A força do que é inútil   

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]bsen, o maior dramaturgo do século XIX, esteve vinte anos fora da Noruega e foi nesse período que se tornou uma estrela do teatro internacional. Durante parte da sua ausência o seu verdadeiro lar foi o Café Maximilian, em Munique, onde, com a sua barba flamejante e os inúmeros jornais espalhados pela mesa, era um ponto de atracção e de admiração dos turistas. De tal modo que quando voltou à Noruega, o dono do Maximilian, em desespero, contratou um figurante de grandes barbas e semelhanças físicas com o dramaturgo, para ocupar a sua mesa todos os dias durante três horas a folhear jornais com um idêntico recolhimento e ímpeto físico a dobrá-los.

Aquele que não passava de um símbolo e que viveu sempre com tantas dificuldades materiais, tornara-se vital para a sobrevivência do café.

Igualmente, é hoje incalculável o volume de negócios, de eventos musicais e de lucro que tem movido o nome e a música de Mozart. Algo que seria muito estranho para o coveiro que em 6 de Dezembro de 1791 o enterrou na vala comum, como alguém imprestável e facilmente substituível. E poucos nomes cristalizam melhor como símbolo de uma civilização, a europeia.

Há poucas semanas li que o Gaudi teria acabado os seus dias a pedir esmola a quem passava nas Ramblas. Espantado, vasculhei em várias fontes e não consegui perceber se o genial arquitecto acabou mesmo na miséria profunda se a informação não passava de uma força de expressão. Mas apurei que acabou em grandes dificuldades financeiras e que o seu aspecto era o de um homem cujos problemas já faziam negligenciar a higiene e o estado da sua indumentária. Ou seja, morreu aquém da dignidade que impunham as suas obras. E hoje há maior símbolo de Barcelona?

Servem estes exemplos para constatar: os valores que fomentam o status social apresentam-se o mais das vezes invertidos – tendo em conta aquilo que no futuro verdadeiramente renderá, aquilo que alargará a liberdade expressiva do homem e lhe dilata o imaginário, ou seja, as modalidades de ser. Demos um exemplo: o futuro de Cristiano Ronaldo, assim que deixar de jogar à bola é nulo; comparativamente quantos conhecem o nome de Júlio Pomar, cuja obra continuará viva daqui a cinco séculos?

Nestes tempos incautos de esvaziamento da promessa humanista, trucidada pelo primado da economia e da estatística, urgia que os valores do símbolo recuperassem terreno na escala da hierarquia social. Hoje vivemos sobre a ditadura do utilitarismo e da funcionalidade. Os quais dependem duma obturação do simbólico. Daí a haver uma ultrapassagem dos regimes simbólicos no imaginário colectivo vai uma enorme distância.

«No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte», lembra Nuccio Ordine. Mas esta é a mesma dimensão reducionista que faz do sexo um mero exercício de fisiologia, numa monocordia pornográfica, e perdeu de vista a inteligência, a criatividade, do erotismo.

Eis a primeira mentira que é preciso desalojar, a de que vivemos num mundo pós-simbólico – deu-se apenas uma deslocação nos suportes mediáticos. Hoje há livros e viés da Gestão, por exemplo, que se servem da lição dos clássicos greco-romanos para vender melhor, persuadir melhor, agenciar os negócios ou prodigalizar uma dinâmica de grupo; já inversamente, não há um livro de literatura dessa área que possa dizer-se que tenha nutrido o imaginário humano com o mesmo teor vitamínico e duração.

Quando um arauto neo-liberal vai ao cinema e se presta a alimentar a segunda maior indústria dos EUA dar-se-á conta do que é que está a fazer? Está a entrar na caverna de Platão e a dar sequência à engrenagem dos mitos? Aquela mesma criatura que depois virá defender que vivemos num estádio pós-simbólico saliva pela sequela de Blade Runner: a narrativa que triunfou porque cerziu a fábula dos «amores contrariados» (a mesma de Romeu e Julieta) com o mito do Fausto, numa trama futurista.

Apetece dizer que o afluxo da sociedade neo-liberal contemporânea não passa do exacerbamento do “complexo de Midas” vivido à sombra da “síndrome de Midas”. O complexo prende-se com o medo (incutido desde a infância) de não se ser capaz de valorização social, no sentido do sucesso económico, e a síndrome, no seu epítome, clarifica o ódio por tudo que não seja “dinheiro” e não traduza a ascensão social por via dos bens que o “ouro” autoriza, querendo reverter em fobia “regeneradora” o que afinal se apresentava como um handicap em Midas: a amputação da sua sensibilidade.

Temo que com a investidura de Trump se irão acrescentar dois elementos aleatórios a esta conjugação já de si perigosa: uma celebração do imaginário do casino (a aposta no jogo e no bluff enquanto impulsionadores do económico, do social, até mesmo da guerra, aliás como corolário do sistema de Wall Street) e uma nova e arbitrária escalada da infantil cruzada do numerário contra o simbólico. Entretanto, seria bom lembrar: nada que assente exclusivamente no plano da vida material trouxe alguma vez alguma coisa de relevante à memória dos povos.

Por fora disto, tudo o que é inútil se nos afigura irrenunciável: do amor à dignidade ou à melancolia na música de John Surman, o saxofonista que quis conhecer o vento (os abismos do free jazz) para enfim nos tocar o coração.

19 Jan 2017

Barbearia Universal: uma homenagem

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]echou a Barbearia Universal, na 25 de Setembro, em frente ao Banco de Moçambique. Desloquei-me para me sentar na sua cadeira junto à vitrina, pronto a entregar-me às mãos de fada do artista e embati no espaço devoluto e no papelinho de despedida de um dos gerentes. Informaram-me depois que o motivo foi um dos sócios ter sido chamado a aprimorar a longa cabeleira da Morte.

Resta-me, em homenagem, contar o sonho que lá tive, da última vez que lá fui – jogavam-se as primeiras jornadas do último Europeu de Futebol.

Entrei desconfiado, diga-se. Cada um tem as manias que pode e a minha é a de que os barbeiros, abusivamente, me primem o cocuruto com os polegares, como se estivessem a avaliar o amadurecimento do melão. É prática que abomino, desde miúdo, apegado à tola incerteza de não ser uma cucurbitácea.

Mas aquelas mãos tocaram-me como veludo, interpunham uma almofada de ar entre os pomos digitais e a minha cabeça. Rapidamente adormeci. Um pouco depois abri um olho, a conversa animada levou-me a abrir o outro. Relato:

«- Conte-nos lá – um “habitué” sentado desafiava o homem que me aplicava a tesoura – você agora, em vendo o esférico a rodar, não fica com ganas de voltar?

– Não, já fiz tudo o que ansiava no futebol. Proporcionei centenas de golos, vou-lhe ser franco, agora até adormeço a ver, acho uma maçada…

– Cala a boca…- atazanava um terceiro com um sotaque carioca -, você até passou pelo Benfica e pelo Atlético de Madrid…

– Cansei, os dirigentes não dignificam o futebol…

– Pudera, se eras o guarda-redes com os reflexos e os rins mais extraordinários e os frangos mais inexplicáveis…

– Já vos disse, fui para o futebol porque gostava do espectáculo, nunca percebi essa coisa doentia da competição, a ânsia de ganhar…

– Foi o que o impediu de ser rico… – voltava o brazuca.

– Mas eu sou rico, daqui… – e apontava a cabeça.

– Desculpe, interrompi eu, com esses clubes na carteira, qual era o seu problema?

– Gostava de golos bonitos. Bolas chutadas à queima-roupa, que pareciam indefensáveis, apanhava-as todas. Mas as que surgiam na sequência de uma jogada bem desenhada, com princípio meio e fim, quando no seu todo desenhavam uma bela coreografia, como no ballet, punha-me a pensar, “por que não deixar entrar?” Como é que se aborta a beleza?

– Até montaram um restaurante em Madrid com o nome dele, Artur/ O Rei dos Frangos…

– Só a beleza é que interessa. E quando cheguei a Dortmund Spiegel é que vi que tinha razão…

– Nunca ouvi falar dessa equipa…

– Era uma equipa da segunda divisão alemã. Constituída só por jogadores de elite, com uma excelência técnica irrepreensível, só que com o mesmo problema que eu. E aí montámos um sistema de jogo que deixou o treinador à beira de um ataque de nervos.

– Como é que era, conta lá ao teu freguês novo, que ele não vai acreditar…

– Sou todo ouvidos, confirmei.

– Uma vez vi um documentário com o Garrincha que diz tudo sobre o nosso sistema. O Garrincha, num jogo internacional, ultrapassou o guarda-redes mas depois achou que assim o golo era fácil e voltou para trás. Voltou a fintar o guarda-redes e a voltar para trás, só à terceira é que foi de vez. E o realizador passou um grande plano dele e a cara dele era de enfado. O que lhe agradava era a dificuldade. Connosco era o mesmo. Fazíamos dezenas de ocasiões de golo mas muitas vezes falhávamos de propósito porque o que gramávamos era aumentar de tal forma pressão sobre a defesa adversária que o golo acabava por surgir… de auto-golo. Aí sim, gozávamos. Antes não…

– É espantoso… – concordei eu. E você, com o corte e cabelo é o mesmo…

– Vou-lhe ser franco… a melhor prenda que me podia dar este Natal seria cortar o cabelo ao Dhlakama e ao Nyusi (1)… Aí premiavam o meu zelo…

– Por mim, tem um voto… – respondi – mas que é que fazia com figurões?

– Acabava com a guerra…

– Como?

– Juntava a vespa e a abelha na mesma cadeira…e fazia uma extensão do cabelo de um para outro…

– Eh, eh, para passar para um os piolhos do outro?

– Não, piolhos não terão, não os difamemos, mas para eles verem que o tipo de cera que produzem é a mesma… e que quando só se produz cera não há sentido em guerrearmo-nos…

– Não me diga que neste país não se produz mais nada?

– Lembra-se de que a União Soviética quando caiu só tinha duas coisas para exportar: putas e engenheiros nucleares? Com Moçambique é idêntico, só temos para exportar moluenes (2) e ricos… Isch! Como se produzem ricos nesta terra!

– Então e isso não é bom?

– Seria, se com o kit-da-independência viesse um manual a explicar que quem é rico tem de trabalhar e de multiplicar a riqueza, mas os meus bradas (3) acham que ser rico é apenas poder consumir à força toda…

– Eh, pá! Tem razão, Artur!

– Que a minha filha morra de saúde se eu queria ter razão. Mas sabe qual é a desgraça dos povos? Aquilo que eu desejava para os anos vindouros?

– Faça os seus votos, homem!

– Desejava que os povos adquirissem a percepção de que talvez não sejamos tão ricos que possamos continuar a consentir na multiplicação espontânea de ricos que só têm por motivação os gastos… Tudo mudava, tenho a certeza, tenho tanta certeza como a de que Portugal é que vai ganhar o Europeu deste ano…

Eh pá – contrariei eu – já se está a fazer à gorja, ó Artur…

– Estou-lhe a dizer, é sincero…»   

Acordei, a barbearia estava vazia, estávamos a sós, eu e o Artur mais o seu eterno  cigarro ao canto da boca que mantinha o morrão de cinza a prumo, como se fosse bola posta na marca do penalty. O meu cabelo estava impecável, como sempre.

Fechou a loja. A cidade está mais pobre. Quantos “libertadores” deste país aliviaram as tensões na barba e cabelo destes desvelados artistas? A saudade, neste ano que se passou, devia ter o selo Made in Barbearia Universal.

1 .O presidente da Renamo, que move uma guerra contra a Frelimo (o partido no poder), e o presidente de Moçambique. Nyuse na língua maconde, etnia de que é originário, significa “abelha”;

2. Rapaz criado na rua, ao deus-dará;

3. Corruptela de “brother” com que se auto-designam os moçambicanos

12 Jan 2017

Macau

26/12/2016

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m vício (já o Henry Miller tem um livro intitulado Leituras na Retrete): nunca me enfio na casa-de-banho sem me munir de um livro sacado ao acaso da estante que, no corredor, lhe fica em frente. Calhou-me Macau, um livro de poesia do brasileiro Paulo Henriques Britto, que, com este livro, ganhou o antigo prémio Telecom, hoje denominado Oceanos.

Usa-se a palavra “Macau” num único poema, que pertence à série Sete sonetos simétricos, onde se lê: «(…) esse minúsculo/império sem território, Macau/sempre à mercê do latejar de um músculo (…)». Para além da ironia, do leve tom cómico-marítimo que atravessa o livro, não há nenhuma outra referência ou justificação para o título do livro. Contudo, diz-se num poema anterior a este, em Bagatela para a mão esquerda: «À mão esquerda é vedado/ o recurso falso e fácil/ de dispensar a partitura/ a fraqueza (dita força)/ do hábito. (…) (No entanto ela escreve coisas/da mais esconsa eloquência:/atropelar o sentido/ ao contrapêlo da pauta/ é a sua ciência.)». Talvez então Macau represente esse exercício de «pensar contra si próprio» que tem um símil no obrigar-se a escrever à canhota, como exercício de disciplina espiritual, e que simbolizaria muito do não-dito da gesta portuguesa: um louco exercício de descobrir um fundamento fora de si mesmo, ainda que seja nos antípodas. E talvez o quarto de Dez Sonetóides Mancos forneça a chave do livro: «Também já estive aí, no não-lugar/onde você agora não se encontra./Também não me encontrei.//Aliás foi justamente contra/a tal necessidade de seguir alguma/rota que jurei lutar. Lutei, perdi,/ e pronto: agora estou aqui,/ a alguns centímetros do meu próprio umbigo.// Se tudo correr bem, também a tua derrota/ vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.» Este poema é de uma fascinante ambivalência. Por um lado, ao nível mais geral do âmbito do livro, pode ler-se como uma desconstrução sacana de algo que inclusive não nomeia: a Saudade, esse sentimento que os portugueses inventaram para se ejectarem fora-do-lugar onde se encontram, num intangível e oblíquo esplendor ideal, descobrindo-se embora a alguns centímetros do seu próprio umbigo, pois, afinal, quem a si mesmo escapa? Por outro lê-se como auto-derrisão, no sentido de os homens (e o poeta idem) estarem condenados ao auto-engano (a procura da tal rota ou sentido para a vida) e a buscar nos não-lugares as suas miras. Neste sentido, Macau significará o mesmo que Madagáscar, no meu imaginário, quando escrevi:

«Os meus binóculos varrem as águas na direcção de Madagáscar. Enclavinhada na linha do meu olhar desponta a ilha. Enorme, o recorte da sua costa reflecte invertida a costa de Mozambique – é mar que nasceu de cesariana!

Não se vê, a ilha, mas já lá pus os pés e é um bom lugar para morrer, mais belo e intenso que o lado de cá. Escolhi voltar, mas a semente do que daqui não vejo frutificou: eis-me prenhe do que em mim doravante se chama Madagáscar, um cenário onde ainda respiram piratas e lemingues, ideal para uma topografia do sonho.

Vim para África recuperar o primeiro olhar, desapropriar o nome. Terei alguma vez a coragem de o mudar? Identifico-me totalmente com essa figura mítica de São Sebastião de Maranhão que se perdeu nas selva amazónicas, com o seu cortejo de elefantes, serpentes de prata, carroças cheias de tesouros, flores e palmas por toda a parte, pajens, alabardeiros e formosíssimas escravas – só não me identifico mais porque, azar de rosto humano, o processo histórico me negou as escravas.»

Macau: um livro absolutamente a redescobrir.

28/12/2016

Quatro da manhã. Toca o telefone. Nem tenho tempo de atender, vai abaixo. O número não pertence a nenhuma das operadoras telefónicas oficiais em Moçambique. É um 87, dizem ser uma linha que só usa a polícia. Não faço ideia. Ao fim de cinco tentativas, na calada da noite, resolvo atender. É a voz de uma mulher, que me fala em changana, ou ronga, sei lá. Digo-lhe logo que é engano, e corto a chamada. Ela insiste, à quarta vez atendo de novo, explico que não falo a língua dela – ela não parece importar-se. Calo-me e durante cinco minutos ouço o tom lamentoso de alguém que está na agonia de algo, a respiração sai-lhe sôfrega – pede-me ajuda? Fala português, pergunto. Inglês? A toada continua, numa língua que desconheço, parece-me aflita, isso é certo, mas tudo nos separa – e de repente é noite, diria o Ungaretti.

Uma vez, nos idos de 80, fiz uma interrupção no jornalismo e trabalhei na RTP. Numa série de humor miserável. Era «script girl» – anotador. Na edição da série (a montagem, como então se chamava), via-me metido nas catacumbas do Lumiar, onde ao longo de um corredor penumbroso se sucediam os gabinetes para a montagem. E o meu trabalho, em oito horas penosas, consistia em consultar o meu dossier de 20 em 20 m  para responder à pergunta monocórdica do realizador: António, o take 431 é o take 431? Eu consultava os meus apontamentos para responder, Confere. Ao fim de uma hora via-me verde de agonia, três horas depois a cabeça latejava. O meu único entretém era o corrupio no telefone público, encastrado na parede do corredor em frente ao meu gabinete, e permanentemente ocupado por uma miúda de estalo, que era script-girl como eu. Naquele dia as coisas não lhe estavam a correr bem. Estava sôfrega e ansiosa, devido a uma decepção. E às tantas ouço-a gritar, Tu não me podes fazer isso! E sai do telefone numa corrida, deixando o auscultador pendido. Tive de me levantar para ir pousá-lo no bocal e antes, a curiosidade mata, levei-o ao ouvido, no intuito de ouvir a voz do animal que magoava uma lasca daquelas. E ouço do outro lado, “Ao segundo sinal serão 12 horas, 42 minutos e treze segundos…” Era o Serviço do Tempo. Ela já não estava muito boa da cabeça, e aquela era a sua evasão. No dia seguinte demiti-me.

5 Jan 2017

Da hospitalidade e dos usos que damos ao tempo

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre tive a mola da ambição (ou da competição) avariada. Nunca quis subir num emprego, nunca quis ser chefe, nunca ambicionei liderar nenhum departamento, não me importo nada de perder às cartas (desde que não seja a dinheiro), só ganhei ao xadrez uma vez na vida, etc., etc.

Um dos maiores alívios da minha vida foi quando fui exonerado de Coordenador do Curso de Ciência de Comunicação, na Universidade Politécnica, em Maputo, cinco horas depois de numa reunião de professores (e sem que eu o soubesse previamente) ter sido anunciado nesse cargo. Motivo da exoneração: uma chuva de telefonemas para o reitor a indagar sobre o sentido de nomear um branco para o cargo. Adorei ser branco nesse fim de tarde.

Desisti do judo, depois de seis anos de competição, quando num campeonato nacional por equipas pus a minha equipa fora do pódio ao perder de propósito com um adversário que tinha um cinto três graus abaixo do meu, só para não faltar a um encontro que marcara com uma miúda. Estava “out” da competição.

Numa noite de copos com amigos jornalistas quis pôr a render essa minha inapetência para a competição e escrevi uma longa carta para o departamento de futebol do Real Madrid, em que me oferecia, por metade do ordenado do Emílio Brutragueño, para ser «o melhor suplente do mundo», assegurava, «aquele que nunca, mas nunca joga mas de quem a equipa nunca, mas nunca, prescinde de ter no banco». E prometia «elevar o nível de finta dos jogadores, lendo-lhes no banco trechos de As Mil e uma Noites ou de Henri Michaux». Como passámos a noite em branco, enviámos a carta aos Correios dos Restauradores, às oito da manhã, para um endereço que nos foi facultado por um jornalista desportivo espanhol. Não me admitiram, por falta de humor – técnica eu tinha.

Este relambório para explicar uma coisa simples: a única coisa que sempre quis ganhar na vida – muito mais do que dinheiro – foi tempo.

Ser dono do seu próprio tempo é importantíssimo, podemos comprová-lo pela regra antiga das cortes – conta o poeta francês Guillevic num livro de entrevistas -, que ordenava que só os fidalgos é que podiam atalhar a direito ou na oblíqua nos aposentos do palácio, os criados eram obrigados a percorrer todos os ângulos das salas e corredores, um por um, até esgotarem as solas e o seu tempo. Só um fidalgo podia poupar o seu tempo nos trajectos.

Para que se quer tempo? Aí as motivações diferem.

Um dos meus heróis, o jesuíta Richard Wilhelm que viveu na China trinta anos e foi o primeiro tradutor ocidental do I Ching, diria que o tempo lhe faltava para conhecer melhor o outro enquanto outro, pois, sendo-lhe perguntado de que mais se orgulhava em trinta anos como missionário na China, respondeu: ‘Orgulho-me de em trinta anos não ter feito uma única conversão religiosa’.

Esta recusa de proselitismo atesta uma liberdade inclusive a si mesmo que é a única forma saudável de estarmos no mundo: estarmos diante do outro não para lhe vender algo ou para convencê-lo de alguma coisa, mostrando que o usamos ou que ele é melhor ou pior do que nós, mas num poroso espírito de hospitalidade. Tentando, inclusive, a empatia. É esta virtualidade cada vez mais rara de encontrar entre os homens – sendo este motivo para darmos tempo ao tempo um dos que mais me interessa.

Li uma entrevista no Hoje Macau em que vi que também nessas longes terras isso é, infelizmente, raro. Lamentava-se o médico e escritor Shee Va, numa entrevista, a propósito do seu romance, “Espíritos”: «Acho que tem muito interesse quando se lida com uma cultura diferente poder compreendê-la. Talvez seja isso que quero transmitir. Portugal, neste momento, tem muitos chineses, o mundo inteiro tem muitos chineses. As populações não podem viver fechadas. Uma coisa que sinto em Macau é que foi durante muito tempo – e hoje em dia também – um sítio multicultural, mas em que as comunidades não interagem. Para mim, isso é mau – podia ganhar-se muito mais com a comunicação.»

As comunidades não interagem. Em África é igual. A célebre «reconciliação», tão buscada na África do Sul não aconteceu. Em Moçambique as comunidades étnicas e religiosas – brancos, indianos, negros, cristãos, muçulmanos, outros – não interagem. Co-habitam o mesmo território, sempre procurando algum tipo de poder hegemónico.

Já dei aulas a mil alunos, já escrevi prefácios para uma dúzia de livros, já apresentei vinte livros, já escrevi duas séries de ficção para a televisão oficial, já escrevi cinco ou seis catálogos de exposições, e os meus amigos negros são três, quatro; estou ao fim de doze anos de Moçambique confinado à comunidade de moçambicanos brancos. Nunca o quis. É assim mesmo: as pessoas usam-se, consoante as vantagens pontuais que se podem tirar delas, mas não interagem verdadeiramente, num afecto desinteressado. Há quem ache isto normal, eu acho um escândalo e um sintoma de um profundo mal-estar societário.

É transversal a todas as classes e idades. A famigerada multiculturalidade que se encontra nas aulas – onde o painel humano é um mosaico – não tem expressão na curiosidade sobre o outro e a sua cultura. A multiculturalidade tornou-se, patologicamente, apenas um alíbi que reforça a nossa identidade. O outro é um estrangeiro que está na “nossa terra” a prazo.

Em vez de usarmos o tempo para sermos competitivos e ambiciosos poderíamos usá-lo a aprender a hospitalidade, a acolher. Começa a ser uma urgência, antes que isto acabe mal. Ah, e o tempo nunca se cansará de ocupar-nos com os seus mistérios: por exemplo, metade das coisas que realmente importam só acabamos por levá-las a cabo quando já não temos tempo.

Como foi o caso desta crónica.

29 Dez 2016

Para que serve um exército

29/11/2016

[dropcap]T[/dropcap]itula-se, no matutino O País, de Maputo: «Nakume (o Ministro da Defesa) ameaça de demissão comandantes que falharem metas», e lê-se no seguimento: «Ministro da Defesa quer que todos os ramos e unidades militares produzam comida para fazer face à crise que o país atravessa. Os comandantes que falharem estas metas devem colocar o seu lugar à disposição». Vejo por uma vez que os militares podem ser realmente úteis, num país esfacelado por uma guerra civil estúpida e cretina.

Raras vezes percebi a utilidade e a necessidade absoluta dos exércitos.

Quando Xerxes invadiu a Grécia com um exército tão grande que secava os rios à passagem (e é indubitavelmente uma coisa que assombra: um exército tão grande que sorva os rios por inteiro), Esparta mandou contra ele um primeiro (pequeno) contingente de 300 homens, que travaram os persas em Termópilas – aí percebe-se a absoluta necessidade de um exército. O mundo de hoje seria muito pior e mais triste se Xerxes tivesse vencido; os déspotas demoram sempre mais tempo a morrer que os liberais, é uma verdade dramática.

A existência de Hitler tornou evidentemente obrigatória a existência de exércitos, ou nacionais ou em coligação, que degolassem o perigo do fascismo.

Portanto, há causas e causas. Mas em setenta por cento dos casos não é assim.

Agora, para que quer Portugal um exército, com aquele “volume”? Para se defender de quê? Que proveito tem um país tão pequeno e dependente em ter um exército que lhe devora uma fatia substancial do bolo que devia ser gasto em cultura, em bibliotecas, em educação, numa melhor distribuição social? Claro que há compromissos internacionais a respeitar, mas à tal Europa cínica e estritamente económica não deviam os pequenos países entregar a factura pela obrigação de estarem envolvidos em compromissos que lhes exigem um dispêndio desproporcional em relação às suas pequenas economias?

E a questão é:

Quantas consultas em oncologia custa uma bazuca?

Quantos ginásios custa um submarino?

Quantas bolsas de estudo se pagavam com um tanque?

Quantos carros de bombeiros se pagavam com um avião de combate?

Quantas peças de teatro custa um simples Tatoo Militar?

Não quero ser mal interpretado, mas constato que ou as mulheres portuguesas e moçambicanas não sabem onde têm a cabeça, ou não têm lido muito. Pelo menos não têm lido a Lisístrata, do Aristófanes.

É uma simples história de mobilização das mulheres contra o prolongamento da guerra do Peloponeso, que, face à teimosia dos homens em mantê-la, impulsionadas pela lucidez de Lisístrata, fazem uma letal greve de sexo. A guerra não durou muito mais!

Aí está uma forma clara de atenuar as dívidas portuguesa e moçambicana: enquanto Portugal e Moçambique mantiverem um exército desproporcionado para as suas reais necessidades, as mulheres deviam vestir as calças quando fossem para a cama. Convictamente: calças sem fecho-éclair.

Ao fim de três meses julgo que teríamos os militares de gatas, voluntariamente, a pedir demissão.

Isto também vale para a posse das armas. PISTOLA EM CASA: PERNAS CRUZADAS!

Se a boa metade da humanidade, tomando o exemplo de Lisístrata, fizesse o seu trabalho e não caísse na ladainha de um mundo congeminado pelo imaginário masculino haveria menos escolas ameaçadas por fanáticos.

Eia as palavras de ordem que escolheria para uma campanhia anti-bélica: « Minha amiga: acorde a Lisístrata que há em si! Time out: pernas cruzadas, mulheres do meu país. É o futuro que está em jogo, não o engravide!». Mas nunca me perguntam a opinião! E as mulheres, de facto, não têm feito o seu trabalho.

As mulheres na Líbia eram mais voluntárias. Só que em sentido contrário. Ao Kadhafi, sempre invejei os penteados e a guarda-pessoal de moçoilas. E elas disputavam a primazia de fazerem parte da Guarda de Honra de Kadhafi.

Depois do Kadhafi ter sido despachado como foi, acidentalmente (nunca soube como se produziu esta maravilha), recebi este mail:

«Saheera Mohamed Jamila, de 26 anos, virgem, 1,85 m, versada nas técnicas de tortura suava e mandarim, cinturão negro quarto dan em karaté-suc, especialista em estrangulamentos com arame, c/ nano pistola-metralhadora hk mp5 dissimulada nas axilas, carta para pesados e para merkava 3, patton M47, m-60, Leopard, domínio de quatro línguas europeias, para além do árabe, do swaali e do chinês, expert em amaciar detractores com uma culinária alucinogénica, ex-membro do body guard de Kadhafi, a quem partia as nozes; com carta de recomendação de Berlusconi, amiga de Mugabe, procura emprego compatível, de preferência a sul do Sahara, em país laico e firme em aplicar as leis e a sua defesa e dá desconto nos primeiros três meses de serviço».

Virgem? Hum. Mas, confesso que fiquei agitado. E por quê a mim, confessado pacifista? Com um remorso antecipado reencaminhei o mail para o Ministério da Defesa, espero que tenham dado provimento, é sempre triste ver alguém tão competente de mãos a abanar.

Porém ficam as perguntas: Quanto custa manter um exército? Desmantelar um exército sai mais caro que mantê-lo? É prioritário para Portugal, neste momento, manter um exército? Não é possível reconverter a indústria do armamento? De que dívidas se fala se não se tem a força moral de se abater nas balas para se injectar no crédito às pequenas e médias empresas? E em nome de quê as tão judicativas instâncias do mercado internacional, quando avaliam em recessão a economia de um país, não preconizam de imediato: querem crédito, abatam primeiro o exército?

Está para além do meu entendimento que depois de escolher a entropia um país peça emprestado para pagar o diligente serviço das carpideiras.

Todos os anos, pelo ano novo, cresce-me nas costas um bocado de asa e tenho de a meter para dentro, deve ser disso.

15 Dez 2016

Como tornarmo-nos bestas, Capítulo I

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22/11/2016

a-mae-do-dumbo-1[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á nem os animais são o que são. Aliás nunca foram o que pareciam: as sereias, por exemplo, pelo menos as originais, as gregas, nunca tiveram rabo de pescada. São mais harpias, com toscos troncos de ave e garras. Nunca consegui contar a verdade às minhas filhas.

Em Moçambique, em 2010, uma cabra passou a ser mulher. Na Beira, um camponês encontrou dois matulões a violar-lhe a cabra. Levou-os à polícia, na ponta da espingarda. Aí perguntaram-lhe, Que quer o senhor como compensação? E ele, sisudo, respondeu, Quero que me dêem o lobolo (o dote). A coisa seguiu para tribunal, onde foi objecto de uma encarniçada discussão sobre se seria legítimo conceder-se um lobolo a uma cabra. Estrebucharam as associações ligadas à questão do género, mas o que se pode fazer: é cultura!

Houve outro caso espantoso em 2012, mais para o norte. Um régulo (o chefe da aldeia), falecido há pouco tempo, reencarnou num hipopótamo. Foi um sururu. O hipopótamo passou a ser agraciado com o petisco favorito do régulo: picapau ( um prego trinchado) e uma garrafinha de vinho carrascão. Parece que o bichano levantava uma orelha quando o chamavam pelo nome do régulo. Era encantador. A um tal ponto que o governador da província lhe fez uma visita e um tributo: levou-lhe umas caixas de vinho de boa cepa portuguesa e cem quilos de carne já cortada, para um ano de mantimentos. Respeito é respeito. As crianças descalças da aldeia aplaudiram e o professor, que lhes dá aulas sob uma árvore e sem carteiras, fez uma quadra alusiva. É o que se chama desenvolvimento humano. Eu escrevi no Savana:

«(…) literalmente acredito em tudo. Que a alminha do régulo transborde para o quadrúpede é-me pacifico. Mas o facto de acreditar em tudo, e esta é a diferença, não quer dizer que dê o mesmo valor a tudo. Uma coisa ser plausível não quer dizer que seja necessária. This is the question.

E acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível voltar como físico nuclear, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico.»

Os filósofos falam disto – desta convivência entre o animal e o homem e o que deles há em nós e vice-versa. Derrida dedicou um livro ao assunto. O italiano Agamben não lhe quis ficar atrás. E já antes o Deleuze falava do devir-animal.

(Não sei o que os filósofos escreveriam sobre este assombro, ainda maior: em 2007, a STV – o segundo canal de televisão em Moçambique – fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.

A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, por quê ficar por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro paririam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam. Mas voltemos aos animais.)

Uma prova de que o devir-animal não funciona univocamente, mas sim para os dois lados, encontrei-a em Cabora Bassa, onde encontrei a fotografia que ilustra esta crónica. Ela demonstra que a Natureza via o Disney e que adora o Dumbo. Se me tivessem contado não acreditava, mas parece que Deus brinca mesmo connosco, às paródias.

Paródia e das boas foi o que aconteceu a semana passada, no sul da Líbia. Transcrevo:

“Um incidente envolvendo um macaco foi a causa inicial de um confronto tribal de 4 dias, que deixou pelo menos 16 mortes e 54 pessoas feridas na Líbia, informou no domingo um funcionário da área de saúde local.

De acordo com os moradores e relatos locais de Sabha, no sul do país, o surto de violência começou de modo inusitado, depois de um macaco, pertence a um comerciante da tribo Gaddadfa atacar um grupo de garotas estudantes que passavam pelo local.

O macaco teria puxado o véu islâmico de uma das garotas, fazendo com que os integrantes da tribo Awlad Suleiman matassem, em retaliação, três homens da tribo Gaddadfa, além do macaco – de acordo com um morador local que falou com a Reuters. “Houve um aumento da violência no segundo e no terceiro dias, com uso de tanques, morteiros, e outras armas pesadas”, disse o morador à Reuters, pelo telefone, falando na condição de anonimato por temer pela sua própria integridade física.

Na região de Sabha, uma espécie de ponto de entrada de emigrantes e de armas contrabandeadas no sul da Líbia, geralmente negligenciadas pelo Governo Central, os abusos de grupos de milícias e a deterioração nas condições de vida têm sido especialmente alarmantes.

Gaddadfa e Awla Suleimand representam as maiores e mais poderosas facções armadas da região… etc., etc.”

Pobre do véu, era o único inocente nesta história. Porque a rapariga, tenho a certeza, quando se viu sem véu, nua, gozou![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

1 Dez 2016

Os crimes montanhosos e outros vales

15/11/2016

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]espedirmo-nos dos ofícios também faz parte da vida.

Todos temos um talento escondido, que os outros detectam primeiro. O meu era fazer diálogos, diziam os professores na Escola de Cinema. Ao fim do segundo ano recrutaram-me para lhes fazer os diálogos dos seus filhos. Assim me tornei guionista, ofício de que vivi durante anos.

Um dia, já de “reputação firmada”, telefona-me o António Escudeiro. Queria fazer um filme sobre o Camilo Pessanha, em Macau. Num formato “docudrama”. Afinámos ideias, objectivos, calendários. Pairava no ar a promessa de também eu me deslocar a Macau. Em 15 dias li o que tinha a ler e pouco depois entreguei o primeiro draft, de 50 páginas. Uma memória descritiva, com a narração de todas as cenas previstas para o filme mas sem o tratamento final nem diálogos.

Ambicionava atingir uma precisão de relojoeiro nos diálogos, devido à linguagem preciosa do poeta, à sua relação com os locais e com essa língua que o cercava como um imenso mar ignoto, e sobretudo queria escrever belas cenas dele com as mulheres. Um “docudrama”, uma mistura de documentário e ficção, permitia a reinvenção da intimidade do poeta.

Contra a entrega do draft, ele pagou-me o que era devido. Seguia-se a segunda fase, combinámos conversar depois dele o ter lido. E então o Escudeiro desapareceu. Soube dele um ano depois, ultimava já a edição do material que tinha trazido de Macau.

Nunca vi o filme, não o quis ver. Vi o Camilo Pessanha e Macau por um canudo.

Por isso aconselho todos os jovens guionistas a tomarem esse ofício como hobby ou biscate, quando se põe excessivo empenho nos projectos vem a “autoria colectiva”, própria ao cinema, desenganar-nos e traz dissabores.

Já me aconteceu inclusive, no caso de Um Rio, de Carlos Oliveira, que co-escrevi com o escritor Luís Carlos Patraquim (adaptando um romance de Mia Couto), que o filme (por problemas de produção) parecesse ter sido feito “contra” o guião.

No romance, os erros só a mim pertencem. Sucessos ou insucessos só ao meu trabalho devo a provação dos labirintos.

17/11/2016

Há duas semanas, o matutino O País noticiava que a Autoridade Tributária já não podia taxar certos impostos, os impressos necessários não estão disponíveis para quem faz a sua declaração anual dos impostos. Motivo: os fornecedores deixaram de fornecê-los, por dívida continuada do Estado.

Já nem as suas próprias receitas directas o Estado moçambicano consegue assegurar. Eis um processo em que um Estado perpetua contra si mesmo, como vi escrito num semanário local, “crimes montanhosos”.

Entretanto a minha filha mais nova, com nove anos, resolveu ir “ajudar” a mãe, numa feira do livro. Toda a gente achou graça ao parlapié da gaiata e contribuiu para que as vendas nesse dia aumentassem. E o Notícias, matutino oficioso, fez uma reportagem e entrevistou a mais nova “livreira” da feira. Foi a minha empregada quem trouxe o recorte, “orgulhosa da menina”. Toda a gente gostou, menos ela. “É a tua primeira entrevista, tás toda bonita na fotografia, qual é o problema?”. E explicou ela: “não gostei que tivessem colocado a minha fotografia, porque assim vão me identificar na rua e podem raptar-me…”. Fiquei interdito, percebi que por muito que queira não a consigo proteger do clima geral.

À beira da explosão social, com a guerra civil a prolongar-se, a inflacção a disparar em flecha (quase cem por cento num ano), o colapso financeiro, a fome a apertar em muitas regiões e o medo inscrito na pele das crianças (brancas, sobretudo “monhés”- os indianos -, alvo da actual “indústria de raptos”), a Pérola do Índico, um país com imensa água e oitenta por cento da terra arável mas que nem consegue produzir os tomates e alfaces para a salada (vêm da África do Sul), atravessa um momento deprimente.

19/11/2016

A pronúncia do Shangana e do Ronga, línguas do sul de Moçambique, lembra-me uma goma de arroz com acentos guturais fortes.

Uma vez adormeci a ver filmes do Kurosawa e nessa madrugada apanhei um “chapa” (um transporte semi-colectivo com dezasseis lugares) para a fronteira, a 90 km. Pelo caminho, ouvindo as falas locais, espantei-me pelas parecenças fonéticas com o japonês que ouvira horas antes. Pensei ser uma fantasia minha e não liguei mais ao assunto.

Agora, releio um livrinho precioso do grande actor japonês Yoshi Oida que trabalhou décadas com o encenador Peter Brook. Ele conta como foram à Nigéria, para uma digressão de seis meses nas zonas rurais. Chegavam às aldeias, estendiam o tapete e representavam Shakespeare e foram especialmente bem acolhidos. Porém, inesperada foi a descoberta pessoal que ele fez. Ele estava radiante por vir a África e pensava que ia estar diante da alteridade absoluta, de uma cultura sem pontos de contacto com a sua, e descobriu que afinal toda a gramática facial e a linguagem não-verbal dos camponeses da Nigéria era absolutamente idêntica às dos camponeses do Japão.

Somos todos mais parecidos do que supúnhamos e fará mais sentido do que admitiríamos à partida que as locução e as fonética das línguas, nesta metade oriental do planeta, comunguem de afinidades subterrâneas.

21/11/2016

Flanava distraído pela ruas de Maputo, a apreciar os jacarandás. Um tipo novo começa-me a sorrir a dez metros de distância e ao passar por mim atira: “Pai, ando à procura do George Michael, fast love!”. Fiquei atarantado, ele atirara o barro à parede, a tentar, mas nunca um jovem prostituto se me dirigiu tão directo, e só cinquenta metros depois me veio a resposta-do-fim-da-escada: “Desculpa lá, já não tenho idade para seres o meu first love!”

24 Nov 2016

Des-fotar: contra o vórtice das imagens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]conteceu em Maputo. Dois casais. Um deles tinha uma teleobjectiva e entretinham-se a tirar fotos em grupo. Estranho, faziam tudo para tapar a cara. Intrigava-me esse gesto de antepor um punho, três dedos abertos, a mão cerrada entre o clic e o rosto. Punham-se em pose para, afinal, ocultar a cara. Às duas por três, uma transpôs o murete que separa a esplanada do passeio e pediu à amiga, tira-me uma foto. E um segundo antes da outra carregar no botão ela disparou o braço para a frente com os dedos em vê a tapar o rosto e nomeou a coisa: Des-foto. Era um gesto pensado e por desconcertante que pareça tem atrás de si um conceito.

A Des-foto é o oposto da Selfie ou a sua simétrica paródia?

Não imagino se a Des-foto é invenção deles ou a imitação de uma vaga que pela primeira vez vi aflorar em solo moçambicano. A Des-foto organiza uma tensão na imagem: o sujeito aderiu à representação mas suspendendo-a, antepondo à sua imagem algo que a trunca. É uma espécie de burka da fotografia?

Por outro lado, se isto for uma moda, corresponderá este novo rito a uma reacção epidérmica, contra-fóbica, à saturação de imagens em que naufraga o mundo – ainda que usando o pêlo do cão agressor para curar a mordidela?

Gosto da foto que encima esta crónica. É de um fotógrafo moçambicano e chama-se….. O visado reage, como se avisasse: “eh, sou pobre mas resta-me o direito à minha imagem!”. E contra a imagem da sua pobreza contrapõe a dignidade de manter isso em reserva, exige o recato do silêncio.

Uma vez viajei pelo Yémen com um realizador que para disfarçar o seu mal-estar, naquele mundo distintíssimo do nosso, se armava com duzentas máquinas a tiracolo. Por milhares de livros que tenhamos lido, por fotos que tenhamos visto, por volumosa que tenha sido a informação digerida, quando estamos no terreno é o corpo quem reage e não a nossa armação racional. Ele defendia-se com a brutalidade do seu aparato tecnológico. E só conseguia lidar com a fobia que o tomava através da mediação da imagem, do antídoto da distância.

Atravessávamos Hadramouth, um longo oásis ligado às antigas rotas das especiarias, e vimos um grupo de pedreiros a amassar tijolos com a mesma técnica dos tempos bíblicos. Eu dispunha-me a fazer uma reportagem e parámos o carro. Ele correu, para despachar o serviço, e antes de qualquer conversa, do mínimo protocolo, rondou os pedreiros como um urubu e clic, clic, zás, catrapás, colheu duas dúzias de imagens em cima dos atónitos iemanitas. Instalou-se um clima de hostilidade que impediu qualquer conversa útil: os pedreiros dispensavam ser souvenires, e como tínhamos agido sem consentimento saímos dali de mãos vazias e, por sorte, vivos.

Sem consentimento: é assim que mais de metade das imagens percorrem o mundo, através das redes sociais, das revistas, dos canais televisivos, formatando opiniões a partir de simulacros destituídos de contexto. É o modo mais perigoso de sobrepormos à realidade “um banco de irreais” que deformam a nossa percepção e a embaraçam em estereótipos e lugares-comuns que nos coarctam o raciocínio. Temos de reaprender a pensar para-além das imagens, a desnaturalizá-las, mais ainda quando com o advento das imagens digitais se torna suspeita a velha máxima de que “uma imagem vale mil palavras”.

Pior, não apenas proliferam as imagens em que não há nada que ver, como assistimos, como insinuou Braudillard, a uma escalada do politeísmo que tem agora nos objectos e nas suas imagens o seu avatar: «Hoje, todas as coisas querem manifestar-se. Os objectos técnicos, industriais, mediáticos, os artefactos de toda a classe, querem significar ser vistos, ser lidos, ser gravados, ser fotografados. Cremos fotografar tal ou qual coisa por prazer e em realidade é ela que quer ser fotografada nada mais somos que a figura que os põe em cena, secretamente movidos pela perversão auto-publicitária de todo o mundo circundante. (…) Já não é o sujeito quem representa o mundo (i will be your mirror!): é o objecto quem refracta o sujeito e, subtilmente, por meio de todas as nossas tecnologias, e lhe impõe a sua presença e a sua forma aleatória.»

Dir-se-ia, estamos possessos.

Será por isso que uma democracia apoiada sobretudo na retórica das imagens é uma democracia enlanguescida, que já não reflecte no significado das suas emoções colectivas e se limita a traduzi-las em espectáculo? Eis o triste ensinamento que nos trazem os “talk-shows”, cujo formato impede o raciocínio de desenvolver-se e obriga à lógica redutora do slogan, os “reality shows”, os últimos episódios da democracia-capturada-pelos-media, no Brasil, e a deprimente campanha para as eleições nos EUA.

Temo que Des-fotar não passe de mais uma moda idiota, mas se trouxer a alguns a necessidade de reflectir sobre o que é uma imagem, o que é uma representação, e se os levar em conformidade a proceder a uma espécie de “economia das imagens”, constituirá, afinal, um acto ecológico. E talvez ajude aqui um dito de Blanchot, que podemos usar como lema: “todos os dias há uma coisa para não ver”.

17 Nov 2016

De Dylan aos golpes da espionagem

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é a cerimónia de entrega do Prémio Nobel de Literatura.

A nomeação de Bob Dylan, indubitavelmente um grande artista, como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra.

Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores,  identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.

Na educação clássica e na formação musical não se apurava apenas a educação do gosto e do ouvido, os alunos afeiçoavam-se a uma intensificação da concentração e dos seus vários níveis de escuta. Uma das razões porque o público da pop não ouve Mahler, prende-se – mais do que à complexidade estrutural das sinfonias do músico vienense -, com a sua duração, que excede as pautas de atenção em que foi adestrado. Depois de décadas só a ouvir canções de três minutos, o que equivale a uma corrida de cem metros no atletismo, uma peça musical de uma hora corresponderá a uma maratona.

Acresça-se que a este carácter redutor, a cultura pop institucionalizou a diversão: o mais das vezes uma escapatória para a preguiça intelectual.

Premiar um ícone da cultura de massas é um sinal de cedência a este regime balizado por dois limites: a ideia de diversão como único combustível das intensidades sensoriais  (esquecendo que a aventura intelectual também oferece diversão e até felicidade); a ideia de que o que é difícil e exige mais atenção deve ser reconvertido para se tornar mensurável e acessível.

Esta atribuição também parte do equívoco de considerar-se que a literatura carece de público e de que há que achá-lo onde o público está. Ora, este raciocínio enferma do mesmo erro que cometia a velhinha que, à noite, perdera uma moeda no princípio da rua mas a procurava adiante, debaixo do halo de luz do candeeiro público.

Se as pessoas hoje lêem menos Proust ou Joyce não é porque esses livros não contenham ingredientes que possam interessar os jovens de hoje, mas porque o mundo se trivializou e a atenção se tornou uma habilidade só para especialistas.

1/11/2016

Sinopse para uma comédia, escrita na minha aula de Guionismo, onde desenvolvemos um breve apontamento de Billy Wilder, infelizmente nunca elaborado:

Ano, 2020. Instalou-se no mundo uma Nova Guerra Fria que separa Povos Com Zika de Povos Sem Zika.

Num congresso de cientistas da saúde africanos, realizado em Kingshasa, destaca-se o trabalho de Ónus, um académico moçambicano – um homem íntegro e que só tem por fraqueza gostar de uma pinguinha.

É a ele que os observadores americanos, enviados por Hillary, escolhem para ser o inconsciente portador da fórmula secreta de uma “bomba” cujo poder curativo mudará a face do continente, que será posteriormente resgatada por agentes sul-africanos (- os americanos não se arriscam a passar-lhes directamente a fórmula para não serem acusados de favoritismo na ONU).

Para tal, convidam-no para uma festa, embriagam-no, raptam-no e depois tatuam-lhe no pénis a fórmula. Que só pode ser lida em erecção. O cientista acorda azamboado e de ressaca no hotel, a uma hora do seu embarque de regresso, e, com a pressa, não dá por nada.

Chega a casa, em Maputo, desfaz as malas e toma um duche, antegozando a noite maravilhosa que terá com Bárbara, a sua mulher. É aí que dá conta: tem algo tatuado no sexo. Ónus entra em pânico: não há desculpas que justifiquem aquela inscrição (que não consegue ler) e a sua estranha amnésia. Ainda por cima, acontecer-lhe a ele, fidelíssimo à mulher!

À noite, a culpa inibe-lhe a erecção. Como acontece pela primeira vez, entre eles, a mulher graceja e adormecem após uma boa galhofa. Ou antes, ela. Ele não, está à rasca. E ao longo da semana repete-se a nega. A esposa começa a desconfiar que ele tem outra. E o sentimento de culpa dele adensa-se.

Os outros países africanos começam a enviar-lhe mulheres cientistas de grande aparato físico, para o atraírem a uma cilada sexual.

A lasca zimbaweniana – uma enóloga – embriaga-o ao falar-lhe sobre uma enzima que dá às uvas o tamanho de melões, sem o conseguir levar para o quarto.

A enviada etíope atrai-o ao quarto sob promessa de lhe mostrar um besouro em cuja carapaça a natureza desenhou o Rato Mickey. Mas um copo a mais de Mateus Rosé fá-lo sucumbir no sono, no sofá, antes dela regressar da casa-de-banho, nua e em oferenda.

A África do Sul envia uma Mata-Hari capaz de derreter um iceberg quando expõe o mamilo esquerdo, o menos abrasivo. A ingenuidade de Ónus é mais uma vez enrolada pelo parlapié duma colega cientista e sobe ao quarto dela, num intuito académico. Martini puxa Martini, e eis Ónus enfiado na cama dela, atarantado mas nu.

Contudo, como é homem de uma obstinada fidelidade, a erecção não tem lugar.

A sul-africana – uma cientista de renome – não está com meias medidas e tira da mala um x-acto para decepar o membro murcho. Debruça-se sobre a cama, o olhar amortecido de Ónus nem se apercebe do brilho da lâmina…

É então que Bárbara, que o seguia sorrateira há uma semana, abre a porta num pontapé. Com dois golpes de Karaté despacha a espia boer e amarra-a ao cadeirão.

Ónus, a quem a entrada de rompante da mulher pusera sóbrio, observa deliciado a limpeza com que a sua mulher o salva – sim, é sua, a mais felina das mulheres! E o entusiasmo proporciona-lhe a maior erecção da sua vida.

Ónus e Bárbara, lêem então, contristados, a fórmula que ele exibe, tatuada no pénis: Abstinência!

10 Nov 2016