Exílios & Insílios

26/07/20

[dropcap]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; é lá a sua pátria, onde não é profeta», cunhou Blanchot em L’Écriture du désastre. Eu sublinharia: onde precisamente não é profeta. Pelo que exilados seremos todos, desde que comandados pelo devaneio e por esse incessante ofuscamento de uma cicatriz na luz. Há vezes que dolorosa, de outras encontrando uma fraternidade na fuga. Talvez seja isto a escrita: uma fraternidade na fuga. Mas há exílios e exílios.

Também o Ovídio, exilado em Tomis (na foz do Danúbio), encontrava um remédio para o seu mal-estar no sonambulismo da escrita. Trôpega, havia perdido o seu auditório e os Getas, junto dos quais estava exilado, não o compreendiam; ao cabo de uns anos sentiu que lhe encalhava o navio na língua, perdia a linguagem, secando-se-lhe a veia poética.

Os seus poucos correspondentes suspeitavam que ele exagerava nas suas lamúrias. Quando se está longe e isolado, é difícil explicar que a distância amplifica o silêncio e vai tornando irreais, migratórios, até os espaços físicos onde exercitamos a nossa ausência. A terra estrangeira, perguntava-se Robert Bolano, é ela uma realidade objectiva, geográfica, ou é antes de mais uma construção mental em movimento perpétuo?
E no entanto, soube-o Segalen como ninguém, a nossa personalidade alimenta-se de tudo o que é o seu antípoda: «É pela Diferença, e no seio do Diverso que se exalta a existência». É bem verdade, e senti que isso actuou em mim como um anzol que foi ao fundo de mim repescar a maiêutica. Contudo, que cansaço.

Neste meu afastamento intermitente tive o tempo e a oportunidade de ler textos magníficos sobre o exílio, o ensaio de Linda Lê, as observações de Edward Said, os Diários de Gombrowicz, o texto laminar de Joseph Brodsky, donde tiro este excerto certeiro:

«(…) se há algo de bom no exílio, é o facto de ensinar a humildade (…) o exílio é a lição suprema dessa virtude. E isso é especialmente precioso para um escritor porque lhe dá a perspectiva mais ampla possível.

“E avanças em humanidade”, como disse Keats. Perder-se na humanidade, na multidão – multidão? – entre bilhões; tornar-se uma agulha naquele famoso palheiro – mas uma agulha que é procurada por alguém: é disso que se trata quando falamos de exílio. (…) Mede-te não por teus pares escritores, mas pela infinidade humana: é quase tão terrível quanto a inumana. É a partir daí que deves falar e não a partir da tua inveja ou ambição.»

Chegaram-me estas notas por causa do livro que descobri hoje que o meu amigo Nazir Can havia lançado no Brasil sobre a literatura moçambicana e que se chama: O campo literário moçambicano: tradução do espaço e formas de insílio (Kapulana, 2020). Fiquei preso ao substantivo «insílio», cujo significado me instigava e resolvi averiguar, tendo descoberto que ganhou a armadura de um conceito muito explorado nos ensaios do sul-americano Mario Benedetti para identificar “a condição dos cidadãos que foram forçados por poderes coactivos a adotar uma atitude passiva e uma semi-impotência que os destitui de sua autonomia moral e de sua iniciativa psicológica”.

Para ter chamado a palavra à capa é porque Nazir encontrou em muitos textos essa característica, ao ponto de a desenvolver como chave e parece-me ser um achado para traduzir o indisfarçável mal-estar de grande parte da intelectualidade moçambicana, tal como aliás “a curiosa nostalgia do exílio em plena pátria” (Benedetti), muito presente no impasse que muito para além do Covid se faz sentir no quotidiano do país.

Nós não nos libertamos de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau, dizia Mark Twain – e poderíamos citar um hábito como o medo.

Sem o ter lido, conhecendo-lhe a inteligência e a capacidade de análise suspeito que este livro estará para Moçambique como Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, esteve para Portugal, e espero que o livro se possa comprar em Maputo.

27/07/2000

A caixa com livros estava na varanda. Abria-a e o livro que estava por cima era A Festa de Babete, de Karen Blixen. Estava o frescor que acaricia as têmporas e lhes dá a agudez da atenção. Resolvi ler finalmente a História Imortal, por causa do Orson Welles (filme que nunca vi). Fui ao guarda-fato vestir um blusão e sentei-me na varanda a ler a pequena novela. Foi como visitar uma casa mobilada com biombos que o vento vai trocando de lugar. Depois disto só um iogurte de cerejas, coisa impossível de arranjar por estas bandas. Absolutamente devastador…

28/07/20

A cultura de massas é o resultado de uma arte combinatória de tudo o que já foi assimilado. As belíssimas orquestrações das canções dos Beatles ou do Elton John, em termos de linguagem da música, mais não fazem do que usar os padrões musicais conquistados pelos movimentos musicais do século XIX. Tiveram sucesso popular, depois de um século de acomodação a essa sensibilidade musical. Parecem agora simples: houve uma educação do gosto e da sensibilidade. Quem lembra hoje as resistências suscitadas pelas dissonâncias que o jazz introduzia na música?

Isto em si é normal. Grave é que para um filho da cultura de massas não exista o mundo antes de si, a memória da tradição cultural, e o presente não passe do pomar onde supostamente colhe os lucros. Daí que um destituído como Bolsonaro consiga ser presidente e possa dizer sem ser imediatamente electrocutado por raio divino que criar uma lei de combate às fake news é uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, por não entender que a liberdade não existe em abstracto e está irmanada com a responsabilidade. Não é sequer perversão ou maldade, ele não entende mesmo. Esta incapacidade de discernimento é comum a quem teve uma exclusiva educação ancorada nos “valores” da sociedade de massas, onde até o capital se converteu, antes de mais, “numa estética mercantilizada” que fez naufragar tudo numa terrível, irrevogável, indistinção.

30 Jul 2020

As duas cabeças

21/07/20

[dropcap]N[/dropcap]o Jardim Zoológico de San Diego, na Califórnia, vê-se algo bastante raro embora não excepcional: cobras do deserto californiano que, devido a algum tipo de acidente genético, têm duas cabeças. O que complica a vida a este corpo com duas cabeças é que são duas vontades, dois sujeitos, do ponto de vista cerebral. E podem morrer por causa disso: cada cabeça busca comida de seu lado; quando uma encontra comida, a outra desvia-a na direcção que prefere e assim essas pobres cobras de duas cabeças dificilmente se conseguem alimentar, apenas em zoológicos. Vemos, então, que o princípio da exclusão funciona mesmo entre duas cabeças-de-cobra que têm o mesmo corpo.

Associo isto às culturas nas sociedades pós-coloniais. As supostas remanescências da cultura colonial e a suposta e “restituída” cultura de origem são duas cabeças que se recusam a perceber que hoje vivem num mesmo corpo híbrido e as duas cabeças em vez de conjugar esforços para se conseguirem alimentar combatem-se e morrem à fome. O resultado dá a soma resto zero do princípio da exclusão!

Já, Heinz von Foerster, um dos pais da cibernética, apontava há cinquenta anos, o grande paradoxo da auto-organização dos sistemas. E explicava que se obviamente a auto-organização significa autonomia, por outro lado um sistema auto-organizado é um sistema que tem de aplicar-se para construir e reconstruir a sua autonomia e, portanto, nesse esforço desperdiça energia. Ou seja, fica sujeito à entropia, à dissipação da força que o mantinha regulado, coeso. Para recuperar o equilíbrio que lhe permite a sobrevivência a única hipótese é esse sistema captar energia de fora, ou seja, observava Von Foerster qualquer sistema para ser autónomo, acaba por estar dependente do mundo que lhe é exterior. E essa dependência não será apenas energética, mas também informativa, porque todo o organismo vivo extrai informações do mundo exterior, a fim de organizar o seu comportamento.

Este modelo não é nada dissemelhante ao que se passa com as culturas e as identidades. Nós somos alguma coisa por referência a outras que nos estão enganchadas, embora fora de nós, a identidade é um valor no processo de diferenciação que distingue o significado de “ser africano” do significado de “ser europeu”, tal como a palavra se engancha no silêncio.

Sou pela defesa do incremento das línguas-mãe em Moçambique, pelo resguardo da sua dignidade edificando uma literatura nessas línguas, porque as línguas transportam consigo sensibilidades únicas; contudo, creio igualmente que o português é um ganho irrenunciável e que as culturas não são bolhas estanques, ilhas. Ou seremos ilhas mas em arquipélago, organizado num sistema de mútua influência e em perpétua re-combinação. Não existe o branco, o preto, o azul, existe a crioulagem, tal como se aprende na física das cores, tal como ensina o filósofo Edouard Glissant.

Nesta discussão, infinita, sobre a questão das identidades tenho a maior dificuldade em perceber as posturas extremadas. Que alguém se reivindique exclusivamente bantu, a partir dos instrumentos e das categorias que lhe foram dados por uma educação de influência ocidental e vice-versa, que um europeu não seja sensível a aspectos da cultura africana que o podem enriquecer.

E fico sempre um pouco incomodado no momento obnóxio em que alguém desata a falar em nome da ancestralidade. Não é invulgar que desse fundo mágico que o romântico Herder emprestou aos imaginários colectivos emerja uma vontade de nos alhearmos daquilo a que Stendhal chamava a “força moral”, a coragem de pensar por si próprio – posto que na verdade cada homem está sozinho na História.

Na próxima vez que participar de um debate destes já sei que argumentos usar contra o “abuso dos ancestrais”.

22/07/20

Uma observação de José Navarro de Andrade no Facebook leva-me a rever alguns filmes do Preston Sturges, e sobretudo essa comédia extraordinária The Palm Beach Story (1942)/ Uma Mulher de Verdade, com a Claudette Colbert.

Uma das coisas mais difíceis de trabalhar com alunos de guionismo é os diálogos, um dos territórios mais áridos nas artes narrativas. Conheço óptimos escritores que não atinam com os diálogos e são realmente raros os filmes (dois, três, ao ano) em que os diálogos sejam primorosos. A maior parte das vezes os diálogos apenas ilustram a acção, não estabelecem uma dialéctica com ela (quando muito cumprem a função de revelarem a parte emocional das personagens) nem montam uma rede comunicacional que é por si só um outro espectáculo porque dispara os níveis de significação e de subentendidos. Um bom diálogo vira o contexto de pantanas, serve a trama para a desviar. Billy Wilder era um mestre nisso. Constato agora que o Preston Sturges – de que só tinha visto dois ou três filmes há 30, 40 anos, na pouca assiduidade com que frequentava a Cinemateca – é absolutamente outra referência a seguir. De ontem para hoje vi três filmes dele e agora terei de farejar nos filmes em que ele só fez os diálogos.

The Palm Beach Story é uma festa, sobretudo pela personagem feminina, uma «mulher prática» de todo desassombrada e que, sabendo ser leal, à hipocrisia dos costumes diz nada e faz o que tem a fazer. Sturges, revolucionou a screwball comedy (a comédia de situações inconvencionais) porque a doseou com as técnicas de “marivaudage” (que tira todos o proveito do jogo das máscaras e da mentira) e é o exemplo de como uma enorme massa de diálogos num guião – se maduros e acutilantes (a dificuldade de explicar isto aos realizadores) não impede que a narrativa tenha um bom ritmo – só depende do pico dos actores e do “factor de improbabilidade à pele” das situaões. E digo-vos, o final do filme é tão trepidante e surpreendente como o de Quanto mais Quente Melhor, do Billy Wilder, pois socorre-se da técnica do “deus ex-machina” com uma eficácia (louca) que se impõe como necessária. Um filme imperdível. Há uma cópia menos má, legendada em português, no Youtube.

23 Jul 2020

O jogo das energias

11/06/2020

[dropcap]L[/dropcap]eio em Agamben: «Se a criação fosse apenas potência-de-, que não pode senão resvalar cegamente para o acto, a arte decairia para a execução (…) Contrariando um equívoco disseminado, maestria não é perfeição formal, mas, exatamente ao contrário, é conservação da potência no acto, salvação da imperfeição na forma perfeita.», e só posso concordar.

O que fatalmente me leva àquela sequência maravilhosa em O Barbeiro dos irmãos Cohen, na qual  Ed Crane/ Billy Bob Thornton (o mais taciturno e melancólico barbeiro de que há memória), leva a filha do amigo com quem todas as noites bebe o seu digestivo ao conservatório duma cidade vizinha, para uma audição relacionada com a vaga de um pianista numa orquestra. Há muito que ouvia todas as noites a miúda martelar no piano e achava-a um prodígio. O maestro recebe-os e vai com ela para a auditório enquanto Ed Crane fica à espera. Passado meia hora, o maestro vem “devolvê-la” e amavelmente despede-se sem mais uma palavra.

O barbeiro é que insiste numa justificação para o malogro. E então diz-lhe o maestro: “Não há nada de errado com ela, toca tudo com grande habilidade, as notas todas que estão na pauta e no tempo devido… será uma óptima dactilógrafa”.

Na recente variação em torno do mito do Fausto que Maria João Cantinho cunhou no seu romance As Asas de Saturno, há uma discussão entre o jovem compositor Florimundo e o seu dilecto intérprete e amigo, Pedro, o jovem pianista que se suicidará, e nessa acesa troca de ideias o compositor refere que “sempre perseguiu a perfeição mas nunca o mal…” O problema é talvez ambos estejam inextricavelmente ligados e que o que mais importa na arte seja abrir um novo poro na respiração, o jogo das energias, em vez da obsessão de exaurir as formas na sua abstracta auto-suficiência.

13/06/2020

Vou finalmente editar, em setembro, um ensaio que fiz sobre o Bocage, para prefácio de uma edição que se malogrou. Nele falo de outro projecto na gaveta, uma das miragens que me anima. É assim:
«Na sinopse que uma vez esbocei para uma fantasiada biografia de Bocage, quando este deserta de Damão e está desaparecido uns tempos, antes de reaparecer em Macau, o poeta desembarcava no Japão, numa flotilha holandesa.

E o capitão, já vezeiro nestas paragens e um amante da arte da vida, leva-o a Edo (como antes se chamava a Tóquio), aonde o apresenta a duas maravilhas: a Yoshiwara, o “palácio” das cortesãs, e a Hokusai.

A inteligência, a cultura e a delicadeza das gueixas cativam-no mas o que para ele constitui uma revelação abissal é o espírito absolutamente materialista do artista japonês. Por materialista entenda-se um homem até permeável a superstições momentâneas e capaz de fazer do tema dos “fantasmas” um género, mas de personalidade incapaz de sucumbir, estruturalmente, à credulidade e aos mitos – o homem para quem o plano da imanência e da reflexão estriam o empírico.

Diga-se que neste livro hipotético, que hiberna, o Bocage era cruzado com três outros espíritos seus contemporâneos, o William Blake, o Goya e o Hokusai. Os criadores aqui convocados têm em comum com Bocage (e igualmente com Pessoa) aquilo que Kenneth White anotou para o japonês:

“É preciso tempo para que uma tal obra encontre a sua constelação. Juntemos a isto o facto de que se tem sempre tendência a pensar em termos de categorias, de procedimentos, de identidades. Ora, ninguém melhor que Hokusai ilustra o princípio segundo o qual, em arte, o que conta não é uma identidade mas o jogo das energias” (sublinhado meu).

Através do especial atrito que experimentou cada um destes criadores com a sua sociedade e época, e situando-o numa “constelação”, eu intentaria perceber melhor a inserção e os problemas de Bocage com o tempo que lhe coube viver, e medir, face à comparação com os outros, a extensão da sua originalidade.

Um, Blake, representava o tipo de homem que inventa os seus próprios mitos e exulta a sua sexualidade, chocando os costumes, outro, a tragédia duma dessintonia com a sua época, ou a consciência da mudez com que os abismos interiores devoram no homem a sua facúndia social e a alacridade dos sentidos; Hokusai era o encontro com alguém com os pés fincados na terra e que abraça as rugosidades do real, as suas minudências. Os outros dois seriam ainda homens do seu século, embora (como Bocage) já virados para a propulsão romântica, Hokusai seria o encontro que lhe enxugaria a cabeça de alucinações, colocando-o face aos sortilégios de um “realismo” que não tinha par em Portugal, impraticável mesmo.

Não esqueçamos que, se o mestre da Manga japonesa, ficou orfão como Bocage muito cedo, foi adoptado aos 4 anos por Nakajina Ise, um fabricante de espelhos para a corte do shogun.

Porque esse me parece o percurso de Bocage: o sadino perfaz a parábola que partiu duma sôfrega entronização nos mitos (a credulidade do jovem Bocage lembra-nos a gravura de Hokuasi onde se figura A Aranha que Incuba os Crânios) para desembocar numa inversão das perspectivas e num despojamento em relação a todas as gorduras da crença dos fundamentos do que a partir do século XIX se chamaria a ideologia.

O homem que regressa do Oriente é já um homem em redução fenomenológica, que despiu o olhar do que queria ver e que passou a ver apenas o que lá está, quase um céptico, apesar de jovem. Usando de novo um título de uma gravura de Hokusai, Bocage deixou de ser O Guerreiro que Engoliu uma Vaga, para ser um surfista.

Calcule-se o choque, a iluminação de Bocage, ao ser-lhe mostrado o manuscrito de Kinoe-no-Komatsu e deparar com uma mulher a ser desfrutada sexualmente por um polvo: no livro que abandonei.”

16 Jul 2020

Deslizes civilizacionais

[dropcap]A[/dropcap] forma trivial como Bolsonaro nomeia ministros tornou-se tão deslustrosa que hoje ninguém arrisca “credibilizar” a pasta da Cultura. O que já fora comentado, ironicamente, por Drummond de Andrade, numa crónica. É no livro De Notícias e Não-notícias faz-se a Crônica, num precioso microconto: « — Esse vai ser ministro, sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu. — E você, com esse ordenado micho de servente, tem lá poder pra fazer nosso filho ministro?, duvidou a mãe.» No baptizado, ao enunciar o nome do filho, o personagem de Drummond proclamou: «— Ministro. — Como?, estranhou o padre. — Ministro, sim senhor, teimou o pai, irredutível. A mulher ainda tentou corrigir: — Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente combinou?». Melhor, é impossível.

O que era afinal a civilização democrático-liberal? A elegância, a leveza, a dignidade que nos eram consentidas no fluxo do quotidiano e o sentimento de que as instituições funcionavam capazmente (i.é, sujeitas a erros e acertos periódicos) na regulação social; tendo como base valores éticos que protegiam um sentimento de pertença comum.

O que se conseguiu à custa da clivagem entre narrativas civilizacionais ou até de guerras e obrigou a novas formas de gerir o conflito e as mediações humanas, tendo mudado inclusive o estatuto das ficções, crescentemento palco de simulações das dinâmicas sociais. Isso mexeu com as próprias formas criativas, deu-lhes pano de fundo, mercados, complexidade, subtileza – refinou-lhe os processos.

Vou dar um exemplo extraído de um filme que se encontra no Youtube. Trata-se de Youngs Lions, de Edward Dmytryk, de 1959; conta a história de três tipos: um tenente alemão gradualmente céptico com a razão da guerra e dois americanos que vão servir no exército a contragosto (um cantor da Broadway e um rapaz pobre de origem judaica). O enredo entrecruza os variados pontos de vista acerca do conflito e os elos humanos que nutrem os dois lados da batalha.

Marlon Brando é Cristhian, da Baviera, instrutor de esqui, que será um tenente do exército incomodado com a nazificação do espírito alemão. Mandado para Paris, enfiaram-no na Gestapo, com cujos métodos discorda, e pede uma licença ao seu capitão para ir a Berlim. Este, que vê nele um bom militar a quem só falta obedecer sem se interrogar, pede-lhe que entregue uma mantilha de renda preta que comprou à sua mulher e lhe “transmita o seu afecto e como pensa nela constantemente”.

Cristhian faz a visita à esposa do capitão. Esta, de uma beleza e sensualidade ímpares, está de saída (vai encontrar-se com um general), mas sugere que a aguarde “pois quer falar com ele sobre o capitão”. Ele fica por deferência, dir-se-ia que o seu gesto se entroniza na aprendizagem da obediência que o capitão lhe quer incutir. Ela volta de madrugada e acorda-o com suavidade. Ele quer compor-se, julga-se numa postura imprópria em casa alheia, mas ela mete-o à vontade e inverte os papéis, perguntando-lhe “se ele não lhe oferece uma bebida”.

Depois, en passant, ele queixa-se de não ser soldado e de ter sido posto na polícia (nesta fala abre-se uma ética) e ela confia-lhe que pode mexer os cordéis para o transferirem. Como? Ela, despindo-se, insinua, “com esforço…”. Cristhian compreende que é uma questão de troca de “esforços” e, fiel à transmissão de afecto que lhe pediram que fizesse, satisfá-la sexualmente com uma obediência cega ao acto.

O jogo destes matizes subtende uma ironia subtil, feroz, inteligentíssima: a cena vale o filme.

À frente, uma segunda cena entre os dois dá-nos a chave do “ethos” de Cristhian.
Fim da guerra. Cristhian, que vira o capitão em péssimo estado no hospital, volta a visitar-lhe a esposa. A casa está arruinada e a rua derruida, sob efeito dos bombardeios. Ela fala-lhe friamente da morte do marido, que entretanto se suicidou. Não se mostra alterada e atira-se de novo a ele. Ante as suas reticências, ela pede-lhe para ser “realista”. Cristhian percebe: o que antes se lhe afigurava uma marca de liberdade afinal não passa de um expediente de sobrevivência a todo o transe – mete-lhe agora repulsa a beleza dela, afinal um signo do degradado vaivém dos afectos com que o sistema corrompeu o espírito alemão e lhe ditou a crueldade. A corrupção, percebe aí Cristhian, começa na forma como cedemos aos apetites, lhes obedecemos – paradoxal caminho da derrota. Rejeita-a, e nesse gesto repele a sua anterior cumplicidade com a abjecção.

Nas duas cenas, através das peripécias da intimidade, transparece o arco e o declínio de uma postura civilizacional e por isso são magníficas – embora sejam ideias de argumento que Dmytryk se limita a ilustrar.
Contudo, para se conseguir esta complexidade das personagens, esta filigrana que oferece vários níveis de leitura para as situações dramáticas e o implícito que abre chaves no jogo psicológico foi preciso uma tradição narrativa que levou séculos a apurar-se e que supunha um modo fecundo de relacionamento com o que seja a inteligência e o modus operandi da criativa ociosidade burguesa.

O que está colocado em causa nesta época sombria. Estamos de novo na temperatura civilizacional de onde emerge a mediocridade e a confusão de valores que levou Cristhian a equivocar-se em todas as escolhas políticas. Como acontece ciclicamente, acomodamo-nos à patética fase de exibição narcísica em que não nos rala ficarmos mais tolos, egoístas, e naufragados na iliteracia. Escuda-nos a ilusão de que tudo tem um preço: primeiro efeito do triunfo niilista. A vaga anti-intelectual que sacode os orgãos de comunicação ajusta-se.

Trump, que ridiculamente se diz o novo guardião do Cristo Redentor, ao “nacionalizar” as vacinas para o Covid-19 esvazia com isso os valores cristãos que protegiam a validade de uma pertença comum. A contradição não lhe importa, Trump, num lance de poder travestido de nacionalismo espera ter corrompido a vontade dos votos. Assim começam os fascismos.

9 Jul 2020

No outro lado do espelho

[dropcap]É[/dropcap] notícia dos últimos dias, nos jornais e na televisão. O título é invariavel: Em Maputo, bebé nasce sem ânus. Irresistível chamada; lida a notícia vemos que há uma imprecisão na parangona, a desembocadura do intestino existe, houve apenas um desvio de rumo e o dito cujo “floresceu” no abdómen.

Não consegui apurar onde, excita-me a ideia de que se localize no umbigo, seria de uma ironia insolúvel, mas o que interessa ressaltar é a dificuldade de nomear o que é.

A coisa até me diverte, embora às vezes me enfureça.
Pergunto ao gabiru:
Brada, a loja das fotocópias?
Pai, está a ver o restaurante chinês, ali na esquina?
Restaurante chinês? — Eu fartinho de saber que é um restaurante português e ele, que trabalha a vinte metros devia saber igualmente. Mas repete — O restaurante chinês, da esquina…
Para quê contrariá-lo?

Sim, pai, a tabacaria é ao lado…
Encaminho-me na direcção do dito restaurante, chinês do Minho.

Na estante atrás do balcão, na tabacaria, dispõem-se várias caixas com canetas, de variegadas marcas, feitio e cor. Contudo, a prateleira só exibe um preço marcado, sob a caixa que arruma as esferográficas vermelhas. Gosto das vermelhas e do preço, 15 meticais, mas prefiro outras que estão ao lado. Pego em duas e nas fotocópias e proponho-me pagar. E diz-me a dona:

São 395 meticais.
Engasgo-me:

Como, se as fotocópias são 15 e as canetas 30?
Não…- Esclarece pronta — As de 15, são só as vermelhas… estas, são 190 cada…
– Ah, bom não se adivinhava. Dado que só tem marcado um preço por prateleira…
– É para facilitar…

Não facilita e gaguejo, face àquela lógica invertida ou manca de rigor; envergonhado:
– Nesse caso levo uma vermelha…

Esta característica de uma outra orientação na ordem das coisas também às vezes a encontro em casa. Pede-me a minha mulher:
– … se vais passar por lá, preciso que me troques cem dólares na tabacaria.
– Na tabacaria? – Indago, conhecendo a “peça”.
– Na tabacaria! – Confirma – A que fica ao frente ao BCI. Está claro?
– Está claríssimo!

Meia hora depois a situação está enevoada. Para trás e para a frente no rasto tabacaria. Enfim, troco o dinheiro em frente ao BCI, numa perfumaria.

Para que confio eu em ti, se há vinte anos que sei, quando dizes Está na gaveta direita, está na gaveta esquerda… –, queixo-me em casa. Os “tiques” de cada casal.
Não há, em Maputo, uma localização que pergunte na rua que não conheça percalços, uma probabilidade altíssima da indicação estar errada.

Fiz um livro de entrevistas com uma figura interessante, um médico que já foi ministro da saúde e director do Hospital Central de Maputo e com muitas histórias para contar. A primeira vez que fui a casa dele, orientararam-me, com solenidade:

– Na rua X, mesmo, mesmo, em frente à esquadra da polícia.
Lá estive a rabiar, eram 80 metros à esquerda.

Pior se pergunto a um “cinzentinho” (como popularmente se chama aos polícias), com toda a convicção do mundo manda-me para os antípodas do pretendido.

Toda a gente “sabe” e não confessa que não sabe… Pelo motivo mais simpaticamente estulto: considera-se má educação não corresponder a uma solicitação, sendo preferível dar uma indicação errada do que não a dar.

Uma vez fui perguntando por um endereço em Nampula e quase cheguei a Quelimane.
Corolariamente, no aeroporto de Nampula nenhuma loja correspondia ao que se anunciava no lettring. Se estava Agência de Viagens vendia-se artesanato, se dizia Boutique de Senhora vendiam-se embalagens de comida para cães, etc. Bom, em Nampula, a minha preferida é a Livraria Central que tem motos na montra e, lá dentro, pneus e peças para tractor. No Gurué a única livraria da cidade vende todo o tipo de colchões, fronhas e lençóis. Livros, talvez, em sonhos.

Estas inversões lógicas estendem-se à cronologia e à noção da própria idade. Numa entrevista, perguntámos a uma miúda a idade e respondeu para a câmara, muito serena:
– Tenho noventa e nove anos.

Estivemos dez minutos a explicar-lhe por a+b que isso era impossível, ela contou então que nascera num ano que em que houvera muita produção de melancia. Voltámos a gravar o depoimento, ela, muito espontânea apresentou-se e depois concluiu:
– … tenho dezanove anos… assim serve?

De outra vez, em Quelimane, onde dei aulas, numa esplanada, uma miúda que dizia ter dezanove anos (parecia ter quinze) meteu-se comigo com intenções peregrinas. Para a dissuadir perguntei-lhe:
– Sabes que idade é que eu tenho?

Ela olhou-me fixamente e depois atirou:
– Tens oitenta e oito, é isso!

Numa gargalhada, contrapuz o argumento final: num homem de oitenta e oito o guindaste está avariado.
Popularmente, em Maputo, os verbos significam o seu oposto: trazer por levar, ir por vir, buscar por levar, emprestar por pedir emprestado, etc.

Conto isto porque hoje encontrei uma citação de Evelyn Baring, que governou o Egipto por mandato da coroa britânica entre 1883 e 1907 e que a dado momento da sua volumosa história do Egipto escreve:

A falta de precisão, que degenera facilmente em falsidade, é, de facto, a principal característica do espírito oriental (…) o espírito oriental, tal como as suas ruas pitorescas tem uma absoluta falta de simetria.

É uma generalização absolutamente abusiva, que convém relativizar, embora — vá lá saber-se como funcionam os meandros do espírito — me desperte uma hipótese ontológica atordoadora, a de existir uma simetria psíquica planetária e oculta:

Eles, os que vivem deste lado oriental (e digo eles, porque é diferente cá morar momentaneamente ou pertencer-se) vivem afinal no seu lado certo do planeta, a nossa cabeça, como a da Alice, é que ainda está no outro lado do espelho.

2 Jul 2020

Que deus não perdoe!

[dropcap]A[/dropcap]cordo assarapantado: no meu sonho uma brigada fundamentalista assaltava as bibliotecas e incendiava todos os exemplares do Moby Dick porque, espumavam com verdadeira incontinência, no romance de Melville se matam baleias.

Passei os últimos dias a reler o romance e estou literalmente esmagado com a magnitude de Melville e a violência do seu fracasso.  O livro, de 1851, foi zurzido pela crítica e o principal motivo para o declínio da carreira do autor.

Moby Dick é um romance tingido por reflexões éticas e filosóficas que também se manifestariam em Pierre or the ambiguities (1852), outra obra-prima, desta feita uma obscura exploração alegórica da natureza do mal em quinhentas páginas. Mas se Moby Dick não foi um sucesso comercial, Pierre or the Ambiguities foi um fiasco retumbante. O que levou o seu editor a recusar o manuscrito, hoje perdido, do livro seguinte: The Isle of the Cross.

Herman Melville morreu em 28 de setembro de 1891, aos 72 anos, em Nova York, na total obscuridade – quarenta anos depois de ter assistido à sua derrocada. Aliás, além de The Isle of the Cross, Melville só voltaria a escrever Billy Budd, publicado trinta e alguns anos depois da sua morte, e passaria as suas últimas três décadas de vida em deceptiva congelação, sem chegar a adivinhar o sucesso que a sua obra alcançaria no século seguinte.

Face a Moby Dick, escrito com um domínio total sobre todos os recursos técnicos do romance e as suas modulações expressivas, é monstruoso pensar na solidão de Melville e na desproporção entre a sua natural consciência de quanto os seus livros valiam e a frustre recepção dos mesmos – a mágoa com que abandonou a sua arte é, para nós, incomensurável.

Entretanto, registe-se esta curiosidade no Moby Dick, no capítulo 41: «(…) as realidades da vida rivalizam com os prodígios das lendas antigas, mesmo quando se trata de uma velha história como a da serra da Estrela, em Portugal, onde se diz existir perto do cume um lago em cuja superfície flutuam carças de navios naufragados no oceano.» A serra da Estrela, à qual Melville, no original, chama “montanha interior” mas que na edição brasileira da Cosac & Naify é amesquinhada, não passando de um “monte da Estrela”.

Pois no futuro será a cordilheira-Melville que vai voltar a ser aplainada sob a vaga dos literalistas que dominarão as próximas décadas. Como escreveu Pacheco Pereira: «Ninguém liga nenhuma ao facto de uma certa forma de ignorância agressiva estar a crescer, e a como isso se está a tornar um grave problema social, e político (…) será um retrocesso civilizacional (…) A dificuldade de separar a verdade da mentira, o crescimento das teorias conspirativas, as ideias contra a ciência, tudo isto está a ganhar terreno. O populismo moderno dá-lhes uma expressão política eficaz.».

E como são literalistas, tudo o que seja expressão simbólica escapa-lhes, e até o melhor da emulação desportiva e da sua dupla significação de redenção e sacrifício será desentendido. Aí, igualmente o boxe será banido: serão postas numa pira os filmes Body and Soul, do Robert Rossen, The set-up, de Robert Wise, O Touro Enraivecido, de Scorsese, e A Million Dollar Baby, de Clint Eastwood – quatro obras-primas a arder, sob a fúria iconoclasta.

Receio que os esbirros, o pesadelo advertiu-me, venham cá a casa incendiar o belíssimo On Boxing, da insuspeita Joyce Carol Oates e o impagável The fight, a genial reportagem que Normal Mailer escreveu sobre the rumble in the jungle, a mítica disputa do título dos pesos-pesados, entre Muhammad Ali e George Foreman, em Kinshasa, no antigo Zaire. São duzentas e trinta páginas trepidantes, do melhor New Journalism. Norman Mailer escrevia sobre boxe como quem soltava rápidos jabs, e aí se lia:

«Talvez que a doença resulte de uma falha de comunicação entre a mente e o corpo. Isso é certamente verdadeiro no caso de uma doença tão rápida como o nocaute. A mente não consegue mais transmitir uma palavra sequer aos membros. O extremo dessa teoria, exposta por Cus D’Amato quando treinava Floyd Patterson e José Torres, é que um pugilista com desejo autêntico de vencer não pode ser nocauteado se vê o soco aproximar-se, pois então não sofre nenhuma interrupção dramática de comunicação. O soco pode machucar, mas não é capaz de liquidá-lo.»

The rumble in the jungle, tinha eu quinze anos, em 30 de Outubro de 1974, motivou uma das minhas primeiras «directas», para conseguir ouvir às quatro da manhã, pelo rádio, a reportagem do combate. Noite sobre a qual escreveria um poema, que assim termina:

«(…) E o tempo, sorna, de sorriso a tiracolo, a descarnar-me as gengivas,/ a enrodilhar-me nas suas veias de lobo,/ enquanto Ali – grafitos indeléveis no céu/ de Órion – ginga ao canto, furtando-se/ ao amasso de Foreman, e resiste,/ uma e outra vez, dando enlace e realce/ ao delicado equilíbrio das estrelas ascendentes.»

Tudo isso será queimado e já começou. Começou no silêncio que tem vigorado sobre os cinquenta e dois jovens executados no distrito de Muidumbe, pelos terroristas de Cabo Delgado. Executados porquê? Porque, na aldeia de Xitaxi, quando os grupos armados tentavam recrutar jovens no distrito de Muidumbe, estes ofereceram resistência a ser instrumentos do Mal, a qual provocou a ira dos invasores, que os balearam indiscriminadamente. O silêncio oficial que se abateu sobre estes jovens que rejeitaram servir a ignomínia – lembremos que o nocaute começa numa falha de comunicação entre a mente e o corpo -, aliada à abóbada de indiferença com que os media internacionais, tão ocupados nas estatísticas do Covid ou nas últimas traquinices de Trump, amorteceram o impacto do caso, reflecte um franco declínio civilizacional, nem que seja porque talvez, diria Melville, as almas daquelas cinquenta e uma vitimas fossem afinal a quinta roda que fazia mover a carroça.

E eu, como apóstata, confesso: estamos fodidos!

26 Jun 2020

O combate do século

[dropcap]N[/dropcap]uma entrevista recente, a propósito de Murder Most Foul, quando perguntam a Bob Dylan sobre os riscos da hiperindustrialização e da tecnologia se virarem contra a vida humana, o cantor responde:

«Definitivamente, há muito mais ansiedade e nervosismo agora do que costumava existir. Mas isso só se aplica a pessoas de uma certa idade como eu e você, Doug. Temos a tendência de viver no passado, mas isso somos nós. Os jovens não têm essa tendência. Eles não têm passado, então tudo que sabem é o que vêem e ouvem, e acreditam em qualquer coisa. Daqui a 20 ou 30 anos, eles estarão na vanguarda. Quando você vê alguém com 10 anos, ele estará no controle em 20 ou 30 anos, e ele não terá ideia do mundo que conhecíamos. Os jovens que estão na adolescência agora não têm memórias suficientes para se lembrar.

Então provavelmente é melhor entrar nessa mentalidade o mais rápido possível, porque essa será a realidade. No que diz respeito à tecnologia, ela torna todos vulneráveis. Mas os jovens não pensam assim. Eles não poderiam se importar menos, porque telecomunicações e tecnologia avançada são o mundo em que nasceram. O nosso mundo já está obsoleto.»

Gosto do diagnóstico, mas não da resignação do artista, contraditória com a lucidez da primeira parte da resposta; talvez seja típico de um americano.

Sim, os jovens hoje crescem num ambiente em que as ciências humanas e as suas pautas simbólicas foram desvalorizadas e preteridas pelos saberes técnicos e de imediata operacionalidade e vivem sob o jugo do “eterno presente” da esfera mediática. Trump é o exemplo de alguém que é absolutamente fruto de uma educação temperada pelos inputs das indústrias culturais, sem qualquer filtragem de uma cultura humanística que coloque o presente e os seus valores em perspectiva.

Trump é um espelho das patologias da sociedade de consumo e da equívoca relação do mercado – hipervalorizado como única instância reguladora – com os princípios da democracia, porque, afinal, tem sido esquecido, uma democracia será mais do que um sistema financeiro.

A surpresa de Boris Johnson – um cínico, que beneficiou ainda de uma educação aristocrática e assente nos referenciais de uma cultura humanista – sobre a motivação dos que vandalizaram a estátua de Churchill é genuína, daí ter lembrado que apesar de algumas das ideias defendidas pelo seu histórico antecessor serem “inaceitáveis para nós hoje”, «Churchill continua a ser uma figura heróica que salvou o país de uma “tirania racista e fascista”». Indesmentível, e isso torna absurda a situação dos anti-racistas tomarem a figura de Churchill como alvo da sua ira e da estátua do estadista ser defendida por milícias e holligans de extrema-direita.

Assistimos aos sintomas da desordem mental que resulta de sermos expostos há décadas a um avassalador fluxo informativo sem filtro, sem a mediação de qualquer pensamento crítico ou a ambição de articular essa amálgama informativa sob o guarda-chuva de um sistema cognitivo que re-ligue os padrões e nos possa orientar no seio de Babel. A educação como grande projecto iluminista pulverizou-se: o efeito disto traduz-se mais nos “legumes” de Archimbold e Pilipe Haas que num mundo mais igualitário.

A facilidade com que hoje os líderes convencem os seus fanáticos de que quem se opõe às suas ideias é “comunista” ou “fascista” assinala o triunfo do slogan contra qualquer possibilidade de reflexão. O eleitorado prefere a velocidade, a adrenalina, à ponderação, ao juízo.

Um verdadeiro líder democrático é quem nos ensina: a contingência habita o cerne do poder – mais cabal não há que o exemplo de Churchil, derrotado à boca das urnas logo a seguir a ter ganho a guerra, perdeu e retirou-se. Hoje, com Trump e Bolsonaro, assiste-se ao contrário: napoleonicamente, apresentam-se como providenciais, e, grotescamente, estão convencidos disso.

A democracia, mais do que o exercício da alternância democrática (que apela ainda a uma disputa entre os diferentes sentimentos de pertença cristalizados nos partidos), deve antes promover um sentimento de não-pertença e de distância analítica que se reforça pela persuasão com que novos direitos e sensibilidades emergentes ganham novos focos de mediação, novos intermediários e impõem as suas razões narrativas.

O movimento social é como um tecido corrompido que só se sara quando se instauram novas mediações.
Socorramo-nos de Alain Badiou:

«… chame-se movimento a uma acção colectiva que obedece a duas condições: em primeiro lugar, esta acção não está prevista nem regulada pela potência ou o poder dominante. Logo, esta acção pressupõe algo imprevisível, que rompe com a repetição. Chamamos movimento a algo que rompe com a repetição colectiva, social. É a primeira condição.»

O que tivemos com as espontâneas reacções à morte de George Floyd. E o movimento, deve romper com a unanimidade mimética – pura condição.

Embora, para se tornar fecundo, a sua segunda condição seja «que se proponha dar um passo mais, adiante, no que respeita à igualdade. A consigna de um movimento, o que diz, o que propõe, vai, de una maneira geral, no sentido de uma maior igualdade».

O seu efeito é a emergência de um novo “intermediário”, de uma nova sensibilidade em relação às decisões políticas e às instâncias de mediação. Nesta pequena nuance da mediação joga-se a superação de uma democracia representativa para uma democracia re-encantada e este salto é vital.

A validade e inteligência desta mutação ficam enfraquecidas com os gestos demagógicos de vandalizar as estátuas. Restituir ao social a dignidade que aponta para uma “maior igualdade” supõe simultaneamente respeitar os símbolos da ideologia adversária e mobilizar a energia para a mudança política, posto estar o debate lançado.

A explosão e a fúria sem a reflexão redundam numa oportunidade perdida. Pichar as estátuas, mutilá-las, censurar filmes ou livros, só mostra como o colectivo e as suas unanimidades são permeáveis à estupidez e intolerância que germinou nos regimes autoritários e discriminatórios e como a educação volta a ser o combate do século.

18 Jun 2020

A arte e o covid

[dropcap]A[/dropcap]ssistimos, nesta desembocadura do confinamento, a duas posturas de fatídica ingenuidade. A de quem busca pretextos (que pode ter a face justa de uma causa, como participar numa manifestação contra o racismo) para voltar a juntar-se em grupos, rompendo assim o cerceamento do afecto, e aqueles que desesperam porque descobrem, à beira do esgotamento que o isolamento promove, que o medo não acaba por orientação social, não lhe é síncrono. Para muita gente o medo implantou-se e vai reger os seus próximos anos. Não há neste caso palavras de consolo, alívio retemperador.

A simpática irresponsabilidade com que a primeira postura escolheu o altruísmo como alibi e a tendência depressiva de quem descobre em si uma patológica fonte de apego, surgem-me como margens simétricas de um mesmo rio: a dificuldade que as pessoas têm para de si escaparem, reinventarem-se. O que tanto se manifesta na carência da proximidade física, por extensão narcísica, como se realça no pânico de perder o controle da identidade que o deflagrar duma doença acelera. Confluindo ambas as tendências nos reflexos do «mármore negro» com que Mallarmé caraterizava a mente.

Estas são para mim duas portas do Inferno. “Uno de mis insistidos ruegos a Dios y al ángel
de mi guarda era el de no soñar com espejos”, clamava Jorge Luis Borges, e, com nuances, era um pedido que também faria meu.

O poeta romântico John Keats descreveu numa carta a “capacidade negativa”, fundamental para os homens criativos e para a literatura: consistiria na capacidade mental para aguentar-se no meio das dúvidas, incertezas e mistérios, sem ceder a qualquer nervosa pressão para ler no que decorre sinais da presença de um facto ou uma razão justificativa. A capacidade de estar em equilíbrio no meio do caos. Admira que Keats considerasse como fruto da “capacidade negativa” a ideia de a que beleza é a verdade e a verdade beleza (como se lê no final da sua “Ode a uma Urna Grega”), se concebia a beleza como um encaixe, um viés novo sobre algo objectivável que só eclode pelo despojamento da identidade? A beleza não abrigaria assim nenhum iniludível carácter subjectivo, desarme que tem sido escamoteado. E este despojamento, defenderia depois Mallarmé, pode atingir o próprio semblante das palavras: «Creio que o que podemos apontar como próprio na poesia será que, antes de mais, as palavras nesta… reflectem-se umas nas outras até perderem a sua cor própria para não serem mais do que as transições de uma gama». Idêntica operação à que acontece com as cores e o branco.

Neste aspecto ainda não saímos do orbe romântico e vejo pouca utilidade em fazê-lo.
Contudo, enxergam-se diferenças entre este “encaixe na transição de uma gama” e os efeitos desse “espelho negro” da mente, que só valida o real como duplo ou imagem de si mesmo; quem não busca a ressonância, uma correspondência entre mundos, e antes a sua projecção neles, porque de modo convulso a tudo interpreta – numa dimensão paranóica -, é inepto para aceitar que uma parte essencial não esteja nas palavras.

Esse erro decorre do redutor postulado segundo o qual a mente é linguagem. Mais fecundo aceitar a hipótese de que nós não pensamos em palavras, que ocorre às vezes pensarmos em palavras, não passando estas, na formulação certeira de Roberto Colasso, «de esporádicos e flutuantes arquipélagos na mente que o mar é». Quando queremos reduzir tudo às palavras o espelho fica negro, sujo, como a pedra da Caaba, porque lhes tocámos demais.

Daí o saudável desapego que a arte e a leitura nos podem dar.
Tendo em casa milhares de livros de poesia, não a consigo ler todos os dias. Para a ler preciso de despojar-me ou de limpar primeiro o meu espelho para que nele vibre o encaixe rítmico que essa paisagem me impõe – sem esse esvaziamento prévio não consigo ler a poesia porque a leitura de “outro” não se compadece com as “nossas” grelhas e necessita de uma certa nudez.

Igualmente a arte, no século XX, descobriu que o significado não assenta tanto na fábula como na relação entre cada uma das formas que a dizem, daí que a arte tenha tantas vezes escolhido despojar-se de tradições, desencadeando a transformação radical que substituiu o objecto representado por uma beleza que se compõe dos nexos que as suas associações libertam. Tal como acontece no cinema, onde a imagem não pode ser isolada: a emoção que cada fotograma/frame desperta depende da imagem que lhe era anterior e da expectativa que lança sobre a que lhe sucede; i.é. não é isolável do tipo de cópula que o fluxo lhe permite.

O advento do cinema recompôs uma nova realidade, dado que na tela «tudo muda de proporção, de ângulo, de aspecto. Tudo se afaste e se aproxima, se acumula ou falta, como depressa se afirma e se exaspera» (Blaise Cendrars). É inegável, o cinema mudou as proporções do mundo, ou pelo menos, mudou a capacidade perceptiva do receptor, convertendo-o num depredador do espaço ocular.

Interrogo-me se o Covid-19 não imporá semelhantemente uma mutação do olhar, quer nos sentidos da proporção e das geometrias de posição (o que obriga a descrições dum novo tipo), quer nas formas e ritmos, pois se a velocidade da recepção abranda tenderá a dar-se de novo uma oportunidade ao denso e às suas sombras, neutralizadas nos últimos tempos pelo “ilusionismo” da imediatez comunicativa; do mesmo modo que a realidade se verá exumada da “simplicidade” em que o mercado a enterrava e retomará a evidência de que existem vários planos de realidades e vários níveis de percepção da mesma e não essa ordenação da trivialidade com que o neo-liberalismo impunha o mandamento de que no gosto somos todos iguais – números ansiosos de serem absorvidos numa, imensa, massa latejante de consumidores, entenda-se.

11 Jun 2020

As vantagens de aprender

[dropcap]A[/dropcap]proveito a insónia para ler o “Peregrino em Paris”, de Italo Calvino, volume póstumo que, entre outras curiosidades, compila as cartas onde o autor italiano relatou a sua errância pelos States, durante seis meses, em companhia de Arrabal (de quem faz um retrato caricato) e de Hugo Claus (cuja consistência admirou).

Só em S. Francisco ele tem um “encontro” que o fascina e lhe provoca o entusiasmo. Foi com Kenneth Rexroth, sobre quem escreve: «Decerto é a pessoa mais notável que encontrei na América; não o conheço como poeta (escreveu uns vinte livros de poesia e diversos livros de crítica, além de muitas traduções de clássicos japoneses e poetas) mas como homem impressionou-me muito.»

O que me deixou com vontade de reler o poeta. De facto, Kenneth Rexroth (1905-1982) é uma personalidade que impressiona pelas suas múltiplas e omnívoras facetas, a começar pelo seu intratável penteado. Não há modo de descrever sucintamente alguém que foi anglicano e católico, comunista, anarquista, pacifista (objector de consciência na II Guerra Mundial e ajudou muitos japoneses confinados) e budista; pintor, ensaísta, colunista, professor, dramaturgo; casamenteiro e mulherengo; conhecedor profundo de jazz e de literatura clássica grega, chinesa e japonesa; tradutor, agitador cultural e, finalmente, padrinho generoso de novos poetas. Foi ele o anfitrião na emblemática noite de 7 de outubro de 1955, tida como a do nascimento oficial do Movimento Beat, na qual Allen Ginsberg recitou o poema Howl. Mas, aqui para nós, Rexroth, que pugnava por uma poesia rente à respiração da fala, rapidamente achou que Kerouac não passava de um hipster momentaneamente na moda e creio que é um astro poético de maior dimensão que Ginsberg (, aliás, dele escreveria Milosz: «ele gabava-se, mentia, trapaceava, rezava, praticava a poligamia, traía as suas quatro esposas, embora acreditasse na sacralidade do casamento; era paranóico com seus amigos. No entanto, para mim ele era, acima de tudo, um esplêndido poeta e um tradutor maravilhoso de poesia chinesa e japonesa») à altura de William Carlos Williams ou W. H. Auden. Aqui deixo as versões de poemas seus com que desanuviei a insónia

Um límpido poema existencial: AS VANTAGENS DE APRENDER
Foi tudo para o ralo, as ambições,/ A maior parte dos amigos; tão inapto/ Para ganhar a vida como para não deixar que aconteça/ Esta decadência galopante, este ar abandalhado,/ De quem sempre preferiu fugir a lutar/ Contra a maldição – que importa?/ É meia-noite, sirvo-me de uma taça de vinho branco/ quente e de sementes de cardamomo./ Depois, num esfiapado robe cinzento e/ Com a minha puída boina, sento-me ao frio a escrever/ Poemas, a desenhar nus nas margens enrugadas/ E a copular com imaginárias garotas/ Ninfomaníacas de dezasseis anos.

Dois poemas de amor: SOMENTE ALGUNS ANOS
Volto ao chalé no/ Canyon de Santa Mónica onde/ Andrée e eu éramos pobres e/ Felizes. Às vezes chegava-nos A fome e rapinávamos verduras/ Nos quintais vizinhos, doutras vezes/ Varríamos o escuro com a lanterna/ No rasto das beatas./ Mas nadávamos todos os dias,/ O ano inteiro. E tínhamos um cão,/ Um rafeiro grande e/ amarelo chamado Proclus,/ E um gato branco, o Cyprian. / Fizemos então a nossa primeira / Mostra de arte juntos, e começavam / A sair os meus poemas em Paris./ Trabalhávamos sob as baixas ramagens/ Da acácia, no jardim da frente./ Agora, saio do carro/ E paro defronte da casa ao lusco-fusco./ A florida acácia polvilha o caminho/ Com pequenas pílulas de lã dourada./O aroma é denso e pesado/ Neste início da noite. Espantoso,/A árvore galgou duas vezes a altura/ Do telhado. Dentro, um velho/ E uma mulher sentam-se à luz do lampião./ Torno ao carro e enfio-me estrada fora rumo/ À praia de Malibu, onde me espera / Um amigo de infância de cabelos já grisalhos./ Contemplamos a lua cheia que desponta sobre/ As longas e enrugadas ondas da baía escura.

O TEU ANIVERSÁRIO NAS MONTANHAS DA CALIFÓRNIA
A lua tremula nos requebros da água fria/ E gansos selvagens gritam no céu./ A fumaça dos acampamentos eleva-se/ E divaga na geometria do firmamento/— Pontos de luz num negrume infinito./ Eu observo por entre a nesga das árvores/

O vai e vem da tua penumbra ao redor do fogo./ Um marreco grasna alto no lago e amarra-se à noite./ E então o mundo estaca, silente, nesse/ Gotejar do outono que aguarda/ A chegada do inverno. Junto-me/ Ao halo de luz da fogueira, levo-te/ O espeto com trutas para o nosso jantar./ Enquanto comemos, na borda sussurrante do lago,/ Digo-te, “daqui a muitos anos lembrar-nos-emos/ Desta noite e conversaremos sobre ela.” Muita água/ Passou entretanto debaixo das pontes,/ Muitos lustros se passaram. Lembro-me/ Daquela noite como se fosse ontem,/ Embora tu estejas morta vai para trinta anos.

Um poema descritivo: A DELGADA Linha Do TeU ORGULHO, IX
Ao fim de uma hora/ Aquela amálgama de neve entre as luzes, / Suavizou-se e amaciou o emaranhado das linhas/ Bicudas dos ramos nus, recortando-o/ Contra o crepúsculo gelado./ Agora, nas minhas costas, na pálida/ Extensão da avenida vazia,/ A neve reclama uma por uma –/ Desde a mirada fixa e obscura/ Dos vitrais -, nada mais do que/ Essa linha de pegadas.

Um triste retrato de geração: ENTRE DUAS GUERRAS
Lembras-te certamente daquele pequeno-almoço:/ Das uvas pretas e frescas que cheiravam vagamente/ À cortiça da embalagem, os pãezinhos quentes/ E muito brancos, o chocolate espesso/ Com sabor a mel?/ E as festas noturnas; o gin e os tangos?/
As fitas de cabelo desfeitas, os botões/ De punho desirmanados?/ Em que se tornaram essas esplêndidas/ Raparigas, as horas sem rumo?/ Diziam-nos perdidos, inconscientes, imorais,/ Que nós atrapalhávamos os planos do Poder.
E eis-nos hoje, milhões de emparedados vivos/ Que tamborilam nas lajes de seus túmulos/ E se escondem nas arruinadas catacumbas, brigando/ Pela sua própria carne mutilada.

4 Jun 2020

Dias tristes

25/05/2000

[dropcap]H[/dropcap]á que que digerir e seguir em frente, pois se, como dizia o Valéry, o lobo é a soma de todos os cordeiros assimilados… a vida, hélas, é a intratável combustão que muda os lobos em estrume. Mas cansa este acuamento da actualidade que o Covid nos impõe e, condoído com o desaparecimento da Maria Velho da Costa, só apetece espreguiçar-me, alheadamente. Começo por isso esta crónica apropriando-me do belo naco de homenagem que lhe dedicou o Miguel Serra Pereira, no FB, neste post em que a recorda:
«Hoje que morreste só me ocorre para te saudar aqui, como se repetisse que o lembrei sempre, aquilo que me disseste, um dia, sobre a literatura, há tantos anos já, no Jardim da Estrela, depois de um almoço algures, para os lados de São Bento, perto da casa onde então moravas. E foi que a literatura não servia para nada que valesse a pena, se, quando a valia, não servisse tanto para ser mais. Ser mais, como em tudo o que foste, foste sempre.»
Providencial lembrança, e não podia estar mais de acordo.

26/05/20

Não era nada fácil, a autora de Casas Pardas, inclemente consigo e a escrita (cena que consideravamos terminada nos guiões era comemorada com um uísque e a frase brincalhona, Esta, António, nem o Shakespeare! A nossa alegria durava quinze minutos, rapidamente torcia o nariz ao polimento, encontrava uma coisa a corrigir, um defeito no viés da personagem ou um erro de construção na estrutura da cena – nunca encontrei ninguém tão exigente nem tão capaz de distanciar-se emocionalmente do texto de forma tão veloz; havia algo de levemente esquizoide no processo, como sempre me pareceu uma espécie de milagre “fora dos gonzos” a facilidade com que lhe brotava o vocabulário e as suas derivas vernaculares), igualmente na esfera pessoal podia dura e álgida, e tanto eu como o Armando Silva Carvalho, que foi também seu parceiro em livros, tivemos momentos de zanga e distanciamento duma relação de desiquilibradas reciprocidades.

Mas era um bicho admirável e mesmo quando era voluntariamente controversa e dizia coisas bárbaras, como ter afirmado em França que o Fernando Pessoa era um poeta «minable», nós sentíamos que ela era das poucas pessoas com o direito a dizê-lo, porque o seu nível não desmerecia o do poeta e daí as novidades que trouxe ao romance português.

A sua morte lembra-me episódios de inveja de que foi objecto e a que assisti. Mas não vou por aí, sempre achei uma enormidade a inveja que encontrei em muitos – neste item não passo de um cordeiro.

Quando andava imerso na escrita de A Maldição de Ondina e bradava aos cinco céus que seria a melhor novela do ano, uma noite resolvi tirar teimas e reler O Deserto do Le Clézio, só para a comparar nos itens técnicos, rítmicos, e efabulatórios, e a manhã apanhou-me acabrunhado e com umas olheiras tremendas; e perguntou-me o poeta Rogério Manjate, «e então?», e respondi-lhe, «o gajo deu-me 6 a 0». E com um score tão negativo só me restou voltar à reescrita do livro, aos treinos, e lá meti três golos—  o importante é o sentimento da proporção que nos pode afastar da lisonja e da auto-satisfação, pois isso é que fermenta o bolo.

Que a Maria Velho da Costa tivesse uma extensão lexical muito maior que a minha só me fascinava, indicava-me o que havia a progredir. Sempre achei detestáveis as caturrices do Vergílio Ferreira, nos seus diários, contra outros escritores em ascensão, ou as guerras por satélites de alguns poetas cimeiros.

Mesmo a um nível menos doméstico há exemplos descoroçoadores: são insondáveis as reservas que o Saramago dedica nos diários ao Paz. Noutras coordenadas, privei alguns anos com passarocos de peso, em que, por preferência pelas declinações românticas que enchem de brilhos e aforismos a prosa de Agustina, o Saramago era um bombo da festa.E eu, alarve, por mimetismo, concordava. Quando fui obrigado, por questões de trabalho, a ler-lhe a obra com atenção achei-me diante de uma indeclinável qualidade e acima das opiniões que se tenham sobre ela. Tal como a obra de alguns dos seus denegridores o é; pelo que não se descortina a utilidade do dispêndio de energias.

Contudo, o ponto máximo na rivalidade entre escritores talvez esteja na maldade com que Quevedo comprou a casa de Gôngora só para ter o prazer de o despejar e de lhe mandar os tarecos pela janela.

Para o mundo dos escritores o mundo é uma pedra de moer que exige uma grande crença para ser locomovida e algum sangue e esquírolas de osso por baixo. E uma idiota rivalidade mimética alimenta muito da energia dessa crença que faz de cada autor um atleta em transpiração sobre a mó, investido da única pergunta irrespondível.

Poucos poetas e escritores conheci capazes de uma generosidade que suplantava esta bárbara condição. Talvez o Al Berto e o Fernando Assis Pacheco.
Mas a Maria Velho da Costa era de facto um ser de outra ordem.

26/05/20

Faço meu o que formulou Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.»

As ideias que me são interiores como o estômago e o fígado – eis tudo quanto procuro extrair ao difuso oceano das circunstâncias.

Porém, hoje, eis-me num daqueles dias em que, merda, sinto que o fígado navega à bolina e dava-me jeito umas próteses. Talvez seja de ontem ter revisto O Grito, de Michelangelo Antonioni, e de lhe ter deplorado as rugas, embora depois me tenha consolado com o seu testamento: o filme “mudo” em que o cineasta já octogenário presta reverência ao seu homónimo escultor – um hino sem retórica.

Já O Grito de Munch resistiu melhor ao tempo, apesar de me dizerem que as suas cores se desvanecem. Ou será o fígado?

31 Mai 2020

Entre o acaso e o bem

15/05/2021

[dropcap]N[/dropcap]o jornal que leio agora classificam-se os incêndios como “tremas do inferno”. Tremas? Tremas. E terá a liberdade poética escapado ao editor, normalmente tão sedentos a aplicar a plaina? Sofri horrores quando era jornalista, às mãos dos copy desks. Um dos meus maiores “inimigos” tinha um nome: António Loja Neves, que em nome do “livro de estilo” me assassinou vários textos.

O jornalista ou foi inconsciente da sua formulação (às vezes um impreciso manuseamento da língua provoca por lapso efeitos de estilo, como na metáfora jornalista que me deu o título de um livro: os crimes montanhosos), ou foi engenhoso. Como eu agora que, ao saber que em Moçambique se estima que o auge do vendaval covid-19 terá lugar daqui a quatro/seis semanas (ou seja, não terminará este confinamento), proponho o seguinte: como o corona vírus propaga-se pelo ar, para se evitar males maiores, há que equipar com máquinas de vento todas as entradas nas cidades e os postos fronteiriços.

16/05/20

Procurava uma alma que merecesse participar no universo – uma frase do argentino Jorge Luís Borges. Uma frase de grande nitidez, mas nada evidente; a nossa tendência é evitá-la para não termos de interrogar: serei eu digno de participar no universo?

Tal como a pele precisa de poros para respirar – dessa infatigável ligação com um exterior a si – também nós estamos ligados aos outros. Existe uma palavra para isso: vínculo. O outro é o nosso ponto de fuga ou de verbalização – daí ser um osso duro de roer restringir o nosso convívio com os demais.

A leitura é de antemão uma forma de mitigação, posto oferecer-nos uma solidão acompanhada.
Num bom livro as palavras estão vivas e despontam de um diálogo invisível. Quem não lê está mais sozinho, a ausência do outro faz crescer os lugares. Ler, pelo contrário, é abrigar o exterior a mim dentro de casa, acrescenta várias assoalhadas à nossa morada mas o espaço encolhe, acomoda-se ao cadeirão onde lemos, às mãos que seguram o livro.

A vida, e falo por mim, é tantas vezes, um laboratório de más escolhas. E a poesia pode ser, neste processo de sondar as hipóteses, uma boa terapia.

A poesia ensina-nos, não a errar menos mas a confiar menos na exclusividade do nosso juízo.
Ao apresentar-nos outros pontos de vista, a poesia faz-nos examinar os nossos preconceitos não para rejeitá-los a rodo só por serem preconceitos, mas para avaliar quais devem ser preservados e quais não devem, e ensina-nos a reconhecer que quase tudo em nós é obra alheia – sendo esta percepção uma abertura para a humildade. A poesia tem esse chão e aponta-nos o caminho das raízes, ainda que sejam rizomas.

Há pouco tempo escrevi num caderno:

«Há palavras que procuram raízes,/Antes são a consciência amotinada/ Que à regra prefere a extorsão;/ São danadas as palavras à solta/ Antes de experimentarem o amor,/ A sua lei, ou a amenidade de questionar/ Que barcas afinal vogam ao acaso».

Nenhuma barca deve vogar ao acaso. Podemos não ter ainda um rumo mas podemos entretanto não carecer de princípios. Era no que acreditava Simone Weil quando escreveu que a beleza é a harmonia entre o acaso e o bem. O acaso é o caos ou a tempestade que atravessamos e o bem o leme, que não nos deixa perder na borrasca e nos permite apreciar a beleza do mar, mesmo zangado.

E que fazer, entre aceitar a borrasca como experiência e aprender a manejar o leme? Talvez o que reclama um poeta maior da língua portuguesa, o António Franco Alexandre. Diz ele: «(…) Fui aprendendo à força de querer/ Ser digno da invulgar metamorfose/ Que às vezes nos permite ser humano.»

O poeta fala da raridade de ser humano e como isso só se atinge por uma metanóia, por uma superação. À força de querer ser digno: eis-nos convidados a examinar se não poderemos ser melhores. Porque essas raras ocasiões que nos autorizam a ser humanos dependem do peso que colocámos na questão inicial: tenho sido eu uma alma que mereça participar no universo?

Serei eu digno de participar no universo, terei eu dobrado o penhor da beleza que herdei? A verdadeira questão que a vida nos coloca. E não é de agora que estamos aflitos, mas de sempre.
Ando com tentações de abandonar tudo para me dedicar à jardinagem. Se alguém tiver por aí um aparador de relva que me empreste, não hesite.

17/05/20

Conta Plutarco que um dia Pirro fazia projectos de conquista; “Primeiro submeteremos a Grécia…”. “E depois”, pergunta-lhe Cineas, curioso. “Conquistaremos África…”. “Muito bem, e depois de África?”.

“Passaremos à Ásia Menor, anexaremos a Arábia…”, “”Sim, isto começa a ganhar a escala de um projecto!”, anuía Cineas. E Pirro, de olhos brilhantes, continuou: “Iremos até às Índias…”. “E depois das Índias?”, “Ah, disse Pirro, aí descansarei…”. “Porque não descansar então agora?”, tornou Cineas.

Julgo ser esta mesma a sabedoria com que a natureza nos governa – no oposto a Pirro. Tal como Deus ao sexto dia, vai cansar-se o coronavírus e sem semear mais mistérios descansará.
Pena não ter sido ontem, mas o seu é um império de caniço.
É com esta confiança que entro nas próximas semanas, abstraído de tremas, de olho vivo nas tramas.

21 Mai 2020

Vitorino Nemésio

[dropcap]O[/dropcap] nosso drama e simultaneamente o que nos excita na linguagem é que ela não é transparente. O que é então possível fazer com a linguagem? Dançar. É o que a poesia propõe, organizar danças de salão com as palavras, que ainda por cima, como quem não quer a coisa, muitas vezes dizem a verdade, a verdade que de forma directa leva os homens a ficarem de costas uns para os outros… Mas a poesia consegue pô-los face a face – é o seu dom.

Na minha adolescência havia um homem que riu galhofeiro ao meu lado, num filme que por um acaso feliz vimos juntos, e que conseguia fazer dançar as palavras de uma forma admirável. Chamava-se Vitorino Nemésio.

Tinha o Nemésio um neto que pelo meu quinto ano do liceu andou na minha turma e
por quem nutri uma daquelas amizades repentinas e intensas, mas inconsequentes, pois deixámos de nos ver, assim que ele foi para ciências e eu para as artes.

Porém, privámos durante um Verão, eu vivia em Almada e ele na Cova da Piedade, que está colada, e havia uma singularidade na casa dele que a tornava particularmente atractiva: a varanda das traseiras dava para um recinto onde uma sociedade recreativa tinha o seu cinema ao ar livre.

Assim gozámos algumas fitas de borla e calhou acompanhar-nos ocasionalmente nessa folia o Vitorino Nemésio. Lembro-me vagamente (neste caso não sei se sonhei) de termos visto juntos uma coboiada, O Ouro de Mackena, onde o poeta, taciturno, cabeceava, e com razão, é fita que não resistiu ao tempo, e tenho mais presente um impensável Jerry Ama-Seca, que fazia o Nemésio dobrar-se de riso na varanda e contagiar-nos com o seu entusiasmo.

A dado momento o Jerry Lewis, um desastrado arranjador de televisões, canta pensando na namoradinha da sua adolescência, que abandonara a vilória para ir para Hollywood e seguir o seu sonho de ser actriz. Jerry canta e imagina que ela se lhe declara, I love you, I love you… ao que se seguem estes dois versos: “Quando você sonha/ o amor é uma coisa solitária”. E aí vimos, na varanda, aquela figura solene levantar-se de um salto e gritar espontaneamente Admirável, e o filme ficou suspenso ali enquanto o Nemésio nos procurava explicar a surpreendente profundidade da letra da canção, repetindo os dois versos que o fascinaram. Depois foi buscar uma viola e improvisou uma modinha a partir desses dois versos.

Nunca mais o vi mas a simpatia daquele contacto levou-me depois a ler com gosto a sua obra, sobretudo a poesia, onde encontramos inúmeros filões poéticos, formas e estilos. Nemésio renovou-se sempre e com tal pujança que em 1972, com Limite de Idade, tinha então 71 anos, ou em 76, com Sapateia Açoriana e Andamento Holandês, escreve dois livros que ainda hoje são exemplos de uma fecunda adequação do artista com a sua contemporaneidade. No caso do Limite de Idade inoculando nos versos os termos e a linguagem da ciência, interesse que mais tarde se manifestaria num surpreendente Era do Átomo, Crise do homem (1976) e no qual Nemésio interpelava a ciência e os seus efeitos no momento de crise que então se vivia, em plena Guerra Fria. E às duas por três escreve:

«Mas se a Ciência se quis como detentora das chaves de um Universo não demiúrgico – sistema de relações de elementos inanimados numa coesão regida por leis naturais imanentes -, a Técnica, embora positivista como ela, teve que tomar o lugar vago do demiurgo, tornar-se feiticeiro, operar, urgir. Porque Técnica, afinal, é urgência, no duplo sentido de intervenção, e pressa. Cirurgia, Metalurgia, Siderurgia – tudo urge, tudo é urgente. Nós é que não reparamos que os elementos das palavras significam sempre basilarmente o mesmo onde quer que se encontrem. […]»

É engraçado como há 40 anos Nemésio já detectava esta propensão da tecnologia a tomar para nós o lugar do feiticeiro, da magia.

A sua versatilidade como a sua capacidade para renovar-se ao longo de quarenta anos de poesia, inclusive, atrasou-me a descoberta de Pessoa, que para mim não foi uma novidade tão grande porque o Nemésio, sem o artifício dos heterónimos, já me oferecia os meandros de um arquipélago.

Talvez este confinamento fosse a oportunidade para redescobrir o Nemésio, que anda tolamente esquecido.
Do poeta transcrevo o delicioso exercício em francês (o Vitorino já publicara um livro em francês nos anos trinta) com que abre Limite de Idade:

«CUISINE CHINOISE: Les savants se rencontrent dans les mots/ Les pauvres se partagent les os./ Les matelots se sauvent sur les eaux./ Les hommes se cachent leurs grelots/ À fin qu’on ne les prenne pour des sots./ Les poètes se grisent de mots,/ De peur qu’on ne les écorchent:/ Sauvons la peau,/ Porche/ De l’ADN,/ Car notre aubaine/ est le poteau,/ Dernier cri des robots.» , e outro poema « autobiográfico » : «JÚPITER,1901/ Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter./ Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era astrónomo, / Mas houve lá em casa uma grande perturbação na água do banho/ Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado o seu metrónomo./ E, Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta,/ Com seus doze satélites, quatro deles principais:/ Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura,/ A Primeira Grande Perturbação de Júpiter/ No ano em que nasci. / Elas em roda da banheira,/ Meu pai tocando flauta/ (Serpentes? No ninho em mim)/

E um véu de vapor de água, / Difracção de satélites…// Júpiter! Júpiter/ tu és o Toiro de fumo/ que nunca terás Europa.»

E despeço-me confessando que no meu delírio, li no primeiro poema: Salvemos a pele/ Porsche/ do ADN, e só à segunda vi que faltava um s na palavra e que, portanto, será: Salvemos a pele/ Alpendre/ Do ADN. Falta-me é o jeito para a viola.

14 Mai 2020

O humor sinistro

[dropcap]N[/dropcap]a Nazaré, num filme de Elia Suleiman: dois homens de má catadura acercam-se de um terceiro e o mais velho e baixo entre eles rosna, “Este meu filho – aponta-lhe o arcaboiço – já papou todas as mães da cidade e eu papei a mãe dele, estamos entendidos?” É a mais divertida fanfarronada que vi nos últimos tempos porque é um dito de engenho.

Nada esclarece melhor a jactância, a habilitação do engenho do que esta frase de Francisco Umbral: “Deus é um suporte para fazer catedrais”. Ou lembro aquele príncipe hindu que embriagado pela morte da amada mandou escavar uma gruta para lhe devotar um templo imorredouro, cuja urna ocupava o átrio. Mas insatisfeito com a homenagem, todos os anos mandava escavar e esculpir uma nova nave mais grandiosa, até que ao fim de duas décadas de obras incessantes, entra um dia no seu templo e apontando a urna que guardava os ossos da amada pergunta: Que bodega é esta? Tire-se isto daqui!
O que define o engenho?

O engenho é o artifício que a inteligência elabora para continuar a jogar. A sua meta é conseguir uma liberdade desligada, astuta, a salvo da veneração e da norma e o seu método é uma perpétua desvalorização da realidade. Abolida a seriedade, predomina a obsessão lúdica. Los Angeles ergueu-se no deserto. Para quê? Para servir o jogo.

Os portugueses sabem o que é isso. A primeira dinastia ainda pariu um país de desígnios, mas, desde a exumação em 1640, Portugal nunca conseguiu ser mais que uma pátria de engenhosos, quase sempre despojada de desígnio. Por isso nunca se inculpará Sócrates, o engenhoso engenheiro é o retrato fiel dos portugueses e ninguém mete na cadeia o próprio espelho.

África também envereda pelo mesmo equívoco, é um imenso lar de idosos desiludidos, de engenhosos oportunistas políticos e de jovens sem futuro; deixou de ser um território com desígnio.
Concluo, com horror, que a sugestão de Oscar Wilde, outro engenhoso, de que a vida imita a arte nos mantém reféns.

Tudo o que imaginamos volta-se contra nós com uma crueldade impensável, inclusive quando o ímpeto lúdico pretendia ser um sinal de liberdade e subtrair-se aos esquemas da coerção. Imagine-se as cólicas de André Breton ao ver como a sua sugestão, no seu Manifesto, de que um acto surrealista seria ir ao terraço mais alto da cidade e disparar ao acaso sobre a multidão foi aproveitada pelos “snipers”, que se entretém a fazer do acaso da morte alheia jogo. Com grandes hesitações escreveria hoje Bataille que a essência do erotismo é a contaminação e que o imperativo higiénico seria o fim do erotismo.

E mais lastimável é a sensação de que toda a aposta no engenho e na paródia que marcou a arte do século XX degenerou no mais abjecto panorama político, como se uma esquizofrenia sem remédio nos cindisse, resultando esta da dupla injunção do engenho: desvalorizar a realidade e fortalecer o eu.

Trump é o rei dos engenhosos. O problema com ele não é ideológico, para Trump tudo existe para ser incluído no seu projecto de jogo. Não admira que procure safar-se das situações penosas com soltura, pelo atrevimento e o chiste, rejeitando a realidade. Só assim se compreende que tenha usado o sarcasmo e proposto aos americanos que injectassem desinfectantes contra o Covid, abstraindo-se do seu poder de influência – o que resultou em mais de trinta mortos. Quem resiste a uma boa piada? Ele não queria ser levado a sério, afinal, o jogo desresponsabiliza.

O seu objectivo não é a “America first”, é antes fazer realçar a sua subjetividade à custa do colapso do mundo, e nesse afã foi crescendo o seu descaro, porque ele vai a todos “os lances” abstido de prudências e coações, longe de importar-se do olhar dos outros.

Trump é o Mallarmé da política, o mundo inteiro existe para ser uma bola na sua roleta. Não está só, nesta adição ao jogo. Esta propensão para a paródia e o engenho hoje até na técnica predomina, convertida em renda e consolas e furtada ao objectivo de conhecer a realidade.

E onde está o engenho, o vício do jogo, na comunicação? No fake-news. Repare-se, já não se trata de uma questão de dotar de poder a mentira, ou de ensaiar a falência moral em sucedâneo à deficiência cognitiva programada, a verdadeira motivação para o fake news encontra-se no vício do jogo; o ensejo extramoral ou de levar à bancarrota as representações ideológicas foi ultrapassado pelo empenho em apostar tudo na trivialidade e de ao princípio da adequação à realidade se contrapor a força do capricho. Não é esta a época em que tudo se pode reduzir à caricatura e ao imperativo da comédia, sendo a realidade apenas o plinto para um chiste em potência?

Etimologicamente, desastre significa: sem estrelas. Ou seja, sem exterior, sem o outro. É aí que estamos. O engenho dispensa o real.

E, explica-nos Jose Antonio Marina: «estamos contentinhos, porque ao engenhoso se aplica o lema arrogante e desolado que emocionava Valle-Inclán: “Desprezar aos demais e não amar-se a si mesmo”. Esta pose desvalorizadora e crítica permite admitir no campo semântico do engenho um convidado imprevisto: o cínico. O cinismo é a arrogância de quem se limita a perpassar.»
Eis-nos reféns daquilo a que o barroco Grácian chamava o humor sinistro.

7 Mai 2020

Espíritos & Caganitas

[dropcap]A[/dropcap]quela frase chavão, que fazia a felicidade dos tradicionalistas: “É reconfortante saber que os mortos zelam pelos vivos!”, hoje, só causará desconforto, porque ecoa esvaziada de qualquer sentido, oportunidade, ou, imagine-se, de corpo.

Os registos de mortes dispararam de 30 mil para 40 mil nos Estados Unidos, em apenas três dias. Mais do que se conta por vítimas diárias em muitas guerras. Pura falência dos zeladores. E que consolo traz que um zelador seja um furado coador?

A associação de médicos tradicionais moçambicanos, a Ametramo, desta vez reconheceu que não tem receitas nem curas para oferecer, que os “espíritos” calaram sobre quaisquer terapias para a maleita. Demonstrou-se: é o corona à prova de espírito.

Gostei da atitude, da honestidade – a associação não pretende ludibriar ninguém. Por outro lado, a impotência admitida reduz muito o alcance dos espíritos.

Será uma questão de escala – afinal, para lá do umbral, os espíritos só conhecem o mesmo que viam enquanto vivos, sem uma mirada telescópica para o macro ou o micro? É pouco, e aí, atesta-se que é preciso acreditar maningue para se divisar a causalidade na acção dos mortos sobre os vivos.

Abre-se definitivamente a hipótese de os espíritos corresponderem ao efeito-placebo, na farmacologia convencional.

Não estou a ser sarcástico, acho apenas que este limite confessado devia fazer-nos reflectir sobre as bases e os dogmas dalgumas tradições terapêuticas.

Não sou despido de laivos de espiritualidade, acredito noutros “níveis da existência”, na multiplicidade de mundos e dimensões, acontece, contudo, que muitas das lentes tradicionais para percepcionar essas outras modalidades da existência me parecem redutoras, aquém das complexidades com que a vida nos interpela.

Ou a realidade dos espíritos é apenas mistérica, não sendo uma manifestação da/na natureza, como a dos vírus? Ó ironia, ainda por cima o corona, não sendo sequer um ser vivo, está “suspenso” entre dimensões – como os espíritos. Não lemos todos que o coronavírus é pouco mais do que um pacote de material genético envolvido por uma casca de proteína, com um milésimo da largura de uma pestana, e leva uma existência semelhante à de um morto-vivo, de tal modo que só com reservas se considera um organismo vivo?

Bom, uma boa notícia com duplicidade de leitura: o corona, como Deus, não descrimina, embora tenda a ceifar mais os pobres. Nisto, é vicioso.

Entretanto, lembrei-me de elaborar algumas explicações míticas para vitaminar a gaguez de espírito que tomou o Presidente dos Estados Unidos. Não poupemos esforços, ensaiemos algumas narrativas que possam auxiliar a dobrar o desnorte do ocupante da Casa Branca. Ocorreram-me estas; a primeira:

O freio, na língua de Deus, ficou cativo da palavra «desalfandegar». Mais adesivo que velcro, o vocábulo não despegava.

Qual a origem do termo? Reuniu-se uma comissão para averiguar o mal, que já inchava nas gengivas de Deus. Sucederam-se meses de acaloradas discussões, enquanto o misterioso desalfandegamento se deslocou, indo implantar-se no palato, num enjoo que ameaçava tirar a Deus o gosto com que saboreava a gelatina, a sua sobremesa favorita.

Então Deus criou o mundo e repartiu-o em países para que houvesse as alfândegas e ficassem afadigadas aquelas cinco sílabas, tão difíceis de extirpar de sua santa boca.

Calcule-se, basta juntar dois mais dois, o que irritaria no palácio celestial esta mania recente dos povos não quererem fronteiras entre si. É como se um pequeno gânglio ganhasse de novo asas. Ponderou aí Deus, que não chupava nem as ideias de fora nem a emigração, em criar o coronavírus para dificultar e re-burocratizar o trânsito entre as fronteiras: E FEZ-SE VÍRUS!

A segunda:
Do mamilo de Eva saíam gotas de mercúrio, em vez de leite. Adão, que andava na transumância, nunca teve qualquer palavra sobre isto, e Eva era cortejada por muitos. Porque O Diabo, que andava por ali de tez amarelada, ludibriou os homens, fazendo-os apostar que ao bebé que mamasse em tal iguaria cresceria uma pila de prata e sobressaíria pela pele alaranjada, vindo no futuro a ser nomeado presidente do Clube dos Procrastinadores.

Por outro lado, era tal o valor da aposta que muitas crianças chegadas de todas as coordenadas iam mamar na teta de Eva.
Foi grande a surpresa com o envenenamento geral.
Compreenda-se: o mercúrio não era americano.
A terceira:

Deus andava com espirros irreprimíveis. O seu médico-barbeiro chamava-lhe A doença da China, mas não sabia dizer porquê.
Alguém lhe afiançou, isso só passa com a saliva dos pangolins. Isto, disse-lhe um profeta, pois os pangolins, na altura, ainda não haviam sido criados.

Ficou logo motivado para criar o pangolim. Zás, catrapás. Contudo, Deus achou a criatura horrível. Resolveu simplificar, criou o morcego. Aí foi a a mulher de Deus, antes de lhe provar a saliva, que foi tomada pelo asco. Então Deus criou o cão, uma criatura, digamos, com outro polimento. E a mulher de Deus gostou tanto que Deus criou os homens para darem à socapa umas caneladas e berlaitadas aos cães. Com uma vantagem suplementar: como era gostosa a saliva dos cães.

Ainda hoje Deus se péla pela saliva dos cães. Usa-a na doçaria. Não se delicia também Allah com a baba de camelo?

Mas um dia, Deus viu que um homem se batia com mais gosto à baba do pangolim do que ele à do cão. Ciumento, resolveu inocular no bicho algo que contaminasse o homem e o deixasse com os olhos em bico.
Porém, nunca disse uma palavra sobre como lhe haviam passado os espirros.
La dernière:

O esparvoado filho de Deus não conseguia compreender o significado da palavra «amenidade» – não lhe entrava na pinha. Deus então criou o Corona. E disse-lhe: Estás a ver esta coisa insignificante? É uma caganita de ácaro, não é, perguntou-lhe o pimpolho. Vais ver a importância duma caganita, assegurou-lhe o pai. E, vai daí, criou o resto do mundo.

23 Abr 2020

Tempos de carne e de pedra

10/04/20

[dropcap]A[/dropcap] vida? O melhor desempate que conheço.
Mesmo em confinamento, transborda e excita as rotinas do sonâmbulo.
Recebi as provas do meu livro de poesia Tristia, o livro em que mais se reflecte a minha vida em Moçambique e que terá 350 páginas.

Este livro levantará celeumas, mais um daqueles sobre quem, no território onde foi escrito, se levantará as dúvidas do costume quanto à questão da pertença. O livro de um branco, português, em Maputo? Rejeite-se.

Confesso-me absolutamente nas tintas. É um livro “entre”, absolutamente pós-colonial, que pertencerá a quem o quiser e, fora ideologias e patriotismos, ame a poesia. O resto, é-me indiferente. Até por raramente ter, como me acontece com este livro de amor que é simultaneamente uma ulcerada panorâmica da diáspora, a percepção de que será absolutamente marcante na minha trajectória. Com Tristia traça-se um antes e um depois, ao ponto de achar que depois deste livro, acabado em 2018, tenho insistido em escrever poesia por vício e tagarelice, ao modo de uma engasgada musiqueta, que demora a silenciar-se.

Ademais, este é o meu livro menos formalista, cheio de ossos e carne, muito sangue e algum pus. Ainda me espanta a sua espessura, no tanto que tem para dizer, ao mesmo tempo que não prescinde do fingimento poético.
Depois dele – a que levei mais de dez anos a chegar – e da sua diferença o mais sensato será dedicar-me ao bandolim ou à roleta (no xadrez adormeço ao décimo quinto lance) ou quando muito investir mais no romance. No género poético, até acho mais vital traduzir alguns grandes livros do que bordar no refugo.

E como me encontro toujours en retard, palpita-me que o melhor que escreverei será póstumo e terá de ser lido nos meus ossos em carbono catorze. Nada disto tem importância, ou só a tem para mim, até ao dia… pois, de póstumo só recordo a primeira filhós que comi aos cinco anos, dado que como outras a minha vida será sem fantasma.

11/04/20

Volto aos livros póstumos do Bolãno – um craque – e encontro esta passagem:
«(…) li que Nadeshda Jakovlevna Jhazina, leitora excepcional, autora de dois livros de memórias, um deles chamado Contra toda a Esperança, e mulher do poeta assassinado

Osip Mandelstam, participou, segundo a sua mais recente biografia, em relaciones triangulares em companhia do seu marido e que a notícia havia causado estupor e decepção nas filas dos seus admiradores, que a tinham por uma santa. A mim, pelo contrário, fez-me feliz sabê-lo. Percebi que em pleno inverno Nadeshda e Osip não se congelaram e isso confirmou-me que ao menos intentaram ler todos os livros.»

Também eu acho espantoso e provoca-me felicidade sabê-los tão heterodoxos – nenhum tipo de repressão nos agarra quando a nossa liberdade é interior. Entretanto, se quiser ler o excepcional Contra Toda a Esperança, encontra-o aqui: https://ebiblioteca.org/

12/04/20

Leio duas coisas que me atordoam: o governo moçambicano recuou na decisão de decretar que os transportes públicos moçambicanos só se movimentem com um terço da lotação. Eu, que mandei a minha empregada para casa para ela não andar de chapa, irei amargar do meu remédio mais três ou quatro meses, pois vai ser uma orgia para o querido corona.

Bom, o Estado não tem nem meios para indemnizar as transportadoras pelo prejuízo que tal arrecadaria, nem terá outro modo de acautelar o descontentamento popular devido ao estorvo que tal medida aos seus modos de subsistência, estando a maioria da população condenada à precaridade do negócio informal, à vidinha dia a dia. Depois dos focos de guerra que se intensificam, ao centro e ao norte, o governo não quer pagar o preço político que tal medida implicaria.

A breve prazo, o prejuízo e o caos serão muito maiores; o governo apenas adiou dois males, agravando-os a jusante.

O outro texto que li e me surpreendeu é meu. Só hoje me dei conta, ouvindo-o lido pelo José Anjos, na rádio, da amplitude do significado destes versos – falo dos que agora sublinho:
«(…) É esse o mar que me fascina, mais/ do que o que se estampa/ no magnético, oleoso e galopante/ vir e retrair-se das ondas: // o mar que é o peito de um deus/ que procura fora de si o pulsar / do seu coração. Como aliás se intui/ nas paisagens marítimas de William Turner.»

É este o tipo de Deus que precisaríamos, cabe nele a minha compreensão do que seja a compaixão: só um Deus não ensimesmado, que localiza fora de si, em nós, no mundo, o seu pulsar cardíaco, se empenharia em salvar-nos.
Um Deus a milhas da omnipotência católica, mas também incapaz de exigir-nos a inexorável obediência do deus do Islão, pois afinal é no exterior a si que está o seu âmago.
Creio que mais uma vez estamos sozinhos, ou entregues à ciência, sempre em atraso na vida, aliás como nós.

13/04/20

Um poema do americano Kenneth Rexroth que eu traduzi, No ar quente de Abril: «Nus no ar quente de Abril,/ estendidos sob os pinheiros/ na ensolarada reentrância de uma falésia./ Tu ajoelhas-te sobre mim e noto/ pequenas incisões vermelhas nas tuas espáduas,/ como mordeduras, no sítio/ onde as pinhas calcavam a carne.// Encontramos as mesmas marcas,/ turvando as linhas dos estratos, na falésia, /por cima das nossas cabeças. Sequoia/ Langdorfii antes do período glacial,/ e sempervirens nos nossos dias;
entre elas a diferença é mínima/ comparada com o desfilar dos anos.// Aqui, no doce e moribundo odor/ das flores primaveris, rejeitados,/ dois destroços em comunhão -/ os nossos corpos frescos e nus/ que a sombra desta árvore uniu./ Pelo espaço de um instante,/ escapámos à rudeza do amor,/ do amor perdido, do amor/ traído. E o que poderia ter sido/ e o que era, afeiçoaram as suas linhas/ àquilo que é – para unicamente/
deixar estes ideogramas/ impressos sobre os imortais/ hidrocarbonatos de carne e de pedra.”

16 Abr 2020

Burroughs à presidência!

[dropcap]T[/dropcap]rouxe para a quarentena os livros “certos”, mas a net dispersa-me, arrasta-me numa deriva que me faz sulcar textos e autores ao arrepio do planeado.

Uma crónica do Roberto Bolaño provoca-me a vontade de reler A Revolução Electrónica, de William Burroughs, um livrinho de 1972. Como não tem mais do que sessenta páginas, baixei-o da net para o ler de imediato. As teses delirantes do autor de Refeição Nua assentam como uma luva na situação de hoje. Sobressaem três linhas de força:

– a metáfora da adição como figura de toda a forma de controle; somos dominados pelos poderes do Estado e do mercado mediante a adição induzida às drogas, ao dinheiro, ao poder, ao consumo, ao sexo, e à palavra;

– viciamo-nos nas palavras porque estas na verdade, como o sistema de que emanam, a linguagem, não nos são originariamente naturais: a linguagem é um vírus chegado de «um espaço exterior», não-humano, que nos invadiu e parasitou, tendo-nos inclusive provocado uma enfermidade viral que nos alterou a estrutura interna da garganta.

Face a essa infecção que fez brotar em nós as cordas vocais – resultado dessa simbiose entre nós e o vírus – muitos morreram mas os que sobreviveram adquiriram a linguagem;

– terceiro ponto a reter: o vírus pode ser maligno, mas como hospedeiros do vírus temos uma palavra a dizer, i.é, o seu efeito sobre nós depende também da energia que colocámos no seu “combate”, Burroughs atribuiu uma parte relevante ao papel do medo como detonador de outros vírus ou sintomas latentes no nosso corpo e que aproveitam o novo parasita para nos infernizar. Como ele o diz, se deixamos que o célebre “instinto de morte” freudiano nos persuada de que somos “uns derrotados” estamos fritos.

Estes dois últimos pontos podem-nos servir de consolo ou de alavanca.

É iniludível que o corona vai desencadear mutações no nosso sistema de vida que a prazo nos poderão ser favoráveis, desde que esta reiterada consciência do que seja a “biopolítica” reforce a urgência de nos empenharmos nas causas sociais e numa “nova aliança”, eco-ética. Esta crise, por outro lado, trouxe-nos respostas definitivas: o neo-liberalismo é o regime que menos nos defende, numa crise humanitária, e sabemos quem o representa.

Em segundo lugar, lembra-nos: as instâncias inconscientes e simbólicas tanto regem a nossa relação com o corpo como a sua saúde, eis um convite a que exorcizemos os nossos fantasmas.

Outra leitura que surpreendentemente me revelou outro tipo de contaminação – neste caso literário – e que demonstra que a virologia nos cerca, seja qual for o domínio, é a impensável ligação entre dois livros e autores aparentemente nos antípodas.

Quem à partida ousaria falar de afinidades entre Jack Kerouac e o Camilo José Cela? Pois façam o favor de ler o Pela Estrada Fora e em seguida A Cruz de Santo André. Os contactos são esmagadores e em vários pontos Cela dá um bigode a Kerouac, a começar pela voltagem da linguagem, o ritmo da escrita, mais amorfo no americano, e até – outro item desconcertante – na narração das relações sexuais entre as personagens, muito mais livre e inventiva no galego.

Kerouac escreveu Pela Estrada Fora num rolo de papel de teletipo com 36 metros de comprimento, simplesmente inserido na máquina de escrever e sem qualquer divisão de parágrafos, deixando que o papel se desenrolasse sobre o chão e tomasse o aspecto de uma estrada, A cruz de Santo André, escrito quarenta anos depois, no mais desopilante estilo paródico, começa assim: «Aqui, nestes rolos de papel de retrete (as patroas das pensões de estudantes dizem papel higiénico), marca La Condesita, escrevendo com esferográfica (…) vai ser narrada a crónica de um desmoronamento». Segundo os relatos mitológicos, Kerouac limitou-se a sentar-se e a deixar que durante 22 dias o texto fluísse, ao som duma rádio onde só passava be-bop, desfilando as suas histórias de vida, relatos verdadeiros de como se sucedia a vida estrada fora, à boleia, e como havia cruzado a América na companhia de seu louco amigo Dean e no desfrute do jazz, do álcool, das garotas, das drogas, da liberdade.

Em A Cruz… a desbunda é vivida pela coralidade das narradoras, que serão igualmente as «personagens do drama» e se vão revezando a macular com esferográfica o papel higiénico – Matilde Verdú, Clara Erbecedo, Mary Carmen, Jesusa Cascudo, Mary Boop e a sua mana Matty – e a “estrada fora” plasma-se na deambulação permanente das suas existências cruzadas, numa paisagem galega que se desdobra como os foles de uma concertina e à boleia dos seus inescapáveis apetites, vivenciados num ritmo sincopado e truculento (puro Charles Mingus) porque o desejo entra sempre com a vida «pela porta do cavalo» e foge à norma, ao planeado, à lei e à lógica do argumento. A “moral” da derrocada anunciada tange a do tempo que desgasta os corpos e enuncia-se assim: «Todas e todos nos sentimos descobridores do vício e cúmplices do vicioso, se Betty Boop tivesse sabido que o pai ia ao ginásio para ver atletas no duche, caía-lhe o céu na cabeça, se Betty Boop tivesse sabido que a mãe ia à sauna para ver mulheres nuas e às últimas filas do cinema para ouvir o sossegado arfar das masturbações recíprocas, caia-lhe o céu na cabeça, a Betty Boop também se sentia a inventora do vício; o Lucas Muñoz explicou uma noite ao violinista o que disse Baudelaire: não procures mais no meu coração, foi comido pelas feras.»

Ademais, em termos estilísticos fareja-se mais no Pela Estrada Fora o «comedimento administrativo» que em Cela… que logra com outra estaleca uma progressão narrativa não-linear.

Enfim – o que os vírus nos fazem descobrir e roça os paradoxos mais desconcertantes -, o conservador Cela torna Kerouac num seu avatar menor (não contem isto ao Trump).

Leiam e divirtam-se: há uma edição de A Cruz… que se apanha nas livrarias de fundo a dois euros.

9 Abr 2020

Do retiro

27/03/2020

[dropcap]O[/dropcap] gladiador que vai morrer saúda o Corona-César com um manguito porque também ele joga e julga e ri-se às gargalhadas dos Césares e dos que vão cuspir sobre o seu cadáver: saudades que me dão dos pépluns, a meio da noite, depois de um mosquito ter rompido de auriga a rede para me vir ferrar, quebrando-me o sono.

Sentado de perna aberta na preia-mar, cogito em como o relativo jeito com que me sirvo da Parker não me torna destro no manejo do sílex e do carbono – ou seja, convém pouco que uma regressão civilizatória exceda os limites do tolerável.

Ainda que a semana tenha sido deprimente e sinais apontem para aí, como o Bolso-onagro ter decretado que de entre as aglomerações desculpáveis, porque segundo ele essenciais, está a ida às salas de loto. É usar a roleta russa contra a população, ou idêntico a engolir um moscardo para o ver sair incólume, o seu verde iridescente e impoluto, pelo rabo, como se mais não fossemos – aos olhos da aleatoriedade do poder que ambos (insecto e Bolso) representam – do que o Homem Invisível.

Entretanto, corroborando o “chefe”, o presidente do Banco do Brasil afirmou que “a vida não tem valor infinito“. Tem sim. Mais que não seja porque isso abriria o campo à discriminação, que é absolutamente destituída de siso.

28/03/20

Adormeci ontem a ver The Banker, um filme de George Nolfi, onde Bernard, um miúdo negro com queda para os números e os negócios se torna um empresário de tal sucesso que, contornando as omissões das leis, se tornou o primeiro negro dono de um banco no Texas, em 1965, ainda que a coberto de um testa-de-ferro – branco.

Só três anos depois dele e do sócio, Joe (um brilhante Samuel L. Jackson, como aliás, sempre) terem sido denunciados e condenados a prisão por puro racismo, é que se decretou finalmente uma lei nos States que proibia a recusa de vender propriedades por razões de raça, religião ou género.

Cansa a desmedida da irracionalidade humana, mas a tragédia que o filme projecta é verificarmos como cinquenta anos depois não saímos do natural ressentimento e das clivagens entre raças. Como diz Joe a Bernard, que neste aspecto lhe parece ingénuo: «eu consigo ser amigo de brancos, “mas há sempre um extra”». A inversa, nesta terra em que habito, é igualmente verdadeira: eu consigo ser amigo de negros, “mas há sempre um extra” – esgotada a motivação de um “interesse” qualquer ou a “vantagem” passageira que eu possa oferecer ao outro, a amizade volatiza-se, de repente.

E agora há um “novo extra” associado à ignorância que rege a xenofobia: há quinze dias uns miúdos numa escola de primeiro ciclo fugiram de mim chamando-me “coronavírus!”. Hoje uma amiga contou-me como ontem, também num bairro popular de Maputo, o Alto Maé, a apontaram chamando-lhe “coronavírus!” e sentiu uma certa agressividade no ar. Que sejam casos esporádicos! Talvez esta tensão não decorra de um racismo de pele, mas de haver um entendimento popular de que seja esta doença uma enfermidade trazida pelos “ricos”, aqueles que têm possibilidade de viajar – aqueles que noutra crise foram apelidados de “chupa-sangue”.

29/03/20

De comum, tropeço em certas palavras a que sou alérgico, dado que por mais que as conheça não as uso nunca. Como “escopo”: o olhar é o escopo da luz, a larva é o escopo da borboleta, o seu sorriso com covinhas é um escopo de vagina, da brama do mar ao trilar das estrelas para além deste alpendre sobre o jardim tudo é escopo de um deus que se retira; o Índico tem cada vez menos peixes, lastimam-se os pescadores, que face às marés vivas olham para a faina como um escopo de ataúde, etc., etc. Não me escorrega facilmente pelo estreito, o vocábulo, nem em “escopo”.

30/03/20

Um belíssimo livro que devia ser obrigatório traduzir para português, Em Defesa do Fervor, do polaco Adam Zagajewski, que arranjei na tradução espanhola: uma defesa da poesia em tempos de cinismo e um hábil resgate do Belo e do Sublime, que Zagajewski leva a cabo sem padecer de qualquer recaída no idealismo.

Um excerto: «A poesia e a dúvida necessitam uma da outra, coexistem como o carvalho e a hera, o cachorro e o gato. Mas a sua união não é harmónica nem simétrica. A poesia precisa de duvidar da poesia. Graças à dúvida a poesia é purificada da insinceridade retórica, da verborreia e falsidade, da sua fixação prematura e da euforia vazia (não a verdadeira). Sem o olhar severo da dúvida, a poesia – especialmente no nosso tempo sombrio – poderia degenerar numa canção sentimental, num cântico exaltado embora estulto ou num louvor impensado de qualquer coisa inorgânica no mundo»

31/03/20

Um pato rasa o telhado da casa, a grasnar. Há uma hora andaram por lá os macacos. A lagartixa trepa pela parede amarela. A brisa leva o espanta-espíritos a responder aos pássaros. Em fundo o mar nunca se engasga, como um piano de manivela.

Estou embutido na natureza, esta benigna, já a do vírus é da predação, como a nossa. Mas por enquanto sinto-me distante das crónicas de desmoronamento. Bebo o terceiro chá da manhã, resolvi fazer uma dieta-intermitente e passo catorze horas sem levar uma bucha à boca, a ver se estou mais magro seis ou sete quilos quando o bicho me apanhar porque devido ao peso sinto os pulmões opresos.

Hoje sonhei. No meu sonho, bizarro, aparecia uma miúda de carrapito e aspecto modesto; o aprumo e a procissão, merda, merda, caiavam-na por dentro, como se lhe forrassem de papel de parede o verso da pele.
Espreito as notícias, tantos motivos para execrar o mundo. Mas de duas coisas sei: que nunca se deve apostar contra o mistério e que nunca me conseguirão inflamar o ódio. Tenho esta fraqueza.

2 Abr 2020

Dia quinze da quarentena

[dropcap]N[/dropcap]ada tenho a acrescentar ao que li numa entrevista de Juan Eslava Gálan, ao ABC: «Vivemos hoje uma experiência histórica excepcional. Quando tudo isto passar, o que acontecerá, acho que seria bastante inteligente para a Humanidade – a começar por aqueles que a governam – considerar que nem tudo vale e que talvez a natureza esteja clamando para que mudemos as nossas vidas. Além de mudanças climáticas, existem muitos sinais que nos vão sendo endereçados e há que mudar de comportamentos se pretendemos continuar a ser viáveis como espécie».

Escrevo na madrugada de segunda, dia 25, depois de ter sido declarado o primeiro caso de um infectado com corona na favela Cidade de Deus, do Rio. O rasto que esta brasa deixar na favela permitirá adivinhar o que podemos esperar nas periferias de Maputo. Tanto vai depender do comportamento destes barris de pólvora.

Como alguns privilegiados, vou “exilar-me” numa península perto do mar e sem vizinhos. É uma ilusão, mas a possível em país com vinte ventiladores hospitalares.

Em vez de ouvir falar do corona vírus, ouvir o mar: outra das motivações deste meu refúgio.
Mas aqui vos deixo o poema possível, nestes dias do luto:

 

DIA QUINZE DA QUARENTENA

As imagens de drone confirmam
o vírus unhou o silêncio
e o riso, nas ruas da cidade

embutem-se enxames
de pálpebras roxas, dolentes,
num sonho de corais.

Ao décimo quarto dia de quarentena
é lícito concluir: és mais
difusa do que as estrelas

e como o coração se deslassou
no skipe, aonde a mentira esquece
que caminha sobre andas.

Foram os amantes de ocasião
os primeiros a ceder neste transe
em que o inimigo é o outro.

Porfia a beleza, mas quem a admite
isolada numa caldeira
sem árvores?

Depois do século ter emudecido
os sinos, assistimos à repentina
invisibilidade dos aviões, temerosos

que até dos espelhos possamos desertar.
Só os cães abandonados reaprendem
a uivar. Chafurdámos até aos bordos

na medula do consumo e volvemos
retraídos bichos-de-conta
em cujas retinas um raio tatuou

os caninos da maldita. Como se fora
novidade, a morte, como se morrer
não fosse restituir um dente

à gengiva nua, o reverso
da alma que arrogámos imortal.
Tudo invenções que urdimos:

o amor, a dignidade, o lustroso
pêlo da liberdade que com felina
e orgulhosa determinação escovámos

– e de que agora cogitamos abrir
mão, pelo indulto de que o vírus não
nos vele o pulmão com o seu kilt.

Balimos de medo como a virgem
arrastada para o negrume da caserna,
bloqueados, à mercê. O que me espanta

nesta crise é a obsessão de imaginar
que a nossa morte possa sagrar
o fim do mundo, a velocidade

com que o medo particular
se tornou global. Segurança
ou morte: o novo mandamento,

a vizinha que adorava hortênsias
há vinte dias que não as rega e repete
merda para as hortências, merda,

e algures a vida tremula distante
como um placebo à cata de interruptor:
quem por último ficar que apague a luz,

dirá o último homem, cego ao sem sentido
do que diz. Mas as imagens de drone
confirmam: nunca o medo

teve tanto marketing,
nunca o homem foi tão oco.
As pessoas relacionam-se como fantasmas

com cordilheiras de permeio,
desairoso velório dos perfumes.
Era tremenda a energia nestas avenidas

e agora sorumbáticas desplumam-se
em nome duma responsabilidade
que antes nunca exibiram.

Embora coisas positivas, tremendas,
re-activem a esperança: aos canais
de Veneza voltaram peixes,

há finalmente um sentimento
de que as soluções têm de ser globais
e de que não há milionário impermeável

ao coração da maleita – de má postura
no retrato ninguém se livra!
Sete da manhã, saio nesta deserta

hora para um passeio à Catedral.
Ao fim de tantos dias duma seca
taciturnidade, desta travessia a vau

entre os gentios, apetece-me
ver vitrais, sentir a sós (porque o templo
vai estar vazio de beatas e de inúteis

preces) como a colatura daquela luz
me banha a pele e me filtra o sigilo.
Anima-me estar calado diante

da investidura duma transparência
que me tome como cúmplice
e não como seu observador acidental.

Há catorze dias que não saio de casa,
apetece-me aquele silêncio húmido,
penumbroso, uma cunha

entre a reverência acéfala e o respeito
dos ateus, uma medida sem ruído.
Assusta-me mais a tenacidade

de quem vê que a beleza persiste
mas resiste a plantar a semente
na caldeira sem árvores.

Voltemos ao terceto, Dante – afinal,
duas rodas de bicicleta e um selim:
que triste voltou a ser o nosso tempo.

26 Mar 2020

Reinventar o amor

[dropcap]O[/dropcap]ra, não sei se já deram conta de que o beatiful vírus que nos carcome dura doze horas em caindo numa superfície metálica. Que metalzinho nos vem mais às mãos, em reboludas e prenhes artes malabares? É uma circulaçãozinha que não cessa, a das moedas. Daqui a dois meses, dada o espantoso labor no contágio do vírus, quando o sistema quiser, em nome da saúde, dispensar o penhor metálico das lecas, o capitalismo terá conhecido uma das suas grandes derrotas.

Lavemos as mãos e que cada um de nós carregue acoplado ao cinto um termo com água a escaldar para lá enfiar as moedinhas, sempre que recebemos novas. Como numa história divertida passada na Zambézia.

Queixavam-se os utentes da cultura de uma determinada cidade de que o polo local do Ministério da Cultura não funcionava porque os responsáveis (uma dama) nunca se encontravam presentes. Foi lançado um inquérito, e eis o que se apurou.

A senhora, que para ali fora deslocada, entrava ao serviço e sentia-se de imediato muito incomodada, como se o escritório estivesse embruxado. Chamou um curandeiro cujo diagnóstico confirmou que o seu antecessor na função havia lançado um mau olhado no escritório. Era necessário um contra-feitiço. O que foi feito.

Mas, para ser realmente eficaz, como o verdadeiro alvo do feitiço era não apenas o local como a funcionária, havia de seguir uma rotina diária para que as coisas corressem sem engulhos: a senhora teria de purificar todas as moedas que recebesse no seu contacto diário, dado que o tal feitiço de que padecia correspondia a uma espécie de rejeição local à sua vinda, sendo obrigatórias as medidas de excepção.

A funcionária saía de casa de manhã, ia abastecer-se à padaria e ao supermercado do bairro, dava uma nota para pagar e em troca recebia umas moeditas de troco. Maldição. Tinha de deslocar-se obrigatoriamente à periferia para o curandeiro lhe purificar as moedas, e às vezes o terapeuta não estava, havia que aguardar, podia chegar de manhã e só se despachar pela tardinha, nada podia fazer quanto a estes detalhes – que simplesmente explicavam a sua ausência no serviço.

Com a irracionalidade que se vai propagar à velocidade com que o vírus trabalha, chegaremos a este retorno à magia? Why not? No Hospital de Santa Maria já se contam cinquenta médicos, de entre as vítimas que contraíram o vírus. Não vai faltar motivos para ter medo. E o medo é o pai de todos os feitiços.

Feiticeiro mor quis ser Trump quando procurou garantir, junto a um laboratório alemão que está perto de validar a vacina, o direito exclusivo para os americanos de uma vacina contra o coronavírus.

É de ter medo, muito medo, quando os líderes mundiais têm este tipo de comportamento, e talvez exija uma atitude política. Diante de tão grave comportamento, a UE devia mandar um recado à américa: os senhores escolham quem quiserem para presidente, mas o senhor Trump, doravante, não será recebido por nenhum chefe de estado europeu. Isolá-lo, porque é um vírus!

Entretanto, este estado de coisas que nos apanhou desprevenidos, é a demonstração derradeira de que não se devem privatizar os sistemas nacionais de saúde, pois é de temer a ganância associada à irresponsabilidade sanitária. Em Maputo, querendo comprar um termómetro, já me foi pedido um valor que quadriplica o preço habitual. Paguei em moedinhas, por via das dúvidas, estou-me a descartar.

Enfim, para esta tristeza em que o mundo se convulsiona, resta o antídoto da poesia, como este tremendo poema de Ghérasim Luca, de 1945, que verti, O INVENTOR DO AMOR:

Planante, de templo em templo/ o sangue do meu suicídio virtual;/ fluxos // preto, vitrificado e silencioso// Como se eu me tivesse realmente suicidado// cruzam-se as balas no meu cérebro/ dia e noite// cortando as raízes do nervo/ óptico, acústico, táctil/ – esses limites -/ e espalhando por todo o crânio/ um cheiro a pó queimado/ sangue coagulado e caos// É com particular elegância/ que eu carrego nos ombros/ esta cabeça de suicidado/ que passeia de um lado para o outro/ um sorriso infame/ envenenando/ num raio de vários quilómetros/ a respiração dos seres e das coisas// Visto de fora/ dir-se-ia que alguém desmorona/ sob uma rajada de metralhadora// O meu passo incerto lembra/ o dos condenados à morte/ o do rato do campo/ o do pássaro ferido// E como o funâmbulo/ equilibrado no seu guarda-chuva// aguento-me firme/ no meu próprio desequilíbrio// Eu sei de cor/ esses caminhos desconhecidos/ percorro-os/ de olhos fechados// Os meus movimentos/ não têm a graça axiomática/ do peixe na água// já o abutre e o tigre/ estão num marasmo, confusos / como tudo o que vemos/ pela primeira vez// Terei de inventar/ uma maneira de me deslocar/ de respirar/ de existir// num mundo que não é nem água/ nem ar, nem terra, nem fogo/ como saber com antecedência/ se temos de nadar/ roubar, caminhar ou simplesmente de arder// Ao inventar o quinto elemento/ o sexto/ terei de rever os meus trejeitos/ os meus hábitos e certezas// porque querer passar de uma vida aquática/ para uma vida terrestre/ sem alterar os destinos/ do próprio sistema respiratório/ é uma morte macaca// Quarta dimensão (5ª,6ª,7ª,8ª, 9ª)/ o quinto elemento (6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º)/ o terceiro sexo (4º,5º,6º,7º)// Saúdo o meu duplo, o meu triplo// miro-me ao espelho/ e vejo um rosto crivado de olhos/ bocas, orelhas, figuras // Sob a lua/ o meu corpo lança uma sombra/ uma penumbra/ uma vala/ um lago tranquilo/ uma beterraba// Estou realmente/ irreconhecível// Beijo uma mulher na boca/ sem que ela saiba/ se foi envenenada/ e trancada mil anos numa torre/ ou se simplesmente adormeceu/ com a cabeça em cima da mesa// Tudo deve ser reinventado/ nada mais resta neste mundo».

Gherássim Lucas, não querendo mais contaminar mundo suicidou-se em 1994. Uma ética que alguns políticos deviam observar.

19 Mar 2020

Ministério do Medo

[dropcap]- S[/dropcap]e o governo compra um circo, o anão começa a crescer. Cito um antigo ministro da economia…
– És capaz de tudo, para te fazeres interessante!
– Ajusta-se a este fenómeno de acamparmos nas margens do rio Corona… Que, pelos vistos, tem novecentos metros de fundo e rápidos fragorosos…
– Estás mesmo a águas, dá-te para seres espirituoso!
– Repara na frase do ministro, quer dizer que é detectável um desfasamento permanente entre o que se consegue planear e o curso da realidade.
– Pões paninhos quentes sobre a ineficácia do sistema?
– Digo que a arte de governar é a forma como se disfarça que não estamos preparados, que nunca estivemos. O Trump reconhece-o ao desviar o assunto e afirmar que a crise do coronavírus terá um aspecto positivo: os americanos gastarão mais dinheiro em casa, em vez de viajarem para áreas afetadas pelo surto. Diante duma calamidade mundial, ele converte-a em dividendos para a economia americana…
– Tu arriscavas ir a Veneza, com o vírus?
– Parece uma inconsciência, mas arriscava, é uma questão de oportunidade. Quantas vezes poderei eu ir a Veneza?
– Quantas vezes podes tu apanhar o vírus?
– Este vírus, apesar de tudo, algumas, não faço parte de qualquer grupo de risco…
– E caías como as Bolsas…
– Cuja queda foi aproveitada pelo Trump para prometer uma baixa de impostos… a lógica que ele transmite é que com ele os americanos estão blindados; só fora de portas se encontra a Kryptonita Verde…
– Smart, mas já se sabia que o menino é imune à empatia… lembras-te do primeiro comentário público que ele fez, quando caíram as Twin Towers: O meu edifício 40 Wall Street voltou a ser o mais alto de Nova Iorque!?
– Mas agora detecta-se-lhe um padrão no comportamento: ele tem cagufa do que não domina, é o que lhe explica que só se dê bem com tiranecos que têm menor poder do que ele… Gente à altura dele, ele não aguenta… nem se ofereceu para fazer a mediação com o Putin nas negociações com a Opep… E essa cagufa dele, estranhamente, reforça o narcisismo tóxico da América…
– Chega de falar no marmanjo!
– Sim, falemos antes do “perigo amarelo” que impulsionou esta histeria associada ao vírus. Havia o tigre-de-papel, o tigre-do-bali e o tigre-de-java e agora temos o tigre-nanotecnológico, importado em fábula biológica…
– Não é justo chamar-lhe fábula, os números já são puxados, agora na Itália paralisou-se o futebol…
– É um problema, sem dúvida… Contudo, viste os números da OMS? A gripe da temporada (seasonal flu) está a causar muito mais vítimas. Registam-se 2.812 mortes por coronavírus neste ano, contra 76.537 mortos pela gripe da temporada – ou seja 2.720% mais. É difícil não relativizar…
– Estamos sempre a ser ultrapassados pelos números. Achas que a coisa foi empolada pelos media?
– Com certeza, ainda que o vírus revele uma velocidade de propagação assinalável, que exigiam de facto medidas de contenção. Porém, a malária ceifa vinte vezes mais e nos últimos anos tem acelerado o número de vítimas. Não te vou poupar: o relatório da OMS relatório mostra uma relação entre o paludismo e a anemia em crianças com menos de cinco anos – 24 milhões de crianças, só em África, foram infectadas. Em 2018, as crianças representaram 67% das mortes mundiais, devido ao paludismo. E não há todos os anos novas estirpes de gripes novas? E não se têm fechado escolas, aeroportos, estádios, ou adiado congressos, por causa disso… Esta diferença na abordagem a esta nova ameaça é que tem de ser inquirida…
– Hum, funcionará o Covid-19 como um sintoma do medo ao desconhecido?
– Tal como, a outro nível, o pânico aos refugiados – que afinal nem chegam a 200 000. Como é que esta minoriazinha microscópica poderia afectar de facto 747,182,815 habitantes europeus?
– Sim, há desproporção irrazoável do medo em relação aos dois tipos de “vírus”.
– Não digas isso aos húngaros, ou aos fanáticos das identidades. Reparaste na coincidência de ter aumentado o sentimento de insegurança na Europa na exacta proporção em que têm crescido as reivindicações e os populismos identitários?
– Achas? Não pode ser!
– Não te percebo esse tom…
– Veio-me à cabeça que provavelmente a absoluta vaga de imoralidade política patente nos novos líderes é que tornou as pessoas inseguras, ou esta nova paisagem financeira que transformou a estabilidade económica num jogo de casino…
– É algo de sistémico que anda no ar. Tal como a gula com que as pessoas opinam sobre tudo nas redes sociais. Aliás, proporcional ao pavor de reconhecerem que têm feito péssimas escolhas políticas… e à mínima tensão explodem em defesa da sua “imagem”… Viste o comentário pedagógico do Jurgen Klopp à pergunta que lhe fizeram sobre o coronavírus? Foi uma lição de humildade… Hoje a grande fatia da comunicação social lembra-me esta pergunta dos metadiálogos do Bateson: “Pai, porque é que os adultos fazem guerra, em vez de lutarem como as crianças fazem?”
– Todavia, minimizares o Corona soa-me a erro de paralaxe de quem está nos trópicos… tens sorte do vírus não se dar bem com temperaturas acima dos 26 graus…
– Estás enganado, este caldo permanente é uma chatice, e não compares as políticas de saúde pública, estás muito mais bem protegido… O que me mete espécie é como a comunicação dramatiza mais do que esclarece… Que nem sequer se tirem as ilações políticas disto tudo!? Quem ganha com isto? Quem está a lucrar com esta loucura? Fareja o rasto do dinheiro e achas o criminoso, aconselhava o Mickey Spillane… O Trump foi até transparente…
– Para acabarmos com esta conversa, é crise ou não é crise?
– Vista da lua é uma crise de ricos, e um pouco ociosa. Porque, se oferece perigos, não é a peste… antes se assemelha a uma manifestação do Turismo do Medo. Que vai ter Ministério.

12 Mar 2020

Contra os panhonhas!

[dropcap]A[/dropcap]ssim que eu for primeiro-ministro despeço-me – de panhonhas estou farto!
Este tempo promove os panhonhas e o seu reverso: os objectores-da-consciência. Como Trump e Bolsonaro e o inefável presidente indiano, Narendra Modi, que incitou o integrismo hindu e incendiou o país (cf. a carta de Arundhati Roy, aqui ). Todos eles seguem o modelo do conselheiro de Trump, Roger Stone, que no documentário do Netflix, Get me Roger Stone, dá os mandamentos para chegar ao poder e mantê-lo e que se sintetizam numa pergunta: se é preciso ser infame, qual é a sua dúvida?

O problema dos panhonhas é que nunca ousam acreditar na extensão do Mal. Já o problema com o Mal, que se expande com descaro e ganas, é que sob a sua filigrana já não respira ninguém, um outro. Não que, à semelhança de outras épocas, ele não “pareça” agressivo, implacável, corrosivo. Mas de tanto ter sido transformado em reality-show não traz já o pavor indescritível de outrora.

Já não conseguimos imaginar o Mal para além da medida que consentimos, supondo que ao deixá-lo exprimir-se um pouco estamos a retirar-lhe o gás. Descrentes da realidade, ficamos reféns das imagens, achando que o vidro do plasma nos separa e protege e que a acção dos diabretes é mensurável, como os selos que se colam nas cartas endereçadas ao bem-que-nos-pariu.

Eis-nos abarrotados até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de zombies e de espelhos que se vingam retroactivamente, de ogres & aliens, de políticos que mentem ruidosamente – com a rede de saberem que toda a gente admira um bom vigarista -, de tiranos que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria baixa & escarninha – esperem, veio-me um arroto.

Ora, o problema é mais fundo – meu caro panhonha, meu hipócrita, meu igual: desapropriam-nos. Hoje, ser sacanita, mesquinho, malicioso, espertalhão, oportuno na pequena perversão, iniciar os anjos na pederastia, engessados ou não… que raio de prazer isso agora nos traz neste clima em que os massacres se sucedem em directo, em Chicago, em Nova Deli, em Cabo Delgado e se escalpar bebés é o novo divertimento?
Lady Macbeth boceja e nós, depois de todo o bem-cariado, chegámos ao Mal sem sombra, ao mal como turismo de massas – ao império da opinião a todo o transe.

No oposto disto, em carta a um amigo japonês, Kuniich Uno, escreveu Deleuze, sobre como se sucedia a sua colaboração com Guattari:

«Pouco a pouco, um conceito tomava uma existência autónoma, de modo que por vezes nós continuávamos a compreendê-lo de maneira diferente – por exemplo, nunca compreendemos da mesma maneira o “corpo sem órgãos”. Nunca o trabalho a dois tendeu a uma uniformização, sendo mais uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma».

Raramente vimos manifesta uma liberdade tão grande quanto à própria opinião. Os dois pensadores colaboravam para poderem convergir e divergir, numa pulsação contínua, sem receio de se contradizer e sem apararem as linhas de fuga. Pelo gosto de multiplicar.

Nunca lhes passou pela cabeça a disputa ou a necessidade de domínio na relação; sem reservas, numa porosidade em acto, a aventura de penetrarem em espaços desconhecidos (os que “a resistência” do outro abria na escuta de cada um) tornou-se prioritária.

Simplificavam: a colaboração prescindia de negociações, porque o conflito estava de antemão desactivado, não havia confronto entre forças/opiniões polarizadas, não se tratava de uma disputa dialéctica, mas de estar aberto a um fluxo que faz das suas sombras matéria para fazer engrenar o pensamento na virtualização do múltiplo.

Eis um verdadeiro “encontro”: cada um deles superou um pensamento condicionado pela inércia das representações. O que acontece quando seguimos as linhas da água e à manifestação da “vontade” preferimos incarnar o “impoder”. Nos antípodas do que defende Bertrand de Jouvenel, no seu livro basilar sobre o Poder, para quem “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento da sua vontade”, atitude que voltou a ser a única disseminada.

O “impoder” não é um signo de impotência mas um reforço da potência que nasce da liberdade a si mesmo. O que talvez explique que Michel Serres tenha dito de Deleuze que era o único caso que conhecia de um filósofo a quem o pensamento trouxera felicidade.

É desta grandeza humana que estamos necessitados, da qualidade de gente que se dispõe à luta para “não ter poder”.

Porém, para isso, precisamos de agir, de confiar de novo na astúcia que o outro nos traz, em vez de o vermos como estorvo. O que começa por simplificarmos.

Ontem, por exemplo, depois de uma boa sesta, acordei para a delicadeza da Sónia, que (quase com recato) me batia uma sarapitola (- ah, alegria dos esses!).

A Sónia tem seis dedos em cada mão, como os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que depois de confiarmos na Sónia ficamos menos tolerantes aos homens infames.
 Tinha convidado a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso? Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, E que tal uma pívia? Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner.

Adoro mostrar os meus dons, justificou.

Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a cinquenta metros de profundidade – sabe simplificar, é o que é.

À saída disse-me: Gostei, julgava que eras um panhonha!

Era, mas panhonha nunca mais, antes primeiro-ministro!

A quem não acreditar na bondade das coisas simples, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra.

5 Mar 2020

O pacto

[dropcap]N[/dropcap]ada do que é inumano nos é estranho!
– Como é?
– Ao contrário do que dizia Terêncio, a humanidade é uma raridade… e tem de ser provocada. Nós navegamos no inumano.
– Triste.
– Sobre isso não conjecturo. Apenas constato.
– E como chegaste a essa ideia?
– Nem é sequer uma ideia, é uma evidência. Chegou-me da odisseia pífia do americano Michael Hughes, que morreu na semana passada durante uma tentativa de demonstrar que a Terra é plana. Hughes, conhecido como “Mad Mike”, construiu um foguete movido a vapor, no seu jardim, com a ajuda de um amigo. E contou à imprensa que o seu objetivo era subir 1.500 metros acima do nível do mar para provar que a Terra não é redonda, mas tem “a forma de um disco voador”. Só que o foguetão explodiu-lhe nos braços… Bom, começo por discordar do Mad Mike no formato da Terra, apostaria no da pera-rocha, ou no das orelhas do defunto
Vasco Pulido Valente, esse pensador sempre alerta…
– Deixa-te de sarcasmos!
– Bizarro que o Mad Max confiasse nos conhecimentos tecnológicos do amigo, que se apoiava em informações extraídas da net, mas não confiasse nas fotografias tiradas por satélite: vês congruência nisto? A pobre criatura era acometida por dois males: o de má-fé quanto à plausibilidade do conhecimento que o mundo lhe poderia oferecer, só aceitando a “prova” que ele mesmo engendrasse; e duma enorme incapacidade de aprendizagem, dado que contrapunha às evidências o “modelo abstracto” que a cultura dos terraplanistas lhe implantou no cérebro. O Mike fugia da realidade como o diabo foge da cruz.
– Mas isso é estupidez, não é inumanidade…
– Olha que sim, as feridas que provocam aqueles que denegam a realidade e a deixam exangue, exilando-a, são incicatrizáveis. Esta crueldade é inumana… Não há crime maior do que negar à realidade o coração e o lume… É como pôr um recém-nascido a “chutar” absinto…
– Queres dizer que estamos rodeados de junkies?
– Duvidas? Quem nega com tamanha sanha a realidade torna-se junkie, terraplanista, fanático-abstracto…
– Os platónicos não negam a realidade?
– Não, estabelecem que esta esfera cá em baixo é menos perfeita que a ideal, mas não negam a esfericidade.

É uma questão de sobre-significação, de foco e detalhe… Já o Mad Mike escamava viciosamente qualquer mínima parcela da realidade para a classificar como um peixe. Se de uma pedra não obtinha escamas, jurava que era um peixe congelado há oito mil anos e chegado da Antártida, novo território de todos os delírios…

Digo-te, negar a realidade é o mecanismo entranhado de quem não se quer comprometer… E não só politicamente, a cobardia entrou em força nas artérias dos inumanos… Olha as igrejas…
– Não sei se te acompanho.
– Vai à Universal, a fé, neles, é o simulacro que permite o voyeurismo do demónio alheio. Ah, assistir ao demónio do outro a ser caçado! E nesta barretada, cobarde, o dízimo é o engendramento capitalista da dizimação da fé…
– Estás a fazer trocadilhos.
– É mais do que isso… Hoje a única subversão política que se mantém de pé encontramo-la no mito do Fausto…
– Tens cada uma!
– Olha que não! Depois do Marx só o Fausto. Ao pobre o que resta, se as narrativas da emancipação derrocaram como castelos de cartas? O que resta ao empreendedor com boas ideias, mas sem financiamento? Qual a hipótese para o talentoso, mas nascido na periferia da grande finança? Que melhor saída para o tipo que estudou e tem rasgo mas não tem cheta?
– És um hermético, sabias? Desembucha…
– A única coisa que lhes resta é vender a alma ao Diabo. O rico tem por si a herança e as leis que o protegem. Vender a alma é o expediente do corajoso contra a venda a conta-gotas do capitalismo. Por cada pobre que avance para o Pacto abate-se um operário explorado… Para quê passar por mais dificuldades? Sabes qual é a mensagem mais frequente dos anjos na Bíblia?
– Vais dizer-me…
– Levanta-te e apressa-te!
– Queres tirar o negócio a Deus!?
– Quero descapitalizá-lo, devolver-lhe a gratuidade! Hoje, a única missão é divulgar a disposição de Mefistófeles para nos restituir a dignidade…
– A alma contra a dignidade?
– Chega do quase-etéreo ideológico… Antes o carácter que a virtude. E ao fazeres o Pacto provas ao menos que és humano, é algo que já não te tiram: apegas-te ao real e a cada momento da tua finitude, antes da morte, a faceta mais áspera da realidade, ta tirar…
– Hum, conheces quem o tenha feito?
– O Brecht. Repara nesta tirada de 1926, tinha ele vinte e oito anos: «No dia em que já não restar mais nada para procurar na literatura, abandoná-la-ei. Quando queremos fazer um túnel, é preciso primeiro fazer a montanha. E se a tarefa de fazer a montanha é difícil, no fazer o túnel é que está o génio…», esta intuição não ocorre aos vinte e oito anos se não se fez o Pacto…
– O que é que tu fazias se, para além de te borrares, te aparecesse esta noite o Mefistófeles propondo-te a assinatura do contrato?
– Primeiro contratava o Iago e mandava-o entregar o mais belo casaco de vison do mundo à Melania Trump, em nome de um anónimo; para além de o pôr a forjar umas cartas de amor incandescentes da Melania para mafarrico, só para armar a confusão… o cornuto havia de deixar o mundo em paz por uns tempos… E depois comprava o Hoje Macau e aumentava cinco vezes o ordenado dos seus trabalhadores e o do seu director, para poderem finalmente montar um casino…
– E para a tua mulher nada?
– Ah, seria a croupier do casino e embutia-lha a alma no corpo, para que não pudesse vendê-la…

27 Fev 2020

Letras responsáveis

[dropcap]N[/dropcap]este frenesim de palavras ocas em que o mundo se tornou, consta que os castores da América do Norte se apresentam desdentados, a neve (há quem diga que por espírito de síntese) agora só cai sobre quem tem gabardina, o próprio silêncio procura o osso perdido das origens.

Desde que se instalou este estado de coisas as conversas morrem a meio, as vacas e os filósofos ruminam mas não engolem (as vacas começaram a levitar, os filósofos enterram-se a prumo com o peso das escórias) e descobriu-se que o corona é a vingança do pangolim.

Muitos propõem remédio mas no melhor dos casos só se detectam paliativos. E só enxergo uma saída, a aventada por Simone Weil quando assegura que a pura observação pode ser transformadora desde que empreguemos devidamente a sua melhor arma: a atenção.

A solução não está no cultivo das identidades, na inquietude ou na competição performativa, na elaboração de listas de tarefas pendentes, no bombardeio com que somos emboscados pelo mercado, no deve e haver sobre crimes passados (como alguém que já só sabe revolver o lodo), na indulgência que obtemos da nossa tribo nas redes sociais: não. Mas, em voltando a subir os índices da nossa capacidade para ficar atentos, para permanecermos atentos, para finalmente nos concentrarmos no que fazemos, esta balbúrdia das velocidades contemporâneas que nos aturde e provoca sonolência atenua-se.

Só o desejo de luz produz luz, dizia a senhorita Weil, e esta para ser vista necessita de um esforço da atenção. Não se conte com o que não custa esforço. Será isto alguma vez reflectido?

Entretanto, num livro autobiográfico que acabei e que incide sobre a infância e os imediatos anos de aprendizagem, escrevi este parágrafo: «O meu pai, que começara por ser trolha, entrou como aprendiz de linotipista no Diário Popular e seguiu o ofício. Na época, consideravam-se os linotipistas os intelectuais do operariado, por incarnarem em chumbo os livros de outros; enfim, uma consideração abstracta, demasiado generalista, esse confronto com as ideias dependeria da qualidade do que haveria a digitar, seria diferente ser o tipógrafo de Carlos Oliveira ou do Augusto Abelaira ou sê-lo de um prestamista do regime. Todavia acreditava-se que por osmose ou circulação dos fluidos se vazava a sabedoria de uns para outros e o meu pai, lacónico até à medula, devia passar por muito profundo.»

Voltemos à frase sublinhada: os linotipistas/tipógrafos incarnavam em chumbo os livros de outros. As palavras moldavam-se em chumbo, dessas páginas em baixo relevo de chumbo resultavam as matrizes que seriam depois impressas, duplicadas, no papel. Havia um mano a mano com a densidade material, a cada palavra lida antecipava-a o seu peso, um grave e oblíquo labor responsável. Cada palavra antes de ser lida fora um artefacto material, era um fruto de um processo lento e de uma compactidade que, inesperadamente, tornava o pensamento profuso. Pergunto-me hoje se que isso não transmitiria à palavra uma qualidade, uma substância, um compromisso que a leveza, a rapidez, a facilidade de rasura e permuta do texto digital volatizam e desresponsabilizam; se quando a matriz da palavra tinha um peso não teríamos menos cobertas de croché.

Li há pouco tempo um ensaísta literário que dizia que a poesia portuguesa dos anos 90 se produzira contra a densidade de alguns poetas anteriores, como a Fiama Hasse Pais Brandão. De facto, e também na prosa, muito pouco hoje me parece estar à altura das densidades de A Noite e Riso, de Nuno Bragança, de Maina Mendes e Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, ou de Novas Visões do Passado, Homenagemàliteratura, ou Área Branca, de Fiama, escritos na época do chumbo ou ainda sob influência do chumbo.

Quem hoje se entregaria ao entusiasmo de ler As Quibíricas ou A Arca, de João Pedro Grabato Dias?

Que tipo de eflúvios se libertaria daquele elemento químico com que se criavam as letras da tipografia e da “arte negra” – a caixa de metal em que se justapunham as letras de chumbo, linha a linha, para a composição de cada página –, como se a toxidade do chumbo fizesse o pensamento reagir, elevando-o, contrariando o desconforto da matéria?

Escreveu a Velho da Costa em O Mapa Cor de Rosa, um dos seus livros de crónicas: «Metamorfose do tempo que faz lá fora, eu sei talvez porque me assola hoje, ou mais se atiça, a retórica da melancolia e do desânimo.

A crónica é desse género que tem encruzilhadas a biografia e a escrita – só a ficção protege, em dias assim, ou a epistolografia íntima, desatada. Mas os poetas, Senhor. Ou os cronistas de reinos, desunidos.

A senhora Amália, um supor, que vivia em Montes Velhos, ai Nena, um lembrar. Vivia e nem mal, nem bem, vivia. Bateu-lhe à porta uma cigana que trazia um menino aos peitos caídos, rilhado de um porco, disse bem, rilhado. Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – juro-vos que esta história é londrina, desgostos portugueses, lá iremos».

Como é que se diz tanto em tão pouco, sem nunca descurar o ritmo, o sabor da língua, ou a riqueza de vocabulário? É muito mais do que exibir a opinião: Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – é conhecimento. Como é que esta estupenda autora não tem um único livro traduzido e hoje é lida somente por uma minoria?

Atravesso a noite a reler-lhe os livros de crónicas e eis-me siderado. Eu que tanto aprendi com ela, quando escrevíamos filmes juntos, continua a ensinar-me. Havia um brio em fazer melhor, em comunicar com o máximo de recursos, e hoje faz-se da preguiça norma de decência e de uma língua de trapos chave de leitura. E, mais frívolos e desatentos, deseducamos o leitor.

20 Fev 2020

Imaginação e utopia

[dropcap]D[/dropcap]iscorrer sobre Mozart seria infindável, mas uma anedota ilustra bem a sua imensa capacidade imaginativa.

Joseph Haydn e Mozart eram compinchas, e com outras pessoas fizeram uma comezaina em Viena. Durante a refeição, elogiou-se a superior capacidade interpretativa ao piano dos dois compositores. Então, Mozart desafiou, divertido: «Meus caros: vou escrever agora mesmo uma peça que nem mesmo o grande Haydn conseguirá tocar!»

Haydn apostou logo uma caixa de garrafas de vinho espumante. Mozart pegou em papel e lápis e, em poucos minutos, escreveu a peça.

Haydn sentou-se ao piano e começou a tocá-la, aparentemente sem problemas. Mas de repente, parou e comentou: «Isto não pode ser tocado: tenho a mão direita numa extremidade do teclado e a mão esquerda no outro, e aqui no meio há uma nota que deve ser tocada ao mesmo tempo. Isso é impossível!»«Ganhei! – disse o Mozart – A peça pode ser tocada perfeitamente.»

Sentou-se ao piano e quando chegou ao ponto em que Haydn foi incapaz de prosseguir, Mozart tocou a nota do meio com a ponta do nariz.

Há escritores notáveis com pouca imaginação. São muito bons observadores e inteligentes, reflectem com perícia e têm na precisão do verbo a sua melhor arma. Como Coetzee, Pavese, Martin Amis ou Cossery, de quem gosto muito, mas não pelos golpes de imaginação. Privilegiam outras qualidades, como a estrutura.

Mas Nabokov ou Camilo José Cela investem mais imaginação numa página que Coetzee num romance.
A falta de imaginação impede-nos de ver o que está diante dos olhos, no sentido que Frank Zappa esclarece neste seu dito: «A mente é como um paraquedas, só funciona quando está aberto».
Ramon Gener, um musicólogo espanhol, dá outro exemplo para ilustrar a imaginação em estado puro de Mozart: o”Dueto do Espelho”.

Trata-se de um divertimento em Sol Maior para dois violinos. A partitura está desenhada para que os dois violinos a possam tocar ao mesmo tempo, mas lendo-a no sentido inverso. Para fazê-lo deve pôr-se a partitura sobre a mesa e os violinistas terão de colocar-se um frente ao outro com a partitura no meio. Desta maneira, começando ao mesmo tempo, enquanto o primeiro violinista toca o primeiro compasso, o segundo toca o último (que para ele é o primeiro), quando o primeiro avança para o segundo compasso, o outro violinista avança para o penúltimo, e assim até ao final.

Observa Gener:«Para conceber um divertimento deste tipo, o que se necessita, em primeiro lugar e antes que nada, é de muita imaginação».

Sem dúvida, mas do que ele não deu conta é que o acto que esta partitura desencadeia é a grande metáfora do amor: duas pessoas interpretam de modo inverso a mesma partitura e onde sintonizam é no ritmo que lhes consente a ilusão de estarem ligados. Uma quebra de ritmo de ritmo ou uma aceleração do ritmo no outro e as afinidades esboroavam-se, a identidade que haviam construído perdia o nexo.

«Não concebo a inspiração como um estado de graça nem como um sopro divino, mas como uma reconciliação com o tema, à força de tenacidade e domínio… De modo que atiçamos o tema e o tema nos atiça a nós… Todos os obstáculos caem, todos os conflitos se afastam, e ocorrem-nos coisas que não tínhamos sonhado, e então não há na vida nada melhor do que escrever.», declarou entretanto um senhor cheio de imaginação, o Gabriel Garcia Márquez, e disse tudo: a imaginação é apenas a propensão para ocorrerem-nos coisas com que não tínhamos sonhado.

Esta cultiva-se, treina-se no espaldar da página, é um dispositivo engendrado por um estado de confiança que reaparece sempre que, para além de reconciliados com o tema, ficamos impregnados por ele. Aí dá-se a festa das sinapses e a “orgia” é segura.

Embora a imaginação seja individual e não se dê em todas as condições. Como aventava Auden: «A inteligência só funciona quando o animal não tem medo. Uma atmosfera de amor e confiança é essencial».

Com a imaginação é o mesmo e o outro drama que lhe é inerente é que a imaginação sem a acção não é nada, a imaginação é transformadora. Sem poder actuar, entristece.

Às vezes, dada a temperatura cínica em que mergulhámos, interrogo-me em quantos terá batido fundo o compromisso, que nos chega desde Pico della Mirandola, de que o homem não deve contentar-se com as coisas medíocres e deve aspirar às mais altas. Porque para isso é preciso que a imaginação transforme, que não haja um hiato entre o que se imagina e a acção.

É por contar com esse hiato que o Trump se dá ao luxo de dizer uma coisa no Discurso do Estado da Nação e de apresentar exactamente o contrário disso no seu Orçamento, uma semana depois. Razão tinha a sra., Pelosi em rasgar o seu exemplar do discurso à frente de todos, prevenindo aliás, Vocês verão o que vem aí.

O que é trágico hoje não é a vida (nunca vivemos tão bem, apesar de tudo), mas a tragédia da desistência do pensamento perante a vida, porque nos fizeram crer que tudo o que seja pensável será apenas a última ilusão que o mercado há-de converter em lucro, e esquecemo-nos de que há dimensões intocáveis, como, no dizer de Levi-Strauss, nos ensinam os mitos e a música: dimensões que promovem a suspensão do tempo.

É preciso voltar à utopia. Para Tillich as concepções animadas por um conato de transformação social “pervertem” o sentido da utopia por obra de uma crença cega no progresso. A seu ver, estas concepções “profanam” a aspiração legitimamente utópica, dirigida ao inatingível. Às dimensões que promovem a suspensão do tempo.

Quando o tempo se suspende, deixa de haver a necessidade de trocas, a mercadoria torna-se irrelevante, o desejo de ter volatiza-se.

É necessário voltarmos a crer com ímpeto nos efeitos da imaginação e que esta pode ser um agente para a utopia.

13 Fev 2020