebi que me marimbava para o Édipo. Caminhava de mãos dadas com uma miúda ao longo de um socalco estreito, a meio de uma falésia ilimitada para cima e inacabável para baixo. O dia nascia, e cheirava a acetona. Andávamos aos espargos e sorríamos com a lâmina do caminho, no leve tremor dos afortunados.

Aos nove, à nonagésima oitava vez em que me masturbei, cismei que uma coisa tão boa só podia acontecer cem vezes na vida. Guardei as duas últimas para quando casasse. Aguentei-me três semanas, num desespero, até que me enfiei na casa de banho e meia hora depois ia na cento e quatro, enquanto a minha mãe perguntava, Caíste da pia?

Entrava-se na oficina por uma rampa. Aí, dois homens deitaram a primeira chapa de alumínio, com círculos perfeitos desenhados de alto a baixo; tendo-me depois um deles passado a tesoura para a mão. Eram para cima de 50 círculos, sem espinhas.

Tinha doze anos e tinha querido experimentar ser operário, numa serralharia.

Fiquei surpreendido pela facilidade com que a tesoura cortava o alumínio. E animei-me. Apesar do segundo círculo me ter parecido mais bicudo. Mas continuei a sorrir até ao sétimo círculo.

Ao almoço, o encarregado despediu-me com uma palmada nas costas, amarfanhando-me uma nota de vinte na mão. “É uma foda, mas talvez nunca venhas a ser operário, rapaz!”. E ofereceu-me um dos quadrados de alumínio que tão arduamente recortara. Aprendi aí a ambivalência da linguagem.

Os manos Ginga moravam ao lado dos meus tios-avós, na Azinhaga dos Besouros, na Pontinha. Três compinchas de Verão com uma pontinha de queques (os primeiros humanos que conheci atascados em polos e pulôveres) mas que não regateavam palmilhar o extenso vale de zínias e girassóis que nos separava da colina onde se empoleirava, clandestina, a Brandoa.

Uma tarde, nesse vale, a meio de um canavial descobrimos uma conduta de esgotos, relativamente seca e com tamanho suficiente para avançarmos agachados em fila indiana até misteriosos meandros. A conduta atravessava à Colina da Luz e desembocava num canal de drenagem, mesmo ao lado de uma boutique para senhora onde trabalhavam dois mimos de raparigas que inquietaram os nossos plácidos sonhos de Verão. Foi a conduta que me levou ao primeiro beijo.

Veio o 25 de Abril e os irmãos Ginga puseram-se ao fresco: o pai era da Pide.

Acordei tarde para os primeiros mortos, aos quinze anos. Já tinha visto amigos meus fecharem a cancela sobre o rosto e um deles, gémeo do falecido, cortou os pulsos. Nada me calhava, uma infância feliz, capciosa, sem fios de prumo.

Primeiro, uma avó, duma leucemia que apenas lhe carregou nos olhos a sombra chinesa que fora a sua vida. Depois o luto da namorada que me corneou.

Eu tinha-a acariciado a tarde inteira de sábado por cima dos collants. No domingo ela foi a uma festa com uma amiga onde um marmanjo a massajou por dentro.

Decidi vingar-me. Não fui um libertino, mas não me queixo.

Um dia engatou-me uma miúda no Estádio, ao Bairro Alto. Já estava aviadita mas, em casa, emborcou uma zurrapa de litro quase de um gole, empurrou-me para a cama e pediu bate-me. E eu lá fui fazendo muito pouco conforme o que podia. Na manhã seguinte foi franca: fora uma noite desenxabida pois, justificava-se, com o antigo namorado jogavam à roleta russa durante o coito. Retirei-me, desejando-lhe “boa sorte e bons danos!”.

E bom, mortifiquei de enfado uma dúzia de namoradas, quatro esposas, desiludi meia dúzia de amantes em encontros ocasionais e, no afã de me re-ligar aos libertinos, escrevi uma versão de Don Juan, um Don Juan cego que chegava às mil conquistas, até que em Sevilha o Papa fazia o primeiro milagre do seu pontifício e punha-o a ver. E ele perdia o dom, baratinado pela diferença que pela primeira vez descobria entre as mulheres.

Há vinte e dois anos encontrei a minha mulher actual. Farto-me de a trair, com as personagens femininas dos livros que leio, ou com as que escrevo. E mais não posso contar. Dizem porém que as personagens femininas dos meus livros são mais fortes que os meus homens: é porque as conheço biblicamente.

Contudo, nunca até hoje me tinha acontecido uma coisa tão grave.

Bebia uma cerveja no Mimmos, em Maputo, e vejo uma miúda expressiva, loquaz, com uma sensualidade exultante. Conversa divertidíssima com o namorado e vejo com raiva que não o invejo, renuncio a atrair um meteorito que lhe caia em cima neste momento, não desejo estar no seu lugar; apanho-me mesmo a pensar no quanto gostaria que ela fosse minha filha e no prazer que me daria tê-la ajudado a tornar-se no que é.

Deve ser isto a maldita maturidade, já não me deprime conceder que a minha apropriação do mundo não tenha de passar primeiro pelo sexo.

E, afinal, pedi para ser maduro, eu? Não me consola o desabafo do cineasta Luís Buñuel, ao chegar aos sessenta: “finalmente, vou libertar-me da tirania do sexo!”.

Francamente, meu caro Buñuel, envergonha-te: não passamos de duas bestas desemparelhadas da sã genealogia dos ursos, dois moles que preferem o desejo e a sedução ao estupro.   

11 Out 2018

Há limites nocivos para o patriotismo?

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om certeza e vemo-los, à escala global, na “tentação” de Trump para destruir o multilateralismo, a qual ameaça a manutenção da própria ONU.

Segundo Angela Merkel “O actual Presidente dos Estados Unidos pensa que o multilateralismo não é a resposta aos problemas, e julga que apenas pode haver um vencedor, não acreditando em situações em que ambas as partes possam vencer. Ora, destruir um sistema de consenso internacional é perigosíssimo”, concluiu.

Tem inteira razão e todo o patriotismo doentio surge por se acreditar que só pode haver um vencedor. É uma mentalidade desastrosa, ditada ora pela pecha da insegurança, ou, o outro polo do problema, por camuflados interesses económicos que escavam a vantagem na debilidade do outro.

Ora o homem é sobretudo o único animal que sabe antecipadamente que vai perder. Em nenhum cemitério se ouvem proclamar vitórias. É inapelavelmente democrática a terra que acolhe e transforma em estrume todas as caganças. As patrióticas, as da patranha económica, as de casta. E constata-se: nenhum crânio tem os olhos em bico, ou os lábios grossos, ou um nariz caucasiano. Face à morte somos todos igualmente perdedores.

Por isso sustentamos que o homem é por natureza um refugiado. E que o seu valor moral não está tanto nos traços da sua identidade como na dimensão da sua hospitalidade. A identidade é aliás inúmeras vezes um princípio de inconsistência que pode fazer germinar o Mal, ao esquecer que todos os seres humanos são criaturas transfronteiriças e pertencem a uma comunidade de diálogo. Porque somos mais semelhantes do que pensaríamos ou desejaríamos. Vou mostrar quanto.

Observo com espanto a mania dos moçambicanos para se julgarem originais. O que decorre de “falta de mundo” e da carência de estudo das “culturas comparadas”; pois até aquilo que antropologicamente consideram irredutível é afinal uma variante de tendências universais.

Por exemplo, a cerimónia do Mapiko é uma Catábase (uma descida ao inferno e volta) invertida (é a figura tectónica que é convocada a visitar os humanos), deslocada da sua função, e fixada por simetria aos ritos da catábase mediterrânea, ou vice-versa – a técnica de inverter especularmente o que recebemos da “vizinhança” é, demonstrou-o Levi-Strauss, o mecanismo comum para a criação das narrativas identitárias e uma das características que estrutura os mitos.

Por exemplo, as relação dos intelectuais com o poder e a “tradição”, o primado do colectivo sobre o individual, o evitamento da crítica e de qualquer pauta de mérito preteridos pela fidelidade política, os processos de ostracismo e os não-ditos, que se verificam em Moçambique, são afinal práticas comuns a todos os países que tiveram revoluções ou abraçaram o socialismo – tão similares nos seus processos que arrepiam, posto julgarmos que as supostas diferenças geográficas e culturais as diferiria. Não.

O primeiro livro que me ajudou a compreender a sociedade moçambicano é de um iraniano, Daryush Shayegan, exilado em Paris por causa dos Ayatollas. Intitula-se O Olhar Mutilado/Esquizofrenia Cultural: países tradicionais face à modernidade e o exame que faz sobre o comportamento dos intelectuais, das classes médias e da burocracia no seu país na década da revolução decalca o que se observa em Moçambique. Fica-se estarrecido, é só mudar os nomes, os comportamentos são idênticos.

Depois li o Pensamento Cativo, do poeta polaco Czeslaw Milosz, que radiografa os “intelectuais orgânicos” na Polónia durante o fechamento do regime. Quem imaginaria que seria outro livro vital para quem quiser conhecer, a partir de uma aparente e absoluta exterioridade, esse tecido social moçambicano?

Também o livro de José Gil, Portugal – o Medo a Existir, elucida aspectos da “alma” moçambicana. Vários conceitos que José Gil ali explana, entre os quais o da «falta de inscrição» como um fatídico corte entre a especulação e a prática, o vínculo e a realidade, conhecem uma clara correspondência na clivada paisagem moçambicana.

Li agora Itinerário de Octavio Paz, e o que ele diz sobre o México permite fazer uma autorreflexão mediatizada em Moçambique, sem estar inquinado pela emocionalidade. E foi neste livro que encontrei esmiuçado um hábito que se aplica como uma luva ao chão moçambicano: a suspicácia, a marca de carácter de quem vive corroído pela suspeita. Define Paz: «o fundo psicológico desta propensão a suspeitar é a suspicácia», a qual é, evidentemente, a expressão de um sentimento de insegurança.

Quando cheguei ouvia dizer, «Ah, esse gajo é muito desconfiado, é da Zambézia!». Em Moçambique vive-se rodeado de gente da Zambézia! Depois reparamos que tudo se justifica com a «mão externa», e que a acusação chega de gente de todas as províncias contra todos os outros, portanto ou inferimos que afinal macuas, macondes ou rongas são zambezianos disfarçados ou então concluímos que a suspicácia está espalhada.

Refere Paz, a suspicácia é uma irmã da malícia e ambas são servidoras da inveja. Não quero chegar tão longe. Todavia, já me preocupa o que diz a seguir: «todas estas más paixões tornam-se cúmplices das inquisições e das repressões.»

Tenho dificuldade em achar a utilidade para a persistência da suspicácia num país novo, se afinal o sentido da história somos nós quem o produzimos e se o fazemos podemos desfazê-lo. Desconfiar da própria sombra, se ganharíamos mais em conviver com ela? Todavia, é um facto que, em todos esses países que os livros retratam, a suspicácia é um instrumento patológico para a manutenção do poder e a mania de “cadastrar” os outros é um seu (d)efeito.

Sendo a equação a mesma: quanto mais patriótico mais paranóico.

Pode, entretanto, a falência do “multilateralismo” ser igualmente interna, se desconseguimos de aceitar o outro como um enriquecimento nosso. Cresce aí a idiotice e violência étnicas. Porque, repito, na verdade não há estrangeiros no mundo, somos todos refugiados.

E mais do que ser nacional ou não, o que interessa é avaliar o que cada um faz para melhorar o sítio em que vive.

4 Out 2018

Modesta proposta política

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] chega de bordados metafísicos, vamos à política.

O senador Bernie Sanders, dos EUA, publicou um manifesto, no The Guardian. O objectivo é barrar a ascensão do eixo autoritário no planeta. Diz Sanders que os novos populistas compartilham ideais comuns como “a hostilidade às normas democráticas, antagonismo em relação à liberdade de imprensa, intolerância em relação às minorias étnicas e religiosas e a crença de que o governo deve beneficiar a si próprio e a interesses financeiros egoístas.” E contrapõe: “É hora de os democratas de todo o mundo, diz o Manifesto, formarem uma Internacional Progressista”.

Então, terá de meter-se em questão a orgânica do sistema que permitiu a “profissionalização da política” e tornou a corrupção endémica.

Há duas ideias fulcrais nos ensaios de Vladimir Safatle. A primeira: “O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.” A segunda: “(…) devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte da acção uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas de instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direcção a uma democracia real”.

A Esquerda tem sido indiferente, e isto não é inocente: é por compromisso.

Hoje confundimos solicitações do mercado com informação e progresso com poder de consumo. Tudo nos fascina no consumo, sobretudo o aparato tecnológico. Até o Derrida acreditava na transformação tecnológica como um dos factores de aceleração política.

Talvez, mas há um lado de sombra, inescamoteável, na tecnologia e antes que os algoritmos contornem a confiabilidade no eixo da política democrática, urge repensar o sistema democrático.

É esta a modesta proposta, que reedito, porque não foi lida nem discutida.

Talvez não seja digna de Swift, mas de criados e mordomos da política estamos fartos:

1. A detenção do poder será sempre contingente e rotativa. Cada movimento político ou instituição partidária terá direito a dois mandatos (três anos x dois) seguidos, embora de três em três anos haja eleições e um referendo;

2. Pelo referendo afere-se a confiança no governo e se o executivo necessita de mudança. Não é vinculativo mas corresponde a um cartão verde, amarelo ou vermelho.

3. Nas eleições, mediante a apresentação e discussão de programas (mais importantes neste caso do que quem personifica as ideias) apura-se quem terá o direito a ser oposição na legislatura seguinte;

4. Cada Partido deverá apresentar nas suas listas 30 % de independentes;

5. Quem ganhe o direito a ser oposição (o que implicaria um reforço qualitativo do trabalho dos partidos) subirá automaticamente ao poder daí a três anos, após o fim do mandato do poder cessante.

6. O parlamento nacional deve ser reduzido e funcionar, na prática, como um Conselho do Estado alargado.

7. Cada país organiza-se em regiões com os respectivos parlamentos. Este parlamento regional é composto por elementos dos partidos, mas reserva-se um terço dos lugares do hemiciclo a elementos espontâneos, ou representantes de outros movimentos e sensibilidades sociais, que queiram participar directamente na identificação dos problemas e na defesa dos interesses das suas regiões (- de modo a reflectir-se a ideia de que há questões que são indelegáveis);

8. O voto é obrigatório.

9. Emanará dos Parlamentos regionais a maioria dos pacotes legislativos, que serão regulamentados no Parlamento Nacional, tendo o Governo meras tarefas executivas, ou de regulação, dado poderem surgir conflitos de interesse entre regiões;

11. Cabe inteiramente ao Governo a orientação das políticas de caráter político-internacionais; estando, no entanto, as decisões mais graves sujeitas a referendo;

12. Sem burguesia não há democracia. Fala-se de uma burguesia ilustrada e produtiva. Pelo que, de força a garantir-se que o empenho sobre a qualidade técnica da educação seja maior do que a sua feição ideológica, cabe, por inerência ao partido da oposição a administração de duas pastas: o sector de Educação (será obrigatória desde a Primária a disciplina de Filosofia para Crianças) e o Ministério do Património Intangível. O que deve ser acompanhado de um pacto de regime que assegure um orçamento confortável para esses dois ministérios.

12. Não são permitidas as organizações de Juventude dos Partidos;

13. Será interdita a entrada na política activa aos cidadãos com menos de trinta anos e tal só poderá acontecer depois de dez anos de vida profissional activa e de se demonstrar que se atingiu certos patamares de competência ou o pleno da autonomia sócio-profissional;

14. Ninguém poderá estar no palanque da política activa mais do que um período de dez anos; podendo, a partir de então pode unicamente participar no concerto das opiniões, ou fazer parte de movimentos cívicos, mas sem ocupar lugares públicos;

15. Quem quiser entrar para a política activa terá de cumprir um ano em regime de voluntariado em qualquer parte do mundo;

16. O regime das tabelas salariais não pode, em todas as empresas, apresentar mais do que uma disparidade de um para cinco;

17. Dado que vivemos num mundo de recursos finitos e pós-mitos-do-progresso, onde até por ecologia política se deverá impor uma redistribuição as riquezas, a riqueza individual será permitida mas dentro do quadro de uma espécie de «economia-bonsai»; a partir de determinado nível a riqueza reverterá para a comunidade.

Restaurará este modelo um equilíbrio entre Democracia e Participação Cívica, fazendo da dignidade da política um exercício menos dúbio e amortecendo as atracções pelos engodos do Poder?  Talvez pelo menos iniba as profissionalizações na política.

Muito para além da “arte do possível”, creio antes que só o impossível é desejável e acontece. Só o impossível tempera a dignidade do homem. É preciso desejar o impossível para que algo aconteça e a política passe a ser um exercício laico e não uma actividade dependente de uma predatória lógica religiosa.

Consciente de que atirei o barro a uma parede que prefere o silêncio, passemos agora à sala e falemos de literatura.

27 Set 2018

El duende

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xperimentei no meu quase afogamento da semana transacta um estado prostrador de isolamento e de separação, instrumentos com que a morte pode actuar. Afinal, morre-se em comunhão ou contra ela: até a morte tem estas duas faces.

Levei demasiado tempo a combater contra a água sem me lembrar de que a água nos sustém. A minha consciência estava dividida. Naquele momento, seria uma morte macaca por causa das sensações despoletadas que acrescentariam agonia e desespero aos últimos instantes, ou melhor: um estado de orfandade.

Seria o contrário de morrer, por exemplo, numa trincheira, ao serviço de uma causa redentora, o que nos faz superar o medo e a eclosão da iminência, porque na verdade estamos fora de nós, envolvidos em algo que nos ultrapassa: aí «o corpo – como bem descreveu Ruy Belo – entra por engano morte»; ou de morrer mergulhado – a linguagem é tramada – num sentimento de unicidade, como o rio que penetra no mar, numa reminiscência que o exalta. Julgo ser disto que falam os místicos quando mencionam a importância da palavra Deus ser a última palavra. Julgo até que nomear Deus é outra forma de designar uma experiência que se localiza além das palavras e nos devolve a um estado de não-dualidade.

Só que esta experiência é concreta, não tem nada de “metafísica”.

A este sentimento de unicidade – como muita gente – já o experimentei. Algumas vezes nas aulas, ou numa por outra palestra, quando engreno na palavra e solta-se um fio discursivo que se conduz a si mesmo, num fluxo que ultrapassa as minhas capacidades expressivas. Aquela limpeza de raciocínio não é pauta que me pertença. Não me é habitual afluírem as palavras com o recorte, a nitidez, de quem lê um teletipo invisível, interior. Sou mais trapalhão, menos ordenado, menos inteligível. Contudo, nesse transe que me ocorre sulcar há um momento em que sou, à vez, actor, espectador e encenador, na medida em que observo os efeitos que a minha emprestada eloquência – num tempo dilatado, que não é o dos relógios – produz nos alunos.

Quando sou transportado por esta inominada energia verbal, embora não seja propriamente o ‘autor’ do texto, controlo a cadência rítmica, a respiração das frases, a melodia. Os alunos ou a plateia reagem consoante as virtualidades do instrumento cognitivo, a sua capacidade de escuta, mas claramente naquele momento somos um, como num cardume ou orquestra – enovelados na espécie de inteligência não circunscrita que nos abarca. O mais surpreendente é que ao mesmo tempo que as palavras me conduzem me sinto um ponto atento aos meandros, às minudências da enunciação – não separado da experiência mas numa dobra da mesma.

Inesperada aptidão e talvez similar à que Pere Gimferrer atribui ao poeta: ver o acto de ver, dobra na qual a consciência se reconhece a si mesma e as palavras se conciliam com o mundo que designam – em confluência.

Será esta a experiência do self-remembering a que aludem certos mestres budistas? Sinto que aquele fluxo discursivo se resgata ali, e a si mesmo, do esquecimento, expondo a sua face inteira, a sua amplitude, e que ressoa em mim uma maravilhosa não-identidade; a qual me consente encarnar aquela presença a si-mesmo, sem me fundir nela.

O que me surpreende nesta experiência não é tanto o fluido encadeamento dos conceitos como a sua liquidificação, a sensação de experimentar um pensamento pensante que transborda largamente a represa do pensamento pensado e se apresenta como a condição de possibilidade que emerge após o desaparecimento do sujeito que, paradoxalmente, incubou e expandiu.

Será raro esse estado de não-dualidade.

Nunca ouvi nenhum professor falar desta ocorrência e que sei comum ao que experimentam alguns actores durante a actuação. É como um despertar dentro da palavra e uma navegação no seu leito: basta seguir o ponto-da-vela, prenhe por uma lucidez diáfana.

E nesse estado tudo parece a um tempo simples e novo, como a resposta que o bailarino Nijinsky deu à senhora que no bar do teatro lhe perguntou:

«como é que faz?
perdão?
a maior parte das pessoas quando salta no ar vem imediatamente para baixo…
porque hão-de vir logo para baixo… – replicou Nijinsky – demorem-se no ar um bocadinho, antes de descerem…».

Agora leio no último e maravilhoso livro do John Berger, Confabulações, este naco sobre El Duende:

«Os artistas de flamenco falam muitas vezes de el duende. O duende é uma qualidade, uma ressonância que torna uma actuação inesquecível. Ocorre quando um artista é possuído, habitado por uma força ou um conjunto de compulsões vindas do exterior de si mesmo. O duende é um fantasma do passado e é inesquecível porque visita o presente para se dirigir ao futuro.

No ano de 1933, o espanhol Garcia Lorca proferiu uma palestra em Buenos Aires relativa à natureza do el duende. (…) “todas as artes”, declarou ele na sua palestra, “são capazes de duende, mas onde ele naturalmente encontra mais espaço é na música, na dança e na poesia declamada, uma vez que elas necessitam de um corpo vivo que as interprete, porque são formas que nascem e morrem de um modo perpétuo e elevam os seus contornos sobre um presente exacto. El duende actua sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia”»

um mundo em estado de dador: imagens à procura de um relator, pensamentos que buscam o seu pensador, ritmos que procuram o seu canal (as configurações do duende) e calha-nos ser o transporte para o tempo dessas ”doações” mas só o corpo as intercepta e traduz.

Isso nota-se muito em quem recita: há quem só dê o conteúdo, aí captamos com a inteligência, e quem consiga o regresso do poema a um estado pré-verbal, que a performance do corpo, daquela voz, naquela expressividade, volta a fazer nascer.

Aí emocionamo-nos e o contacto com o recitador levanta o vento sobre a areia: então “vemos” o que ouvimos.

20 Set 2018

O afogado mais formoso

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ntem, 7 de Setembro, estive prestes a afogar-me na praia do Tofo, em Inhambane. Havia um fundão e muito vento e marés em redemoinho e nas minhas costas o meu amigo (que nada muito melhor que eu) foi ao fundo por duas vezes antes de desenvencilhar-se, enquanto eu patinava no turbilhão, sem quaisquer resultados à vista.

Rapidamente fiquei ofegante; era batido por ondas desencontradas e já me faltava o fôlego para gritar. Piorou porque o tentáculo ácido de uma garrafa azul se enrolou no meu braço, lacerando-o; à sensação de que aquela massa de águas furibundas era superior às minhas forças juntou-se a dor e aí comecei a entrar em pânico.

Sentia-me um idiota a apagar-se a trinta metros da praia. E vi a minha mulher a sair da água com a minha filha mais nova, ambas pálidas, mais magras do que me recordava, como se um susto as alfinetasse – percebi que se tinham safado a custo. Ainda lhes acenei, mas não me viram no âmago do meu inferno.

Há um momento em que as perspectivas se invertem: o céu fica em baixo e a água em cima. E o peso daquela abóbada densa e líquida ameaça desabar sobre nós: é quando se deflagrou o sentimento de iminência. Aí sentimos o Opaco de que fala Michaux, a propósito da mãe a caminho da morte: a água deixa de ser fria, é apenas uma grande massa glacial, de algodão, que nos atravessa, poro a poro. Um cansaço geriátrico drenava o meu corpo, varrido pela inabalável densidade das águas. Num último assomo de espírito resolvi inverter de novo as perspectivas, pôr-me a boiar e deixar-me arrastar.

O coração explodia-me no céu da boca quando o nadador-salvador veio pelas minhas costas, a reboque de uma prancha. Não o vi chegar, tomo-o agora por um anjo no sentido que lhe deu García Márquez: o anjo é a única criatura do universo que não tem consciência do seu acontecimento.

A caminho da praia quase desfaleci por uma súbita baixa de tensão e ele teve de me segurar. Enfim, um descalabro que durou cinco minutos mas que nos faz perceber a fragilidade que nos tolera, a nossa profunda inaptidão.

Escrevo no dia seguinte, oito; voltei a entrar na água sem vacilar, para depois recuar porque fiquei com palpitações cardíacas. Retirei-me para a esplanada, onde releio o Justine, de Durrell, e penso como seremos sempre estranhos à vida e não íntimos dela.

E eis que tropeço nesta passagem lancinante: «a indiferença das forças naturais para com o mundo da Arte – uma indiferença que eu começo a partilhar. No final de contas, que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro estuário?»

Acode-me então o belíssimo conto do Garcia Márquez O Afogado Mais Formoso do Mundo.

Conta-se nele que, num dia luminoso, se avistou um afogado no mar, do alto da falésia onde se incrusta a aldeia. Os homens desceram até à praia para recuperar das águas o infortunado.

Está tão coberto de algas, musgos, lapas, escamas e restos de conchas, que é irreconhecível. E a aldeia manda emissários às aldeias próximas para sondar se alguém desapareceu por lá. Ninguém reclama o corpo. Resolvem limpá-lo, querem ver-lhe os traços antes de lhe darem um enterro condigno.

Quando o seu rosto aparece a nu, é uma visão que espanta. É claramente o afogado mais formoso do mundo. É tão formoso que resolvem mudar as genealogias na aldeia para cada família ficar ligada àquele antepassado, porque todos querem fazer parte do lampejo da sua memória.

Até isso me seria roubado, no meu afogamento. Não me coube tal formosura. Nem como afogados há direitos que possamos reclamar, tudo depende das circunstâncias.

Para Dostoievski que só a beleza salvaria o mundo. Não sei se ele tem razão. Mas no meu caso funciona – depois de algo tremendo que me tenha acontecido costumo recuperar por via de algo que porte uma significação especial, por um fogacho de beleza.

Talvez por isso, enquanto lia Durrell, desceu sobre mim este poema, que dedico aos meus amigos:

«O coração tem uma pálpebra fechada/ parece uma capa viscosa e plúmbea/até que o amor o visita/ e então ela abre-se afogando o mundo/ com a fragância dos limoeiros. // Aí um fragmento de canção/ vivificou o teu silêncio. /E repetes, repetes aquele acorde/ por se assemelhar ao relento/ dos seus lábios quando sobre/ o teu corpo espalhavam a cal viva.//

Não confundas a carne acordada/ com a tua sombra, só na dela/ se refaz a luz, só na dela/ se apraz o teu ligeiro embaraço./ Olhas da esplanada a baía –/ lembra uma melancia/ pois já o poente vos abraça.//

Ela lê o Auster, tu manténs os dedos/ entrecruzados, em vigília, esperas/ que uma palavra se solte no ecrã/ do laptop, vibrante como o urso/ que acabou de despertar do longo inverno.//

Desde que se conheceram nunca mais/ cerraram as persianas (omito aquela tarde/ do ciclone em que até as oleosas varejeiras/ do porto se colavam às janelas,/ aí na respiração do medo correram//

as persianas) para que o perfume/ dos limões nos terraços da cidade/ vos reponha os cambiantes/ que trouxeram à doce anarquia/ dos vossos corpos nus um valor:/ ouro, fósforo, magnésio,//

todos os credos que consolam/ a nossa vida portátil e breve/ por ser sempre tarde o armistício,/ de ser sempre maior a sede/ que o golfo do desejo recíproco.//

Olho-vos e narrador me confesso:/ invejo-vos, na curva do seu braço/ que envolve o teu, no vosso riso/ na escolha de um postal, ao balcão,/ da imagem justa, invejo-vos/ na felicidade intocável de quem ainda/ não foi corrompido por segredos:/ a pálpebra aberta no seu máximo esplendor. »

12 Set 2018

Ardem as línguas

 

01/09/2018

Colava-se na sua testa, estreita mas com sobreloja, uma inteira colecção de selos, talvez os das aves de Moçambique, estampados em… (fosse o meu sogro vivo e eu despacharia esta data com a limpeza de quem lava os olhos no copo do oftalmologista).

Infelizmente para ele, mais valia estar à la page, a sua testa voraz – os olhos sumiam-se abaixo da metade do crânio – curva-se em altitude como os ovos, numa indesmentível aproximação à redondez vilipendiada pelos partidários da terra plana; fanáticos que não enxergam que só em espelhos ovais sobressairão as cabeças quadradas, e mesmo aí raramente, exprimindo casos particulares que não chegam a neutralizar a sensação das cabeças serem primordialmente esféricas como Gaia, como as cerejas, como as prenhuras e as líchias; aliás como o plano de corte de uma veia: imperativo da agulha, dizem.

Mas falava da criatura que à minha frente rói até ao tutano a galinha e mexe os maxilares num crânio assustadoramente estreito – ah, Giacommeti, envia-me a tua morada e vais desmaiar de inveja! – e tão oblongo, que consegue ser a sua própria figuração.

E mesmo quando na sua testa se esplendem as luzes do tecto a sua luz natural cria outras linhas e cores no ébano, como se eclodissem desse planisfério ovóide as ostras do tempo.

04/09/2018

O que ressalta da negligência a que foi votado o Museu Nacional do Rio de Janeiro e que levou ao incêndio que o destruiu é a constatação de que chamar país ao Brasil é uma calúnia. Como aliás se podia dizer o mesmo depois dos desastres de Pedrogão e de Monchique, em Portugal.

Enviou-me o Luís Carlos Patraquim o email de um poeta do Rio, e amigo comum, o Alexei Bueno, que dá a dimensão trágica do ocorrido:

«Muito obrigado Reinaldo,
chorei muito ontem, passei inúmeros dias da minha infância nesse museu, lá levei meu filho, e assim por diante. Além do que era visto, pouca gente avalia o valor do que não estava exposto, era o que havia de mais importante no Brasil, seguido pela Biblioteca Nacional. Além da coleção egípcia, na verdade a maior do Hemisfério Sul, e da coleção grega – da Magna Grécia -, etrusca e romana da Imperatriz Teresa Cristina (que era de Nápoles), lá estava guardada toda a história de etnologia e arqueologia brasileiras, as urnas marajoaras e tapajônicas, os fósseis, a Coleção da Comissão Rondon e a Coleção Roquette-Pinto (filmes, fotos, registros sonoros, não sei se algo foi copiado), os papéis do Curt Nimuendaju (um alemão que foi o maior etnólogo do Brasil), a magnífica coleção de taxidermia (quantos taxidermistas deve haver hoje, e com aquela qualidade?), os fósseis, os ossos de dinossauros, a sala do trono, onde havia a célebre cerimônia do beija-mão, milhares de peças de tribos já extintas, um trono que o rei do Daomé deu para D. João VI em 1811, sem similar nem no Quai Branly, tudo destruído. Duzentos anos de coleta, escavações e estudos etnológicos dum país que tem o quarto território contínuo do mundo transformados em pó. Havia quatro vigias para um prédio de 13 mil m2, obviamente sem qualquer recurso, que viram o início do fogo e fugiram, os hidrantes sem água, etc… Exatamente 40 anos depois do incêndio do MAM. E tentavam conseguir vinte milhões (quatro milhões de euros!!!) para o prédio! Mais do que o dobro disso havia no apartamento de Geddel Viera Lima, um deputado corrupto, em Salvador. Gastaram dois bilhões para demolir e adulterar o Maracanã, uma construção classificada federalmente, e queriam resolver o problema dum prédio daquele tamanho e mais do que bicentenário com vinte milhões!!! Nem o interior do prédio conseguirão recuperar, todos os pisos originais, com as imensas tábuas de velhas madeiras brasileiras hoje indisponíveis, os tetos estucados e pintados… Não há o que falar.
Um grande abraço, extensivo aos amigos.»

E estes são apenas os incêndios visíveis.
Ocorre o desastre ao mesmo tempo em que um candidato às eleições brasileiras, o inefável Bolsonaro, num comício, simula uma metralhadora e diz o que fará aos do PT, caso ganhe, sem que qualquer Comissão Nacional de Eleições o torne imediatamente ilegível.

Há algo de profundamente corrosivo nos tecidos da vida activa dos países de língua portuguesa, como se padecessem de uma sintaxe infernal que atoleima os seus falantes e conecta os seus destinos às variações de um naufrágio repetitivo e sem remissão. Uma espécie de maldição de Naufrágio de Sepúlveda, reactualizada através de todos os elementos, formas e coordenadas, sendo executada em todas as dobras do tempo.
Respondia Hannah Arendt numa entrevista, sobre ter continuado a praticar o alemão a níveis mais profundos, depois de ter enfrentado os horrores do Holocausto. “Mesmo nos tempos mais amargos?”, pergunta o entrevistador. E responde ela: “Eu interrogava-me: o que fazer? De qualquer maneira não foi a língua alemã que enlouqueceu!”. Já Derrida, num livro muito interessante, O Monolinguismo do Outro, levanta a suspeita de que as línguas possam enlouquecer e contaminar com a sua demência as comunidades que as usam, e até as instituições.

Se olharmos para o que se passa no Brasil e em Moçambique, países numa combustão descontrolada, e os impasses em Portugal, Guiné e Angola, é difícil não concluirmos que seria difícil correr pior e como a inaptidão de cooperar e de operacionalizarmos algo de útil, sistémico, e de mútuo interesse, deixa cada país sozinho com as suas orgulhosas infeções internas. Há uma subcutânea maldade nesta incapacidade para, em todos os quadrantes, ultrapassar os irreais; nesta irresponsabilidade com que deixamos arder os valores e a cultura; nesta desagregação de vínculos, que prefere o egoísmo da má consciência à mutualidade de uma comunidade de língua que pudesse ser melhor em conjunto e erguer um carácter que relevasse por sobre os defeitos individuais.

Não somos capazes. Será preciso deixar arder a língua, para darmos conta de que urge uma terapia?

 

5 Set 2018

Derivas na língua

09/08/18

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] esquerda, na frente, as violetas, os violinos e os oboés; depois, acima, por detrás das violetas e dos violinos: a harpa, de viés, para que as cordas vibrem impelindo o ar na direcção do leitor. Atrás dos oboés: as trompas. Na frente, à direita: as flautas, os violoncelos, o contrabaixo. Atrás do violoncelista, na segunda fila: o fagote. Na terceira fila: o clarinete baixo e o contrafagote. Na quarta fila situam-se os trombones. Ao centro, à frente: o primeiro e o segundo corne; de ambos dos lados destes: à esquerda o piano de cauda sem tampo e, à direita, o baixo de tuba. Por trás do piano, de viés, o harmónium. E simetricamente, atrás da tuba: o órgão eléctrico. No fundo, ao centro, da esquerda para a direita: as precursões, as congas, a marimba. Ao corno di bassetto solista e aos dois clarinetes pendurei-os nos candelabros.

O catarro do violoncelista precede o silêncio absoluto.

Depois, eu, o maestro, à frente da orquestra, que amacio com a língua (bendito o dia em que lancetei o freio) os mais pilosos segredos da tua orquídea, ergo as batutas.

Inicia-se o concerto.

O leitor sorri, com a orelha encharcada.

11/08/18

Stockhausen, no livro de entrevistas com Mya Tannenbaum, fala da complexidade crescente da tarefa artesanal de compor e defende que o diálogo com um aprendiz, um assistente, pode ser útil para ambos. Depois refere os 4 assistentes que teve. E pergunta Mya: «Christ era, por assim dizer, o seu delfim. Que é feito dele?» Responde o músico: «Foi para mim um choque: reduziu-se a tocar como primeiro violetista na orquestra de música ligeira de Westdeutscher Rundfunk.»

Cheguei tarde aos (meus) mestres. Mas uma coisa aprendi com eles: não se pode ensinar aonde colocar os pés num terreno que não pareça minado, o risco é próprio e intransmissível. Do mesmo modo que ninguém consegue deslocar o lugar da sua morte, ninguém aproveita coisa alguma coisa ao tornar-se o velcro do seu mestre. Por isso diziam os budistas: se encontrares Buda, mata-o!

A escolha da música ligeira só traduz o tremendo susto que floresceu no caminho de Christ.

12/08/18

Ando insone. As palavras chegam-me como um coro fora de cena.

Durante décadas não reconhecia a depressão. Agora morde-me as canelas, enfia-se-me no sono, tem a odiosa gordura que acumulava o linóleo das mesas da minha infância. É um volume que insiste em ser carregado, sem conseguirmos corrigir o erro contínuo de avaliação da energia a despender, vítimas de um conceito mecânico de força.

Basta um homem para remover a grande pedra e empurrá-la colina acima, o mais difícil a acreditar em Sísifo é, num momento de distracção, não deixá-la rolar encosta abaixo.

Hoje até a insónia me parece um feixe dissipado, o cacto enterrado na duna pela tempestade de areia e que perdeu de vista a águia.

As esculturas gregas decapitadas, com o pénis cortado e as órbitas vazadas? Meia vida é assim, amorfa, conformada; sendo o fazer e o desfazer o domínio dos olhos que querem crer.

Paracelso disse tudo: a mente é quem faz ver os olhos.

E, entretanto, não fodemos tanto quanto seria desejável e o amor é sempre um carrinho de mão a equilibrar-se na corda do funambulo.

O acto criativo é que nos compensa, porque o que conta aí não é tanto produzir uma variante na bagagem preexistente como aderir ao processo originário da invenção. Aceder ao incriado, onde todas as possibilidades estão em aberto. E aí, num dia bom eu estendo telescopicamente o braço e apalpo as estrelas, sondo quais estão maduras (- aqui para nós, o rabo das estrelas é tão grande que se pode lá entrar como num celeiro). Diria o Rilke que não existe mais nobre ofício, porque não sou eu quem vai colher o fruto, eu só o testo e farejo.

Em dia assim chego a casa e o amor exorbita. É um puro acto de contaminação.

Em dia infértil, rezingo o suficiente para o próximo milénio, chego a casa e afio as facas na pedra que era do meu avô amolador, reajo por reflexos condicionados.

A incubação dos deuses teve também por fito acomodar-nos a algum modelo de constância. Porém, o corpo é uma espécie de arco que nos ejecta para vicissitudes realmente labirínticas. E o facto de nos empenharmos não garante automaticamente uma satisfação. Há lotarias para o sexo e outras para o amor, não é raro que coincidam, mas é inescapável que amiúde um é o estorvo do outro.

13/08/18

Excelente, a crónica do Paulo José Miranda sobre como o tempo se transforma quando se deixa de beber.

Como alcoólico sempre me penalizou que ao tempo lento da ebriedade se sucedesse a calcinação do tempo nas ressacas. Mas o meu prazer era físico, não psicológico, e, será uma das coisas que me atraía no álcool, há um certo cansaço que despoja.

Nunca estive sem beber o tempo suficiente para sentir a mudança. Mas quando cheguei a Moçambique senti fisicamente essa dilatação do tempo de que fala o Paulo – durante seis meses vivi, literalmente, noutra região do tempo.

Há realmente modulações do tempo e para as sentirmos não podemos cilindrar as suas hipóteses de serem percepcionadas. O álcool é uma antena ludibriadora e ao fim de algum tempo apodera-se do foco, sendo o mais pretexto para a sua anestésica litania. Pior, as intensidades anulam-se e confunde-se a exaltação na presença com a amizade.

Nos últimos anos aderi ao valor do não e do silêncio quando o álcool me chama. O que me permitiu disciplinar-me e recuperar o prazer de beber, embora o mais difícil tenha sido romper com toda uma mitologia incarnada.

O que é facto é que o álcool não acrescenta um grama de atenção ou qualquer microfone a catorze violinos que possamos ouvir ao natural. Apesar de termos acreditado nisso durante décadas, com as tripas. Afinal, ouvir o tempo manifestar-se nas coisas dobra-nos o tempo: triste é ter percebido isto tarde.

16 Ago 2018

Improvisos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida, dizia alguém, é como um concerto de cordas que se executa em pleno palco, à medida que se vai aprendendo, que a sua partitura se inscreve em nós – em sangue.

Também o poema. Dizia o René Char: «coitado do poeta a quem o poema não ensinou algo que ele não sabia de antemão!», aludindo a esta experiência de jogar sem rede. E não é só bazófia romântica; impele-nos a necessidade de desfazer as imediações e as tramas discursivas para conseguir aquilo a que Derrida chamava “o deslocamento dos limites do cerco” (ele chamava-lhe “cloture”, que à letra seria mais “fechamento”, mas recorta-se um cerco em qualquer fechamento).

Não por acaso as vanguardas acabaram nos anos cinquenta e sessenta por querer diluir o hiato entre a vida e a arte. O que a sermos lúcidos nos levou a grandes equívocos, embora nos tenha indubitavelmente favorecido em ductilidade.

Mas hoje até a linguagem televisiva aprendeu a jogar com esta nossa necessidade de desfazer as imediações para nos tornar adictos. Como agora comprovei em cinco minutos. Paguei o café e levantei-me para sair mas dando-me conta que no plasma passavam os penaltis Espanha-Rússia, do campeonato do mundo, jogo que eu não vi, detive-me. E o que assisti no último penalti espanhol maravilhou-me.

Iago Aspas parte para a bola e bate-a e no arco de um segundo vemos o rosto dele mudar como um ecrã: primeiro contente por ver que tinha dado à bola uma direcção oposta à do estiranço do guarda-redes russo, o que prometia golo, chega mesmo a sorrir numa intensidade da expectativa vencida pois sentia que havia cumprido com o seu dever, e de repente assoma-lhe o espanto à face por ver que o pé do guarda-redes, uma réstia do mísero pé, acertara na bola e desce-lhe a decepção ao rosto por se certificar de que falhou o que meio segundo antes parecia certo.

Esta gama de emoções faciais deflagrada num segundo é o que é acolhido emocionalmente pelo espectador que – sem que faça uma leitura decomposta dos estados de animo do jogador – a recebe de uma forma directa e na totalidade do seu espectro.

Não há mediações, qualquer necessidade de um ajuste discursivo no fluxo das imagens, nada a compreender ali: basta acolher a imagem para se experimentar o inteiro valor dela.

Este segundo de televisão ilustra de forma genuína a transição epistemológica que hoje ocorre nas sociedades mediáticas, como foi diagnosticada por Hans Gumbrecht, de uma cultura do sentido para uma cultura da presença.

Já não são as olímpicas capacidades hermenêuticas que provocam a valorização e o desejo dos indivíduos na grelha das suas expectativas sociais mas sim a entronização de cada um na lógica de participação que faz do poder da performance e do sulco da presença as qualidades que agora são investidas no enlace entre o individual e as representações colectivas. Não admira assim que as actividades desportivas hoje sobrepujem sobre as intelectuais e que a imagem ganhe momentaneamente o estatuto de uma natureza.

Aquilo que os artistas dantes buscavam, no afã de romperem as barreiras e de inocentemente se aproximarem de uma concepção da arte totalizadora que transfigurasse a vida no acontecimento de uma expressão sublimada, é agora obtido em cinco segundos de televisão, por meios técnicos e sem pretensões artísticas. A televisão parece conectar a palavra à coisa e a imagem à vida sem mediações.

Sabemos que isto é ilusório mas o simulacro é impactante e ilustra o que defende a psicanálise, i. é, que o nosso inconsciente não distingue entre o facto e a coisa imaginada. E, pior, isto deixa-nos a sós com a pergunta: afinal passa-se alguma coisa no exterior da nossa cabeça? Poderemos alguma vez fugir à fatalidade de sermos solipsistas sem perdão? Ou, no seu inverso, à fatalidade de sermos prisioneiros como as personagens de Solaris das suas próprias imagens?

Creio que a saída está no amor. O amor dá-nos a prova de que o mundo existe fora de nós e pode ser benigno. Porém, para que essa exterioridade que o amor valida aconteça é exigida a coragem de ser vulneráveis e de nos propormos não controlar nada. Como aventei num apontamento que havia esquecido: «… não acho qualquer benefício na fusão, que anula não apenas o outro como a experiência do seu atrito em mim. Mesmo no amor, o outro deve respirar pela sua própria cabeça. E ainda que reconheça o atractivo das sugestões dos filósofos-terapeutas, como Samuel Buber e James Hillman, para quem um encontro é uma relação sym-bálica, ou seja, um plinto que ajudará a manifestar-se em mim uma propensão latente, ou que, no mínimo, ao levar-me a funcionar como reagente, me catapulta para a transformação, gosto ainda de me pensar como testemunha de um outro que me resiste, que não me é conjugável e pertence a outras dimensões e formas de ser, tão legítimas como a minha.»

Assisti esta semana ao vídeo do encontro entre George Steiner e António Lobo Antunes. E o Steiner confia a Lobo Antunes que o alinha entre os autores para quem o amor sobrepujou o ódio. E no contraponto dele coloca o Céline. Isto não faz de um melhor que o outro, no entendimento do ensaísta, mas em Lobo Antunes divisa-se um percurso do perdão ao amor e um respeito pelo outro e o mundo que pelo menos não o degrada, em Céline o ressentimento do autor sobrepõe-se ao mundo e oblitera-o, torna-o uma mera projeção dos seus fantasmas – espantosamente bem encenado como são todos os espectáculos de guilhotina.

Eu – que adoro o Céline, não é isso que está em questão – comprei momentaneamente esta dicotomia do Steiner.

Embora a xaropada da canção romântica do Roberto Carlos que começa a soar no café me faça debandar e fugir da crónica.

2 Ago 2018

Para não ver claro

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] seis meses de fazer os sessenta sinto que continuo a não ver nada claro e que isso afinal é que me alimenta a curiosidade.
Se associarmos a idade ao hardwire, como um circuito que não pode ser reprogramado porque ficou como soldado a uma conexão anterior, não sinto nada que aos estímulos novos queira antepor alguma perspectiva de controlo. Estou nos antípodas da velhinha da anedota que procura a moeda que perdeu debaixo do candeeiro onde está a luz, na ilusão de que o problema se situe num perímetro em que o possa controlar.
Quando era novo actuava como um x-acto, fosse na crítica que exercia, fosse na vida, porque achava que tudo era questão de ver claro.
E via tão claro que aterrorizei a minha mãe durante anos com a obsessão de que me suicidaria quando fizesse vinte e três anos. Quando fiz vinte e quatro ela acordou-me e disse-me, Venho dar-te os parabéns que mereces, e esbofeteou-me com um furor idêntico à crueldade com que a mortifiquei durante um lustro.
Aos vinte e nove divorciei-me porque via claro e segundo me contaram amigos dez anos depois – eu tinha-me esquecido de todo – separei-me porque, justifiquei, “não consigo ser suficiente burguês para ter uma mulher e uma amante ao mesmo tempo!”. Dada a beleza excelsa da esposa rejeitada e a sua inteligência emocional, percebo que me precipitei como o cretino embriagado pela teia das suas próprias palavras e ainda a milhas de saber que a burguesia tem pelo menos a virtude de ter menos ilusões quanto aos seus próprios enganos.
Mas o fito era ver claro, bovinamente.
Felizmente retirei-me dos comandos de uma tão decapitadora luminotecnia e passei a aceitar que uma certa falta de controlo faz bem à vida e que muitas vezes não vemos claro e sobretudo não vemos em 360 graus, isto é com a lucidez exigível.
Hoje fascina-me que o documentarista Joris Ivens aos noventa anos tenha partido para a China para tentar fazer “um retrato” de algo verdadeiramente impalpável, o vento, fechando com o mistério desse elemento a sua carreira tão marcada pelo factor político.
Deixou de ter medo de não ver claro.
Neste campeonato do mundo confirmei. Das coisas mais penosas na tv é a redundância dos comentadores de futebol. Precisamente porque eles querem manter a ilusão de que vêem mais claramente do que os outros. A bola é centrada para a esquerda e repete o locutor: “a bola é cruzada para a esquerda”, como se fôramos cegos. “Em quatro minutos dois penaltis. Incrível, penalti claro, levou a mão à bola”, ouço, e que acabámos de ver? Dois penaltis e num deles a mão na bola. É um trabalho que se pode fazer com um olho nas costas. Um trabalho mecânico, com escassíssimas inflexões.
Como eles próprios, inexplicavelmente, não morrem de tédio com a vacuidade produzida, dado esse mistério são considerados especialistas. Especialistas da duplificação inútil das figuras, como se fosse uma revelação extraordinária anunciar “A múmia está morta!”.
É trabalhinho que dispensa o raciocínio, chega um vocabulário de 300 palavras, e ter engolido um megafone para ensaiar de cinco em cinco minutos os efeitos da ênfase: a dramatização é um ver claro.
O sonho do meu tio Isidro era fazer relatos de futebol. A Rádio Renascença abriu-lhe as portas. O meu tio Isidro prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos. E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia.
O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa-dos-ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas – um vento dos antigos – enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido.
Não se entendeu nada do jogo, mas as pessoas tiveram bastas informações sobre como orientar-se com uma bússola.
Os actuais comentadores de futebol, pelo contrário querem “ilustrar” o jogo e mostrar como vêem mais claro.
Por isso é urgente lembrar que faz cem anos nasceu um dos génios do cinema, Ingmar Bergman, cujas personagens se debatiam no nevoeiro.
Num dos filmes, o Persona, uma enfermeira conta uma história a uma actriz em crise e que deixou de falar. Ouvimos o relato duas vezes. Primeiro sobre a imagem de quem o conta, depois sobre a imagem da actriz que escuta.
Perguntaram-lhe porque tal acontecia e ele explicou: a história que se conta nunca é igual à história que se ouve. Ou seja: existe o relator, o ouvinte e o intérprete. O intérprete é cada um que ouve o relato a partir do seu contexto e estória de vida, diferente para todos. E com isto Bergman descentra o espectador do eixo do filme para nos fazer descobrir que aquelas personagens existem para além do público, têm uma dignidade própria que ultrapassa a função de fazer passar informação para o espectador.
É isto que falta a muitos personagens de hoje, seja no cinema ou na literatura: tridimensionalidade. Mesmo que para tal as personagens, que tanto falam, deixem de ver claro para se emaranharem ainda mais. Mas há nos seus filmes um respeito pelas personagens, pela sua veracidade, que não se compadece com o espectáculo mas antes adianta a ideia de que vivemos num mundo múltiplo, onde às vezes é difícil o contacto humano. Ou encontrar, apesar da loquacidade, clareza no discurso.
Seria útil que os locutores de futebol percebessem que vivemos num mundo múltiplo e não uniforme. Talvez assim, sem saberem como chegar a todos, se calassem.

26 Jul 2018

As costas de Deus

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o belíssimo livro de entrevistas entre o poeta argentino Robert Juarroz e Fernand Verhesen, Poésie et Création, a dado momento o entrevistador comenta que o primeiro tomo da Poesia Vertical (a obra do argentino é unitária e teve sempre o mesmo título, só acrescentando um número aos diferentes volumes) é atravessado pela nostalgia de Deus, de um Deus visto de costas, de um Deus que vira as costas.

E responde o poeta: «O seu reparo é para mim de uma extrema importância; e concerne um ponto nevrálgico. Mas pede uma pequena rectificação. Mais do que de um Deus que vira as costas, eu creio falar da busca das costas de Deus. Porque o Deus da face, o Deus conhecido, esse das religiões, não nos serviu para nada. A obsessão que se revela no meu primeiro livro sob o nome de Deus e naqueles posteriores onde eu não o nomeio, significa isto: a parte visível das coisas, descrita, recontada, histórica, conhecida de todos, não nos serviu para nada. É o reverso das coisas que é preciso descobrir, e está aí todo o sentido da minha busca.» (pág. 37).

Acicatado pela curiosidade resolvi reler o primeiro livro de Juarroz e então encontro o poema 22:

As costas do homem estão mais nuas do que a sua frente,

e seguramente pesam menos.

Não parte o vento nem as palavras,

tão somente as sustém.

Mas nas costas do homem não está o homem.

Estão os outros homens e a morte,

os risos e os deuses,

a angústia dos mortos.

 

E aí está, também, o fumo de uma antiga fuga,

a forma de um leito demasiado tempo só,

a palavra que ninguém vai pronunciar,

a ausência disto que ainda não se foi

e sobre tudo a abóbada da ausência,

como uma rede perdida,

como um mar inútil,

como o fracasso de todos os abrigos.

 

Sim. As costas do homem estarão sempre mais nuas,

muito mais nuas do que a sua frente.

 

Gosto muito deste poema porque me projecta numa questão que sempre me fascinou: que tipo de nudez quis Deus mostrar a Moisés?

Moisés só divisou as costas de Deus, a afastar-se. Ainda bem para o judeu, se lhe tivesse visto o rosto ficaria calcinado como Sémele quando, após um implicativo rogo, viu o rosto de Zeus. Aliás, fora avisado: «Mas tu não poderás ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida». É um dos mistérios de Deus, o seu rosto é uma corrente impetuosa que não permite o olhar.

2500 anos depois, assegurou o cineasta Jean-Luc Godard «uma paisagem só se filma de costas», o que não passa de uma variante para a percepção de Moisés. Como se filma uma paisagem de costas, essa parte mais nua da sua visibilidade porque a mais desprotegida ou a mais oculta?

Algumas trilobites, concluíram os biólogos depois de lhes estudarem os fósseis, viam em 360 graus – o que corresponde a uma vigília insusceptível de abrandar. Ver tudo continuamente à nossa volta há-de gerar uma visão amorfa dado que a perpétua visibilidade de tudo obtura os níveis da atenção que de comum só se intensificam quando se particularizam, ou então pode degenerar num estado de paranóia, sem remissão, no qual o trivial e o raro se equivalem na significação. Algumas trilobites não tinham costas.

Creio que o que nos torna humanos se funda na opacidade que tem raiz no ponto cego das nossas costas e nos obriga, para superarmos o medo que lhe é latente, a uma suspensão da incredulidade: a apostar na confiança. Sem esse lado cego à nossa percepção nunca assumiríamos a confiança como um dos vectores que agregam os homens.

Aceitar a nossa vulnerabilidade, destiná-la ao outro, que constitui o nosso penhor é um acto magnífico e exige coragem e desprendimento.

Num filme do Hal Hartley, um ritual de um pequeno grupo de amigos era cada um deles, à vez, subir a um muro, meter-se de costas para os amigos e deixar-se cair de costas, confiando em que o grupo lhe sustém a queda. Não era para todos, não é para todos, mas é o que funda uma comoção, a sua sombra e a sua reciprocidade. Daí que, para lá da sexualidade, seja a confiança o combustível mais duradouro do amor.

Por outro lado, como podia Moisés reconhecer as costas de Deus? O que são as costas de uma paisagem senão o quiasma onde o nosso olhar se entrelaça e excita e faz resplandecer o oculto?

O que Moisés afinal vê nas costas de Deus são as costas do homem – as suas, as nossas – e nesse gesto Deus está a dar um aval absoluto ao livre arbítrio. Ao mostrar as suas costas, o que ali é pedido ao homem não é a obediência mas que se torne digno de confiança; ao ilusoriamente lhe figurar as costas Deus mete o livre arbítrio do homem em prova, pois quem pode impedi-lo de um gesto agressivo em relação a toda a fragilidade manifesta – sempre que os homens, entre si, se viram as costas?

Deus mete-se em jogo nesse dar as costas, supostamente indefesas, e cauciona com isso, irrefragavelmente, a razão e o livre arbítrio no homem.

É uma das atitudes mais espantosas de um Deus face ao homem, um gesto que no meu parco entendimento é mais digno de ser fundador do que a Tábua das Leis: eis um Deus que ao virar-lhe as costas oferece aos homem a sua  trégua.

O rosto é o ser irreparavelmente exposto do homem, diz Agamben; as suas costas seriam então o ser irreparavelmente inacabado do homem – essa metade do símbolo com que Aristófanes definia o homem e lhe prodigalizava uma busca incessante pelo Amor que o complete.

19 Jul 2018

Os contos do trânsfuga

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]uben Dario (1867-1916), praticamente, nasceu trânsfuga, numa Nicarágua natal que só lhe conheceu a infância, o começo da juventude e o ocaso.

Pelo meio, foi educado pelos tios, por extravio do núcleo familiar, e novo saiu da aldeia natal para visitar El Salvador; no trespasse da adolescência passa a residir no Chile – um pé em Valparaíso e outro em Santiago -, após o que assentou arraiais na Costa Rica e no Guatemala, aportou várias vezes ao Panamá, viajou até Espanha – dando então o primeiro salto a Paris; a errância fá-lo instalar-se ainda na Argentina, em Buenos Aires, (como cônsul da Colômbia), sem dispensar uma transumância permanente entre a América e a Europa, aonde igualmente visitará a Itália e Maiorca. Em 1910 desloca-se ao México, que está no umbral da grande revolução; seguir-se-á Nova Iorque, antes de regressar à Nicarágua, à sua aldeia natal, Chocoyos (hoje Ciudad Darío), morrendo aí em 1916 com apenas 49 anos, embora muito calcinados pelo vinho e o uísque que vazou a rodos.

Todo este cosmopolitismo fê-lo um partidário ferrenho da unidade centro-americano, utopia política de alguns e nunca cumprida, e a enjeitar os nacionalismos, declarando com humor: porque «ao homem, como aos cogumelos, não exige Deus a escolha de uma pátria» (frase colhida no conto Arte e Gelo, incluída na antologia que é pretexto desta prosa).

É desta criatura plectórica e vital no dealbar de um século para outro e que rompeu com o provincianismo colonial para se revelar um dos aríetes da literatura em qualquer coordenada em que tenha tomado assento, que agora se edita uma genicosa coletânea de contos, o volume Curiosidades Literárias e outros contos, com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral, na colecção por si dirigida, a Colecção Avesso, para a editora Exclamação!, do Porto.

Curiosamente, muitos contos estão identificados com os locais que visitou, literalmente ou através de leituras, e temos o conto parisiense, o conto hebraico, o conto russo, o conto grego, o conto passado em Londres, a lenda mexicana, etc. Embora não haja nestes contos apenas um impulso mimético em relação aos lugares e aos diferentes estilos que evocam, antes se certifica neles, muito para lá da feição simbolista que de comum se lhe associa, o profundo ecletismo do autor. E temos narrativas de cunho simbolista, de cunho fantástico, de recorte realista, fábulas e até anedotas de amplexo mitológico. É isso que o torna uma fonte de surpresas e profusamente actual – isso e um humor subterrâneo que de vez em quando aflora:

«O asno (embora nunca tenha conhecido Kant) era especialista em filosofia, como se costuma dizer» (pág., 48);

«Orfeu saiu triste do bosque do sátiro surdo, disposto a enforcar-se no primeiro loureiro do caminho.

Não se enforcou, mas casou com Eurídice.» (pág. 52)

«Que doutor Z seja ilustre, eloquente, conquistador; que a sua voz seja ao mesmo tempo profunda e vibrante, e o seu gesto avassalador e misterioso, sobretudo depois da publicação da sua obra A arte do sonho, talvez se possa discordar ou aceitar com reservas; mas que a sua calva é única, insigne, bela, sone, lírica se preferirem, oh!, isso é indiscutível, estou certo!» (pág.93)

Darío é tão fascinantemente eclético que até antecipa Lovecraft, em O pesadelo de Honório, que, coitado, num sonho revisita todos mas todos os rostos, perfis, caretas, esgares, e máscaras que tiveram lugar numa sucessão formigante desde o princípio do mundo e que se guardarão no provável armazém que configurará o inconsciente de Deus – multidão que devém a interminável soma de singulares que aterrorizaria qualquer mortal -, ou antecipa os artifícios dos experimentalistas do OuLiPo, no conto que fecha esta antologia, Curiosidades Literárias, e que transcreve uma narrativa – deliciosamente intitulada Para Fracassar Basta Amar – que dá um bigode a Georges Perec, pois constrói-se a partir da interdição do uso não de uma vogal mas de quatro, só sendo autorizado o recurso ao a.

Para se perceber a riqueza do conjunto e como em Darío até as anedotas têm duplo sentido, citemos esta:

«No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios.

– És bela.

– Sou – disse a rosa.

– Bela e feliz – prosseguiu o diabo – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas…

– Mas?

– Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detém sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco…

A rosa – tentada como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura.

Passou o bom Deus, depois do romper da aurora.

– Pai, disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil.

– Seja minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo.

E o mundo viu então a primeira couve.»

É extraordinário esta anedota. Não somente pela sugestão de que não há funcionalidade desejável para além daquela que concerne a cada forma, mas também pela ideia herética de que cada ser, criatura, entidade, planta ou nuvem pode ter sido tentada no paraíso. O que pessoalmente, perdoe-me o leitor, acho uma ideia retumbante.

Para além dos contos referidos outros realçam, como a curta fábula Febea, na qual a pantera “domesticada” não mente a Nero sobre os seus dotes artísticos, até ao auto-irónico O último Prólogo, corrosiva diatribe contra a condescendência literária com um desfecho surpreendente, ou não, se o associarmos às contradições dalguns escritores do actual friso dos escribas portugueses que se querem “malditos”.

Reconheça-se por fim que a fluidez e eficácia destes contos devem muito à imperiosa qualidade da tradução de Rui Manuel Amaral, sem a qual esta diversidade e tensão frásica manquejariam.

12 Jul 2018

Séries e os Malogros de Deus

02/07/18

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou arredio à televisão e na generalidade às séries. A última que vi com agrado foi True Detective. A primeira temporada – já não espreitei as seguintes. Porém, como até em casa que não pratica a televisão tal frenesim chega, tive de trazer de Lisboa, gravadas sob encomenda, uma caterva de séries para a minhas filhas.

Este fim de semana espreitei uma das três que gentilmente, sem eu ter pedido, gravaram para mim: Homeland, que anda em torno do terrorismo e do regresso dos prisioneiros políticos de Al-Qaeda e cujos heróis são agentes da CIA. E papei a primeira temporada inteira, doze episódios em dois dias.

Gostei. Enredos bem estruturados, com personagens e diálogos adultos e, como é normal, bem ritmado.

Contudo, ao dar o mau passo de ver a segunda temporada percebi como por intratável inverosimilhança a coisa baqueava. O que era qualitativo na primeira temporada era a plausibilidade humana. Na segunda temporada a lógica narrativa já é totalmente televisiva, impõe-se o esquema da dramatização (o espectáculo acima de tudo) e o inesperado é o que rege a acção; pior, com uma causalidade sempre justificada ao posterior (- é o dispositivo de Eurípedes convertido em matéria televisiva). Além disso, as personagens começam a caricaturar-se e a reflectir um mundo maniqueu e em derrapada islamofobia.

Tivesse a série acabado no 12º episódio, com tudo em aberto, e seria perfeita. Depois a lei do mercado arrasa tudo. Para além da débacle moral: os terroristas e os supostos defensores do Bem são cegos prisioneiros da mesma teia de aranha, num mundo embutido no friso cinismo dos líderes e de profunda raiz escatológica, pois escava fundo a ideia de que um mundo manietado por gente tão feia é melhor que acabe.

Duas coisas compreendi: primeiro, como Séneca tem razão ao alvitrar que pobres não são aqueles que têm pouco mas antes os que necessitam de muitas coisas, pois é uma intensidade emocional aditiva absolutamente artificial a que nos leva a não conseguir largar o osso na sucessão de episódios de uma série, seja qual for o lixo que se vai alastrando nas nossas retinas. É mais fácil criar dependência do que dispensá-la.

Segundo, o romance está condenado a sobreviver como uma estética gourmet, tal como o livro, e vocacionados para franjas do mercado. Sobretudo nas sociedades em que o dogma da comunicação e da sua suposta instantaneidade foi substituindo o mais árduo valor da transmissão do conhecimento. A transmissão supõe uma inacabável aprendizagem de códigos sucessivos, o que exige um maior labor hermenêutico, enquanto a ilusão da transparência comunicacional faz parte de uma sociedade em que o sentido é gradualmente preterido pela performance e a reverberação da presença.

O romance é um veículo narrativo por excelência do primeiro regime e a televisão do segundo.

Daí que a literatura se veja hoje sob pressão de uma novelização crescente, que a modela como avatar pré-filmico, o que acontece já a oitenta por cento dos romances que se publica.

É impossível a um romance fornecer em cinquenta minutos o mesmo volume de informação e obter uma igual densidade de efeitos emocionais. Até porque um bom romance não visa preferencialmente o tabuleiro das emoções e quer igualmente partilhar o jogo da inteligência: que por exemplo o leitor se aperceba dos actos de linguagem. Numa boa série televisiva ou num bom filme a linguagem é apenas veículo formal e quanto mais invisível melhor – o Godard foi uma excepção. Há, por outro lado, uma competência artesanal nestes produtos que “parece” substituir com vantagem os recursos expressivos da narrativa literária – quando os domínios da literatura, os seus meandros e objectivos, não se esgotam na trama e visam uma especificidade inabordável por qualquer outro modo. Um bom romance, por fim, dado que não se limita ao factor da identificação, pressupõe um encontro com o leitor de recorte mais apurado do que a mera “atenção distraída” que dedicamos à televisão.

Já para não falar da desonestidade de se começar com um registo ficcional, para agarrar o espectador, e a meio do processo se alterarem as regras do jogo para se explorar unicamente os mecanismos certos para o êxito. Mas, enfim, estes são pruridos que já a ninguém interessa, desde que se ofereça um suposto bom espectáculo.

Vendo esta série lembrei-me de um reparo feito por Abel Barros Baptista ao mais recente romance português. Dizia o ensaísta que dantes os ficcionistas reflectiam uma experiência de vida e que agora os romances lhe pareciam aplainados e semelhantes uns aos outros porque espelhavam a mera experiência de espectador dos seus autores. Concordo em absoluto.

03/07/18

A natureza é muito mais perfeita do que Deus, sobretudo nas oportunidades humanas que os seus erros propiciam.

Em Mary Shelley, o filme, não faltam as escorregadelas, mas dá um retrato vivo de um drama de género que devia ser mais ponderado. A Percy Shelley, o poeta romântico com quem Mary se envolve até à morte dele, apaixonam-no a inteligência e o talento dela mas, contraditoriamente, mostrou-se incapaz de empatia e de superar a mentalidade da sua época. E aceitou prefaciar Frankenstein (romance que devido aos preconceitos sobre as mulheres não podia ser assinado pela autora, obrigada a anonimato), mesmo sob o preço de erroneamente passar por autor do livro escrito pela sua amante. O que constituiu um vexame para ela.

Numa das lojas do prédio da minha infância havia um merceeiro que nascera hermafrodita. O sr. Virgílio foi educado como menina até aos doze anos, quando se denunciou o desenvolvimento do seu verdadeiro sexo. Dizia a dona Luísa, sua esposa, que vivia nas sete quintas porque o marido entendia perfeitamente as mulheres. O dom que lhe dotara aquela partida da natureza.

Julgo que, se nascêssemos todos hermafroditas para só nos definirmos mais tarde, ganhávamos em empatia e numa relação interpessoal mais consentânea e além género.

Deus não, situa-se aquém da ideologia, enquadrado na pauta da cultura que o moldou.

5 Jul 2018

Campeonato Mundial

25/06/2018

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]illiam Carvalho, intuo, passou a infância numa garagem que antes fora um galinheiro, daí que exiba no campo a velocidade da ervilha que mede pelo canto do olho o nervoso esporão do galo capão.

Diz o treinador que ele “andou perdido”. Em que labirintos não disse. Em que casa de passe? Em que casa de penhores, para onde um tio alcoólico lhe terá desviado o primeiro esférico de couro, oferta de natal? Em que crânio alheio? Eu há cinquenta anos que não conseguia ver num campo de futebol alguém disposto a demonstrar que o futebol se joga a passo, e para trás e para o lado e para trás, e que nada o distingue de um jogo de xadrez disputado por um caracol e uma couve galega. Nesta equipa que trabalha em slow motion, William Carvalho satisfaz todas as quimeras.

Eu é que “fico perdido” como espectador: os meus olhos correm para a frente no campo, à espera da bola, quando esta afinal revisitou a linha traseira e nela se demora em passes laterais. Não estranharia que levassem cartas para o campo e se entregassem igualmente os jogadores ao crapô ou à lerpa, o ritmo do jogo da equipa de Portugal autentifica que se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, vamos supor: jogar futebol e fingir que se joga futebol. Ou “andar perdido” e estar em campo.

O craque nesta inércia é o antigo médio sportinguista, talvez seguido pelo João Mário que sendo igualmente do género forreta faz muitas economias de energia.

Não sei de que escola de futebol terá saído este William – palpita-me que duma escola de maquinistas. Em apresentando-se em miúdo ao chefe da estação, disse-lhe este, Rapaz, se queres ser maquinista vem amanhã às oito com uma bicicleta. E ele não faltou. Ao que lhe sugeriu o chefe: Equilibra-te na bicicleta sobre o carril e pedala sem nunca perderes a lâmina do carril de vista. E lá foi, hora e meia até à terra mais próxima, para lá sobre o carril direito, de regresso sobre o esquerdo, a 2 km hora.

Agora, perdidas as veleidades de guiar um TGV, reduziu a velocidade de ponta para 1 km hora e neste gotejamento faz as transições no campo, pastando, mesmo que às tantas lhe ofusque ainda a luz do sol no carril –nestas alturas fica “perdido”.

Se eu soubesse que era isto tinha-me candidato à selecção. Andaria por ali com menos sono e como não sei o hino sempre mo ensinavam.

Bom, a avaliar pelo Dinamarca-França que decorre enquanto escrevo esta crónica o drama de William Carvalho é ter-se enganado na equipa, devia jogar na França, composta por onze velhinhas entorpecidas que fazem tricot.

26/06/2018

Das coisas mais difíceis de encontrar é o brilho do crânio.

Não para Sebastião Barbosa, um professor de Português e História expulso do ensino oficial, e que empreende uma viagem a Moçambique depois de um divórcio conflituoso. Em terras africanas muda de nome e já com novo patronímico mergulha nas noites loucas de Maputo, enquanto tenta adquirir a cabeça do presidente Samora para ampliar a sua coleção de crânios.

Farto de Clotilde Maria Barbosa da Encarnação Monteiro Pignatelli Andersen dos Santos Aragão e Mascarenhas, que lhe engomava o pénis ao domingo, Barbosa ruma a Maputo, entronizando-se numa atmosfera de uma sensualidade sempre em delta que lhe renova o ânimo e lhe permite descobrir a grande generosidade do seu carácter: é um homem tão solidário que não se importa de ser enganado.

É o que o leva a adquirir uma dúzia de crânios, alavancando a economia do país – dos partidos políticos até às mais irrenunciáveis personalidades, toda a gente lhe impinge o “verdadeiro crânio” do fundador –, sendo coberto dessa “aura renovada” que voltará a Lisboa com Graça, a vendedora de caju com quem teve uma epifania.

Desta epifania nasceu Afonso Henriques, o pequeno mancebo que será baptizado em Guimarães e com o qual se iniciará um novo ciclo de uma simbologia restauradora, quiçá, o Quinto Império.

Com brilho e muito humor cumpre Manuel da Silva Ramos este seu novo romance, Moçalambique (Parsifal, 2018). É evidentemente uma farsa política divertidíssima, em que a trama – e em Silva Ramos são sempre originais e extravagantes – é penetrada por um inesquecível gozo com a linguagem, uma das suas marcas de autor.

Não se pense, contudo, que o clima do livro descambe em facilidades e num erotismo vulgar, sobre tudo releva a engenharia literária. É da forma mais elegante que o romance nos faz conhecer através de elipses as desenfreadas aventuras sexuais de Sebastião:

«Estava a pensar no seu pai sempre escondidinho, discreto, hipócrita e, por fim, louco, quando ouvir bater à porta do quarto. Foi abrir. Era uma belíssima jovem de 18 anos.

– Sou a Célia, a prima do Iniciazinho.

– Entra, vamos ver o que se pode arranjar!»

Sebastião não é gabarolas ou se identifica com os conquistadores: é quase relutante que se entrega ao sexo. E o esquema repete-se, em série, mas inventivo, muitas vezes com epítetos em latim atribuíveis às donzelas:

«Vamos ver o que se pode arranjar, minha themeda trianda!»

Triste foi saber que este autor de 23 livros, e alguns excepcionais – lembro Os três Seios de Novélia, Os Lusíadas, Beijinhos e As Noites Brancas do Papa Negro (esta trilogia sobre os emigrantes em França, em co-autoria com Alface), Jesus, the Last Adventura de Franz Kafka, Café Montalto, Ambulância, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, -, este autor inventivo que doseia sempre experimentalismo e uma inimitável capacidade de comunicação, tem um público reduzido contra tantos nabos que vendem como bananas.

O que me leva a concluir que só por abstracto acaso ultrapassaremos os oitavos de final no campeonato do mundo: os nossos melhores são invariavelmente trocados por um William Carvalho de escassa utilidade, ou com extrema função como fogueiro – desatentos a que os tempos sejam outros.

28 Jun 2018