António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCampeonato Mundial 25/06/2018 [dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]illiam Carvalho, intuo, passou a infância numa garagem que antes fora um galinheiro, daí que exiba no campo a velocidade da ervilha que mede pelo canto do olho o nervoso esporão do galo capão. Diz o treinador que ele “andou perdido”. Em que labirintos não disse. Em que casa de passe? Em que casa de penhores, para onde um tio alcoólico lhe terá desviado o primeiro esférico de couro, oferta de natal? Em que crânio alheio? Eu há cinquenta anos que não conseguia ver num campo de futebol alguém disposto a demonstrar que o futebol se joga a passo, e para trás e para o lado e para trás, e que nada o distingue de um jogo de xadrez disputado por um caracol e uma couve galega. Nesta equipa que trabalha em slow motion, William Carvalho satisfaz todas as quimeras. Eu é que “fico perdido” como espectador: os meus olhos correm para a frente no campo, à espera da bola, quando esta afinal revisitou a linha traseira e nela se demora em passes laterais. Não estranharia que levassem cartas para o campo e se entregassem igualmente os jogadores ao crapô ou à lerpa, o ritmo do jogo da equipa de Portugal autentifica que se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, vamos supor: jogar futebol e fingir que se joga futebol. Ou “andar perdido” e estar em campo. O craque nesta inércia é o antigo médio sportinguista, talvez seguido pelo João Mário que sendo igualmente do género forreta faz muitas economias de energia. Não sei de que escola de futebol terá saído este William – palpita-me que duma escola de maquinistas. Em apresentando-se em miúdo ao chefe da estação, disse-lhe este, Rapaz, se queres ser maquinista vem amanhã às oito com uma bicicleta. E ele não faltou. Ao que lhe sugeriu o chefe: Equilibra-te na bicicleta sobre o carril e pedala sem nunca perderes a lâmina do carril de vista. E lá foi, hora e meia até à terra mais próxima, para lá sobre o carril direito, de regresso sobre o esquerdo, a 2 km hora. Agora, perdidas as veleidades de guiar um TGV, reduziu a velocidade de ponta para 1 km hora e neste gotejamento faz as transições no campo, pastando, mesmo que às tantas lhe ofusque ainda a luz do sol no carril –nestas alturas fica “perdido”. Se eu soubesse que era isto tinha-me candidato à selecção. Andaria por ali com menos sono e como não sei o hino sempre mo ensinavam. Bom, a avaliar pelo Dinamarca-França que decorre enquanto escrevo esta crónica o drama de William Carvalho é ter-se enganado na equipa, devia jogar na França, composta por onze velhinhas entorpecidas que fazem tricot. 26/06/2018 Das coisas mais difíceis de encontrar é o brilho do crânio. Não para Sebastião Barbosa, um professor de Português e História expulso do ensino oficial, e que empreende uma viagem a Moçambique depois de um divórcio conflituoso. Em terras africanas muda de nome e já com novo patronímico mergulha nas noites loucas de Maputo, enquanto tenta adquirir a cabeça do presidente Samora para ampliar a sua coleção de crânios. Farto de Clotilde Maria Barbosa da Encarnação Monteiro Pignatelli Andersen dos Santos Aragão e Mascarenhas, que lhe engomava o pénis ao domingo, Barbosa ruma a Maputo, entronizando-se numa atmosfera de uma sensualidade sempre em delta que lhe renova o ânimo e lhe permite descobrir a grande generosidade do seu carácter: é um homem tão solidário que não se importa de ser enganado. É o que o leva a adquirir uma dúzia de crânios, alavancando a economia do país – dos partidos políticos até às mais irrenunciáveis personalidades, toda a gente lhe impinge o “verdadeiro crânio” do fundador –, sendo coberto dessa “aura renovada” que voltará a Lisboa com Graça, a vendedora de caju com quem teve uma epifania. Desta epifania nasceu Afonso Henriques, o pequeno mancebo que será baptizado em Guimarães e com o qual se iniciará um novo ciclo de uma simbologia restauradora, quiçá, o Quinto Império. Com brilho e muito humor cumpre Manuel da Silva Ramos este seu novo romance, Moçalambique (Parsifal, 2018). É evidentemente uma farsa política divertidíssima, em que a trama – e em Silva Ramos são sempre originais e extravagantes – é penetrada por um inesquecível gozo com a linguagem, uma das suas marcas de autor. Não se pense, contudo, que o clima do livro descambe em facilidades e num erotismo vulgar, sobre tudo releva a engenharia literária. É da forma mais elegante que o romance nos faz conhecer através de elipses as desenfreadas aventuras sexuais de Sebastião: «Estava a pensar no seu pai sempre escondidinho, discreto, hipócrita e, por fim, louco, quando ouvir bater à porta do quarto. Foi abrir. Era uma belíssima jovem de 18 anos. – Sou a Célia, a prima do Iniciazinho. – Entra, vamos ver o que se pode arranjar!» Sebastião não é gabarolas ou se identifica com os conquistadores: é quase relutante que se entrega ao sexo. E o esquema repete-se, em série, mas inventivo, muitas vezes com epítetos em latim atribuíveis às donzelas: «Vamos ver o que se pode arranjar, minha themeda trianda!» Triste foi saber que este autor de 23 livros, e alguns excepcionais – lembro Os três Seios de Novélia, Os Lusíadas, Beijinhos e As Noites Brancas do Papa Negro (esta trilogia sobre os emigrantes em França, em co-autoria com Alface), Jesus, the Last Adventura de Franz Kafka, Café Montalto, Ambulância, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, -, este autor inventivo que doseia sempre experimentalismo e uma inimitável capacidade de comunicação, tem um público reduzido contra tantos nabos que vendem como bananas. O que me leva a concluir que só por abstracto acaso ultrapassaremos os oitavos de final no campeonato do mundo: os nossos melhores são invariavelmente trocados por um William Carvalho de escassa utilidade, ou com extrema função como fogueiro – desatentos a que os tempos sejam outros.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCenas do mundo flutuante, de Kenneth White [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o Paulo José Miranda 1 Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas. 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca. am a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado. 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais, os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLisboa: Os espermatozóides trapezistas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]venida de Roma: Acasala o ar com o néon, aquele rapaz de cabelo verde que esplende contra a luz da montra. Jardim do Torel. Morremos porque somos alérgicos ao ar? É um dos emaranhamentos mais misteriosos. Entretanto, não desdenhava conhecer o primeiro que criar um teste para as alergias poéticas! Uma vez, neste jardim, vi um ovni. Eu estava sóbrio, o ar à minha volta é que não. Nunca ter sido este jardim aproveitado cinematograficamente é a prova de que os cineastas portugueses não sabem olhar a cidade. Alérgicos ao ar. Café Orion: Há amores que têm borra e outros que se dissolvem sem ruído como asa de mosca na clara do ovo. Nicola. Vejo-a sentada na mesa ao lado da minha – isto é, na mesa errada – e descortino uma função para a poesia: a da ortopedia. Corrigir os ossos ao ambiente. Ouço-a e percebo: o timbre de James Mason funciona no feminino, excita o punhado de anjos que falte cair. O estonteante arraso da voz dela – na sua tonalidade, ritmo, colocação e recorte das frases floresce uma civilização -, ao que se junta um rosto moreno de beleza lapidar, não se coaduna com os calções, o relaxe, o dedo a esgaravatar a cera no ouvido, a vulgaridade do viking que a acompanha, um calhordas ao qual só diviso uma qualidade, a de calar-se quando ela fala. E ela fala todo o tempo, adivinho, para afastar a agonia do desajuste que lhe coube. Na mesa ao lado – na errada -, aguardo pelo meu encontro e, para me alhear, penso na bela macaense que há dois anos alegrava o painel dos empregados de mesa deste Nicola, que sempre revisito em Lisboa. O que será feito da Águia de Prata? Café Orion. Eis no que se tornou: o homem-vírgula. Esvaziado de conteúdo, mas gramaticalmente insuperável. Sossego, que seja amigo de outrem que não meu, porque também não teria conseguido ajudá-lo a evitar a esterilidade. Aquário Vasco da Gama. Ilusão minha, ou abaixo do funil da lula gigante do Aquário Vasco da Gama, umas estranhas estrias entre os olhos desenham a carta astral de Fernando Pessoa? Não pude partilhar este meu provável engano com o meu neto que tem oito anos e a quem já basta ter passado, num ano, de rapaz eléctrico ao perfil dos meditativos. E capaz de rigores. Esclareceu-me ele diante do meu espanto de ter estado com ele numa semana sem mazelas e de o ir encontrar na semana seguinte de braço engessado: Está descansado avô, foi só o rádio. Confeitaria Cister. Fico boquiaberto: as rosas que nós conhecemos e amamos têm uma data de “fabrico”, 1867. É um produto de muitos cruzamentos e do pendor dos homens. Existem as silvestres, mais antigas, mas as que nos prendem a atenção começaram a ser cultivados pelos chineses há dois mil e quinhentos anos, foram depois trazidos pelos persas, e acabadas de aperfeiçoar só no século XIX. Igual estupor só o ter aprendido, há décadas atrás, que os oásis são uma bolha inventada pelo homem e não um implante produzido pela natureza ou por Deus para consolar a rudeza dos desertos. Dois magníficos exemplos de natureza alterada e melhorada pelo homem. Nem tudo é mau. Café Dragão Vermelho. Há dois anos escrevi: “A nomeação de Bob Dylan como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra. Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores, identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.” E, agora, no deguste duma tosta mista, leio, em Da Miséria Simbólica, de Bernard Stiegler: «Hoje, nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, as armas estéticas tornaram-se essenciais: trata-se de controlar essas tecnologias da aisthesis que são, por exemplo, o audiovisual e o digital, e graças a este domínio das tecnologias, trata-se de controlar os tempos de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida». Tinha-o intuído. Café Coimbra, com a mão atrás da orelha: ” Uma árvore que dura mais do que eu? Um castanheiro durar mais que eu? Era o que faltava. Uma árvore é para um gajo mijar. Vai logo à serra. É assim a natureza, os superiores governam os destinos dos inferiores. No outro dia comprei um kit com várias bactérias, um amigo meu tem uns conhecimentos na Secreta e vendeu-me… Para mim é assim, vai de fungos, vírus, cancros, tudo… não devia haver mais árvores do que homens. Um gajo não pode correr à vontade. Corre e bate. Vocês já viram árvores num campo de futebol? E é um exemplo de natureza, a relva, de socialização, o jogo, e de cultura, o árbitro. Para mim é um must. Percebo que tem de haver árvores por causa do papel, mas se formos a ver publica-se muita merda neste país. Há uma árvore de que gosto. Quando é grande. O abrunheiro. E dá um bagaço de arromba. Agora um gajo ler que a castanha está na moda e que daqui a vinte anos é um negócio tão rendoso como o vinho do Porto, não dá – é um embuste. Vinte anos é o tempo que um castanheiro leva a produzir castanha capaz. Um homem responde por si, aos treze, aos catorze… eu por acaso aos doze já enchia um balde. Nem sei se tenho gente do circo na família mas os meus espermatozóides são trapezistas…” Cacilheiro & Brown: “Adoro malta de cor com um bom pau. Telefona 919357430”: foi assim que soube, apopléctico, a mijar ao meu lado, das inclinações do filho.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFranguinho no churrasco 03/05/18 Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via. Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas. E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco. Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros. Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia. Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê. Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver. Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção. Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se. Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote. Espero que seja falso. Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão. O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca. Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou? Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições? Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal? Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini. A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político. 04/05/18 A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora. Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas: O GRILO O grilo não só de ouvido eu cri-qu´ria sabê-lo não só de gaiola cati vá-lo mas dáctilo grafá-lo copiar seu abc de pobre o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a. Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama. E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia. Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDos glúteos: recomendações [dropcapstyle=’circle’] S [/dropcap] ou de uma geração que ainda não tinha descoberto os glúteos. E que ainda não lia nos dicionários: Os glúteos formam a parte mais apreciada pelos homens. Não me lembro de Ginsberg a gabar os glúteos, embora tenha belos poemas de elogio ao caralho, ao qual também podemos classificar como artefacto, se o entendermos como um objecto desenvolvido a partir de uma produção mecânica e para uma finalidade específica. Posto o repetitivo e maquinal adestramento das mãos convocado pelo membro masculino podemos encostá-lo à ordem dos objectos de mais uso, ainda que uma vez por outra seja o plinto para um modo relacional. Cada palavra nova tem o seu Bartolomeu Dias, aquele que a descobriu e potenciou e socializou, ao proferir: Que belos glúteos! Em Moçambique há um herói para o primeiro tiro, aquele que inaugurou os actos de guerrilha da Frelimo. Quem será o cowboy que enrolou primeiro a língua nos dentes, para soltar a sentença: Àqueles glúteos, mordia-os todos! Se soubesse quem era oferecia-lhe um cd dos Penicos de Prata. O que é certo é que foi, com certeza, contraindo os glúteos (ou relaxando-os?) que António Costa confidenciou aos militantes: «Estamos onde sempre estivemos e estaremos exactamente onde estamos!». Melhor e mais substancial era difícil porque ao vazio da ideia acrescentou-se o glúteo. Tomada pelo glúteo foi igualmente Ana Catarina Mendes, que alçada sobre os seus três empinados músculos, arrancou aplausos da plateia com o inaudito: «vamos ganhar as próximas eleições legislativas porque António Costa merece continuar a ser primeiro-ministro e porque os portugueses merecem António Costa!». Bem, o vácuo a pedal nos glúteos talvez dê uma câmara-de-ar! Está garantida uma bicicleta para cada português na campanha! Sempre adorei gente com imaginação. Faz-me lembrar quando me contratam por causa das minhas supostas qualidades e depois afinal só querem o pior de mim, só me restando observar: está bem visto! Está bem visto que com tanta imaginação o Costa terá a merecida maioria absoluta, porque o povo mais não pede que um pedestal para pousar o glúteo! Há glúteos do catatau. Infelizmente não conheço todos. Só há uma condição em que os glúteos são inservis: em estátua. Contava-me o meu amigo João de Deus (onde foi ele buscar aquela ideia que depositou no livro A Paixão Segundo João de Deus, de que «o ouro é o minete da alma!»?) que uma filha do Imperador Augusto se entregava toda a noite ao desfrute das vergas em pedra das estátuas do templo de Minerva. Membros inapelavelmente erectos – que pensam vocês! – onde os seres carenciados podem ter a sua jangada. Já os glúteos de uma estátua não favorecem manobras similares. É uma pena, visto que politicamente têm outro potencial. Eu já decidi, depois de me finar terei um gesto politicamente correcto e doarei os meus glúteos à ciência. Esperem, passou agora por mim um glúteo que me fez sonhar. Tenho de ir aos lavabos. A sarapitola, vocês conhecem? 29/05/18 Dia cinco, na próxima terça, no Bar Irreal, em Lisboa terá lugar o lançamento do primeiro volume da minha obra poética, Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia 1, que reúne dois glúteos, perdão, dois livros empinados: Harpo Marx na Jaula dos Leões, de 2013, e Os Testamentos Apátridas e Outros Cordéis sem Alma, de 2017. Este último livro foi um livro feliz que escrito de um jacto, como só é autorizado fazermos depois de trinta anos de rodagem, e poucas alterações conheceu, para além da habitual dança dos adjectivos. É dele o poema que aqui deixo, Talvez um gonzo: Na específica área da gandulagem/ progredi pouco além do que seja próprio a um zingarelho./ Não consegui ser firme a aceitar que o mal/ é o látego do ar./ O desnorte deste pífio desempenho não é só meu./ Na Idade Média, os monges compuseram os Cantos/ Gregorianos acreditando ser a música cantada por anjos/ e santos, no Céu./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.// Desconfio que à consciência de que herdamos o mundo/ como o oco de um lugar mudo/ que a palavra escava ou preenche com pão d’água/ se segue que confundimos esta acção com o silêncio, /erro tão grotesco/ como julgarmos que é a espuma/ da escuna o que faz mover a quilha.// Estamos desde que nascemos a sós/ com as nossas inconfessáveis inabilidades/ e a tal ponto assustados que amiúde dizemos amo-te/ quando se abriu no dique a fissura./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.
António Cabrita Diários de Próspero MancheteUm tremendo fotógrafo [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”. Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho. À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”. Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”. Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto. Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava. Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se. O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone. Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína. Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO que volta em farsa [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ambém a mim aconteceu que a minha vida mudou no dia em que me vi desintoxicado do frenesim da paixão amorosa. Até aí frequentei o mundo das cabeçadas a esmo. Não, não renunciei a nada, nem me vi desprovido de entusiasmo. A grande mudança foi ocasionada simplesmente por uma alteração na minha percepção quando comecei a distinguir entre o entusiasmo e a paixão e separei uma coisa de outra; foi como conseguir alternar finalmente o dia e a noite, ao invés de tudo me parecer governado pelo regime nocturno como antes. Depois, deixei de idolatrar a paixão, ou de a isolar como exclusivo motor do desejo, para começar a desviar parte da sua energia para outros âmbitos fora de mim. Para a arte e a escrita, é um supor. Para o amor filial. Para a responsabilidade, uma descoberta em mim tardia. (Hoje, ser responsável permite-me ir mais a fundo quando folgo com uma irresponsabilidade, é mais pertinaz o crime daquele que habitualmente pratica o bem; mas isso não se sabe antes, quando apenas petiscávamos na irresponsabilidade por nos faltar a coragem para sermos responsáveis.) E logrei aí o movimento de quem converte um deus monogâmico às vantagens do politeísmo. Ganhei nesta minha desintoxicação uma tremenda qualidade de vida, ao aceitar a imensidão de um mundo fora de mim e que eu não tenho de possuir tudo. Primeiro passo para começar a desejar poucas coisas. Os “votos de pobreza” podem mesmo dar uma tremenda liberdade. Por outro lado, a vera pobreza avivou em mim o mecanismo da memória, ou a consciência da sua importância para nos mantermos à tona de uma época naufragada na irrelevância, como diria o Castoriadis. Os desequilíbrios da vida, para quem não tem bens de raiz e tem de experimentar o que a vida vai dando, trazem muitas oportunidades para hipotecarmos x e y. Aprendemos rapidamente que só uma coisa nos faz realmente falta e que a essa não podemos hipotecar: a memória. Ora, ficamos atolados na mais aviltante das sociedades de espectáculo quando tudo se reproduz como se memória não houvesse. Piero Manzoni nos anos sessenta assinava as peanhas que os visitantes da galeria galgavam para fingirem que eram as esculturas. Vinte anos depois Philippe Thomas, escudado por detrás da agência que fundou, Os Ready-Made, editava um cartaz propondo a seguinte fórmula: “História de Arte Procura Personagens… não espere por amanhã para entrar na História”, e na imagem via-se uma fila incompleta de grossos livros de arte, sendo cada leitor convidado a imaginar o seu próprio nome na lombada de um livro, ao lado daquele onde já se lia Pop Art e Warhol”. Pagando, está claro. No caso de Manzoni ainda tínhamos uma natural extensão dos “efeitos Duchamp”, com a agência Os Ready Made já estamos diante da degeneração de um acto criativo em dejecto comercial. É o triunfo da farsa em que tudo volta, segundo Marx. Contudo, já Duchamp embarcara num equívoco. Reclamava ele: “Eu dou aquele que observa (a obra de arte) tanta importância como àquele que a realizou”. A dúvida coloca-se em saber se em trocando de posições haveria depois alguma coisa para ser observada. Talvez o observador afinal não saiba executar a escultura de Rui Chafes. Esta foi uma das ilusões do Modernismo mas como todas as coisas iniciais eram então necessárias. Voltou a coisa em farsa. Vem isto a propósito do festival de Eurovisão, a que assisti ontem, e do seu desfecho. Foi um espectáculo agradável e houve duas canções boas, a lituana e a alemã, e a representação portuguesa esteve muitos furos acima da sua classificação. Mas a soma do voto dos júris deu a vitória a uma assim-assim, a da Aústria (que era mais do mesmo e lembrava-me John Legend), tendo ficado em segundo e terceiros do piorio que lá se encontrava. Depois a votação popular esclareceu-nos como o “princípio da realidade” é o ocaso da memória afogada na latrina das galinholas. Ganhou Israel e uma canção e cantora que só imitam em farsa grotesca o que já foi sublime. Há 25 anos apareceu uma cantora que além de uma grande compositora revelou dotes performáticos notáveis e que pegou na pop e na música electrónica para a trançar com enorme riqueza expressiva em alguma música contemporânea. É um marco de excelência. Falo da Bjork, um caso de luxo criativo. Ninguém deu conta porque a sociedade telemática nos mantém reféns do eterno presente das sociedades orais, mas a miúda de Israel (de uma gentil feiura) procurava imitar em tudo a Bjork, só que agora em kitsch, em farsa grotesca, do penteado (lembro-me do desgosto que tive quando a Bjork teve aquele penteado, que odeio), ao figurino, e até aos experimentos vocais. Embora tudo o que é excelente na outra aqui seja ridículo, pura escória. Se as pessoas se lembrassem da Bjork quem votaria naquela paródia grotesa, mesmo que tingida de humor? Coitado do Sobral, na véspera havia declarado que a canção de Israel era uma merda e depois teve de ser politicamente correcto. Não lhe caíram os pergaminhos mas deve ter sentido um profundo alívio por se descartar daquele meio. O que se passou ontem é um sintoma de algo há muito diagnosticado. A única coisa que choca foi verificar que a maior parte daqueles cantores tinha estudos musicais “desde criança” aceitou interpretar canções da treta. Gostaria de não ter de saber que no Conservatório estudam Messiaen e que ali se entregam à vulgaridade, espetando a navalha nas costas da arte. Tudo em nome da fama, que como diria o Camões é “a vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama”. Eis a prova de que o Mercado não tem atributos, é como o tamboril – o gosto é-lhe emprestado. Era o mesmo comigo quando me apaixonava a torto e a direito, como o feio tamboril. Agora felizmente já separo os ímpetos do entusiasmo da filigrana da paixão.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Nobel, sem pruridos [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]em quórum, o Nobel da literatura arriou as calças. O culpado foi Jean-Claude Arnault (marido da poeta Katarina Frostenson, que é membro da Academia do Nobel) e os seus arremessos sexuais à esquerda e direita – oh lá, lá, nem a princesa herdeira, Victoria, nos seus imaculados vinte anos, escapou de ser “tocada nas nalgas”, dizia a notícia, pelas suas mãos inquiridoras. Resultado do tumulto e das demissões que provocou: a Academia ficou sem quórum. Na verdade, consta que o empoleirado na esposa também influía na filtragem dos nomes dos candidatos ao Nobel – impondo o seu voto por delegação -, tendo com isso minado o crédito da Academia, mais habituada ao recato melancólico das esposas dos membros da Academia. «Sou levado na sombra/ como um violino/ no seu estojo negro», escreveu Tomas Transtromer, o último grande poeta laureado, e por acaso sueco. Não sabemos se este violino ocultado na sombra já aludia a Arnault, mas no caso do poeta sueco o estojo transportava uma espessa substância lírica. Porém, este ano o estojo do Nobel está vazio, por causa do tanto que vazou Arnault, à esquerda e à direita. Falo dos zunzuns em que era especialista e que matavam sempre a confidencialidade do prémio (- contava às amantes, que depois contavam ao porteiro do prédio, etc.) Em relação ao Nobel, temos de perguntar como o fazia Rilke ao jovem poeta a quem, endereçou cartas: morre a literatura se não houver o Nobel (- o poeta alemão perguntava ao seu destinatário se ele morria, caso não escrevesse poemas, sugerindo que se assim não fosse ele deixasse de escrever porque nenhum poeta brota da presunção mas sim duma necessidade interior, vital e inescapável)? Qual o peso específico do Nobel na manutenção do capital simbólico que a literatura, talvez, ainda represente? E é relevante o seu papel, em relação à literatura, ou ao comércio de uma parte dela, quando por exemplo favorece o reconhecimento sobre a descoberta – como no caso de Dylan? Na escolha dos últimos premiados notava-se ter havido um pequeno desvio ao paradigma do prémio, inflectindo para uma maior aproximação ao “mercado” e à ”cultura de massas”. Era uma espécie de “literatura à Hollywood”. Ou seja, os critérios que premeiam a Física, ou a Matemática, por exemplo, não têm sido exactamente reproduzidos na Literatura. Aí premeiam-se investigadores de ponta, gente que experimenta e arrisca “cegamente”, como é próprio da ciência. Na literatura têm-se escolhido vozes em concordância com o “mercado”, que oferecem segurança, escritores de qualidade mas que conduzem com airbag. Patrick Modiano, Bob Dylan ou Kazuo Ishiguro, são bons, mas decididamente não tanto. Alguma vez a algum génio foi dado um Nobel – a um «génio sem espinhas»? Vejamos quatro exemplos: Pessoa e Henri Michaux, Borges ou Ezra Pound. Não lhes emprestaram a bola de ouro. Embora fossem avessos às agremiações literárias que tornam a coisa possível. Mas não dramatizemos. Para o meu gosto, a poesia não tem estado mal servida nos Prémios Nobel. Se ao irlandês Seamus Heaney eu preferia o britânico Ted Hughes, a poesia do primeiro atinge um nível altíssimo na tradição que representa. E não tenho dúvidas, tanto o polaco Czeslaw Milozs, como o mexicano Octavio Paz (que se tem de ver como um todo e não unicamente como fazedor de versos), o russo Joseph Brodsky ou o poeta da Trinidad, Derek Walcott, cada um no seu género, são poetas que roçam o “génio”, no sentido em que todos atingiram picos altíssimos no sistema das suas cordilheiras. O Derek Walcott, por exemplo, que nem teve direito a tradução em Portugal, provavelmente por ser negro, nem em Moçambique, suponho que por não ser moçambicano, mas é um poeta extraordinário, capaz de ímpeto, improviso e arquitectura, isto é, capaz de embarcar no mais puro beat jazzístico como na cadência clássica. Ainda por cima, é igualmente um dramaturgo de monta. «Ao longe no caminho, avisto o Poder./ Tal e qual uma cebola,/ os malabarismos do seu rosto/ a caírem um após o outro.», escreveu, entretanto, Transtromer e é extraordinário como de forma tão simples fala da nossa tumultuada época, afinal de todas. Mas mais da nossa. E é tão universal isto. Era esta a função ideal do Nobel, fazer-nos confiar que existia uma Academia que premeia os melhores e não os que mais vendem ou os que são bons a fornecer entretenimento. Dado que o entretenimento é uma das funções da literatura mas não deve ser a única; às vezes é uma dimensão mesmo dispensável. O Nobel era uma espécie de Realeza Republicana, de fátua e transitiva celebridade mas que nos apresentava um modelo de excelência. Esperemos que com este ano de jejum corrija a rota. Quem não espreitará este ano o vestidinho decotado da Glória do Nobel, uma moça como se sabe com predicados, é o meu amigo Zetho Gonçalves, poeta angolano, que se tinha anunciado no FB como candidato ao Nobel deste ano. Nem neste nem nos próximos. Sabem porquê? Ele é misteriosa e ironicamente parecido com Arnault – quase podiam ser gémeos ou sósias. Por caminhos díspares terá andado o pai do poeta. Contudo, o camarada Zetho terá de rogar ao seu sósia para fazer uma operação plástica, senão será sempre vetado por antipatia! Enquanto não nos chega o Nobel reabilitado por “personal training” e os exercícios para trapézios, deltóides e quatro grandes peitorais fiquemo-nos por um poema de Transtromer, De Julho dos Anos 90: «Assistia a um funeral/ e senti que o defunto/ lia os meus pensamentos/ melhor que eu.// O órgão estava calado, os pássaros gorjeavam./ A vala inundada de sol./A voz do meu amigo estava/ a minutos das minhas costas./ No regresso a casa, ao volante, senti-me/ desmascarado pelo esplendor do verão,/ da chuva, pela serenidade/ emitida pela lua.»
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA Arca de Noé 24/04/18 [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enras cabeças que o vento tatuou. As que encontro ao espelho, matinalmente. Emerge a cada manhã uma cabeça, frágil como a do cravinho no seu esquiço de energias antes de lhe acudir a primeira palavra, esse primeiro contacto com a resina. Oh, oh, o que eu gostaria de ser um filósofo comerciante em chá, como Vasily Boktin, é o que vos digo, em vez de perder tempo a cismar onde devo, na frase, trocar ¨cochila¨ por ¨tartamudeia¨, palavras agrafadas ao pulmão crepuscular dos flamingos. No rádio passam Monteverdi. Outro dia sem álibi. Chega o vento e tatua-me os sonhos. 26/04/18 Passou o 25 de Abril. Um espírito litoral, mais do que à letra do continente, a que serei sempre fiel. Lembro a alegria a nascer no olhar do meu pai, habitualmente pétreo. «Quando novo – diz Platão na Sétima Carta – aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar na política». Não me aconteceu a mim, apesar do entusiasmo e das intensidades políticas que se sucederam a 74 (tinha 15 anos e portanto todo o meu crescimento humano e intelectual gizou-se nesses anos loucos), nunca quis ingressar na política. Destituído de qualquer jeito para a elocução pública. Demasiado tímido, além de anarquista. E sentia mais afinidade com os vagabundos, com os santos ou os reclusos, com todos aqueles que se evadiam de se entregar a qualquer acordo prévio e de se render à populaça dos sentidos. Nunca quis ter carro, carreira, telefone pouco (e queixam-se-me muito os amigos), tenho fb porque gosto de rir, sem fazer da obsessão da partilha um dogma (aliás, acredito muito pouco na instantaneidade da partilha), uso a net porque me permite incursões no conhecimento da arte. Já a minha televisão está sem pio há seis anos e a minha reforma é nula. Creio que pacientemente trabalho para o suicídio. Admiro o de Séneca, maravilho-me com a determinação de Antero que teve o sangue frio para dar o segundo tiro não tendo sido fatal o primeiro. Impede-me por enquanto, desse último acto, o amor. Mas pode o elo do amor também quebrar-se e a miséria do amor é a única que não devemos consentir. No dia em que me fatigar das letras e as minhas filhas estiverem todas formadas, e sentir que a razão se me esburaca enquanto o desejo já só semeia fadigas, creio que o método antigo de voluntariamente pôr um termo à vida é uma digna escansão. Porque esta é igualmente, entre outros motivos, uma questão de ritmo. Mantenho a convicção de que o suicídio pode ser – enquanto gesto pessoal e intransmissível -, uma celebração da vida, em vez de uma marca de desespero. Hoje, entretanto, catei em Nietzsche esta coisa maravilhosa: «Agradecidos a Deus, ao diabo, ao carneiro e ao verme que há em nós». Suspeito que não há mais nada a acrescentar. Ou há. Entra-me olhos dentro que acontecimentos como o 25 de Abril, o Maio de 68, a Revolução Francesa são Arcas de Noé, no sentido em que lhe deu Saramago. Já lá iremos. Façamos agora um pequeno desvio para contar que fui fulminado pela mesma insólita evidência que abalou Roger Caillois quando leu detidamente sobre o Dilúvio e Noé e com estupor compreendeu que afinal Deus não pretendia acabar com o mundo mas antes e unicamente favorecer os peixes. Só um antropocentrismo decapitador nos impede de ler as evidências. Esta semana também me arrombou outra informação: Páris tinha o dom da profecia. Compreendem como isto altera tudo? Compreendem mesmo? Mas voltemos a Noé. Gostei da leitura que dele fez Saramago e sobretudo da desopilação do último capítulo do romance Caim, inapelavelmente herético. Deus queria dar cabo da raça humana, ainda que com ressalva, salvando Noé e os seus. Saramago fez Caim cruzar o caminho da Arca e Deus num gesto de exibição da sua bondade eterna perdoa-lhe e ordena que Noé o aceite, até para garantir que as fêmeas da Arca sejam fecundadas. A partir daí é um regabofe. Caim fecunda-as a todas, contudo lança-os, aos homens e a elas pela borda fora (com a excepção de Noé, que se suicida), e quando a Arca acosta, depois do desfile dos animais, sai sozinho e confronta Deus com a impossibilidade de perpetuar a raça, pois só sobrou o macho. Na verdade, o romance é profundamente nietzschiano, dado que à severidade de Deus sobre a raça Saramago contrapõe uma radical convulsão gramatical e transforma um castigo numa impossibilidade genética. Como dizia Nietzsche, Deus não morre enquanto não dermos cabo da gramática e este Caim fere fundo a omnipotência de Deus. Todos os grandes acontecimentos políticos tendem à mesma agramaticalidade: é um momento em que a História sacode as suas regras e escamas e se produz a si mesmo, liberta de tutelas, numa nova configuração. Daí que fundem uma fidelidade que mobiliza alguma dinâmica na continuidade dos processos. Para duas gerações inteiras o 25 de Abril representou um período de liberdade sem abstinências e não há como estarmos suficientemente gratos por termos conhecido uma tal peripécia (raríssima) no curso da nossa vida. 27/04/18 CONJURAÇÃO: «As insónias são para o que servem:/ planificamos o negócio sobre bonsais/ que nos vai confortar a reforma/ ou enlouquecemos; outra hipótese // é relermos algo que nos emocionou/ para lhe escalpelizar a mecânica da escrita/ antes que a geringonça (eis-me à la page) / da insónia nos triture vivos.// Do ralo da noite, entretanto,/ brota a crista do galo e o seu esporão/ ferra-nos porque para ele / só em nós é espúria a manhã.». Poema de Os Testamentos Apátridas e outros Cordéis sem Alma, um dos dois livros reunidos em Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia, com edição da Douda Correia, daqui a um mês.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPobre Atmosfera [dropcap style=’circle’] J [/dropcap] ohn Berger comparou uma vez o espaço do atelier com um estômago, ainda que o processo da arte seja o inverso daquilo que se passa com o sistema digestivo – o que entra é merda, o que sai é uma oferenda. Agrada-me muito a ideia que isto nos sugere: a arte é a inversão do processo digestivo. Corolariamente, creio que aonde se produz a oferenda advém o acontecimento. Aquele que importa e que amplia o âmbito das relações e, melhor, fideliza. Situamo-nos aqui no oposto do espírito que se retractou nas latas de Piero Manzoni, com os dizeres: Merda de Artista. Manzoni expôs esta sua “invenção” em 1961, um ano antes de Warhol nos propor as suas latas de sopa Campbell. Nessa altura os laços sociais já não assentavam em “imperativos categóricos” mas antes em “imperativos atmosféricos”. As ideias andam no ar, não obstante é difícil não suspeitar que o americano, informadíssimo, não haja afinal reagido à provocação do italiano: para haver muita Merda de Artista haverá combustível melhor que o feijão? Disto não nos falou Arthur Danto. Posteriormente, muitas das 90 latas em que Manzoni defecou explodiram, resultado de corrosão e de gases em expansão. O que teve lugar uns anos antes da lataria que se tem feito rebentar nos céus e nas cidades da Síria reduzindo um país a uma mortalha – embora vivamos manifestamente sob influência. Diverte-me imaginar que o Manzoni chega às fronteiras do Paraíso com as suas latas e tenta enrolar São Pedro, que controla as mercadorias: São Pedro, posso entrar? Que traz consigo? Merda de artista. A própria? Precisamente. Não creio que precisemos dessa merda… Foi o que me deu fama e notoriedade! Quantas latas são? Noventa. Cagou pouco. Quantas teria de fazer? Pelo menos o seu peso em biomassa, essa quantidade ao menos definia-o… Com tão baixa produção mostra-se um homem hesitante e sem capacidade de auto-crítica… E o Manzoni voltava a nascer, afocinhado num curral de porcos. Depois de Manzoni é fácil intuir que se hoje fizéssemos uma exposição de 90 latas com a efígie dos actuais líderes mundiais nos rótulos toda a gente adivinharia o que conteriam as latas. O design das latas é que mudou entretanto: é fusiforme. Porque é este o maior orgulhoso do homem, EU DEFECO, LOGO SOU! 16/04/18 Na longuíssima conversa entre Tobie Nathan e Catherine Clément que se fixa em Le Divan el le Grigi, livro que recomendo vivamente, refere-se esta ao enterro de um actor na Índia «especializado nos papéis de Deus». Aí está um ofício que me convinha. Enquanto tal sorte não me chega eis-me embaçado com as notícias do mundo, alheio e próximo, em estado de torresmo mental. O ataque da Síria, houve. Dois presidentes da coligação precisavam absolutamente de reavivarem um inimigo externo que desvie a atenção das borradas internas, o terceiro, coitado, julga-se De Gaulle. Nem se trata da legitimidade de defender as populações contra ataques de armas químicas, mas de tudo ser pretexto para brincar aos vídeo games. Como é fácil pôr a mão no gatilho quando conhecemos os mapas mas o nosso corpo desconhece o território. Os pretextos da guerra são sempre hipócritas dado que denunciam o tanto que não se fez no devido tempo, são sempre respostas ao fundo da escada, passada já a ocasião. Um ditador é a víbora que não se matou no ovo. O resultado é a inescapável hecatombe das cidades e a derrocada dos mitos. Que Deus sobreviverá às ruínas da Síria, que não se assemelhe a um caudaloso e freático rio de caca? Seria para isso que servia a cultura: para nos alegrar com a criatividade dos vivos e fazer respeitar os mortos. Voltámos a um tempo sombrio em que queremos sepultar a própria memória, reduzi-la a pó. Cobrimos o respeito devido aos mortos com a infâmia. Karen Blixen, num texto anómalo ao seu percurso de narradora, “A Verdade e a Política”, sustentava que uma das características da condição humana é a nossa capacidade para suportar praticamente tudo; podemos afocinhar nas abjecções mais tortuosas sem perder a alma, desde que tenhamos uma perspectiva de futuro e uma narrativa integradora do que está a acontecer. Agora o que não suportamos é o absurdo. O absurdo instalou-se no mundo. Vou-vos dar dois exemplos. Um universal, outro local. Uma das coisas que o presidente Reagan fez, mal chegou à Casa Branca, foi mandar retirar os painéis solares que lá estavam pois considerava que a energia solar não traduzia “o espírito americano”, que o petróleo e o carvão representariam melhor. Não impressiona que em 2018 o novo presidente americano considere igualmente o petróleo e o carvão moedas irrenunciáveis do “espírito americano”, sem atender às vitais necessidades de mudança para fontes de energia menos poluentes e sem demonstrar a menor capacidade de aprendizagem? Eis um sinal de “identidade doentia” que chega a uma absurdez montanhosa e, para além de cretina, estúpida. O outro mau exemplo foi-me contado hoje. Um médico do Hospital Central de Maputo evita estar fora nos fins-de-semana. Porque quando passa dois, três dias fora do serviço as enfermeiras, se as famílias dos doentes não lhes “pagam por fora” (o que é de regra por causa da pobreza), deixam imediatamente de substituir o soro do doente e de seguir as prescrições, farejando a comissão que as funerárias lhes pagarão. As autoridades não desconhecem – os rumores sobre esta monstruosidade corriam na cidade mas só agora o vi confirmado por um clínico de dentro – mas mais um pobre morto é menos uma parcela na estatística da pobreza e além disso arredonda as contas de uma classe insatisfeita, sem haver necessidade de lhe aumentar os ordenados. Se conhecerem algo mais cínico e perverso que isto, contem-me, um escritor encontra sempre um viés. Ou calem, porque a parte humana do escritor não quer ouvir.
António Cabrita Diários de Próspero ManchetePagar o galo 1/04/18 [dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]ar La Fontaine: um livro acondicionado ao mofo da gaveta. Recuperei o título para capítulo de outro que sairá em Maio. Mas fica um lote à deriva e desencaixadas algumas traduções de que gosto. Como a do indiano, Lokenath Bhattacharya, que o Henri Michaux admirava: «DOS CEGOS MUITO DISTINTOS Numa palavra, eis a proposta: deves subir lá acima, e fazer soar a trombeta. De imediato, alternância do visível no invisível, e mudança de estação na floresta. Este é o programa do dia. Mas eu não sou mais que um homem vulgar, que mantém a sua oração, as mãos em prece. Se os velhos temas são mencionados – e sê-lo-ão -, se ele se compraza em repetições – é inescapável -, que se lhe queira, por bem, perdoar as deficiências, naturais para um incapaz. Nenhum obstáculo, o minarete ergue-se à tua frente. No caminho para o seu cume, resplandecem os degraus, um após outro, de mármore branco. Do exterior, o ar quente não penetra. Desde que puseste o pé sobre a pedra – Que frescura! Lembras-te de tocar o ribeiro? – começa o louvor da viagem. A escadaria não oferece nada de verdadeiramente tortuoso, não é sinuosa. É mais como um bom rapaz, um coração ordeiro. Sob os teus passos, desdobram-se os degraus, generosos, companheiros de um caminho desimpedido, que o esplendor chama. Se não te resolveste a subir até ao cimo, a tua respiração será amena, quase igual do princípio ao fim: treparás em brandura, amigo! É a escadaria de um minarete, assim não te cansarás de virar. A cada volta o teu olhar esmaltará novas paisagens azuis, os teus ouvidos serão sondados por murmúrios preciosos, sempre novos e doentes de amor por este mundo de poeira. Sobre os muros: cenas dispostas uma após outra, desde a primeira hora. A cada etapa da viagem: assistência completa com cantores, instrumentos, músicos. Subirás ao cume e soarás a trombeta, a nova há-de espalhar-se por si. Então o pôr-do-sol deixará de exalar, o pavão esquecido de tudo selará uma imagem; ambos – atrás da porta, à espera, longe dos olhares – a roçam. Às cores, não as vês ainda, não é? E como as verás? Deitar-te-ão o meio-dia ou a tarde? Que importa? Surgirão, ao primeiro som da trombeta, cintilantes. Vês como flui tudo, a que ponto tudo é fácil, sem obstáculo, amigo!? Inútil até transportar o instrumento, degrau após degrau. Assim que chegares à pequena plataforma, lá em cima, tendo essa minúscula cúpula, como um guarda-sol, sobre a cabeça, tu verás, junto à balaustrada de pedra lavrada em flores, a trombeta deitada sobre o chão liso. Não te restará mais que tomá-la nas mãos; depois, de pé, bem direito, na posição requerida, a perna esquerda avançada, a cintura encolhida, levar os teus lábios à embocadura. E não cai de imediato uma chuva de flores, como convém a uma obscuridade que já se palpa, dilacerando o torso negro do céu com um foguete imenso, deslumbrante? Lá estamos, hoje, para assistir à festa, meu amigo! Todos os da nossa cidade, jovens e velhos. A nova voou da boca à orelha. De uma ruela para outra, a vida pulula. Que se vê agora, do alto do minarete? Tão longe quanto alcança o olhar, todas as casas estão decoradas: grinaldas de empolas vermelhas e azuis, desenhos propícios sobre os jarros, diante das portas. Sobre os caminhos, a multidão aperta-se. Nenhuma agitação. População fervente alinhada sabiamente, trajada de branco, exibindo na testa o ponto de sândalo, maxilares e queixos recobertos por tatuagens de um desejo ardente. Neste pátio, junto à porta que conduz à torre, eis a tua estreia – a sós, bem entendido. Atrás de ti, em semicírculo, a turba dos tocadores de búzios espera pronta. No seu séquito, chegados num passo firme e confiando honrar com a sua presença o lugar reservado aos convidados de marca, alguns cegos de grande distinção. Eles ouviram uma mensagem divina: hoje, recuperarão a vista. Não há sinal de obstáculos, em parte alguma. Simplesmente, nesse momento silencioso, de espera, tu sobejas, escultura perfeita. As tuas pestanas não se mexem. Se o teu coração bate ou pelo contrário cala, não o deixas transparecer. Subirás ou não – a escadaria? Não o queres dizer. Não a sobes.» 02/04/2018 Mais um jornalista moçambicano raptado, Ericino de Salema, e abandonado atrás dum silvado, depois de severamente agredido. Teve sorte, uns garotos iam aos pássaros e encontraram-no agonizante. O medo entulha a cidade. Dizem-me que é um jogo de xadrez, que um antigo presidente mandou perpetrar o acto para inculpar o actual, posto o jornalista ter alfinetado na televisão o comportamento irresponsável do filho deste. É um enredo que Shakespeare aproveitaria, como outros movimentos deste jogo de sombras. Pena os candidatos a dramaturgos moçambicanos andarem entretidos com o teatro dos espíritos e não captarem os sinais que se camuflam atrás das aparências do visível. Milagres precisam-se, nesta “Chicago anos 20” en retard. 04/04/18 Milagre, o que aconteceu com Eva de Vitray-Meyerovitch, na França ocupada. Batem vigorosamente à porta. Eva abre e vê Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degolar. Acompanha-o um oficial da Wehrmacht, que arvora um ar maçado. E perguntam-lhe pelo marido, como ela, um operacional da Resistência. Em pânico, ignorando absolutamente a língua, Eva apanhou-se a proferir no mais castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola com uma galdéria qualquer e, sabe que mais, estou-me nas tintas!», e continuou num arrazoado tão convincente que o oficial lhe deu os parabéns pelo alemão antes de despedir-se, resignado. Não parou Eva de tremer, depois de saírem, e amassou numa bola o maço de tabaco que reservara para a troca de um pão. Foi após este espantoso milagre que Eva se aproximou dos sufis e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos. E pagou o galo a Asclépio.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA dupla face do escritor [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me liga à minha mulher, sem muito custo (embora isto não seja isento de pequenas tensões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita. A escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Melhor: em tempos normais, na escrita sou polígamo. Entretanto, não tem nada de humano o desapego a que a escrita nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido George Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( – embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro). Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo momentaneamente (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não se espere de mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão. Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos. Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas. Há, por outro lado, um bocadinho de balela romântica na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que não conhecesse previamente o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como acontece ao leitor, que ele contactou pela primeira vez com uma paisagem ou com as personagens de que vai descobrindo o carácter, a biografia e o destino. É uma espécie de heroísmo à rebours. A verdade fica-se pela metade, apesar do mais importante estar de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita. Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele e nos faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente, em látego. Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam. Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá excessiva importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz reunir os artiguelhos e as minhas suspicazes opiniões em livro. Alguns bons artigos hei-de ter escrito, mas irritam-me mais as opiniões que ao Valter Hugo Mãe o Herberto Helder ( – e já repararam como está parecido o escritor com o vate?). Há antes algo de que padeço e está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia. O melhor só pode estar para vir, posto que nas costas fica o rasto dos meus fracassos. Todos os poemas que publiquei até hoje, todos as narrativas, carecem ainda do ímpeto do arpão do capitão Ahab. Só me resta não parar de lançar o arpão até que da sua ponta nasça a baleia. Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas. Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar. Permitir esta distracção é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente. A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo, mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação. É claríssimo que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o pleno sentido das proporções (ainda que a distância gere equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu riso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde-me com meu personagem momentâneo) e que mesmo em termos humanos ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido. O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida. Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água; riremos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma boer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque à piscina para vir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasSangrar a Oriente pelo lápis do poeta «Melhor que conhecer uma coisa, amá-la!» Confúcio «Só o corpo obedece à fé porque nele se opera a metamorfose involuntária» Carlos Morais José, in Anastasis [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Visitações, pequeno livrinho lançado uns meses depois de Anastasis, ambos de 2013, reforça-se a suspeita de que em Carlos Morais José (1962) o exercício poético é uma gnose lapidada por um diálogo com uma tradição e não um mero jogo lúdico. Ao qual não pode deixar de convergir uma mão cheia de responsabilidade e outra tanta de atrevimento. Lembremos a propósito que uma das “debácles” desconcertantes da poesia no século XX, correspondendo a um tiro no pé e mais absurdo ainda ao identificarmos quem empunhou o revólver, teve lugar quando T.S. Eliot escreveu que a poesia mais não era do que um divertimento superior — pronunciamento a que posteriormente procurará emendar a mão em Os Quatro Quartetos e que provavelmente enformará a excessiva solenidade deste livro. Porque se a poesia não tem de ser solene encurralá-la como um mero acto de dimensão lúdica — de cujo wit não estará obviamente afastada — premedita uma amputação, a mesma que seria patente se interiorizássemos que o engolfamento da paródia só autoriza degradar as referências e nunca superar-se e magnificá-las. Em Visitações, Carlos Morais José desenha um paideuma, no sentido poundiano, convocando uma constelação de autores (nem todos poetas, como Camus ou Kafka) que se inscrevem como sombras chinesas no biombo em que decorre o seu diálogo com o filamento poético dessas vozes, e o que talvez mais surpreenda, além da escolha heteróclita dos poetas — onde se “recupera”, por exemplo, Raul de Carvalho, um grande poeta esquecido -, é certificarmo-nos que Morais José não receia nem mimetizar procedimentos poéticos, nem servir-se de todos as modulações métricas ou inclusive cultivar a rima. O que o leva a textos tão diversos, como o que lhe desancorou do cais de Camus: ALBERT CAMUS, Circuito da Guia Saímos do tufão para uma temperatura insuportável, mesmo para mim que sou uma espécie de magrebino acinzentado. Hoje palmilhei uma colina, por uma estrada alcatroada. Os carros silvavam rente mas isso era-me indiferente: só cascatas de suor me troavam nas têmporas. Dei por um rio a descer-me pelas costas e agradeci aos deuses por ter um corpo semelhante ao mundo. Ou, por contraste, este, “sacado” a Garret: Almeida Garret Mong Há Como é triste ver a chuva, Por detrás destas vidraças, Afagar de manso a rua Fazer de mim presa sua, Quieto, pupilas baças, Mãos trementes, visão turva. (…) Deste livrinho de homenagens, que roça o hábil e divertido pastiche mas adquire uma outra leitura e seriedade quando visto à luz de Anastasis, talvez realçasse as glosas feitas em torno de Ruy Cinnati, do urdu Hafez, de D. Dinis, de Almada Negreiro (de quem mima o espírito guerreiro e as imprecações), ou o de Ângelo de Lima, que aliás termina com uma nota em que imagino sustentar-se um dos pilares de uma poética cara a Carlos Morais José: «Agrada-me a ideia de um pensamento inútil, que não vise um fim, que não se esgota em funções e genuflexões. Utilidade e pensamento criam monstros. Goyadixit e se não o dixit, desenhou-o.» Anastasis, um livro a todos os títulos excelente, é um projecto de outra ambição, uma prova de fôlego de 220 páginas, mas sobre o qual não dei ainda conta de qualquer texto. Provavelmente por ter sido publicado em Macau, por o seu autor ser figura renitente à auto-promoção (pedi-lhe os livros três vezes, sem resultados, e tive de ir a Macau para ele se resolver a dar-mos) e por estar inculcado, por inércia ou sobranceria, uma ideia de menoridade quanto ao que chega da Diáspora e não é emanado pela capital do velho império. Acresce que em folheando o livro se torna evidente que a linhagem em que pisa Carlos Morais José não é consentânea com os ditames da época, o que lhe dificultará a recepção: ele não cabe nas grelhas de leitura já estabelecidas. E que linhagem é a dele? Talvez a dos poetas menos preocupados em cultivar um imediato reflexo epocal e afinidades temáticas e estilísticas com uma sua suposta geração do que em buscar uma conformidade do sujeito com o seu daimon e as suas chaves de sentido. Anastasis (o termo grego para Ressurreição, e que no fundo corresponderá a um Segundo Nascimento, ideia muito cara no Oriente onde o poeta vive há quase trinta anos) reproduz na capa A Conversão de S. Mateus, de Caravaggio, o apóstolo que pregou pela Judeia, Etiópia e Pérsia e morreu na Etiópia, apedrejado, queimado e decapitado, e que podemos entrever como o símbolo de um andarilho. O livro, coerentemente, deixa-se ler como um itinerário, compondo-se de dez capítulos que na generalidade se associam a um destino: Abertura, Patmos, Istambul, Syria, Pérsia, Índia, Sião, Terra Khmer, Mekong, e Final. A este tour de force afluem textos de diversos modos e géneros — poemas, aforismos, anotações de viagens, tradução de poetas orientais ou transcriações em entretecido verso, versículo ou em prosa poética; meditações diarísticas ou trechos de recorte “jornalístico”, etc — mas releva que o feixe se caracteriza por uma comum escrita tensa, ritmada, polvilhada aqui e ali de aliterações (começa assim O Felino: Faz-me fera falta essa certeza) e de rimas internas à prosa (e, aliás, metade dos poemas rimam), num sulco transfronteiriço entre os géneros no qual a sombra poética sempre avulta. O itinerário que aqui se evoca não é unicamente físico, material, mas nutre-se da espiritualidade dos lugares, assumindo o texto as personas, as máscaras poéticas que lhe sejam próprias, sendo embora de advertir que o respeito ao locus… não é contagiado pela reverência cega, pelo que no trânsito do livro abundam os “desvios”, as anfractuosidades, e as suas ambiências não desdenham o álcool e outros derivativos, aliás como o sexo e as dúvidas existenciais, ilustradas neste belo trecho, de Resafa — em Syria: «No templo de Júpiter, os áugures explicaram-me a vida. Como sempre não percebi. Está tudo aqui nesta pedra de leite ofertada. Seguro-a. Ardente na mão. Mas nem o sol me faz entender a escrita persistente das areias, nem o vento me ensina a língua áspera dos imortais.», pág. 72; registe-se contudo que em Anastasis não se leva a cabo uma “viagem encapsulada” à maneira de Raymond Roussel. Anastasis traceja, antes, as diferentes tradições do território percorrido e — vê-se pela nomeação geográfica como o leque é extenso, dos poetas sufis aos urdus, dos gregos e hebraicos aos chineses e malaios, dos profetas hebraicos aos místicos –, escapando a identificação dessa linha às referências habituais para se encharcar nómada na experiência carismática duma topografia do espírito com assento a Oriente. A haver uma tradição reconhecível para este livro encontro-a mais do lado de Claudel, um dos autores convocados em Visitações, ou das Estelas, de Victor Segalen, nos livros do Kenneth White, do que em qualquer outro exemplo do lastro português. Mesmo Ruy Cinnati é mais localizado e ateve-se a Timor. Daí que Anastasis seja tão diferente do que se encontra no panorama da actual poesia portuguesa e merecesse uma atenção que lhe destrinçasse os fartos motivos de interesse; eu não tenho dúvidas em afirmar ser este um livro de referência, de sempre, no âmbito da Diáspora, e como a singularidade que introduz merecia outro eco. Engana-se, entretanto, quem julgue encontrar na entoada desta escrita que em inúmeros passos se aproxima do versículo e, já vimos, não teme usar a rima nem estruturas frásicas tradicionais uma dicção “antiga”. Só uma leitura negligente e apressada produzirá este juízo. Antes acontece haver em Carlos Morais José um tão apurado domínio da língua que o poeta (e neste particular aproxima-se de Grabato Dias), prescindindo de exibir um estilo faz antes cabotagem, usando-se das máscaras, adaptando o de outros. O que se atesta, por exemplo, nos inúmeros gazel que permeiam o capítulo Pérsia, onde o leitor é, por fim, restituído ao hedonismo “metafísico” de Kahayyam. Porém, avisa Morais José, e antevejo aqui outro preceito da poética que lhe imagino cara: «O nosso afã não é copiar, nem cumprir. O paraíso será sempre a reescrita» (pág. 138). Depois, Anastasis, como se disse atrás, nas suas imprevistas meditações está repleto de curto-circuitos, de erupções dissonantes que rasgam os laivos neo-platónicos (presentes) para os “infectar” com a imanência das rudes intersecções do quotidiano e do real — isto é, há no texto o desejo da ideia mas não a sua primazia. Neste aspecto, o livro é tremendamente pós-moderno e testemunha o itinerário de uma poesia que — se se infere como aventura espiritual, no sentido de uma evasão ao trivial e da consequente busca, mesmo que intermitente, desse Absoluto de que falava Paz (que está não aquém mas além das religiões) — já não pode abster-se do que foi desmistificado pelo século XX e cunhado pelo paródico; pelo que, arredada de qualquer dogma, a poesia há-de vasculhar no profano e no circunstancial rastos do sagrado e vice-versa, sabendo-se como as religiões calcificam enquanto a poesia re-humaniza os gestos do celebrante. Demos alguns exemplos das dissonâncias, como estes colhidos em Sião: Sukhumvit, Soi 1 «À hora sexta, é um alvorecer de pássaros e não o grande motor que acorda a cidade. São cantos, estribilhos: toda uma poesia de jardim que se evola dos bairros. A rapariga que risca a rua como um estremecer de asa. Da janela do automóvel, o homem do táxi chama o colega com um beijo repenicado. Não são maricas, sequer efeminados: falam como os pássaros.» (161) ou, Sukhmuvit, Soi 6: «A mãe sentou-a no meu colo. “tem 14 anos, mas já é experiente”, garantiu. “Obrigado”, retorqui, “pode trazer mais um uísque?» Citemos o desconcertante fecho de Cisterna, em Istambul: «Em parte discreta da velha cisterna bizantina, duas cabeças de medusas servem de base a medusas. Uma está invertida, a outra de lado, apoiada na face direita, Não se sabe porquê. Provavelmente porque assim dava mais jeito ao construtor. Mas o que fazem ali as duas górgonas? Há uma terceira medusa, de que ninguém fala, muito parecida com as suas irmãs da cisterna. Está no Museu de Arqueologia, perto do pequeno quiosque onde, depois do café (“à turca, com o pó todo”), os teus cabelos se transformaram em serpentes. Agora sou a estátua que aguarda a inscrição: um nome, uma sentença, um epitáfio: TEVE PÍFIA VIDA ALBERGOU NO SEU SEIO UM MONSTRO Alien (o filme) ou a iconografia do amor.» Ou ainda o fecho de Café Roozegar, em Pérsia: «Se a poesia desvenda, tal não surge como prenda no vinho ou nas mulheres. Há na rosa uma maldade que embeleza a cidade, mas que em mim só apoquenta como o cruzar da tormenta de velas bem levantadas. Vou lá fora… fumo um charro… é melhor de que um cigarro… Impossível regressar.» Cruzam-se para além disso neste livro, incessantemente, a memória poética e a memória etnográfica (Carlos Morais José é antropólogo de formação), entrançadas no tecido duma cartografia pessoal que de modo inescapável se condensa em pontos irradiantes duma certa herança cultural onde ainda se manifestam resíduos da sua origem (e mesmo geracional, como na evocação a Morrison), embora na sua generalidade já se apresente híbrida, desterritorializada e transgeracional: ALLEPO/Hotel Baron «Nesta varanda de pedra, bebi um uísque com soda, brindando a Lawrence que conheci da Arábia, mas que pertencia ao meu país. O barman, de calça clássica, colete de risca escura e irrepreensível laço, serve como um cavalheiro de outros tempos, fazendo corar o turista. Sorriu-me e percebeu: “Está ali naquela sala”: a conta assinada pelo punho do Inglês, o homem sem pai que conquistou para si mesmo uma Pátria. Sorri-lhe, cúmplice, de uma traição que só grandes homems cometem. E, rapidamente, beberiquei o uísque, voltando à varanda donde, ontem, e hoje se vê passar a Syria.» E como isto não pretende ser uma crítica mas apenas uma chamada de atenção para um percurso singular no panorama actual da escrita em língua portuguesa, fecho com um excerto de Allamut: «Amo a visão destes montes descarnados, de puríssima geração, intocados de árvores ou vegetação rasteira, forma primeira do planeta do início. Hoje de humano sobra-me o vício. E se assim embaciado permaneço, não é temor nem doença que padeço. Para tal bastam a beleza que invoca e a teimosa dor de não se dar a troca. * Dizem os historiadores que o paraíso dos haxixins nunca existiu. Provavelmente terão razão: percorridos os jardins, fumados os cachimbos e amadas as belas huris, ainda assim não me deu para matar.» Com um excerto de O haxixe: «(…) Com Walter Benjamin no terraço, esgrimindo frio no oiro do ar. Electricidade perpassa nessa espessura loira e informe. Como ele, esqueço-me de certa lotaria e esfrego outra vez o joelho, sentado na anti-gravidade da cadeira, no centro cósmico da cidade; um cego inundar-me-á de música e isso bastará para me erguer em radical felicidade. Não serei milionário. Está, contudo, ao meu alcance uma torre áurea, edificada sobre as ruínas de um violino. Walter significa: um automóvel nascente… o túmulo vegetal… uma assunção do poente… a aura caída das eternidades por haver. Um anjo para entreter…» Sigo para Patmos, II Skala: Nos cafés do porto espera-se pelos navios, o desembarcar lento dos passageiros e a largada ufana dos grandes motores. Os turistas dão uma volta à ilha, visitam as principais atracções e raros são os que aqui pernoitam. Outras ilhas os esperam. É isso que as ilhas sabem fazer. A importância do café Depois da morte dos cafés, sobraram as ténues esplanadas sem lua nem metafísica, na sombra de navios de outros tempos. A tripulação fugira. Gatos apardecem as vielas por detrás dos bares. Onde talvez se beba qualquer coisa. O café permanece belo como dantes. A mesa é curta. A melopeia interrompida. (…) Onde estão os barcos? Por que demoram? Quero partir agora, que se chega a minha hora. No café estrela um relógio de navio? Por que me rio? É igual navegar ou estar sentado. Sonhar acordado como os meninos. Das vésperas: sorver taninos, as nuvens de veludo, o entrudo avermelhado, a parte do céu quebrada em anis de desespero. Não choro. Por que me rio? Vai já longe aquele navio… E termino com o primeiro de Dois aforismos: «A primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar.»
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e Ideias“Complexo de Trump”: Primeiro Caso [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho uma rotina matinal, abro a net, vou ao Google e digito: Trump notícias. Nunca me desilude, é um verdadeiro circo. Nunca fica nenhuma mulher barbuda por revelar. E como o Trump é um génio e pelo meu lado nunca ganhei nenhum jogo de xadrez na vida, estudo todos os casos de hirsutismo (a doença que lhes faz crescer os pêlos ao triplo da velocidade), a ver se topo como ele acerta à primeira. A semana passada fui assombrado por dois sinais hirsutos no seu olho vivo. O primeiro. Disse Trump aos fuzileiros navais em San Diego: “O espaço sideral é um domínio de guerra, bem como a terra, o ar e o mar.” E continuou, “talvez precisemos de uma nova força a que chamaremos “Força Espacial” – fez um silêncio, após o qual comentou o que acabara de dizer – “… bem, eu não estava a falar a sério, mas esta é uma ideia fantástica!”. Fala alguma vez a sério, o Donald? E quais são as unidades de peso que usa para as suas palavras, ou brinca consoante o vento? O espaço sideral é um domínio de guerra? Donde lhe chegam aquelas ideias sempre em madrepérola? Com que clareza detecta os indícios de guerra entre Júpiter e Urano, por exemplo? Os Stephen Hawkings deste mundo procuram sinais de vida inteligente no espaço, Trump já divisa rasto de lança-chamas entre os meteoros, o rebentamento de mísseis no focinho dos selenitas e o sulco dos submarinos nos anéis de Saturno. Os antigos falavam da “música das esferas” (os planetas) para contrapor a harmonia do mundo à disparatada propensão para a discórdia entre os homens e Trump vê cowboys na ponta dos telescópios a laçarem os chineses e os russos de um planeta tão vermelho como Marte. Só encontro uma explicação. Ele entrou uma vez numa sala de cinema, em Philadelphia, ainda no primeiro episódio da Guerra das Estrelas e o seu clone foi resgatado pelos bombeiros de Hong-Kong vinte anos depois, perdido entre a “Força” e o “Buraco Negro” (os “pequenos lábios” e os “grandes lábios!) de Annie Jones, a hirsuta galáctica (cf. foto) – daí o cabelo ionizado que ele carrega. Provação mais grave do que andar perdido nos sonhos de Darth Vader. E agora só vê camuflados nas poeiras galácticas. De qualquer dos modos, a notícia ajudou-me a deslindar um enigma. Havia guardado esta notícia, do ano passado: «Uma tragédia chocou os moradores de Rubiataba, interior do Goiás (Brasil). Um adolescente de 16 anos morreu após se masturbar 42 vezes. Segundo relatos, ele teria começado por volta da meia-noite, e masturbou-se toda a noite sem intervalo. Terminava uma e começava outra. A mãe do menino já desconfiava de sua compulsividade por praticar o acto: “Era de hora em hora”, contou a mãe do jovem. No computador do adolescente foram encontrados cerca de 17 milhões de vídeos eróticos e de 600 milhões de fotos.» É chocante este jovem não ter chegado pelo menos às cinquenta. Há metas que não se devem falhar. Teria lido que o Hércules desvirginou as 50 filhas de Téspio numa noite? Era esta façanha que ele queria imitar? É improvável. Já ninguém lê as mitologias gregas. A sermos rigorosos, o seu feito é irrelevante se comparado com a cópula do gafanhoto, que dura 16 horas… E se ao menos tivesse sido previamente treinado para a ejaculação prematura teria sido tudo mais leve e o coração ficaria menos exposto. Mas as mães hoje não educam os filhos. Por outro lado 600 000 000 de fotos é o suficiente para atapetar um pequeno país como a Suazilândia. Este detalhe impressionou-me. Contudo, et voilá!, num acervo de 16 milhões de vídeos é impossível que não estivessem lá todos os filmes com a actriz Stormy Daniels, a diva porno que o Trump quer silenciar. A causa da morte é-me evidente: o ingénuo quis imitar a potência do presidente americano e impressionar a actriz. Foi abatido pelo «complexo de Trump». Os seus espermatozóides entraram em guerra uns contra os outros e ejectaram-lhe o coração para o espaço sideral. Foi o primeiro a querer imitar a virilidade titânica de Donald e a ser emulado no teatro de guerra onde se representa o Poder da Imitação. Eis agora o segundo momento hirsuto, que me deixou de cara à banda: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, gabou-se de ter inventado dados estatísticos sobre comércio numa conversa com o primeiro-ministro do Canadá. Para ilustrar a mentira de que havia um desequilíbrio na balança comercial entre os EUA e o Canadá, Trump inventou uns números e depois gabou-se disso, de ter sido um espertalhão. Desde Maquiavel que este tipo de manobra não será incomum na retórica política, às vezes inventa-se no fito de baratinar o outro. A novidade é que o manhoso a seguir se gabe, publicamente, e sobretudo se é o presidente da maior potência do mundo, o qual devia parecer, aos olhos de todos, não impoluto mas confiável. A minha alma está burra – dizia a minha avó. Este jogo é mais perigoso que o de sugerir batalhas galácticas num espaço sideral que ele nunca terá o prazer de sulcar, porque deita às favas qualquer moral política e vai induzir mil oportunistas sem escrúpulos, por todo o mundo, a imitá-lo. O René Girard há cinco décadas que adverte sobre a imitação como mecanismo (inconfessadamente) privilegiado na pauta de produção de valores. Foi sempre subestimado, embora demonstrasse as suas teses em várias áreas, da análise literária aos estudos societárias. Creio que começa a ser urgente ouvi-lo (agora em mesa pé-de-galo) mais que não seja porque, como o sabia Nietzsche, quando nos falta uma tradição respeitável é preciso inventá-la: “dar-se modelos para saber o que buscar” – e nos últimos tempos rodeiam-nos ferozes felinos disfarçados por orelhas de lebre.
António Cabrita Diários de PrósperoA Palavra e o Silêncio [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a minha infância vivi com uma tia surda, que me levava à missa. O verdadeiro enigma, para mim, tornou-se o da distribuição da Palavra de Deus. Como é que o Sopro de Deus lhe chegava aos ouvidos? E, se ela lia nos lábios do padre, como mensurar o quilate da Palavra nessa comunicação semi-adivinhada? A partir desta minha experiência deixei de considerar o silêncio como algo de mítico para o qual toda a palavra conflui, ou de reduzir a palavra a um trampolim deficitário para a expressão do inefável. Eu tive uma educação pelo silêncio, como uma experiência material, inapelável, concreta, que ainda por cima se mesclava com o afecto, e essa relação fez-me perceber que existem modos de comunicação que estão fora da consciência, no sentido de prescindirem de verbalização, intuindo aí o que dizia o Bateson sobre a impossibilidade de existir a não-comunicação. O silêncio pode bem ser uma comunicação ainda sem mensagem, da mesma forma que há pensamentos que procuram os seus pensadores-veículos, e nele não se manifesta o oposto do som ou da palavra mas antes uma posição embrionária, que prepara e antecede a expressão. Por outro lado, a circunstância de ter vivido com alguém que fazia as consoantes com o corpo e as vogais com os olhos mas a quem poucas palavras saíam claramente articuladas, ensinou-me que a palavra é um luxo que não se pode desperdiçar, nem pela mentira, nem pela frivolidade, e que nos cabe a responsabilidade ética de não deixar por formular uma única palavra que seja necessária. A partir daí o que me interessa não é tanto o esforço de definir o silêncio, mas, de modo mais prático, como acomodar-lhe a cama, a transpiração e o trajecto que o silêncio faz em nós. O americano David Thoreau iluminou tudo o que eu desejaria dizer: «Não é a forma que o escultor dá à pedra que importa mas o que a escultura faz ao escultor». Até porque só há inefáveis relativos e não absolutos e como acredito que começamos de uma maneira e acabamos de outra impõe-se uma nova dimensão anteriormente indiscernível em cada ciclo da nossa evolução ontológica. Passamos da madeira, ao ferro, para usar uma metáfora, e nesta passagem, ao mudarmos de configuração atómica isso ocasiona que não reconhecemos as constelações, pelo que precisarmos periodicamente de uma nova carta astral. Falo metaforicamente, mas alvitro, como dizem alguns antigos, que o caos é quase sempre uma ordem por decifrar, a ventania que despenteia a estatística. E sublinho o «quase» porque, por uma questão de sanidade mental, devemos conservar uma margem de liberdade para o aleatório e para nunca nos esquecermos dos limites da racionalidade. Do que advém, no meu caso, que o silêncio seja o outro nome com que se nomeia o acto mediante o qual a concentração nos esvazia. Do mesmo modo que a dança se intensifica quando se apodera do corpo, ou a sonata soa mais expressiva quando o seu intérprete se esquece de si mesmo no acto, o silêncio é o acto de esvaziar, e de nos pôr à escuta, e a partir daí a palavra e o silêncio retroalimentam-se e todo o real potencia-se no processo desse engendramento recíproco, diria até, desse entusiasmo recíproco. Entusiasmo que gerou males-entendidos e que Platão escrevesse: «o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão». Confesso que só lhe perdoo porque quando vou ao talho, aponto a máquina do fiambre, e digo sempre a mesma piada, “corte-me cem gramas de Platão mal passado, por favor!”. Mas incompatibilidades com o Platão à parte, por muito que quisesse não posso escamotear que sou agido pelo silêncio de uma forma concreta, fertilizadora, sendo que nesse estado de fluidez só existe o perigo de o entravar, quando, estupidamente, desato a perguntar pelo sentido do que estou a escrever. Para que nos continue a nutrir, o silêncio necessita de encontrar em nós um pouco de inocência e diria até de idiotia. Dado haver um kairos do silêncio, um sentido de oportunidade em relação ao momento de calarmos. Talvez não seja o melhor modo de acabar, reconhecer que às vezes se desprende uma tal bazófia, uma tal solenidade no uso e na evocação do silêncio que me vem logo à cabeça, em contraponto, um verso de Haroldo de Campos: “O redondo oceano ressona taciturno”. E por isso, para apalpar o território movediço do silêncio sem nos colocarmos em bicos de pés, lembremos que em todo o século XX houve uma valorização estética do silêncio, seja pelo lado da desconstrução como no movimento Dada, seja pelo inescapável fascínio que fazia da arte uma disciplina votada ao silêncio, condensando-se neste uma meta inatingível mas sempre almejada, como se fosse o silêncio o propulsor que nos ejecta na região inefável. Em ambos os casos o silêncio é uma ferida em aberto. Talvez pelo facto de sermos portadores da palavra e de estarmos convencidos que o pensamento é linguagem, alheados de que não pensamos exclusivamente por palavras, embora pensemos às vezes em palavras, sendo estas arquipélagos flutuantes e esporádicos. Vezes há em que me interrogo como nos expressaríamos se não houvesse uma palavra para designar o silêncio e fico receoso. Pode aí o desejo libertar-nos destes embargos, tal como se deduz neste poema de Brecht: REMO; DIÁLOGO: «Fim de tarde. Passam deslizando/duas canoas, dentro/ dois jovens nus. Lado a lado remando/ Conversam. Conversando/ Remam lado a lado.» Nada foi dito, tudo permanece na sombra do sugerido, na ambiguidade que o silêncio também requer e, contudo, que a minha tia surda desvie os olhos neste momento grave, imaginem os meus amigos, como se pega nos remos, e na pesada analogia de tal gesto, embora o poema explicitamente silencie o que mete em presença. E agora, se me permitem, vou andar à vela.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasHemorróidas de Ouro 05/03/2018 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] convivência fraternal, eis um princípio que, como as bolotas, nenhum porco deixa incólume. Imagine-se o gáudio de Putin, ao anunciar que tem no seu arsenal a arma invencível. Deve ser um míssil que despoleta orgasmos à sua passagem (parece que a seis vezes a velocidade do som) e desperta na matéria inanimada as sensações de Zeus quando penetrava a alva novilha Io. E, em delíquio, os poderosos sistemas antimíssil americanos abstraem-se da sua missão. Eu também fiquei gago quando, no balcão de um café em Paris, o meu ombro se encostou à ombreira de Grace Jones, confesso. Até compreendo a gabarolice de Putin (- Trump, nenhum twitter?). Coitado, calhou-lhe ser contemporâneo do americano intimorato e de Xi Jinping. Trump já demonstrou que não consegue assimilar uma regra simples: às vezes para ganhar é preciso perder. (Eu vou mais longe, ainda que o jogo seja perigoso: só se ganha quando se perde. Um bom exemplo na História é a forma como os gregos perderam a sua soberania para os romanos em troca de colonizarem o espírito do império romano, até ao seu término; outro exemplo, o modo como o irrelevante Fernando se transformou na indústria Pessoa. E diga-se, ele sabia.) Este é um tipo de lucro inaceitável para Trump que só tem olho para as imediatas vantagens materiais, descura as reciprocidades, e sofre do Complexo de Midas. Quanto ao novo imperador chinês, passou a aplicar-se-lhe tudo o que em 2011 escrevi no meu blogue sobre o anterior presidente norte-coreano: «De acordo com a agência noticiosa da Coreia do Norte, a KNCA, novos estranhos fenómenos naturais têm sido testemunhados, agora um pouco por todo o mundo, desde a morte do Líder: No México, um ácaro matrimoniou-se com uma lâmpada de 100 watts, resignado por, desde a morte de Kim Jong-II, ter deixado de fazer qualquer sentido a distinção entre matéria orgânica e inorgânica. A camela (afinal era uma) que em Jerusalém atravessava há dois mil anos o buraco da agulha desatou a parir. Um selo de dez ienes imolou-se em frente à sede da ONU, em Tóquio. Um panda deu um concerto de bateria na messe dos soldados que guardam a fronteira com a Coreia do Sul mas estes, compungidos pela morte do Grande Líder, não arredaram o pé das guaritas. Na lua irromperam da terra as melancias e houve uma súbita chuva de ósculos. Sacudido pelo luto, Deus, para afastar de si a funesta ideia do suicídio, começou finalmente a ler o Kapital do Karl Marx. Em Lisboa, o arroz carolino mudou de sexo. Na Califórnia, o miado dos gatos mudou para miu! O cadáver do Michael Jackson teve uma polução nocturna. Nevou pez no resto do mundo, só na Coreia a tempestade de neve manteve a sua alva pureza! O fecho-éclair de Kim Jong-un quase soçobrou aos encantos da lascívia mas manteve-se firme. Uma lágrima encetou a travessia do deserto do Saara. Na capital chinesa, as peças do Mahajong desataram a florir.» O pragmático Putin, pode sentir-se seguro entre dois profetas de tal monta? Mais do que um gesto de bravata, o seu anúncio premedita a intenção de restaurar a confiança – a sua, de um volúvel homem entre imortais, embora também já se anuncie que os seus genes são de outro tipo de gema. Por outro lado, se fosse aos russos não confiava num homem tão inseguro de si que em vez de usar o seu poder de influência para incitar os homens à fraternidade e ao diálogo insiste em querer provar-nos que Deus tem dentes cariados. Que Este responda e na sua ira Se imole como mártir (para assinalar a loucura dos homens) frente à sede onde pontua o mano Guterres, ou, então, como no Primeiro Livro de Samuel, castigue a cupidez dos Grandes Líderes com Hemorróidas de Ouro. 06/02/2018 Entre tantas coisas que havia esquecido encontrei esta espantosa Carta de Lygia Clark para o seu filho – datada de 1970: «Meu filho,/ Você é um ser./ Existe na medida do mundo./ É pouco./ O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca./ É a tua medida inicial./ É o teu começo mas não o teu fim./ É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical./ Para cima do chão há o “invisível”./ Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem./ Esta você a percebe./ Na verticalidade está a medida da sua procura.» No que sublinhei está para mim a chave da carta. O invisível associa-se ao que não se vê na aparência e só se capta parcialmente pela percepção que os outros adquiriram de nós e nos transmitem, porque o próprio não vê o que nele é uma propensão e não uma jactância. O homem bondoso age assim porque sim, idem para o generoso ou para o homem criativo. Porém eles não têm a certeza da sua medida. São assim porque não conseguem ser de outro modo e não por cálculo. E só este desinteresse faz a verticalidade do homem e exalta os valores e não as coisas. Só isso está “acima do chão” e molda uma dignidade sem freio. 07/03/2018 Um poema extraordinário do poeta sueco Tomas Tranströmer (a versão é minha): «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra,/ mas nada de linguagem – parto para a ilha coberta de neve.// O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas / encadeiam em todos os sentidos. /Dou de caras com as pegadas / de um cervo na neve: / nada de palavras mas uma linguagem.» É um poema que me diz muito, neste momento. A despropósito, esta quinta-feira 8, às 18h, lanço em Maputo um livro de poesia, que co-assino com o poeta moçambicano Mbate Pedro. Chama-se Os Crimes Montanhosos. E estão os meus amigos convidados.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCansaço, simplesmente cansaço [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ansaço de mim mesmo ou de mim próprio? Vai dar no mesmo, um estuário de fadiga, num espelho desidratado. O Pessoa arranjou os heterónimos para se aliviar destes sarilhos. Punha a mesma gabardina mas mudava de borsalino como os polígamos. Era como um búzio com várias cabeças. Sou demasiado macambúzio para o ardil resultar comigo, ou tão prestável que acabaria por inevitavelmente emprestar a chave do meu quarto a um heterónimo para ele ir lá dormir com companhia e acabaria à chuva, no cacimbo da noite, por extrema delicadeza. Cansaço, e do mais impuro. Para já só descortino uma medida que me poderia salvar. Se eu casasse com a Dora Maar. Por vários motivos, ela tinha uma imaginação desatada e gostava de falar. Ora, eu pélo-me por falar menos. Ela mobilava a casa de palavras num instante e não se importaria com o meu silêncio porque como roçava o desequilíbrio, estaria tantas vezes ocupada em recuperar algum tino que nem daria pelo meu alheamento; por outro lado, ela reunia os encantos suficientes para compensarem a aragem inflamada com que às vezes o seu juízo desbordava. Claro que tudo isto parece um bocado egoísta, mas não é, repare-se, as ausências que ela me permitiria estariam fundidas nas frequentas ralações com que eu me ocuparia dela, seja por amor, ou por sobrevivência, para que as coisas corressem nalguma fluidez, sem estorvos. Portanto, o meu aparente egoísmo ser-lhe-ia afinal vital porque me alienaria nela, por ela, com ela, numa presença contínua junto dela que de outro modo me seria insuportável. Cansaço. Como o dela, imagino depois de ter sido durante anos amante do Picasso e deste a ter trocado pela jovem Françoise Gilot, o que a arrastou para uma crise. Ou pior, muito pior. Porque ter uma relação com o Picasso e ficar cansada é normal, não será distinto de ter de lavar todas as janelas de um arranha-céus de duzentos andares na duração de um relâmpago, mas enfim, a perspectiva lá de cima há-de ter ganhos – não se há-de ficar com uma visão solteira. Muito mais complicado é ter uma relação a sós com a minha árida solidão e não ficar cansado de montar a tenda e de aplainar dunas, não convém nem ao mesmo e nem ao próprio e fica-se com o cérebro seco como as axilas do escorpião. Era a mulher que me convinha. Bonita, altiva, de marés sempre vivas nas epístolas do desejo, com uma imaginação ímpar, iria de bom grado ao caixote de Picasso para resgatar esta fotógrafa delirante e modelo (nu) em repetidas sessões de Man Ray, a única mulher do pintor que esteve à altura do seu génio. Se os meus amigos conseguirem localizá-la, informem-me. Há-de ter reencarnado. Porque estou tão cansado que acabei de escrever como posfácio para um livro de poesia que vai sair daqui a dois meses: «A amiba que desfez o cérebro daquela criança ilustrava um princípio gelatinoso. De uma simplicidade que abisma. O que é fascinante e horrendo. Foi numa piscina, na Argentina, que o insigne animal, imaginemos que avançando em mariposa, penetrou pela narina da criança para depois se acomodar fazendo das suas. Das notícias que mais me perturbaram neste começo do ano. Observável apenas com a ajuda de microscópio, a amiba é um protozoário cuja vida remonta ao período de origem do nosso planeta. Como ser unicelular, movimenta-se e “captura” os alimentos emitindo prolongamentos citoplasmáticos – os pseudópodes –, os quais envolvem as partículas alimentares e incorporam-nas na sua massa gelatinosa, informe. Como parasita instala-se no intestino da mosca, quando esta suga o sangue de algum mamífero infectado, ou no cérebro das crianças, que desfaz. Para uma amiba nada nos distingue de uma mosca. Só nos resta acolher uma infinita humildade. Creio que a poesia é uma amiba de efeito ao retardador. Pode ser extremamente benigna para quem a lê, mas é refractária e sujeita a servidão o seu portador. E ameaça, não propriamente enchafurdar-nos no silêncio mas com uma pronta liquidificação das cabeças. A amiba, na sua simplicidade, rechaça quaisquer imprevistos. Foi sempre sob ameaça que escrevi, vivo amiúde nesse gume. Com a exaltação que antecede os fracassos. Se pudesse não tinha escrito estes livros (são dois reunidos num volume). Foram-me impostos. Não lastimo, certifico. Não reivindico qualquer daimon. Possui-me uma amiba, e, cego desde o seu aparecer, corro contra ela. Imponho-lhe um ritmo embora tenha sido ela quem me obrigou a adoptar um passo de corrida. Por enquanto não ultrapassou a cavidade nasal, onde fez estalagem. O tempo é para ela um arco de luz? Também eu gostava de dizer “gosto das formas que se tornam outras”. Mas quando o enigma foi desregulado por uma amiba vacilo sobre em que lado da forma ficar. Volteio entre as imagens sem subtileza, aristotelicamente. Gostava de não vos afligir, mas a minha fatuidade é total e só me ocorre: cuidado com os contágios!» Pior, a minha fadiga é tão grande que acredito piamente nisto. Tal como creio no que escrevi no poema de outro livro: «Eu também não gosto dela./ Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se/ apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar:/ escreveu Marianne Moore, num poema intitulado POESIA./ Esta declaração é um divisor de água./ Eu também detesto a poesia, posso lá eu relacionar-me/ com algo que me trata como um cão de cego?/ Gosto é de espreitar à socapa no espelho/ a ver se alguém que não eu, em gestos/ e expressões que me não pertencem, me perscruta./ À socapa, se ela sabe (a poesia) faz-me o escalpe.» O ideal era conseguir calar-me (- Como se cala um pobre? Só os ricos se podem dar a esse luxo!), fazer do nevoeiro gabardina e escapulir-me. Ou perder-me entre os olhos redondos e os pés esguios de Dora Maar. Quem (me) achar o seu endereço será o meu padrinho de casamento.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCurar & Curare 19/02/2018 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] tapeçaria dos povos apresenta amiúde histórias medonhas, intrincadas, implacáveis. Pior quando se eximem da responsabilidade sobre o bem comum e acabam como vítimas desgraciosas do próprio desleixo acumulado. Nesta última semana choveu a potes. Daria para transformar um estádio nacional em barragem, em não havendo drenagem. Desconheço em que estado ficou o Estádio Nacional de Maputo. Entretanto, não longe dali, no Hulene, acumulavam-se há anos monturos de lixo que cresceram, até à “sã” altura de um prédio de três andares, colinas de miasmas circundadas por casas de cimento ou madeira e zinco. Sofrivelmente cristãos, esses monturos resistiram à chuva, ao vento, à sua fúria e gosma. Até que ontem desmoronou sobre as casas, num tsunami. Foi um regabofe. Ficaram soterradas cinco casas. Dezassete mortos, fora os que ainda não vieram à tona e estão a ser pasto dos ratos. Que quarenta anos depois da independência uma comunidade morra enterrada pelo lixo que produz não deixa de ser tristemente metafórico. É a condição mais habitual em países que escolheram como prioridades as armas e a “política do ventre”. Situando-nos agora no norte, contaram-me a seguinte história: um amigo precisava de uma certidão de nascimento. Por acaso é do Mossuril, no distrito da Ilha de Moçambique. Ora, os livros de assento dessa zona foram enviados para a Conservatória da Ilha e foi aí que um amigo deste meu amigo foi requerer uma certidão de nascimento. Porém, a seguir todos os prazos razoáveis foram ultrapassados, até que chegou finalmente o documento e a explicação. Os livros de assento de antigamente eram grandes e as suas páginas desbordam da única e pequena máquina de fotocópias que existe na Conservatória. E então a opção é acumular os casos por resolver a fim de que se justifique enviar dois ou três livros de assentos atravessar o istmo que separa a ilha da costa numa balsa, com um funcionário, para, no outro lado, se tirar as fotocópias necessárias. E sob risco de que um aguaceiro, uma trovoada repentina, desabe sobre a balsa e os livros, debotando o milhar de assentos de que dependem muitas vidas. Por que não se digitaliza? Porque não há orçamento. O episódio da ilha chega a ser risonho, não fora essa quase doce irresponsabilidade – uma verdadeira cocada mole – ser outra face da mesma realidade que desaba na triste tragédia ocorrida esta noite. E não há orçamento quer para a digitalização dos arquivos, quer para o tratamento do lixo, porque se tem preferido a guerra ao diálogo, com todos os custos que tal acarreta. Deve ser horrível ser enterrado vivo por uma tonelada de lixo, a não ser que encaremos a tragédia como uma vacinação garantida contra os maus odores do inferno. 20/02/2018 Numa atoarda infeliz, a Ordem dos Médicos em Portugal posicionou-se contra as licenciaturas no ramo da Medicina Tradicional Chinesa, vulgo Acupunctura. Foi com assombro que li que «A OM acusou o Governo de ameaçar a saúde dos portugueses validando cientificamente práticas tradicionais chinesas através de uma licenciatura e admite avançar para “formas inéditas” de mostrar o descontentamento dos médicos. Para o bastonário, Miguel Guimarães, a criação de um ciclo de estudos com formação de quatro anos “em práticas que não têm base científica constitui um perigo para a saúde e para as finanças dos portugueses!”». Ora, a minha experiência leva-me a dizer o contrário, quiseram os médicos da “medicina científica” espoliar-me enquanto na acupunctura encontrei um modo alternativo de com eficácia resolver os meus problemas. Passo a contar. Em 2008, depois de uma gravidez, a minha mulher ficou com o “ombro congelado”, havia perdido a mobilidade por calcificação. A única solução dos médicos convencionais era levá-la à serra, operação invasiva e de resultados incertos, para além do preço bruto da intervenção. Optámos pela acupunctura. Em doze sessões a calcificação “liquidificou”. Cem por cento de eficácia para um terço do custo. Resolvi fazer doze sessões, para regulação. Só fiz oito porque fui orientar um curso em Madagáscar, mas assisti ao seguinte: a minha parceira de quarto nas sessões era uma garota de doze anos que experimentou a acupunctura por desespero: tinha um cancro numa víscera, não lembro onde. Na última sessão a que fui, havia festa e corria o champanhe. Os pais e a terapeuta comemoravam que o cancro da miúda tinha reduzido em dois terços. Se não tivesse visto não teria acreditado, mas fui testemunha. E bebi o champanhe. Há três anos uma filha minha fracturou num treino de ginástica um ossinho do joelho. Fomos à clínica privada melhor equipada em Maputo. Fez uma radiografia e o médico não detectou nada, disse que era uma inflamação e enviou-a para casa com umas pomadas e uns comprimidos para as dores. Dois dias depois eu tinha de descer com a miúda ao colo os nove andares do meu prédio (o elevador estava avariado) e voltámos lá. O médico voltou a não encontrar nada na radiografia, e sentenciou, Ela tem de fazer um TAC. Ok, quanto custa? Mil dólares. Arregalei os olhos e perguntei: O dr. tem consciência de que com esse dinheiro vou fazer um TAC a Lisboa? Lamento, mas é o preço. Passou-me pela cabeça ir consultar primeiro um acupunctor. Meia hora depois o terapeuta chinês segurava a radiografia e diagnosticava, apontando, Tem uma fractura, aqui… E, agora, precisa de gesso? Nada. Como vamos então fazer? Traz a menina duas vezes por semana, e faremos doze sessões. E depois não vai precisar de fisioterapia? Nada. Havia um precedente, confiámos. E um mês e meio depois a miúda andava, dois meses e meio depois voltou para a ginástica. E em vez de dois mil dólares no total gastámos duzentos dólares por tudo. O ano passado a minha mulher escapou de ir à faca, para tirar a vesícula, usando de novo a acupunctura. O ideal será cruzar as duas medicinas. A acupunctura não faz milagres, não é panaceia para tudo mas funciona – e ao nível preventivo aí será imbatível.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasMau tempo no canil 12/02/2018 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma entrevista televisiva vi o Júlio Pomar e o Jorge Palma, lado a lado, divagando sobre a vida e a arte. E às tantas o Jorge Palma fala da criação de uma composição qualquer e abriu-se um fosso entre os dois, advertindo o pintor: «Meu caro, nós não criamos nada, nós recebemos…». Lendo o Da Cegueira dos Pintores (Documenta, 2014), de Pomar, cujo título armadilha de imediato a hipótese da sua ser uma arte retiniana, compreende-se porquê: «Dotado de pouca vontade, deixo-me fazer pelo quadro, e sofro frequentemente as exigências das pequenas coisas insidiosas que procuram impor-se a todo o custo. Deixar fazer, trabalho invisível. Mas a obra, por natureza, dá ao visível o que lhe pertence. Na fruição desse visível, o pôr a nu, tornado utilização, torna-se também ele, obra. Obra que vive da tensão entre o que é conhecido e o que acaba de ser realizado e lhe escapa». Assim, quando se abandona à lavra da matéria, embora o que seja próprio do pintor seja ver, acontece-lhe que acaba por restituir ao visível mais do que foi perdido – afinal, uma das condições da arte. O espantoso é que as frases pulsem e se enfeixem neste livro como «uma energia em expansão», dotadas duma clareza, de um ritmo e riqueza imagética superiores à de muitos escritores. No livro demonstra-se que é Júlio Pomar um dos melhores aparos em Portugal, não há nele palavreado mas polpa, sangue, caroço e morfologia, e a ductilidade de espírito do pintor encarna as palavras no fito de as desviar de qualquer talhe frívolo. Exactamente porque o autor se abandonou à “lavra da matéria” (neste caso verbal), a palavra é «um utensílio que faz corpo com ele». Admira que a dado momento escreva «Quando uma forma nos surpreende como se acabasse de surgir, não é a forma da forma que está na origem desse brilho, é o seu movimento, e este também não saiu, salvo em parte muito pequena, do movimento que é descrito, mas do gesto que acaba de o inscrever», para precisar duas páginas a seguir «Bacon esvazia o acto de pintar, como quem esvazia um peixe ou uma peça de caça. A sua violência amarra-o ao presente, a sua rejeição do narrativo, da discursividade literária, esvazia imediatamente qualquer ilusão de fazer da travessia dos espelhos, uma manobra de diversão»? Também para Bacon o que importava não era o deleite mas sim o sentido da finalidade, a que ele chamava a bruta realidade dos factos e por isso nele não se interpunha um centímetro entre o que ele era e a sua obra. Dois pintores que buscam uma imagem verdadeira que não ceda às “heteronomias” do real, a um tal ponto que Pomar cita Picasso: «Se te acontecer fazeres alguma coisa que te agrade logo, apaga». (13/01/2018) As democracias apresentam-se de saúde depauperada. Numa época frenética, em que o fb e o twitter substituíram a opinião pública, neste cenário em que já nada se projecta nem se imagina – destituídos de novas configurações (políticas, mitológicas) -, apenas se reage. Ou seja, o espaço vital contrai-se. Natural que à medida que o homem se sinta acossado, controlado, domesticado, tenda a buscar situações de conflito e a guerra porque esta, intuiu bem Caillois, eclode como uma ruptura dos tabus. A guerra é a face negra da festa, a sua forma sinistra – porém aviva a ilusão de que se dilatou o espaço vital. Cumpriu-se, de novo, o Carnaval do Brasil. A direita e a esquerda fizeram uma trégua e rebolaram em comunhão as “bundas”. Veja-se: eles não perdem a primeira oportunidade para fazerem uma coisa que lhes agrada. A Veja desta semana chamava-lhe: A Ciência da Felicidade. Ou da avestruz? Num país de ilícitos e de esquemas, no qual é difícil achar a quem não enodoe a malha da corrupção, o evitamento do conflito aberto será mais prolongado, embora como dura há demasiado tempo a ruptura dos tabus (o Brasil será hoje o exemplo duma sociedade sem vergonha) uma tensão lateje. Qual será a gota de água para uma guerra declarada, a Grande Purga? Que eu não seja profeta, mas entretanto pode a língua enlouquecer de todo porque os idiomas também apodrecem e enlouquecem quando se instala a disjunção entre a realidade e o que elas denominam. O peixe já está estripado mas ninguém quer ver o fedor, antes a mentira que tal sorte, ou seja, a língua já começou a enlouquecer. Um famigerado “Bloco Porão do DOPS” – numa referência às salas onde milhares de brasileiros foram torturados durante a ditadura militar – queria sambar celebrando a ditadura e a censura. A justiça é que os travou. E explica-se uma das responsáveis pelo Bloco, Stefanny Papaiano: «A gente reconhece que houve uma repressão, mas a gente não reconhece a ditadura.» Eis a semântica atirada às urtigas. Um exemplo da loucura instalada é o esquema de cooperação que me contaram esta semana, o qual envolveria artistas plásticos moçambicanos e poetas/escritores brasileiros. Pediram a um amigo meu que ilustrasse um poema e pagaram-lhe cem dólares. Era o soneto de um amador. Telefonou-me a perguntar quem seria o ilustre poeta. Eu desconhecia, investigámos. Era um poeta ceguinho (ah Homero, tens culpa de tudo!), falecido há um lustro, xadrezista e campeão distrital, e que em anos bissextos escrevia sonetos nado-mortos que lia nas sociedades recreativas da sua rua. Para ilustrar “a sumidade” chamaram um dos melhores artistas moçambicanos. Faz sentido? Faz se suspeitarmos que o morto não reivindicará a sua parte dos direitos, a qual reverterá para alguém da organização. Pois, incautamente, uma instituição patrocinou o projecto e a sua inexistência de critérios é afinal uma adição irrelevante ao magma de heteronomias em que a cultura naufraga, exactamente porque a palavra já não faz corpo com quem a profere. Imposturas em flor.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDuas fábulas sobre lembrar e esquecer 03/02/2018 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra. Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti. A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo… Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós… A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira. Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza… Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar. 05/02/2018 Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica. Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe. Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo. Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço. Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos. O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos. Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião. Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky. O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista. De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas. Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!
António Cabrita Diários de PrósperoDescida aos infernos 1 [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo o dramaturgo ateniense Agatão, o único poder negado aos deuses é o de desfazerem o passado. Isto, coitados, são os deuses gregos. De outro expediente, insusceptivelmente eficaz, os políticos moçambicanos que fazem e desfazem o passado, à sua medida e ambição. O seu poder (é a crença instalada) sustenta-se no desiderato de apagar a memória. Tive um jantar com amigos. Alguns trabalharam em arquivos e outros fazem investigação e dependem da frequência dos arquivos. A conclusão é unânime: em Moçambique os arquivos estão mortos, arrasados por um banimento infindável. Começa pela desorganização voluntária dos serviços, no fito de servir interesses dos funcionários. Por exemplo, se os dados estatísticos mostram que naquela biblioteca ou arquivo há uma maior solicitação de determinadas publicações, de xis temas e eventos, então rapidamente desaparecem essas publicações e as páginas referenciais mais requeridas (arrancadas sem pejo), de modo a que posteriormente possam ser solicitadas “particularmente”, contra o pagamento de uma quantia. Os primeiros funcionários do Arquivo Histórico rasgavam os jornais para embrulharem o pão e o mata-bicho – delatado com vergonha pela primeira directora do Arquivo. Hoje, metade das colecções de todas as publicações foi espoliada, destruída, despedaçada. Não há modo de empreender qualquer investigação séria com balizas cronológicas: as faltas, omissões e os hiatos serão fatais. Dois terços dos livros da Biblioteca Nacional foram vendidos na rua, em duas décadas de desvios para as bancas de rua. A única colecção nacional provavelmente incólume será a do Banco de Moçambique, fechada ao público. Um dos comensais contou ter orientado uma formação para bibliotecários e arquivistas e como sete dos nove formandos escolhidos pela comunidade eram analfabetos. A sanha de vender os livros ao desbarato ou de se desfazerem do “papel” começou depois da independência, no gesto de se deitar para o lixo os arquivos das Conservatórias, como as pastas com as certidões de nascimento, “porque já não eram necessárias!”, mas estes primeiros actos de irresponsabilidade, ignorância e inconsciência, volveram depois actos de amputação voluntária ao sabor da conveniência política e estenderam-se a todos os domínios. Os arquivos de cinema não estão catalogados – ou seja: não existem -, os arquivos da televisão pública foram literalmente apagados, etc., etc. A última, contada ao jantar: há duas semanas um dos convivas quis consultar vários números da revista Tempo – um baluarte da comunicação em Moçambique, antes e após a independência – e respondeu-lhe o funcionário da instituição: o arquivo da revista Tempo foi “confiscado pela Presidência”. A tentar adivinhar, sopesar, esmiuçar o que signifique tal “confiscação” bebemos mais duas garrafas à mesa – talvez em luto. Até que alguém deixou cair: – Havia um apagamento deliberado da memória que envolvesse os portugueses e agora impõe-se outro, eles não querem que se recorde que hoje os grandes defensores do capitalismo mais cru e selvagem eram os ortodoxos líderes socialistas de antigamente… Réplica imediata de outro dos comensais, erguendo o copo numa saúde: – Ah, menos mal, se afinal é um gesto de decoro… – É o decoro de A Grande Farra… – atira um terceiro. 2 Ao arrepio do que se passa em Moçambique, a norte o desnorte ecoa o ditado apocalíptico de Baudrillard: «Hoje o meio mais seguro para neutralizar a alguém não é saber tudo sobre ele, mas sim dar-lhe os meios para ele saber tudo sobre tudo. Já não é necessária a repressão e o controlo, substituído com vantagem pela saturação da informação e da comunicação, porque o consumidor está encadeado pelo vício da pantalha. De forma mais segura será o vulgo paralisado com o excesso de informação sobre tudo (e sobre si mesmo), do que privando-o de informação». Eis o lado negro e obsceno da avalancha mediática que tem, contudo, outras virtualidades e recortes menos sombrios até porque na verdade às imagens de um espelho ninguém as consegue penhorar ou confiscar. 3 Morreu esta semana o poeta chileno Nicanor Parra, aos cento e três anos. Poeta e matemático, posicionou-se com Antipoemas (1955) como o anti-Neruda, enveredando por uma poesia discursiva e narrativa e que evita a metáfora. Cheguei ao poeta chileno por causa de uma dedicatória de Fernando Assis Pacheco, que lhe chamava «meu mestre». Nicanor – irmão da cantora Violeta Parra e do artista de circo Óscar Parra, conhecido como el Tony Canarito – foi Prémio Cervantes de 2011. Dele fiz a tradução de dúzia e meia de poemas, aqui deixo a sua VIAGEM PELO INFERNO: Numa sela de montar /fiz uma viagem pelo Inferno. //No primeiro círculo vi umas figuras/ placidamente recostadas/ a uns sacos de trigo.// No segundo círculo borboleteavam homens em bicicleta, / à rasca, sem saber onde apear-se/ – pois estavam bravas as chamas!// No terceiro círculo reparei / numa só figura humana/ que parecia hermafrodita.// Era criatura sarmentosa/ e dava de comer aos corvos. //Trotando e galopando queimei/ um intervalo de várias horas/ até ter chegado a uma cabana/ no interior de um bosque/ onde vivia uma bruxa. // Sacrista do cão,/ foi por um triz! // Já no círculo número quatro/ topei um ancião de longas barbas,/ calvo como um sandeu/ que montava um pequeno barco / no interior de uma garrafa. / Que afável o seu olhar! // No círculo número cinco vi / uns jovens estudantes jogando futebol / araucano com uma bola de trapos. / Fazia um frio de rachar. // Tive de passar a noite em claro / num cemitério, encostado/ a uma tumba / para não morrer de frio.// No dia seguinte continuei a minha viagem por uns cerros/ e vi pela primeira vez os esqueletos/ das árvores incendiadas por turistas. // Só restavam dois círculos./ No primeiro lá estava eu / sentado a uma mesa negra. / Lambuzava-me com um passarinho/ e a minha única companhia/ era um candeeiro a petróleo.// No círculo número sete não vi/ absolutamente nada, só me chegaram ruídos/ estranhos e uns risos espantosos/ enleados nuns miados, suspiros/ profundos, que perfuravam a alma.
António Cabrita Diários de PrósperoEsvaziar e Recomeçar 20/01/18 [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]i na tv a viatura capotada no Paris-Dakar e lembrei-me de vos contar: como todos os estetas, em serpenteante caravana, sempre me desejei no deserto. Em miúdo. Quando o atravessei finalmente compreendi que não é incomum desejarmos muitas coisas idiotas. Quando parámos no acampamento da tribo a quem pagámos escolta (para evitar o risco de nos assaltarem) subi uma duna na direcção contrária das tendas para urinar na encosta descendente. E metia o peru para fora – como se chama no Brasil à minha agastada salsicha – quando o meu pé encalhou nuns dedos de uma mão feminina, de corpo soterrado. Foram cinco minutos de calafrios, qual seria a atitude correcta? Voltando a subir a duna, avaliei que nos circundavam quatrocentos quilómetros de areia escaldante em todas as direcções e interiorizei que estava de passagem e que destapar o caso talvez não me fosse vantajoso. A cobardia não será um posto, mas a estupidez de protestar a nu contra kalashnikovs e jambias é igualmente um dom que não convém despertar. Desde aí que me interrogo sobre o que teria mudado na minha vida se eu tivesse feito alarde ou em que medida aquele silêncio ainda me cobra. Se na altura (em 97) eu tivesse um telemóvel que fotografasse, com essa prova talvez tivesse agido assim que chegasse à cidade. Ali entre cinquenta beduínos armados, duas dúzias de camelos, seis tendas, uma caligrafia de roupagens ao vento, e vinte turistas atarantados por terem de tomar chá com “indígenas” curtidos e de dentes verdes (por causa do qat) resguardei-me. O chá soube-me como nunca. À noite, chegados ao hotel, em Marib (perto das ruínas da cidade de onde era originária a Rainha de Saba), soubemos que numa “expedição” paralela à nossa e noutra tribo, haviam degolado um alemão que se recusara a entrar na tenda para se sentar frente a frente com os anfitriões. Fui para o quarto, enchi de água a banheira, enfiei-me no caldo e refugiei-me no livrinho do poeta franco-libanês Georges Schehadé e sobretudo nesta passagem, que repetia como se fosse um mantra: «o barulho é eterno quando lhe tocamos, quando não lhe tocamos transforma-se em vento…e passa.» E agora, na esteira de Baudelaire, contento-me em passear pelo grande deserto dos homens. 23/01/18 Releio (o notável) O Museu Imaginário e Malraux a páginas tantas deixa cair: «Baudelaire não viu as obras capitais do Greco, de Miguel Ângelo, de Massacio, de Piero della Francesca, de Grunewald, de Ticiano, de Hals – nem de Goya, apesar da Galeria d’Orleans…». Não consigo evitar um estremecimento. É brutal, sendo caso para perguntar com Malraux: «Que viu ele, afinal?». E contudo ele viu magnificamente – e sobre elas escreveu – as obras de Constantino Guys, Corot, Grandville, Daumier e de Delacroix. Foi mais ambíguo com Manet e Courbet. Mas visou quase sempre justamente, os seus escritos sobre arte ainda se lêem com agrado e proveito. E não obstante, apesar de habitar num dos pólos culturais do mundo do século XIX, Baudelaire não viu o El Greco, o Miguel Ângelo, Ticiano, ou Goya. Não viu Goya, meu Deus! Não consigo deixar de me espantar. Hoje é tudo mais simples, com a net. Ou não será? Em 2006 apresentei o meu primeiro livro em Maputo, o de um escritor-médico Aldino Muianga. E, discorrendo sobre os “efeitos de realidade” e as diversas convenções para se ler e traduzir a realidade, contei uma anedota de Picasso. Era um momento calculado de distensão. Pelo silêncio que se seguiu e a falta de reacção à graça do episódio detectei que naquela sala (recheada de médicos, escritores e intelectuais moçambicanos) o grosso das pessoas desconhecia quem seria o Picasso. Despertei nesse balde de água fria, emigrara para um país onde o Picasso era um ilustre desconhecido. E exceptuando três ou quatro nomes da pop e do cinema estou certo de que no oriente se desconhece noventa por cento dos nomes da cultura que consideramos nucleares, experiência que aliás o poeta Guillevic corrobora ao contar que numa viagem ao extremo-oriente descobriu que ao contrário do que lhe haviam feito acreditar toda a sua vida a presença da cultura francesa nesses lugares era nula, menos que residual, e muitos intelectuais orientais com quem ele comunicou não estavam certos de saber apontar a França no mapa. Portanto, temos aqui duas situações, primeiro o que a Baudelaire não foi dado ou permitido ver, apesar da sua curiosidade e do seu interesse pela área, e depois o que noutras zonas do planeta, dispensado o suposto universalismo euro centrista, é considerado prioritário para a formação humana e cultural, em absoluta incoincidência com o nosso repertório de valores. Ao que se junta uma condição antropológica: só vemos aquilo que compreendemos; o que nos faz estar cegos a tantas manifestações que nos são contemporâneas. O que Baudelaire não viu não retira entretanto a propriedade e a pertinência ao quanto escreveu. A informação foi-lhe menos vital que a sua capacidade de reflexão e para escavar no que pôde ver. Ter visto Goya só confirmaria o que ele intuiu. O que me leva a concordar com o escultor Rui Chafes: existe uma arte horizontal que investe nos inputs do exterior e que se limita a fazer remix, um jogo combinatório, a partir da informação recolhida; e uma arte vertical, que procede à espeleologia dos interiores. E precisa: «Há artistas que trabalham de dentro para fora, há artistas que trabalham de fora para dentro. Os primeiros trazem um imenso mundo dentro de si na necessidade imparável e na urgência de o trazer par fora; os outros limitam-se a recolher os elementos do mundo e a reorganizá-los à sua maneira. Só podemos oferecer o que nos cabe na mão». Enfim, aos cinquenta e nove, constatando que por muito que vasculhe é inevitável que um qualquer (imenso) Goya me vai escapar só me resta escavar no muito que não sei, para bater em castelo essas trevas. Ou seja, esvaziar e recomeçar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDos importúnios e dos meus engates [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a mesa ao lado da minha, contava um amigo a outro sobre o seu pai camponês que este lhe confidenciara no leito de morte que lastimava não ter conseguido apurar se a galinha quando põe o ovo, fica com aquilo a arder. E dizia-o, pesaroso (o pai), acentuava (o filho), com pena da galinha. Ouvir isto a meio de um gole de cerveja atrapalha-nos, incapazes de ajuizar se cuspimos a cerveja pelo nariz, de riso ou de estupefacção. Isto sim, são problemas. Talvez, sedando a galinha diariamente, ela não sinta e a postura fique indemne, ocorre-nos. Brinco, mas quando em 1988 fiz a minha primeira crónica, para a Elle portuguesa, ela versava sobre a maravilha que é a epidural. Em miúdo estarreceu-me a energia, a resistência à dor, da protagonista de A Mãe da Pearl Buck: a camponesa afastou-se das companheiras que consigo se afadigavam na monda do arroz e refugiou-se num barraco para dar à luz. Quarenta minutos depois, enfaixado o bebé contra si, voltou ao trabalho para catar as ervas maninhas. Nunca mais vi esta “facilidade” narrada e pelo contrário muitas amigas me falavam do seu pavor, da violência da dor e dos traumas pós-traumáticos. Por isso quando chegou a ocasião de ter um filho optámos pela epidural. E a experiência superou todas as espectativas. A mãe das minhas filhas mais velhas (podem perguntar-lhe, ela gosta de contar), literalmente, durante o parto recordava-me situações e piadas dos irmãos Marx, ao mesmo tempo que em sentindo as contracções fazia força para expelir o bebé. Estava eu mais atrapalhado. Eu vi, com estes que a terra há-de comer, etc. Por isso quando ouço injúrias ou discursos catastrofistas sobre a técnica e o mundo de hoje não consigo comungar e lembro-me sempre daquele parto e doravante lembrar-me-ei deste camponês que lastimava que aquilo das galinhas fique eventualmente assado, porque ambas as coisas significam conquistas, quer de sensibilidade humana e social quer de evolução científica que são muito positivas e irrenunciáveis. E esta consequência em extremo de um acto de sedução (não é líquido e nem sempre desejável que uma “conquista amorosa” acabe em parto) transporta-me ao tema destas últimas semanas, o de se os homens podem ou devem “importunar” as mulheres. Desconfio que este verbo da Deneuve foi usado de forma irónica, pelo que alvitro ter-se feito uma tempestade num copo de água. Fui sempre um péssimo importunador. Um sedutor trapalhão; da ala Woody Allen. Quem leu o meu conto O Beijo no Arame, do livro Éter (Abysmo, 2015), onde em 60 páginas discorro sobre a agónica epopeia que foi o meu primeiro beijo, imaginará que fantasiei muito. Não é verdade, quase não precisei de inventar. E só aí à décima terceira namorada (depois de desperdiçar doze) é que consegui dar o primeiro beijo. Ou melhor: que alguém mo deu, abençoada importunadora. Na minha imprestável vidinha só caíram na minha teia de importunador as que achavam graça à minha trapalhice, apesar da trapalhice. Aselhices à parte – e injustiças, quantas me deram tampa injustamente, oh la la! Deviam ser sujeitas ao foro criminal, as mulheres que se negam para deliberadamente praticarem actos de injustiça! – concebo o jogo da sedução como um consentimento o mais mútuo possível. O desejo não deve ser extorquido (a sê-lo que seja no sentido de uma reminiscência que em si mesmo desperta), ou, antes, não deve ser efeito de uma manipulação. Mesmo no engate, aposto na lealdade. Embora a minha técnica esteja sempre a engasgar-me, começo sempre por dizer a verdade: sou casado e amo a minha mulher. Facto é que o bonito na valsa do desejo – enfim, o que me foi dado experimentar – é que nela se revertem, anulam e liquidificam as querelas e as quimeras do poder. Impõe-se uma simetria na relação. Foi o que exigiu a Lillith a Adão, no leito, segundo as tradições rabínicas. Porque é que havia ele de estar sempre em cima dela, numa posição dominadora? (- embora, eu não tenha a certeza de que quem está por baixo não possa, eventualmente, dominar, admitamos que sim, que na generalidade…). O labrego não entendeu nada e preferiu sonhar com uma Eva submissa. Se se tem poder e se quer obter uma vantagem sexual por via disso, suspeito que isso não será mais do que o sintoma de uma patologia. À partida aquele coito terá o furor de um prego na neve, não existirá relação. Contudo, suspeito de uma histeria colectiva no caso daquelas actrizes que agora anunciam que não trabalharão mais com o Woody Allen. Foram duas, no espaço de uma semana. Previno já que me dou como culpado de inúmeras perversões. Lembrando que no espaço da confissão católica em que cresci pecados são tanto aqueles que foram cometidos como os que se quedaram na intenção, sei-me culpado de uma série de abusos maiores e menores. Uma vez virei a Dominique Sanda, nua, em cima de uma tábua de engomar e espreitei-lhe com uma lupa as trompas do Falópio. Tive essa intenção declarada. De outra vez lambi as orelhas da Debra Winger durante uma noite inteira até ela desmaiar de fadiga. A Deneuve nunca me atraiu – mas imaginei pôr dois caracóis a subir o dorso prateado da Sylvia Kristel, que estava de gatas, e muito atenta à minha leitura de Sodoma & Gomorra. Confesso que eu nem sequer me dei ao trabalho de as seduzir, embora tivesse tido essa intenção. Juro. Tudo isto é uma trapalhada, ou como me perguntava um amigo: Fiz anos e a minha mulher não se lembrou – está a pedir que a seduza? É tudo relativo, pá, respondi-lhe. Mas em mulher que não queira ser tocada não se toca.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA Beleza Alheia [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início do século, comprei o livro nuns saldos da Livraria Buchholz, em Lisboa: Dans une autre beauté, de Adam Zagajewski. Custou-me cinco euros. Li-o de rajada e, encantado, falei dele aos amigos. Em vão, ninguém dava um tostão furado por outro polaco. A tolerância para os eslavos esgotava-se em três nomes: o Milosz, para alguns demasiado católico (uma barbaridade), o Herbert (que sofria de um excesso de racionalidade, outra idiotia) e a Szymborska (quase extraordinária, não fora ser mulher). E em me sendo perguntado o que acrescentaria o Zagajeswski, respondi, secamente, “bom, na verdade, tem os defeitos dos outros, além dos próprios…”. Fiquei sozinho com a minha descoberta, na altura desconhecia que a Susan Sontag e o Brodsky escreveram maravilhas sobre o livro. Calhou-me ir a Paris meses depois. Aí comprei o Mystique Pour Débutants, do Zagajewiski, tão delicioso como o título. Quis editá-lo na extinta Íman Edições, mas fali nas vésperas do “grande negócio” – sem desdouro embora igualmente sem glória. Neste ínterim o prestígio do Zagajewski subiu em flecha e hoje é o santo e a senha da actual literatura polaca. Tendo finalmente saído dele uma antologia portuguesa, Sombra de Sombras, na Tinta da China (2017). Não me vou ocupar da antologia portuguesa (oportuna e bem feita), mas antes discorrer sobre Dans une autre beauté – um sortido muito equilibrado de notas diarísticas, de livro de memórias, de caderno de pequenos ensaios e de aforismos -, cuja ideia matriz se vislumbra no poema que cito, incluído na antologia portuguesa: NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.» Contra a paranóia sartreana (“o inferno são os outros”), ao arrepio da mediocridade do regime político de tipo soviético em que cresceu e pelo qual se sentiu espoliado quer de “acessos directos à beleza criada pela tradição humanista”, quer “da evidência da verdade” – marcas de sensibilidade a que o regime contrapôs o dogma, a venalidade e a consequente corrupção do gosto em nome de uma estética sob programa -, Zagajewski viu na “beleza alheia” a evasão e um factor de contágio que excede em muito o campo da estética. Posto a beleza ser a lente que potencia a transmutação do olhar e abre, nos termos que o poeta usa, a passagem da solidão ao solidário. Ao transformar-nos, a beleza incita a apurar as miras da Verdade enquanto nos empurra para a consciência de que vivemos num tecido de «intertextualidades», face a cuja matéria nos situamos como um elo. O resgate da beleza propende-nos a uma maior humildade (galvanizada na contemplação e no estudo) e converte-nos em membros de uma comunidade – a dos receptores da obra de arte – que mantém a consciência de que uns poemas remetem, de algum modo, para outros poemas, umas canções remetem para outras, sucedendo o mesmo na pintura: isto faz da fecundidade da tradição uma eterna fénix. Ou seja, só quando nos convertemos em guardiões de uma tradição – a beleza alheia – é que nos alçamos a um patamar de fidelidade que, de modo a renovar-se a combustão que mudará a pele à fénix (e isto não é paradoxal mas complementar), exigirá ao autor o salutar cultivo da ironia e da crítica. Não existe assim tradição sem crítica e ironia e vice-versa. Embora nada disto dispense o fervor: um entusiasmo que nos impele. Eis o núcleo da «cosmovisão» zagajewskiana: uma pequena revolução ao jeito de uma conversa amena e passo a passo. E que não pode prescindir de qualquer detalhe da memória nem da tradição clássica. Um aspecto se abre aqui, de responsabilidade social: se cada um de nós se sentisse de facto o guardião de uma beleza não própria mas alheia, talvez esse peso não nos deixasse ceder à trivialidade e nos tornássemos criaturas de outra substância moral. Isto podia de facto ser o fundamento de uma ética, creio. O que não adivinhava e só agora me dei conta é que já tinha traduzido esta ideia em 95 numa narrativa, em As Cinzas de Maria Callas (Teorema, 97), um livro em que atesto os engulhos de ser pobre e de crescer na periferia de Lisboa antes do 25 de Abril (- tema que nos últimos anos se tornou moda). Aí narro um encontro meu com um homem mais velho do meu bairro, peão de um obscurantíssimo passado. Aterrando nos princípios de setenta naquele rincão pobre, como um antigo emigras nas Américas, gabava-se de uma paragem na Argentina, onde teria sido amigo do Onassis, e doutra, breve, em Hollywood, tendo no entanto acabado a sua malograda carreira de actor como a voz do Mister Ed, o cavalo que falava. Um dia o Arquimedes chamou-me ao seu anexo para, do nada, me emprestar um livro do Cesariny e me fazer ouvir ópera. Naquele tugúrio a que não faltava o bolor acontece a transmissão fatal: lega-me uma pequena urna onde jurava assentarem as cinzas de Maria Callas, das quais me tornava guardião. Eu tinha doze anos e aquela responsabilidade pesava-me e levou-me ao gesto insólito de, durante três anos, pedir aos meus pais como prendas de anos e Natal discos da Maria Callas. Veio o 25 de Abril e poucos meses depois a Maria Callas foi cantar ao Coliseu de Lisboa. Afinal fora enganado. Mas já estava mortalmente infectado pela diferença que era, contra todo o condicionamento da minha condição social, ser um apaixonado pela ópera e pela estranheza da dicção do Cesariny. Creio que não me acomodei como fiel de armazém devido ao deslumbre face à beleza alheia.