Do Trânsito da Lucidez

02/07/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio uma longa e admirável entrevista de Susan Sontag à Rolling Stone, depois ampliada em livro, e, como sempre, há várias coisas que ela viu antes do tempo. Uma delas esta:

«(…) voltando a falar de ciência, acho que um dos seus maiores feitos é o facto de que hoje, pela primeira vez na história do planeta, as pessoas têm a possibilidade de mudar de sexo». E dá como exemplo o caso de Jan Morris, um escritor de viagens britânico que em metade da vida e carreira foi homem e depois mulher, o que o fez escrever sobre Veneza a partir das duas percepções.

Provavelmente a última grande aventura ontológica abissal talvez passe por esta mutação voluntária da identidade sexual.

Não falo desse reajuste do corpo à representação psíquica duma sexualidade virtual e longamente desejada, como acontece na transsexualidade, mas de uma aventura infrapsíquica que explora o lado oculto de um continente subitamente iluminado. Da mesma forma que imagino que este tipo de experiência não se associa à bissexualidade, mas à dimensão distinta que só pode ocorrer com a imersão da nossa identidade num corpo outro, diverso. Em vez de irmos aos anéis de Saturno mudamos de corpo.

Admito que o ser humano possa evoluir em urbanidade e empatia no dia em que, desviado da obsessão falocrática, lhe for comum atravessar ciclos de alternância na identidade sexual. Cresço como homem, sou depois transformado em mulher e volto a ser homem, até me instalar num estranhamento ao mundo que me induza a reparar nas singularidades que só uma outra percepção me propicia. Seria uma educação-para-o-outro radical mas talvez resolvesse insensibilidades profundas, um coeficiente de desatenção à vida, na sua textura plural.

Estou prestes a aterrar em Lisboa, onde voltarei a comer caracóis, criatura que pode à vez ser macho e fêmea. Hei-de perguntar-lhes. Brinco, mas eu raramente brinco.

Na mesma entrevista, Sontag discreteia sobre a sua viagem a Hanoi, em plena guerra do Vietname, e a sua reportagem, tão controversa, na qual não iludiu a sua perplexidade face à personalidade colectivista dos vietnamitas. E, numa demonstração de honestidade intelectual, refere:

«Senti que era importante reconhecer que os vietnamitas são diferentes de nós. Não gosto dessa ideia liberal de que todos somos iguais, acho que realmente existem diferenças culturais e que é muito importante ficarmos atentos a essas coisas. Então parei de lutar para que, de alguma forma, eles fossem compreendidos e me dessem algo que eu reconheceria como um acto generoso em relação a mim, porque o seu modo de expressar generosidade era diferente do meu. Eles têm o seu modo tradicional de agir e falar e o que entendem por intimidade não é o mesmo que nós entendemos. Era como se aprendesse um tipo de respeito pelo mundo. O mundo é complicado e não pode de modo nenhum ser reduzido ao modo que você acha que deve reduzi-lo».

Treze anos depois de aterrar em África subscrevo inteiramente o que ela diz. A cultura africana é-me absolutamente exterior, nele antevejo o rosto da alteridade, e felizmente aterrei demasiado tarde (com 45 anos) para ter a ingenuidade de tentar a fusão. Um dos itens que nos diferencia sustentar-se-ia na circunstância de eu, como europeu, ser filho da Revolução Francesa e do Iluminismo, mas o que nos separa é mais profundo e gramatical, e, como ela diz: o que eles concebem como intimidade, reciprocidade, amizade, responsabilidade social, fidelidade, liberdade, poder e mando, sobre o que seja a curiosidade ou para que serve o conhecimento, está nos antípodas das noções que adquiri e desenvolvi.

Foi o que surpreendeu Sontag: os vietnamitas concebiam coisas muito divergentes sobre o uso a fazer da revolução, da sua liberdade e autonomia, das que a escritora americana (imbuída no espírito de uma esquerda que nunca deixa de repensar-se), havia alguma vez imaginado. E percebeu que viviam em mundos paralelos, que podiam ter intersecções, mas nunca poderiam coincidir. Respeitar isso é uma das maiores lições da vida.

«Todos diferentes, todos iguais», um slogan que nasceu do multiculturalismo, foi um dos slogans mais enganosos das últimas décadas, que enfermou milhões de equívocos. Ē um slogan que nasce ainda como efeito de uma ferida narcísica, sobrevinda duma situação pós-colonial.

Precisamos de reinventar os Universais, para que possamos encetar um novo diálogo, mas primeiro teremos de lucidamente aceitar a irredutibilidade do outro e só a sua assimetria em relação a nós e aos nossos valores despertará a necessidade de compreendê-lo, sendo então possível negociar uma fronteira comum, na qual as nossas diferenças não colidam. Mas facto é: as fronteiras existem.

Algo muito distinto da ideia que é veiculada pelas indústrias culturais e o seu afã de uniformização global, mas isso é já outra conversa.

04/07/2017

Daqui a três dias o Boeing fará a sua manobra de aproximação a Lisboa e sobrevoarei o Tejo. Que foi para mim um grande foco de atracção porque eu cresci em Almada, na outra margem da capital. O rio representava o trânsito do desejo. E então fantasiava sobre ele, sobre a sua profundidade. Como acontece em certos troços do Nilo, menos de seiscentos metros de profundidade era algo de inconcebível para mim; espessura submarina povoada de criaturas tentaculares, assaz discretas e inenarráveis e que só em alturas de convulsão tectónica assomariam à superfície.

Um dia, já nos trintas e muitos, tive acesso a uma carta do rio e foi um choque: no seu máximo de profundidade o Tejo não ultrapassa os 40 metros, e a maior parte do leito, entre o estuário e o Mar da Palha, queda-se a uns míseros 10 metros. Embriaguei-me nesse dia em que o Tejo passou a ser um alguidar.

Face a uma tal decepção passou a ser difícil recuperar-lhe a dignidade. Um dia contando isto ao poeta Jorge Fallorca ele desatou numa gargalhada e acrescentou, Ē incrível como as pessoas alucinam, mas então tu quando chegas de avião nunca reparaste nas escunas e caravelas que se vêem no fundo do Tejo?

Evidentemente que ele gozava comigo, mas desde aí sempre que chego a Lisboa arrisco o torcicolo no frenesim de vasculhar as naus do Fallorca.

6 Jul 2017

Os jardins da língua

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] coração do canário dá mil batidas por minuto. O do elefante vinte e cinco. As minhas andam pelas setenta, mas a máquina acelera quando deparo com a estultícia que nos afoga.

Nestas bandas do Índico o tu cá tu lá com o sobrenatural, com os Espíritos e Antepassados é mato – a quantidade de médiuns e espíritas e de gente que paira acima do terreno é estarrecedor. Têm muito mais dificuldades com a língua, o português. E a minha perplexidade nessa contradição é do mesmo grau da que encontrava Bernardo Soares, em discorrendo sobre o que o separava dos ocultistas: «O que sobretudo me impressiona nestes mestres e sabedores do invisível é que, quando escrevem para contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento de que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa».

Interessam agora as razões para isso? Começou com o “brando” colonialismo português e o racismo – o tal que como Midas corrompe tudo o que toca. E continuou nas políticas pouco ambiciosas com que hoje os líderes moçambicanos – na sua maioria educados na bainha da oralidade – reforçam anualmente o orçamento do Ministério da Defesa (para o exército e a polícia política) em detrimento do da Educação.

Acontece-me cogitar nas aulas: Este marmanjo em changana ou macua se calhar é um orador formidável, para quê esquartejá-lo numa língua em que não namora e que aprendeu demasiado tarde?

Entretanto, para arredondar as contas faço revisões de livros e de relatórios. O português dos relatórios das ONGs devia dar direito a electrochoques. Ou a prisão perpétua, vá lá com pena suspensa!

E quando se quer mostrar que a “pesquisa qualitativa” se apoia em entrevistas à fatia de povo escolhido para “amostra”, a fórmula repete-se e transcrevem-se escrupulosamente as frases dos populares, tal e qual foram ditas e não conforme a intenção do que queriam dizer. Escrupulosamente carregam-se nos erros, nas distorções da língua, até extremos como este:

“…a maioria diz que eu não quero fazer planeamento porque vou matar o quê não vou nascer mais é por isso estou a nascer para acabar toda filha, é assim mesmo (risos), não vou fazer planeamento porque não vou nascer mais, vou fechar de vez, é assim (risos)…”.

A pobre quer explicar que deixou de fazer planeamento familiar e de tomar a pílula ou de usar qualquer contraceptivo por acreditar que tais métodos conduzem à esterilidade. Mas se o que ela quis transmitir foi percebido pelo entrevistador, por que fazê-la passar por inapta? Eu garanto que farei o mesmo papel se me colocam a perguntar por uma farmácia para camaleões em grego, sueco, ou se calhar até mesmo em inglês.

Há um escrúpulo “científico” associado ao esforço políticamente correcto de não se corrigir a gramática ou a sintaxe das pessoas e que me cheira a encapotada indiferença.

Uma vez pediram-me que redigisse as legendas para um documentário moçambicano. Revi o filme de trás para a frente para entender na perfeição o que as pessoas queriam dizer e depois enviei as legendas. Recebi um telefonema furioso, tinha colocado as pessoas a falar bem. Então meu animal, reagi eu, afinal para que é que querias as legendas? Queria porque elas falam mal, para se perceber o mínimo. Bravo, querias multiplicar o embaralhamento, os lapsos, os curto-circuitos verbais, duplicando-os por escrito… pois agora, pelo contrário, percebe-se melhor, porque os teus entrevistados, se pudessem, era assim que gostariam de formular as coisas.

Nunca transcrevi em dezenas de entrevistas uma calinada de um meu entrevistado, a não ser que isso fizesse parte da sua matéria expressiva ou da sua personalidade. Um erro, uma falha de sentido, uma má expressão não desqualifica as pessoas – conheço pessoas de uma sensibilidade de eleição que se debatem com dificuldades em articular. A prosa canhestra de Husserl não o torna mais estúpido do que Heidegger cujo estilo, ao pé da do seu mestre, é a de um sedutor.

Diferente será, obrigatoriamente, na ficção onde “escrever bem” pode implicar uma forte dose de agramaticalidade, um reforço da coloquialidade e dos seus desvios e desmandos.

Contudo, em todos os outros géneros que mexam com ideias, conceitos, com descrições que peçam detalhe e apuro, não vejo porque não ajudar o outro a traduzir o seu próprio pensamento. A não ser que cretinamente me queira distinguir dele, Reparem na minha excelência e na desarticulação do indígena! O paternalismo de reproduzir as frases desconexas do nosso interlocutor não é uma face perversa, mesmo que ingénua, do mal.

Conheço quem borde em torno da grande criatividade das falas e do vernáculo populares, etc. Também eu me pélo se ouço a ameaça, Vou-te aos gorgomilos, meu canguinchas! E fico à espera. Também já aproveitei algumas frases no ar, que incorporei, e até um título. Um dia em Nampula li num pasquim: “os crimes montanhosos que hoje se cometem na cidade”. Recriei logo ali um título que é o de um livro inédito meu: “O Corvo de Colarinho Branco e os Crimes Montanhosos” e estou contentíssimo com a oferta. Porém, sei que aquela aparente riqueza da expressão, naquele redactor que escrevia com os pés botos e emaranhava as frases numa sintaxe de feio empeno, veio-lhe por acaso, soprada por uma falta tremenda de vocabulário – não é fruto de um engenho que ele saiba repetir.

Ē preciso desmistificar: o Hemingway não reproduziu nada as falas do quotidiano da sua época, ele criou apenas um estilo novo de diálogo que depois foi imitado, inclusive na vida. O Guimarães Rosa ou o Mia Couto não ouvem todo o santo dia aqueles neologismos que parecem reproduzir, eles inventam oitenta por cento das cabriolices que fazem com a língua. Se a vida depois lhes imita os livros, melhor.

A criatividade exige que saibamos articular a língua, mesmo que seja para depois a desaprender. Contudo, nada se faz ao contrário. Ē mentira!

29 Jun 2017

Do fogo e da pressa

18/06/17

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste será o meu primeiro texto escrito num tablet que a minha mulher me trouxe de Lisboa e que manejo com superstição e paciência. Para já mantenho o particular ruído do teclado que me lembra os saltos na mesa alemã, aquele zumbido de fibras elásticas em tensão. E será o primeiro de vários, tal como a clareira no bosque nos reeduca o olhar que passa a vasculhar os intervalos entre as árvores.

Lembro-me dos primeiros textos que redigi para o JL, em 82, numa velha Hermes de teclas redondas, aonde entalava folhas para as arrancar em fúria, na sequência dos enganos. As laudas jaziam pelo chão, epitáfios que o vento havia amarfanhado antes de conhecer campa.

O artigo começava a ser desenhado no café, depois do jantar, e a lide taurina durava até às 6h da manhã, com os rascunhos e tropeços a tumultuarem o chão. Era uma luta titânica contra o sono, o destrambelhamento das ideias, contra uma sintaxe claudicante. No fim, o cansaço lá me fazia atalhar os processos, ser mais eficaz e menos precioso.

Às seis da manhã tomava um duche, após o que descia ao café para engordurar as laudas com a manteiga da torrada, fazia as emendas definitivas à mão, e ia então para o jornal, atordoar-me com o espectáculo supersónico do Assis Pacheco a aviar três laudas em meia hora, só com um dedo, enquanto trocava anedotas com o José Manuel da Nóbrega.

Um dia não consegui acabar o artigo a tempo e lembro o sentimento de derrota com que fui ao café telefonar ao Pedro Borges às oito da manhã para lhe dizer: não fui capaz! Ele estava siderado, mas eu ao engenho ainda não associava a responsabilidade e fui para casa dormir.

De outra vez foi mais grave. Ia apresentar a novela de uma francesa. Foram vinte e quatro horas no espaldar, enfiava a folha na máquina e arrancava-a três parágrafos depois, por inépcia e insatisfação, e ao lado fazia rascunhos à mão, de cuja insuficiência me dava conta assim que os transcrevia para a máquina. Mas ao fim de 24 horas lá consegui chegar a um texto capaz. E para não me embaralhar fui rasgando os rascunhos. Cheguei às dez da manhã do dia da apresentação com o cansaço benigno do dever cumprido. E então acorda a minha namorada da altura. A tomarmos o pequeno-almoço, uma má interpretação de um sonho que ela tivera deixou-a furibunda e a discussão foi subindo de tom; meia-hora depois ela corria para a minha secretária e rasgou-me a apresentação em fanicos. Então tudo era grave e vivíamos sobre a lâmina da intransigência. Foi o pânico, como explicar isto ao editor? Eu tinha vinte e cinco anos e não me portei com grande decência.

E tão grave como a quebra do compromisso era o horror da Hermes.

O Garcia Marquez declarou que se tivesse conhecido o computador mais cedo teria escrito o dobro dos livros. Hesito sobre se isso teria sido um benefício. Há uma densidade da escrita que já não se busca, preterida pela lisura da “inteligilidade ” que o ecrã nos dá. Quando pego no Debaixo do Vulcão, do Lowry, ou na Obra ao Negro, da Yourcenar, para os reler fico abismado com a soma inacreditável de informação por parágrafo aliada a uma respiração pletórica da frase que só pode surgir da resistência, do conquistar a frase à força do atrito. Levava-se o dobro, o triplo do tempo, mas a própria duração do processo sedimentava outras conexões – o que se ganhou em rapidez e comunicação directa perde-se em subtileza, em filigrana, em níveis de sentido. O estilo marmóreo de ambos os livros corresponde ao vagar com que foram urdidos até ao polimento final. E como em Proust vemos amalgamadas na mesma frase a descrição e a reflexão sobre o objecto descrito. Uma trança perfeita que só a lentidão executa.

Não creio que seja um ganho estarmos tecnicamente mais apetrechados para vomitar um romance por ano e mais alacremente satisfeitos com as nossas suficiências e as suas ilusões.

20/06/17

As pessoas pensam “pisicologicamente”, como se fossem algo de separado, alheias a que vivemos num eco-sistema que age como um organismo e que integra a dinâmica dos elementos. O fogo faz parte de nós, pertence à nossa natureza, e vice-versa.

Um homem divaga na sanita, olha pela janela o balanço do cedro que comprou com a moradia. Vem um raio e o cedro incandescente entra-lhe pela janela, pegando-lhe fogo num ápice, dos cabelos ao calcanhar de Aquiles. Ele sai da casa-de-banho como uma tocha e em desespero agarra-se à mulher, para que o ajude. Ela desapega-se mas tarde, e corre pela porta fora e sucumbe junto a um grande arbustro de folhas secas. O vento faz voar uma labareda para o renque de plátanos do outro lado do outro lado da estrada que margina a moradia – rolos de fumo frisam a cabeleira dos plátanos.

O fogo tem uma velocidade de contágio estonteante, de que o amor carece. Mas então por que não se previnem os homens? Porque o fogo é um não-dito. Os bombeiros são as vogais do que não se quer pensar e dizer sobre o fogo. Que o fogo não conhece a mortalidade infantil e se revela logo adulto e é imortal e disputa aos homens a sua presunção. O fogo é quem mais ordena, da siderurgia à floresta, ou a Pompeia e marimba-se na propriedade.

Por que não criamos as condições para o debelar? Não cremos ainda que a humanidade não tenha preço. Provavelmente por ser o amor vagaroso a propagar-se enquanto o fogo (e o dinheiro idem) não. Ainda que um incêndio nos espolie de todos os aspectos, julgamo-nos no controle, superiores. Até que um dia os dedos do fogo brincam com os caracóis das crianças.

Conheci um pirómano. Chamava-se Cândido.

22 Jun 2017

Carta aos Ovnis 

10/06/17

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] de Hegel a piada sobre o judeu que colocado diante da escolha de obter a salvação imediata ou de ler o matutino todos os dias se decide pela leitura dos jornais.

Aí está um problema que não tenho. Os jornais moçambicanos são tão destituídos de sulfatos que não se perde nada – nem informação – em deixar de os ler. Mas estão cheios de opinião.

Lendo os jornais portugueses online também constato que a opinião é hoje o desporto-rei. Já nem falo do fb porque aí é o forum próprio para a opinião;  porém, que nos jornais o nível não seja um pouco mais elevado é que reside o drama.

Que tem de mal a opinião? O que tem de mal é ser na maioria esmagadora dos casos um simples veículo para as ideias recebidas. A maior parte dos escribas parece não ter um centro interior, uma personalidade, manifesta-se sempre como se fizesse parte de uma multidão, quando aquilo que era necessário, em tratando-se de dar um passo para emitir uma opinião, era exibir o que Stendhal chamava a coragem moral, a coragem de pensar por si próprio.    

Ora, não creio que quem tenha alguma coisa realmente própria a dizer o faça de um modo comum, impessoal, como se fosse um homem sem qualidades e em vez de respirar pelos seus poros, respirasse pela ideologia do consenso. Não há verdadeira opinião sem forma que a distinga. Se alguém abre uma crónica sobre a pena de morte escrevendo, “Sou a favor da pena de morte entre as moscas.” – sei que a seguir acrescentará algo ao tema e me fará reflectir, pois há desde a primeira linha o compromisso de um ponto-de-vista. Não se tratou de fazer humor fácil, quem ataca o tema de forma inesperada dificilmente degenera em lugares-comuns, só se chega à Forma através de uma mutação prévia no teor do húmus.

Se pelo contrário o artigo ou a crónica faz o rol dos argumentos sobre o dilema e depois de forma árida, vazia, expõe a sua ideia, como se de apenas mais um comunicado político ou institucional se tratasse, em 95% dos casos, estamos face a uma ideia recebida. E porquê? Porque aquela opinião cumpre apenas um impulso mimético, não é sustentada por qualquer ângulo de visão. Em 95% dos casos quem, ao escrever, denota uma paixão pela forma impessoal unicamente pretende descartar-se e não compremeter-se, estando sem o saber em pleno fingimento.

Nos antípodas, escreve Stendhal, em Memoires d´un Touriste: «Não é por egotismo que digo “eu”; é apenas porque não há outro meio de contar a vida». Como pôde uma simples evidência ter atraído tantas incompreensões, tantos e tão espalhafatosos nhurros?

Ao invés, quem em vez de particularizar um ângulo de visão manifesta opinião está apenas em heteromia, usando palavras-peruca. É contra a pena de morte, como poderia ser a favor, dependendo do consenso que lhe mobila a mente, e, tal como os sofistas na antiguidade clássica, confunde os jogos-de-palavras ou a pertinência do argumento lógico com a opinião.

A opinião que saia da doxa é muitíssimo rara, e quem realmente a tem tem-na porque como aos bebés é-lhe impossível deixar de bolçar, mas opinião era uma coisa de que se pudesse prescindiria.

12/06/17

O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia alentada do poeta polaco Tadeusz Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, que já traduzi, ou, nos Balcãs, o Vasko Popa, de quem hei-de de ensaiar versões.

Abro o livro ao calhas e sai-me isto:

Correcção: A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora/ uma má metáfora é imortal/ o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto/ o aborrecido trás a morte entedia/ o pateta vomita patetices/ e estupidifica a própria tumba.

Estupidificado na própria cama, apanho um susto de morte. Uma má metáfora é imortal. Já fui responsável de quantas centenas de más metáforas, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto as más metáforas são imortais.

Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?

13/06/17

Era para escrever uma crónica sobre o ódio ao turista que começa a fustigar algumas cidades-ícones da Europa.

“Turist, go home”, “Gaudí hates you”, ou “Parai de destroçar as nossas vidas!”: mensagens que se lêem pixadas nas paredes ou grafadas em comunicados que se colam nas árvores, em Barcelona. Já foi baptizado este sentimento, turismofobia.

Também os lisboetas se fartam da presença maciça dos turistas, pois o sector turístico comporta-se como o organismo que produz um excesso de glóbulos brancos e rompe equilíbrios. Afinal, o meu espaço público da cidade está condenado a ser o mesmo do do turista, interroga o cidadão da cidade invadida, sobretudo se tal começa a ter como efeitos uma paradoxal descaracterização identitária e uma inflação estúpida, porque oportunista. Ē mais um problema que atinge as cidades históricas e que se varre para debaixo do tapete.

Para que não se instale uma onda xenófoba que inclusive degenere num novo tipo de terrorismo, só enxergo solução numa espécie de rogo cósmico, de Carta aos Ovnis. Proponho que cada um escreva a sua, a pedir que não nos abandonem e que de quando em quando levem alguns políticos de nível duvidoso e um contingente de turistas, sobretudo aqueles que apostem em não ter déjà vu. Só a inauguração do turismo cósmico nos aliviará esta sensação iniludível de, submergidos nos eternos problemas, estarmos mais fartos uns dos outros, ó compaňeros!

15 Jun 2017

Virgens e meninos rabinos

05/05/2017

Max Ernst – “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas” (1926)

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez, pensava na vida olhando a minha filha mais pequena que brincava com um pato amarelo, de plástico, e perguntei-lhe de chofre: Filha, o que é a mentira? Ela, entretida com o  pato, atirou: Uma tartaruga. Não me desmanchei: E quantas patas tem? Respondeu firme: Duas.

Depois, sob pretexto de lhe ler uma história, mostrei-lhe uma gravura com uma tartaruga. Ela concluiu o resto, não precisei de lhe dizer uma palavra. Chama-se a isto a racionalidade: a capacidade de mudarmos as nossas concepções quando confrontamos aquilo  em que acreditávamos com a experiência da realidade.

O que se denota pelo comportamento de Trump é que para ele as tartarugas ainda têm duas patas e continuarão a ter.

Dizia o presidente americano que os EUA abandonam o acordo por ser mau para o emprego nos Estados Unidos, pois afecta a indústria do carvão e de outros combustíveis fósseis. O que ele não diz – eis uma personagem em quem até as omissões mentem – é que o acordo, simultaneamente, estimula outras indústrias bem mais florescentes na economia dos EUA. Elucidam os jornais: «Segundo números do Departamento da Energia, citados pela CNN, a indústria do gás natural emprega 362 mil pessoas, a solar 374 mil e a eólica 102 mil. Já a indústria do carvão dá emprego a 164 mil funcionários, um número que tem vindo a descer há décadas. Os dados mostram ainda que a empregabilidade na indústria solar cresceu, em 2016, 17 vezes mais que o crescimento total do emprego.» Não são recicláveis os operários americanos? A tal da perna curta, etc.

Na verdade, a única coisa que lhe interessa são duas.

A primeira é exibir músculo para ver se ganha ao resto do mundo a discussão sobre quem estabelece as regras da relação, o vulgo “quem manda em casa!”. E as coisas não estão a sair-lhe bem.

A segunda é a que resulta disto: em Trump, neste momento, por detrás da máscara da arrogância, existe uma criança tremendamente assustada. Alguém que deu conta de que pode haver despistes mortais num triciclo.

Em estudando-lhe as expressões faciais, nos momentos chaves da sua exposição mediática, nota-se alguém tremendamente dividido entre o papel de que ele se acha investido e a mortificação de já não saber que máscara adoptar com precisão em cada ocasião. A urgência pomposamente solene com que empurrou Montenegro (a macia matéria do mundo) para depois apertar um botão do casaco em Grande-Plano não é congruente com o ar de pilhéria com que anuncia que se está nas tintas para que o planeta fique estufado – um ar de puto radiante por contrariar os outros.

A lição dura que Trump está a ter através de humilhações sucessivas, dentro e fora – e proporcionais à irrealidade com que as nega no twitter – é a derrota do homem comum americano: a sua impropriedade para enfrentar a complexidade do mundo actual, dado padecer da inércia de nunca se interrogar se a tartaruga terá mesmo duas patas.

Por isso jamais poderá agir Trump como diplomata e nunca almejará ser mais do que o ladino intermediário de alguns negócios, não coincidindo exactamente o seu primeiro interesse com os interesses da  América, antes fixando-os na manutenção do rating da sua imagem. Será que o triciclo se aguenta na curva?

Só este pânico explica a inadequação dos tuites em que desqualifica o mayor londrino. Não é a pertinência, a justeza da palavra que ele visa, isso é irrelevante, ele apenas roga, desesperadamente, por atenção e, quiçá, ternura.

Apetecia convocar aqui a “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas”, de Max Ernst (o quadro que ilustra a crónica)” – são imensamente friáveis as nádegas do Menino, seu filho. E, para já, tirar o triciclo a Trump. Quanto a mim prometo não voltar ao tema dos meninos rabinos.

06/05/2017

Esta Virgem e a crónica de há duas semanas do Valério sobre as 72 Virgens que aguardam por mártir de um Islão no Paraíso, fez-me pensar no tipo de virgens que quereria para mim, depois duma minha virtual conversão. Eis algumas que já me ocorreram:

  1. a) Têm todas de ter um certificado de garantia de que nunca estiverem em hotel russo ao mesmo tempo que um milionário americano, não quero hímenes restaurados;
  2. b) quero uma virgem com uma genitália que seja uma espiral de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro, com rochas negras de basalto, para que eu exercite os meus dotes de montanhista;
  3. c) outra com uma (sic) como a que descrevi exaustivamente num conto: com quatro cantões como a Suiça. Já que a nomeei mereço frequentá-la;
  4. d) uma virgem, como pediria o filósofo Agamben, de “uma beleza-por-vir” mas que não seja demasiado linguaruda como a Xerazade, podendo no entanto herdar-lhe as axilas, que diziam aromatizadas em jasmim. Melhor, que seja só axilas…
  5. e) uma virgem que, como queria o gnóstico Valentim, não obre e não urine e saia ilesa de todas as minhas fantasias;
  6. f) uma virgem cuja palavra menstrue, para que me lembre. Outra
  7. g) tão inteligente que, de cada vez que me veja nu, não sinta logo necessidade de chamar os bombeiros;
  8. h) uma virgem que tenha pomares nas virilhas e exsude em aparos moles;
  9. i) uma virgem tão feliz em sê-lo que a cole num postal para o Papa Francisco;
  10. j) uma virgem especialista sobre o vasto mundo do paguro;    
  11. k) uma virgem inautêntica, até sincera nisso, e duma fantasmagórica vacuidade para que eu possa dormir lá dentro;
  12. l) uma especialista em sânscrito que me possa ler o Kama Sutra, na língua que o incarna, sem precisarmos de nos cansarmos no espaldar;
  13. m) uma não-virgem, que pode ser a minha mulher (troco-a por vinte e cinco virgens), pra que naquela imensa eternidade tenha alguém que me diga que não;
  14. n) uma virgem que respeite a minha decisão de não querer ser informado sobre os pormenores da incandescente cópula do gafanhoto (16 horas de labor operático).

Por favor, recrutadores, passem a palavra.

8 Jun 2017

Perplexidades e equilíbrios

28/05/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”.

Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha

Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário.

Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer.

Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação.

30/05/2017

A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto.

Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora.

A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer.

É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de  se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”.

Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se.

Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética.

E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/

fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”

1 Jun 2017

Aragens & Divergências

20/05/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um maravilhoso livro de entrevistas o idoso Marcel Conche, provavelmente o exegeta dos pré-socráticos em França, confessa, aos 80 anos, que o encontro intelectivo com uma jovem mulher aos 78 anos abriu brechas na sua vida de sage.

Ela, pouco afeita às venerações académicas, chegara aos pré-socráticos por via do Oriente e procurava relações de parentesco entre os feixes conceptuais da filosofia clássica e os do sufismo e do taoísmo, que conhecia de forma erudita. O abalo foi grande e Marcel Conche, que se pensava jubilado e à beira do elevador que lhe alçaria directamente a alma ao sétimo céu, descobre-se aos 80 anos com faltas de ar e a estudar o sufismo e o taoísmo com o afinco dos vinte, para uma revisão implacável das pautas e do repertório adquiridos por décadas de estudo. Anos depois, após esforçar-se no chinês e no taoísmo, Conche lançaria um livro sobre Lao Tse. Imagine-se a energia que pode ter alguém com o ímpeto para aos 78 anos se lançar na aprendizagem do chinês e surfar entre nuvens no Lao Tse!?

E eis uma filosofia à procura de si mesmo, sem parapentes, que não teme lidar com as lacunas e dúvidas em que a despenham as aporias do impasse.

Pode a literatura ter menos honestidade? Pedir menos coragem? Vitorino Nemésio, Luis Lezama Lima, Jaroslav Seifert, Ted Hughes, ou Zbigniew Herbert não empalideceram com a idade e escreveram obras notáveis naquele que para muitos é um período de senectude.

Há que nos libertarmos do «complexo Rimbaud». O que importa é – cientes de ser a arrogância, como dizia Tchekov, uma qualidade que fica bem aos perus – avaliar a parcela de verdade que cada homem aguenta. Quanto menos auto-indulgência mais possibilidades se abrem de tornar-se mais extenso o arco da sua fecundidade poética.

Vem isto a propósito de uma figura deste jaez que aterrou aqui em Maputo e que proporcionou um diálogo de alta voltagem sobre “Literatura, Cultura e Identidade”, com um parceiro local e igualmente um excelente escritor, o João Paulo Borges Coelho. Falo de Helder Macedo.

O diálogo foi uma aragem que entusiasmou todos os presentes na sala do Instituto Camões. Eloquência, espontaneidade, conhecimento e um elegante curto-circuitar dos estereótipos sobre os temas em presença, precederam a abertura do diálogo ao público, que terminou em contágio e em semi-levitação e até a interrogar aspectos que são tabu para a terra.

Helder Macedo demonstrou porque na viragem para os oitenta lançou três dos seus melhores livros – Tão longo amor, tão curta a vida, romance, Romance, poesia, e Camões e outros contemporâneos – e promete não parar na sua “desmedida”. O Borges Coelho, o escritor moçambicano que prefiro, cortês e vivaz, foi um bom parceiro nesta viagem.

Este debate, a pretexto da diversidade cultural no centro das convergências linguísticas, foi apoiado pela Gulbenkian – representado pela doutora Helena Borges -, e trouxe igualmente a Maputo outra figura, Elias José Torres Feijó, um filólogo galego, que actualmente é professor titular de Filoloxía Galega e Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela (USC), onde dirige o grupo de investigación GALABRA (que trata dos sistemas culturais galego, luso, brasileiro e africano de língua portuguesa) e preside à Associação Internacional de Lusitanistas, e a cuja palestra infelizmente não pude existir.

Mas qual o sentido de falar-vos disto?

Ē que esta mesma equipa, incluindo desta vez na comitiva o Borges Coelho, deslocar-se-á a Macau, em Julho próximo, para novos actos de prestidigitação e para exercer a inteligência com as suas artes de Cícero. Os macaenses que se previnam!

23/05/2017

Escreveu Andy Warhol, em 1975: “O bom deste país é que a América começou a tradição pela qual os consumidores mais ricos compram essencialmente as mesmas coisas dos pobres. Podes estar a ver televisão e ver a Coca-Cola e podes saber que o Presidente bebe Coca-Cola, Lyz Taylor bebe Coca-Cola, e pensar que tu podes beber Coca-Cola. Uma Coca-Cola é uma Coca-Cola e nenhuma quantidade de dinheiro pode brindar-te uma melhor Coca-Cola do que a que está bebendo o mendigo da esquina. Todas as Coca-Colas são iguais e todas as Coca-Colas são boas”.

Suspeito que o inferno climatizado em que, neste momento, se vive nos States começou nesta pequenez (esperemos que ao menos Warhol tenha recebido algum dinheirinho da Coca-Cola para exibir um “raciocínio tão elaborado”), que à altura parecia, paradoxalmente, uma mensagem de verdadeiro afã democrático.

Alguma arte começou a baixar os braços com a Pop Art que, apesar da legitimidade dos seus melhores elementos, abriu a caixa de Pandora mediante a qual um vendaval de lixo tonitroante invadiria o mundo, segregando uma tendência à uniformização e ao homogéneo que fez da universalização do consumo uma celebração sem restrições ao mesmo.

O resultado foi a pós-verdade e o botãozinho em que Trump carrega para ver chegar o mordomo com a sua Coca-Cola (gosto que divide com o Red Bull).

Como preveniu Adorno, o ganho com a “industrialização da cultura” tem por creme uma trivialização que envenena.

Trump é o expoente de uma educação calibrada pelos valores da cultura de massas, reduzida a níveis tão baixos que beber uma Coca-Cola ao meio-dia da tarde representa uma espécie de turismo da “ialma”, sendo o epítome da inconsistência que tem a sua expressão na forma airosamente espectacular como hoje se confunde o público e o privado. Daí que pareça normal ao casal presidencial americano ir a Israel exibir em público as suas desavenças.

Até gostei da atitude da Melania quando, vendo que o marido lhe dava a mão só para imitar o outro casal, lha sacudiu, rejeitando a mentira, a hipocrisia.

O problema é que aquele cenário não era o do Big Brother. Ou era? Fétido o clima. Parece que a negociata das armas foi boa – mas virá primeiro o impeachment ou o divórcio? Aceitam-se apostas.

25 Mai 2017

As profecias de Horacio e de Duchamp

13/05/2017

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem estive atento às manobras de Trump, que, enquanto o ar lhe falta, procura o pipo.

A direcção dos meus binóculos tem uma razão de ser: li uma profecia segundo o qual o desdenhoso americano lançava os cães contra a Coreia do Norte no dia 13 de Maio.  Transcrevo:

«O místico Horacio Villegas, que previu a vitória de Trump nas presidenciais, declarou que a terceira guerra mundial vai ser iniciada este ano. Uma guerra, onde serão envolvidos os EUA, a Rússia, a Coreia do Norte e a China, e que terá início em 13 de Maio de 2017 por iniciativa de Trump.

Ele precisou que a guerra não iria durar muito e acabaria já em 13 Outubro de 2017, mas causará muitas destruições e mortes.

​A data de 13 de Maio não foi escolhida acidentalmente: é o centenário das Aparições de Fátima em Portugal. Por outro lado, o dia 13 de Outubro de 2017 marca a sexta e última aparição mariana de Fátima que, segundo a lenda, tinha declarado que “a guerra vai acabar e os soldados vão regressar para suas casas”. Há 100 anos, estas palavras foram interpretadas como uma profecia sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Hoje em dia, Horacio Villegas aplicou estas palavras para apoiar sua teoria. »

Ora, eu acredito piamente em todos os Horácios, menos no poeta romano, dado que os poetas, como se sabe, mentem. Este é místico e nas acareações com o divino algo lhe será transmitido – é assim que eu penso.

A profecia não se cumpriu.

Porém em Portugal, no mesmo dia, completou-se um ternário: o Papa canonizou os pastores, o Benfica somou o tetra (e o 4 introduz aqui a quaternidade) e um cantor português ganhou a Eurovisão, com o singular nome de Salvador.

Se eu acreditasse no pensamento mágico diria que isto anda tudo ligado e a configuração desenhar-se-ia assim: numa espécie de efeito borboleta a ida do Papa a Fátima despertou um novo ciclo de fé que levou o Criador a lançar um relance misericordioso sobre o tão nefasto globo tendo, num piscar de olhos, desviado os dedos sápidos de Trump do alcance de alguns botões mais nocivos que a peste, e dado oportunidade a que uma nova ressonância quaternária reintroduza no mundo a harmonia e a cura das almas, como o atesta o indubitável transe que ontem se deslocou de Fátima para o Marquês de Pombal. E a prova de que o Espírito Santo esteve entre nós é certificada pelo nome do cantor, muito mais do que uma coincidência, o qual nos devolveu a espontaneidade, a crença no impossível e a alegria primordial.

Claro que tudo isto já fora anunciado pelos pastorinhos… e por Agostinho da Silva.

E como nesta explicação saturada de sentido devolvi ao mundo alguma dignidade profética (dei-te um bigode, ó Horacio!) vou já abrir uma conta bancária para colher alguns contributos para uma (merecida) vida de folia. Logo, logo, informo-vos sobre o iban da conta.

15/05/2017

É curioso como nunca vi lavrada qualquer reflexão sobre a estranheza do mictório do Duchamp se chamar Fonte. As fontes emanam de dentro enquanto para o urinol confluem os fluxos, de fora. Os ready-made são um gesto cujo sentido último mostra de forma paródica que não existe uma essência da arte embora, paradoxalmente, Duchamp tenha designado o seu como Fonte. Mesmo que ironicamente o dadaísta não saiu da orbe do sagrado. Talvez o Bataille tivesse sido o homem ideal para nos falar desta ambivalência, pois afinal por detrás da negação do emérito xadrezista vislumbra-se uma aporia. Deus (que é ateu como eu) deu-lhe xeque-pastor.

Em 1912 Duchamp, em companhia de Brancusi e de Fernand Léger, visitou o Salão da Locomoção Aérea e dissera aos amigos, «Acabou-se a pintura. Quem pode fazer melhor do que esta hélice?». E foi consequente com esta rendição quando, poucos anos depois, enviou a Fonte ao Salão dos Independentes, em Nova Iorque, mercê de cujo gesto a arte se tornou aquilo que livremente o artista decide que seja arte. O autor, a partir daí, converte em obra de arte qualquer objecto, bastando assiná-lo. Com graça e petulância diria depois Warhol: «Eu assino tudo, bilhetes de banco, tickets de metro, inclusive um recém-nascido em Nova Iorque, (nas nádegas suponho). Em tudo acrescento ‘Andy Warhol’ para que se converta numa obra de arte».

Tem graça a imodéstia, mas não passa disso.  O drama é que se acreditou. E da frivolidade engenhosa associada à frivolidade com que os media procuram novidades nasceram os Jeff Koons, os Paul McCarthy (o do dildo gigante na Place Vêndome em Paris, a que deu o soporífero nome de Árvore de Natal – e nada me move contra os dildos, acentue-se), as Joanas Vasconcelos, os Claes Oldenburg, as Sophie Calle deste mundo, que, numa concepção empobrecedora do que seja a arte (afinal, basta-lhes a sua assinatura, só comigo a coisa é mais trabalhosa), limitam a sua criatividade a uma  reprodução  mecânica dos jogos de deslocar e de multiplicar (cf. “galo de Barcelos” de Joana Vasconcelos que os coitados dos chineses têm de pagar).

Contra este embuste, apetece lembrar que Eduardo Chillida e Jorge Oteiza, por exemplo, inventaram maravilhosos objectos que superaram na sua expressividade formal e ilimitada abertura perceptiva  as linhas funcionais das hélices dos aviões (profecia, de que até o Duchamp se alheou não voltando à pintura mas produzindo posteriormente algumas peças extraordinárias – o problema está sempre nos epígonos), ou que, mesmo para a pintura, houve excelentes saídas e tão diversas como as de Matta, Tapiès e Soulages.

Mas seja no domínio da crença como no da arte, a farsa emerge porque há sempre um profeta peremptório que nos obnubila a capacidade de pensar e de acreditarmos no valor da nossa experiência. Continuamos no geral a preferir a imitação à invenção, estigma de que temos de nos salvar. Salvadores à parte.

18 Mai 2017

Intervalos

05/05/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a Mongólia, o sonhador pode sonhar por um outro, ou até sonhar por numerosas outras pessoas. Leio e pasmo.

Aí estava um negócio – fosse eu um xamã de igual qualidade.

De qualquer dos modos esta é a única explicação que encontro para um sonho que me perseguiu durante anos, ao ponto de se ter cunhado como uma recordação que eu reportava ao vivido. Durante uma década estive convencido de que quando me casei com a minha primeira mulher tínhamos ido viver para uma casa emprestada, na Avenida Todi, em Setúbal, até a nossa, oferecida pelos pais da noiva, estar pronta.

Era um apartamento, num primeiro andar de grandes janelas rasgadas – a casa fora em tempo adaptada a loja –, um T-0 com kitchnet. O facto é que aí vivi – seis meses – o único período de pacificação do casamento, ternos, unidos, degradando-se tudo quando nos mudámos para a nossa casa.

Anos depois, sempre que voltava a Setúbal, palmilhava a avenida, procurando a casa, em vão. Todavia, eu tinha presente cada pormenor do seu interior, a mesa redonda de mogno com flores de marfim embutido, os cadeirões com almofadas vermelhas, a estante de boa madeira que em noites ímpares acordava em mim sonhos de larápio, a Clara no balcão da cozinha a rechear as beringelas, o tapete com dois peixes em 69… A avenida é que teimava em desmentir-me.

Quando eu e a minha ex-esposa nos pudemos reaproximar sem dano ou atribulações, perguntei-lhe pela casa, e jurou-me que fôramos para a casa nova no próprio dia do casamento.

Ainda não estou convencido, apesar de a partir de hoje ter por certo que um sonho de outrem me visitou e que não passamos do atelier de alguém.

07/05/17

Bom, só estão volvidas duas semanas sobre o 25 de Abril e por isso aproveito para contar uma das suas engasgadelas ocultas menos conhecidas.

Nessa madrugada os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e – ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa – paravam nos semáforos.

Foi uma Revolução em que os tanques – o respeitinho é muito bonito! -, estacavam nos semáforos.

Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se res-peita escrupulosamente a lei.

Parece-me que os portugueses eram na generalidade, e supinamente, norte-coreanos.

O extraordinário e incomodativo filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, que passei esta semana aos alunos, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo. Os portugueses moviam-se como espectros sequiosos de alegria.

Há uma geometria suplicante, invariável, naqueles olhares de júbilo que associo à esquadria sem falhas com que se marcha nos dias de desfile na Coreia. É inimitável o que consegue a cegueira das massas, sendo por isso inesquecível.

No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados.

Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide, ou a serem afeiçoados pela sílabas amendoadas da catequese, deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, os pides nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.

09/05/17

Vagueio, intervalado pelo mundo, acácias vermelhas, libelinhas, por um “tô a pedi” tatuado nas costas, e pelo ronrom das viaturas, plácidas como a tarde. E seguindo-me o passo abranda um jipe, novo, enquanto se baixa um vidro.

– Doutor… – Uma jovem bonita, que apesar de familiar me escapa à lembrança.

Sorri e rebola os olhos – Sou eu…

Gaguejo – Foste minha aluna?

Sim. Diz-me o nome. Faz-se-me luz, mas conhecera-a de cabelo rapado e não com umas extensões à Beyoncé… e sem aparelho nos dentes.

– Já sei. Foste minha aluna de…

Adianta-se: – Do corpo e quê, quê, quê e tal e tal…

O tal e tal é da sua autoria, o quê, quê, quê… é um bordão de linguagem das gentes da Beira. – Estás muito diferente… – Observo, e provoco – E vê-se que estás bem na vida.

– Não é? – Concorda ela, e justifica – Sou doutora!

– Também eu, mas não ando num carrão destes…

– O profe? O profe só gosta de ler…

– E tu… – gracejo – continuas a aprofundar o quê quê quê quê, ou deixaste-te de leituras?

– Xii, professor, não tenho tempo para me coçar e tenho um niño

– Falamos espanhol?

– Não é? É do trabalho, trabalho numa empresa espanhola…

– Boa. E qual é a área da empresa?

– Consultoria e quê, quê, quê, quê… Repete, accionando a ignição: – Então vai lá à tua vida…- Rebolo os olhos para o interior do carro, para que ela perceba que aprovo o fausto de um consultor – Gostei de te ver… Olha, já agora, que achaste das eleições em França?

– Xiii! França é maningue longe. Aquilo tem alguma coisa a ver com a nossa realidade, profe?

– Talvez quê, quê, quê…- Replico, pensando – Estamos tramados Senghor, para eles não há nem a mosca nem teia…

Ela mete a mudança e acena, feliz.

– Sucessos… – desejo-lhe. Um txopela segue-a, em tosses. Quê, quê, quê, tropeça ele, como quem diz.

11 Mai 2017

Uma ética para naúfragos

30/04/17

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]deias que valem ouro, que quebram o ciclo do mimetismo, do qual estamos reféns. Como a que sustenta o plot do filme Arrival, de Denis Villeneuve, o mais interessante filme de ficção cientifica da última década: a soma que não dá resto zero.

Tentemos explicá-la. Comecemos por definir que um jogador de somas a zero é alguém comprometido até ao tutano com a tese maniqueísta de que em todas as situações da vida só há duas possibilidades: ganhar ou perder, não existindo uma terceira hipótese.

Na maior parte dos desportos é assim e a dinâmica político-militar da história do mundo pautou-se pelas somas a zero. Até Hiroshima, a guerra era um jogo de somas a zero, pois o estado que perdia cedia territórios ou ficava sob tutela, sujeito à “ganância” do vencedor.

A ameaça nuclear mudou tudo, é um jogo em que todos perdem. E toda a diplomacia democrática valida o princípio de que vale a pena fazer concessões, (o que um jogador de somas a zero consideraria uma derrota) – estabelecem-se assim compromissos estáveis, em vez de soluções insidiosas e finais.

Ao tentar uma ilustração do conceito da soma que não dá zeros (explicitamente referido num diálogo) o filme é pertinentíssimo na actual contingência político-militar.

Uma pequena sinopse: uma frota de discos voadores chega à terra, posiciona-se em lugares estratégicos do planeta – mas por que não agem? Por todo o lado se procuram intérpretes, cada potência reage da sua maneira. O filme segue o que se passa do lado americano. E aí, à beira de ser ordenada a nível global uma agressão aos alienígenas, os dois cientistas lá decifram a linguagem e as intenções daqueles.

Os alienígenas afinal só trazem uma mensagem. Propõem uma ética para náufragos: a humanidade só sobreviverá se romper com a lógica da soma a zero e os homens interiorizarem, a) só unidos produzirão vantagens, b) só pela generosidade o conhecimento se esclarece. Dizem os alienígenas com as mãos em forma de estrela: abandonar o orgulho da força e de se «querer ter mais razão» é a via, só pelo «impoder» nos salvamos.   

Sem ser militante de nada, não me parece uma má ideia.

01/05/17

Para que serve afinal a arte? Recordemos Bruno Munari, o que ele contava sobre o comportamento das limalhas de ferro quando sensibilizadas por uma vibração sonora:

«Use-se uma chapa de zinco quadrada, com cerca de trinta centímetros de lado, com limalha de ferro espalhada na superfície, passe-se um arco de violino contra um dos lados da chapa, como se se tocasse violino (em lugar de passar o arco nas cordas passa-se num dos lados da chapa) e veremos que a limalha de ferro se disporá em desenhos geométricos provocados pelas vibrações sonoras. A própria matéria da textura forma imagens adensando-se ou deixando mais a descoberta o que nós consideramos o fundo».

Espantosa esta propensão da matéria se organizar em padrões anti-entrópicos se sensibilizada por uma vibração sonora. O caos foi irradiado por um sentido.

Mais espantoso ainda que a matéria inanimada se auto-organize em padrões se estimulada por uma onda sonora não aleatória é que os homens de comum não dediquem atenção ao facto de que uma especial arrumações das palavras, como na poesia, que um particular ângulo de luz numa fotografia, ou a combinação feliz de duas cores na composição de um quadro que pulsa à nossa frente, possam despertar em nós níveis diferentes da realidade e uma lente nova para a leitura do mundo, fazendo com que a nossa percepção realize uma dobra.

Portanto, respondendo à pergunta de para que é que serve a arte, penso que servirá para afastar de nós a ideia do desencanto do mundo.

Ideia que Calasso corrobora: «O mundo – já é o momento de dizê-lo – ainda que seja do desagrado de muita gente – não tem a menor intenção de desencantar-se de todo, ainda que só o fosse porque, se o fizesse, cairia num extremo aborrecimento.».

Talvez e unicamente para lutarem contra o seu próprio aborrecimento, dão-nos o universo e a natureza a melhor das razões para sermos optimistas: o universo não era obrigado a ser belo e no entanto é-o. Sim, a beleza do mundo constitui mais um enigma. Um enigma que, a avaliar pelo que acontece com os fósseis, nos é favorável: a espiral nos fósseis dos búzios foi-se aperfeiçoando de era para era, o que confirma que as mulheres, no futuro, serão ainda mais bonitas.

Entretanto, não nos iludamos, apreender o belo depende do gosto, que consideramos kantianamente como a faculdade de julgar desinteressadamente um objecto ou uma representação mediante um prazer ou uma repulsa. E o gosto  adquire-se, não é um dado imediato à consciência face ao qual se reaja. Para que se entenda o que aqui se joga lembro uma história deliciosa do Picasso.

Certa vez um soldado olhou pela montra a vernissage de uma exposição de Picasso e pensou, Que bodega, vou já denunciar este gajo. E acotovelou convidados dentro, até encontrar o pintor, com a sua boina basca e o seu copito de vinho. E interpelou o pintor, Você é uma farsa, por que pinta as pessoas de frente e de perfil ao mesmo tempo, as pessoas não são assim?

O Picasso, impassível, replicou, Você tem noiva,

Tenho sim, respondeu o soldado, com muito orgulho!

Tem uma fotografia dela?

O soldado tirou da carteira uma fotografia da rapariga e mostrou-a, ufano.

Picasso olhou fixamente a fotografia, fingiu um assomo de espanto e observou:

É muito bonita… pena é ser tão pequenina!

Ou seja, o que pensamos em geral da arte e da vida depende em grande parte da convenção, dos códigos que aprendemos como particulares à sua linguagem – mas temos de os adquirir, reconhecer e aceitá-los.

O mundo não está desencantado, mas temos de aprender a reconhecê-lo.

4 Mai 2017

A beleza e o mal

21/04/17

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, a ideia dominante no mundo desenvolvido, que devora e regula tudo, já o dizia Zygmunt Bauman, é a segurança. Mas promover a segurança não tem sido ir à raiz dos problemas, preferindo-se tomar os sintomas pelas causas.

Nada de tranquilo nos pode chegar por este método, pois tentar forçar a segurança a todo o transe é o equivalente a acreditar que o elefante se esconderá atrás da palmeira – uma obstinação insensata. A segurança absoluta reside na certeza de que o perigo que se quer evitar não existe. Como a probabilidade disto é ínfima, inventamos o artifício de desenhar mapas sem território, com a mesma objectividade e convicção com que farejamos a malária na Gronelândia. Ébrios pela idêntica eficácia com que os médicos em Moliére esclareciam que o ópio dava sonolência por ter «faculdades dormitivas».

A necessidade de segurança, estranhamente, não se tem aliado à prevenção dos conflitos ou à negociação de concessões, pendendo antes para a intransigência de pensar que a simples existência de outros sistemas é irreconciliável com a nossa segurança. É esta a atitude de Trump.

Neste mundo supostamente globalizado e onde a vigência dos Direitos Humanos se tornou a últimas das ideologias universalmente aceites, emerge, contraditoriamente, uma agónica alergia ao Outro e uma crença enternecedora de que a «verdade» só a mim assiste. Voltámos de novo a desejar identidades monolíticas, alheias ao contágio e ao dialógico. Daí que já não se estabeleçam compromissos, exerce-se de novo a chantagem da força, num inglório retrocesso civilizacional.

E eis que, distraidamente, abro um livrinho de Paul Watzlawick – um dos “filhos” mais produtivos de Gregory Bateson – O mal do bom ou as soluções de Hécate, de 1986 – ,e descubro isto: «O lógico austro-canadiense Anatol Rapoport, em 1960, no seu livro Fights, Games and Debates recomendava uma técnica interessante para solucionar problemas. No caso de um conflito em vez de pedir que cada partido dê a sua própria definição do problema, Rapoport propõe que o partido A exponha a opinião do partido B em presença deste, e que o faça de um modo exacto e detalhado até ao ponto em que o partido B aceite esta exposição e a declare correcta. Depois toca ao partido B definir a posição do partido A e de um modo satisfatório para aquele. Rapoport supõe que esta técnica de negociações conseguirá em grande parte atenuar a acrimónia e o problema entre as duas partes, antes que se ponha sobre a mesa a discussão do problema propriamente dito. A sua suposição é exacta; aplicando esta técnica sucede não poucas vezes que uma das partes em litígio diga, com assombro, à outra, “nunca tinha imaginado que você pensasse que é assim que eu penso”, o que supõe ter-se dado um passo para além da convicção ingénua: “Sei exactamente…”.»

Tão simples, tão simpaticamente racional este modo de fazer da empatia um dispositivo de relação. E por que me parece lamentável que esta técnica de negociação não tenha vingado, implantada por exemplo como regra primeira nas Nações Unidas e no palco da política?

O homem, quando quer, ainda é capaz de inventar umas soluções que não sejam finais – devíamos estar mais atentos, ao invés de nos entregarmos às delícias de uma ‘

automoribundia” que hipnoticamente nos desilude a possibilidade de enxergarmos outras saídas.

23/04/17

Ouço o resultado das eleições em França e viro as costas ao ecrã, prefiro deliciar-me na net com as obras de Bernini, escultor e arquitecto, e um dos mais brilhantes artistas do barroco italiano; alguém que na escultura rivaliza sem favor com Miguel Ângelo.

Talvez porque creia, com o sino-francês François Cheng, que o mal e a beleza são os dois pólos contrastantes do universo vivo, isto é do real. Defende Cheng: “Compreendo por instinto que sem a beleza, provavelmente, não vale a pena a vida ser vivida e que, por outro lado, uma certa forma de mal chega-nos justamente do uso terrivelmente pervertido da beleza”.

O Belo foi uma categoria abandonada pelos caminhos da arte do século XX e é um náufrago mais solitário que Robinson Crusoé. Mas vivendo numa cidade que se degrada a olhos vistos e onde se descuram quaisquer mínimas regras de planificação urbanística, ao ver a urbe transformar-se em monstro apocalíptico de cimento, lixo e zinco, confesso que tenho saudades do Belo, de um banho de horizontes onde, salvaguardadas as proporções e a harmonia, os elementos sensíveis e sensoriais tomem uma orientação precisa.

E então refugio-me nesse armazém da arte que é a net. Detenho-me nas obras de  Bernini, nos seus detalhes, enquanto ouço os meandros da política francesa.

E descubro duas coisas fantásticas.

A primeira é que para além do pormenor da pressão dos dedos de Plutão na coxa de Proserpina (no momento de a agarrar, para raptá-la), numa fabulosa transfiguração da textura da pedra em carne macia, os dedos de Plutão – um estuprador de deusas, e no oposto do seu rosto hirsuto e brutal – são finos, graciosos e espantosamente femininos. Também para Bernini, só a beleza, a tangível delicadeza das suas formas, pode ser um antídoto (brotado de dentro, da sua própria natureza) contra o mal que a figura de Plutão representa?

A segunda está no gesto de outra mão, igualmente talhada em mármore pelo escultor, desta vez no inesperado anelo da mão da beata Ludovica Albertoni, a qual – nesse êxtase que supostamente seria o estado da alma numa união mística com Deus e pela suspensão do exercício dos sentidos – afinal não prescinde de tocar o seu seio, que se adivinha excitado, tal como inclusive parece estar todo o drapejado da santa, encantado, ondulante, e vibrátil de gozo. Nem no transporte da morte Bernini deixa de homenagear a alegria do corpo, o que me faz evocar outro barroco, o Francisco de Quevedo, que fechava um soneto dizendo «Pó se tornarão, mas pó enamorado».

Ah, pois, as eleições francesas. Que comentar?

Por que não continuar com Bernini?

27 Abr 2017

A lotaria do nada e da morte

15/04/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma dramaturgia respeitamos o ethos dos personagens mas introduzimos umas buchas. Como Os Pilares da Sociedade era para ser representada em Moçambique, onde campeia o machismo, eu puxei um pouco pelo feminismo já de si pioneiro de Ibsen e introduzi na emancipada Lona Hessel alguns juízos que lhe sublinham o carácter.

Quem ia representar Lona era Graça Silva, uma das fundadoras do Mutumbela Gogo,  que morreu de repente este fim-de-semana, aos 51 anos, sem que nada o adivinhasse, muito perto da estreia da peça. E eu tinha escrito algumas deixas para a voz dela e a clareza da sua dicção. Quem poderá agora projectar a voz, no tom e no timing certos, e explorando a fundo os seus efeitos no público, replicar com a mesma autoridade: «CÔNSUL BERNIK – Se olhares para dentro de qualquer homem, seja ele qual for, hás-de sempre encontrar pelo menos uma mancha que ele quer ocultar.

LONA HESSEL (olhando-o bem de alto abaixo, alteando a voz, escarnecedora)Um coalho! Um pobre coalho de sangue, urina, caca e presunção… E são vocês que se dizem os pilares da sociedade!».

É lamentável ser ceifada assim, aleatoriamente, uma artista que há trinta anos se entregava ao palco e tão à vontade nas figuras populares como em Gertrudes, a mãe de Hamlet. Pior num país que não cultiva a memória ou patrocina tantas vezes o popularismo fácil e o embuste, negócio a que ela sempre se furtou, preferindo ganhar menos e fazer melhor – um percurso que nem todos entendem. Ou ainda: um percurso que nem todos merecem.

Morreu uma senhora actriz, e apetece dizer: a vida é nesciamente merencória porque nos esmurra até que deixemos de distinguir entre o falcão e a garça!

16/04/17

O mecanismo do sorteio e a lógica do casino infiltraram-se no imaginário global. Talvez devido a que o homem, já não acreditando no equilíbrio das simetrias entre o trabalho e a recompensa, ou entre a boa-fé e a benignidade social, parece agora apostado em recuperar pelo jogo da sorte e do acaso uma ideia de destino.

No entanto, o sistema de sorteio já teve efeitos positivos na História dos homens. Em Atenas, na Grécia antiga, os 500 membros do Tribunal dos Heliastas eram eleitos por sorteio entre os cidadãos livres. E para minimizar aí qualquer juízo imponderado, associado ao risco de que o cidadão com mais de 35 anos chamado para o desempenho de uma função pública fosse imprestável, deu-se um impulso galvanizador à educação, em todas as áreas.

Hoje prefere-se produzir tele-sorteios ou programas de busca de “talentos”, promovendo a “lotaria genética”, a apostar previamente na formação.

Na semana passada um grupo de hackers fiéis ao DAESH, o UCC (United Cyber Caliphate) divulgou uma lista de mais de 8700 nomes e endereços de norte-americanos que espera ver mortos pelas mãos dos lobos solitários. “Matem-nos onde os encontrarem!”, incita.

A novidade é que a lista inclui nomes alegadamente escolhidos ao acaso, enquanto as listas anteriores se focavam em nomes de responsáveis, como políticos, chefes religiosos, etc. Agora não, veio o vento de Deus de que nos fala o Ezequiel e sopra de onde quer.

Quando a culpa fica indeterminada, o que atacamos? A inocência. É estranho que tal se arrogue em nome de Deus. Que já não se busque nem a justiça, nem quem determina. E em nada diminui o crime saber que os ossos do defunto são a consolação das violetas.

Entretanto, se pensarmos no que declarou David Altheide, professor jubilado do Arizona, ao DN: «Trump apelou a um passado que nunca existiu. Com o seu slogan “Fazer a América grande de novo” (…) quando foi isso mesmo? (…) De certa forma, Trump apresentou uma espécie de quadro em branco e as pessoas podiam preencher as suas próprias ideias acerca do que o ser grande era.», compreendemos que nos situamos num sistema de lotaria em que cada um já “imagina” o seu próprio prémio.

Miséria franciscana que redobra quando lemos: «A obra, intitulada “Votar nos Democratas: Um Guia Completo”, da autoria do jornalista Michael J. Knowles, tem 1235 palavras e 266 páginas… quase todas elas em branco. O livro tornou-se bastante popular no seio do Partido Republicano, incluindo junto do presidente Donald Trump», porquanto, sendo natural que a piada tenha tido sucesso, deprime constatar que isso celebra a suficiência com que se admite como ganho um zero de imaginação, tal e qual se depreende do que se segue: «O livro estará a ser um sucesso entre os conservadores americanos, depois de um outro livro de páginas brancas se ter tornado popular entre os liberais, de seu título: “Porque é que Trump merece confiança, respeito e admiração”.»

Afinal, entre os ganhos que só eu imagino, as páginas em branco, as convicções que eu alucino, a sorte e o descaso e o défice total de imaginação – rimos de quê quando a roleta rola?

18/04/17

Não era a lua quem cruzava a perna, era ela. E não havia nuvens naqueles joelhos. Que belo avental seria eu para a sua nudez, desejei. Chegou a minha filha ao café e baixou-me a gripa, desviando-me da sombra dos salgueiros, mangueiras e jacarandás, dos recônditos e miríficos leitos onde se escrutinam os buracos que existem numa agulha. Pai, posso ir passar o fim-de-semana a casa da minha amiga? A entrada da miúda já me tinha eliminado a vantagem inicial, agora, nas costas dela, via-la retirar-se, a dos joelhos cor de cobre, rompido o fio da oportunidade. Responde rápida, já estou atrasada; a minha amiga está no carro lá fora, com o pai, estão à minha espera. Percebo aí o sentido do verso de Rene Guy Cadou:”Je suis en retard sur la vie.” Crescer é isto: ficar em atraso com a vida. E então respondo: não, não podes! Mas porquê? Porque a prontidão do livre arbítrio é um dos direitos inalienáveis de ser pai!

Quem é o porco-espinho que me bufa junto à prata dos cabelos?

20 Abr 2017

Ressonâncias: conversas com o meu gato

[dropcap style≠’circle’]- N[/dropcap]ão me digas que acreditas nessa treta das estéticas comparadas!

– Não é treta, existem leis comuns. Olha, neste verso de Eluard, «há nos bosques árvores loucas por aves», surpreendemos uma boa parte da mecânica do cinema. Não falo só dos processos, e citaria a «montagem das atracções» do Eisenstein, evoco uma das duas pulsões que regem grande parte das narrativas: neste caso o «segredo».

– E como é que desse verso partias para um filme? Não te entendo…

– O enredo do filme partiria da dificuldade (o motor de uma história é o que a estorva) em desenhar um mapa com as árvores que no bosque são loucas por aves. O antagonista seria o guardião de uns ovos de ouro maciço com inscrições em sânscrito, escondidos no bojo de uma figueira-da-índia quase milenária, os protagonistas um casal de ornitólogos aparentemente inocentes – ele tem um grave problema com o fisco que ainda não confessou à sua amada. O que lhe dá motivações secretas…

– És engenhoso, mas estás a gozar comigo!?

– Claro que brinco, mas inúmeras narrativas reduzem-se mesmo a dois modelos, o do segredo (aquilo que motiva a investigação), e o da viagem (a experiência que transforma as personagens no itinerário do auto-conhecimento). Blue Velvet é um bom exemplo para o segredo, Taxi Driver ou Apocalipse Now para os da viagem.

– Hum, ontem li uma página do Saramago, que me espantou. Foi nos Cadernos de Lanzarote. Tem uma entrada onde ele dá forte e feio no Drácula… do Coppola. Fala inclusive em embuste. Concordas?

– Olha, trabalhar no cinema é, e até mais do que contar as fábulas, fazer multiplicar as ressonâncias. Quanto melhor o filme mais elaborada ou subtil é a sua rede de ressonâncias entre os vários níveis de construção (plástica, diegética, sonora) que o compõem e que capturam a emoção dos espectadores. Às vezes os espectadores mais inteligentes não dão conta. Talvez nunca dispam a inteligência, será o caso do Saramago. Ora, esse Drácula tem, mesmo descontando o Keanu Reeves, pelo menos um raccord que vale o filme inteiro, bastariam esses sete segundos para o justificar.

– Explica-te…

– A expedição do dr. Van Helsing está de partida para a Transilvânia e a aristocracia londrina oferece-lhes uma festa. Convivem no jardim do palacete, na véspera da grande aventura. Dois pavões cruzam o plano e isso origina um olhar subjectivo que vai fechando o plano sobre uma das aves e a sua cauda até se enfocar num dos “olhos” negros. E de imediato vemos, já na Transilvânia, o comboio que os transporta a penetrar num túnel da montanha. A rima plástica do olho da cauda do pavão a penetrar no túnel com uma forma idêntica (o raccord) ganha uma transversalidade isomórfica (o isomorfismo é a similitude de estrutura que se dá entre fenómenos superficialmente muito diferentes): eles vão entrar no lúgubre curso subterrâneo das suas almas, de onde não sairão mais. E temos o jogo das ressonâncias a actuar em pleno.   

– E essa coisa das ressonâncias, onde a vês mais?

– Olha, na pintura oriental. Na poesia. Na poesia uma grande metáfora é como um passe vertical no futebol, atravessa de um só golpe vários níveis de realidade e abre novas perspectivas…

– O golo…

– Sim, uma metáfora bem concebida equivale a um golo…

– Dá-me lá um exemplo…

– Repara nestes dois versos do Amadeu Baptista: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar». Como é que se chega à ausência de uma praia, perguntarão os racionalistas. Provavelmente de pára-quedas, como os anjos. Mas esta questão é similar ao enigma que é discutido há décadas por físicos quânticos e monges budistas e que se resume ao seguinte: quando não há ouvido humano por perto, o galho da árvore que se parte faz barulho? Este enigma é o que desperta nos versos de Amadeu: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar.» Como é que dois versos escritos avulsamente, sem preparação prévia, se sintonizam com o que tanto perturba cientistas e monges? Que tipo de memória desponta nessa intersecção, onde mar, audição, sujeito e leitor se tornam um? É um caso de ressonância…

– Eh, pá! E servem-te para alguma coisa essas macaquices?

– Para nada, não fazem parir as lecas na conta bancária, não te habilitam a quatro quintos das posições do Kama Sutra… Não curam a sífilis. Só me dão um cansaço…

– Um cansaço?

– Sim, há cansaços benignos, que te fazem baixar as defesas, a censura… e propiciam a meditação… Quando trabalhava nos jornais, bebíamos muito. Hoje sei: era uma forma mecânica de baixar a guarda, de nos colocarmos sem censura nem pressão para que o texto aflorasse e se desenrolasse a si mesmo…

– Como a inspiração?

– Não, isso é um conceito romântico e perigoso, porque laxista. Mas existe uma espécie de inteligência não circunscrita, isso sim… E que actua por ti, se a deixares.

– O célebre daimon do Sócrates?

– Aí já te pões num plano de acareação com o divino, um tu cá tu lá… Sejamos humildes … E o teu inconsciente talvez não precise de tutela…

– São tretas dessas que vais ensinar no curso de guionismo que vais dar no mês que vem?

– Antes fosse, mas eles quase sempre só querem saber como é que se conseguiu dar três seios à mutante no Total Recall  Só se interessam pela cosmética…

– E há mais do que isso?

– Há um milhar de obras em todos os domínios que me faz crer que sim, há a experiência atestada de milhares de pessoas que me faz crer que sim…

– As coisas que tu pintas…

– Não pinto nada, são constantes. Quem quiser vê-las…

– Diz-me lá, que procura uma mulher no amor, que constantes?

– Um Don Juan cego…

– Sim?

– Alguém que venha pelo menos precedido pela fama de ser uma fera na cama e que como é cego a trate como se fosse única… E esta é a mais benigna ilusão do amor.

– Balelas…

– Talvez. Mas o meu epitáfio vai ser: “Eu que fui tantos, não fui aquele que mordeu o pescoço da Winona Ryder!” e isto é um lamento sério, diria mesmo que é cancerígeno.

13 Abr 2017

Pinturas de Batalhas

02/04/2017

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá a altura de revelar aos amigos de Macau que a mais atrevida representante da literatura feminina luso-macaense viveu vários anos em Lourenço Marques, nos anos 40 e 50, e provocou escândalos porque, além dos seus poemas serem incandescentemente eróticos, era publicamente suspeita de se ter entregado biblicamente a dois irmãos, Duarte Galvão e Bruno dos Reis.

Assinava a diva Lee Li-Yang e radiografou em poemas licenciosos o seu amor, sobretudo por Duarte Galvão, um poeta com uma voz à James Mason e propenso ao dom juanismo, e que despertava nela a sensualidade e a paixão mas igualmente a ira, o ciúme, a crueldade ou a ironia – provocados pela infidelidade dele. E tudo isto se grafa nos poemas.

Estes versos que, com escândalo, saíram em vários jornais e revistas da época foram finalmente compilados em livro em 2009 numa edição que prefaciei e foi publicada pela Escola Portuguesa de Moçambique, intitulada Meu Mar de Tochas Líquidas. Devido ao seu erotismo foram, de novo, motivo de desconforto. Eis breves excertos da sua pintura de batalhas, que explicam o embaraço:

“É nua sobre a cama que te espero noite/ e enquanto o diabo me não liberte/ não se perca e me perca este fito –/ meu frágil coração de anjo e bruxa/ reclama a quatro patas teu vendaval/ de carícias e saques os teus/ clarins de guerra.”; “Na minha extrema e endiabrada/ vulva de prazeres e contrições/ convulsiva vulva de frémitos/ redivivos e onde de luxúria e raivas/ vi nascer e morrer deus e o diabo/ vergas de sal cegas de furor/ geografias do infame do insólito/ e gemas do mais familiar decoro modulei os diapasões e/ fiz do impossível/ meu perdão”; ”Sei que no antes/ a meio e no final/ de cada assalto serei eu/ quem te estrangula e/ serás ínfima expressão do teu/ cadastro enquanto vista de cima eu sou/ o mastro e tu por baixo/ a vela”.

Lee-Li Yang foi um heterónimo do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, tal como os outros dois nomes mencionados (os seus amantes); um raro heterónimo no feminino, como posteriormente só me lembro com a Marichiko, uma jovem poeta japonesa que, em 1978, o americano Kenneth Rexroth (depois de ter feito várias antologias de poesia clássica japonesa) inventou, ou, em 1998, ou com Violeta C. Rangel, a prostituta espanhola que cavalgou uma centena de poemas do andaluz Manuel Moya.

02/04/17

Fascinam-me as pinturas de batalhas. Nos anos 90, vi uma enorme exposição de pinturas de batalhas no Prado, da qual nunca me arrependi o suficiente por não ter comprado o catálogo.

Procurando na net por um dos magníficos do género, Alphonse de Neuville, descubro que um dos seus quadros mais célebres, La Bataille du Cimetière Saint-Privat, é propriedade do Musée des Invalides, em França. Fascina-me este humor, igual só o das térmitas quando sabem a família em férias.

03/04/17

Assinei contrato para o meu terceiro livro de ficção a ser editado no Brasil, mas noutros países nada. Afinal, o que são e como são os leitores da estranja?

Não me imagino lido em inglês. Uma vez recebi um postal de Miami onde apenas constava, redigido em espanhol, “Me ha gustado mucho!”, e assinava um Chris (desconheço quem seja, se é macho ou femea), que não sei se me encontrou na esquina de um verso se nuns lavabos, e após anos a matutar, tanto a jusante como a montante, o meu sono ficou mais inclinado. Bom, e escreveu-me um professor de Oxford, “full of urgency”, ou algo semelhante. Quando lhe respondi, a carne aparatosa do silêncio impôs-se.

Também em francês os meus castanheiros nunca floresceram. Falo dos bonsais que cultivei em vários poemas e que já me saem em ramadas pelos bolsos, sem que um gascão se apiede e traduza. Fazia grande empenho em ver como se traduzem os meus bonsais na língua de Voltaire, mas continuo interdito, desde que o meu tio Manuel Domingues, emigrante, se perdeu no metro de Paris, estonteado pelo tufo de pêlos que uma normanda exibia nos sovacos e a minha tia amaldiçoou toda a família por várias gerações. Adoraria que me calhasse em francês (como ao italiano Sanguinetti) um tradutor com o apelido Marchand-Kiss.

Em flamengo tive fortuna e parece que foram muito elogiosos mas o meu entendimento da língua é uma locomotiva a vapor e antes de 2023 não conseguirei elucidar-me.

Em espanhol quis casar com a tradutora e o marido puxou da faca na liga. O outro tradutor, que soube depois ter um lábio leporino, não se mostrou tão dedicado.

Já o que me aborrece nos meus leitores chineses é que estejam sempre a descobrir vidraças rachadas nos meus poemas. Uma vez escrevi: “na China, as gotas que se formam na boca das torneiras são quadradas”. Também não é preciso acreditar em tudo o que um homem escreve. Recebi um milhão e meio de cartas, tive de mudar de casa. De outra vez, num artigo, lamentei que na China nenhuma saia se levantasse até ao ilíaco, pois na altura em todas as representações as chinesas vestiam as calças do grande timoneiro – afinal, quantos pares de calças tinha Mao no seu guarda-fatos? –, e foi um “suhyung xiravirá”. Conhecem a expressão? Significa: uma gestão seca de uma explosão de fluxos, e foi a única expressão que me ensinou uma rapariga de Macau, que me engomou uma camisa num hotel em Braga e que voltei a encontrar em anos recentes como empregada do café Nicola, em Lisboa. Bonita. Ou será “hai’ti schirati’ctin”? Já me falta a lembrança?

Em brasileiro saí muito e por felicidade minha nunca me mexeram na sintaxe nem me meteram os móveis no tecto, como já vi a alguns autores e em outras pinturas de batalhas.

Não tenho tido muita sorte com as traduções mas se pensar que a minha amiga Maria Velho da Costa nunca foi traduzida (há maior crime?), aí dou-lhe um bigode. E, como garantia Montale, ”é possível amar uma sombra, sombras nós próprios”.

Ah, isto consola-me!

6 Abr 2017

Almas tenras

23/03/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço.

Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida.

Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia.

E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano.

O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la.

Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag.

26/03/2017

Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta:

– Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores?

– Que raio de pergunta… – redargue a morena.

– Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha.

– Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha.

– Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu…

– Que têm os raios a ver com as pessoas?

– Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem.

Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente:

– Já sei para que pode servir a gravidade?

– Diz lá, deve ser boa…

– Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada.

27/03/2017

Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada.

Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc.

Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media.

Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então.

Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.

30 Mar 2017

Walcott & A pata na poça

17/03/2016

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap] oje somos hoje acossados por um novo tipo de ignorância: a dos que só sabem inglês. Mas desta vez dou a mão à palmatória: morreu um dos melhores poetas do século XX, Derek Walcott, de língua inglesa, nascido no mesmo ano do Herberto, 1930.

Era negro, filho das Caraíbas, nascido numa família metodista e anglófona cercada de católicos e francófonos por todo o lado – eis um excelso exemplo da crioulagem dos arrabaldes do mundo, um homem sulcado de periferias como se cicatrizes do seu corpo fossem e que moldou uma obra poética e teatral de «ressonância estereoscópica», no dizer de Brodsky, para quem era «o melhor poeta actual em língua inglesa». De idêntico juízo comungavam Seamus Heaney, outro irrelevante prémio Nobel, Rushdie e Robert Graves, o qual assentiu que nenhum poeta inglês de nascimento seria capaz do extraordinário uso que Walcott fazia do inglês.

Quatro nomes veneráveis que o veneraram. Mas não em Portugal, local onde terá sido um dos poucos nobéis que não tiveram direito a edição. Só vejo uma explicação para isto, mesmo que inconsciente: era negro.

Os espanhóis, com menos complexos em relação aos seus crimes coloniais, traduziram-no com profusão. E assim me foi apresentado, antes de me atrever ao “seu” inglês – experiência, para mim, igual a espreitar uma paisagem através das persianas. Mas a paisagem é mesmo magnífica.

No Brasil existe uma tradução de Omeros, um poema unitário de 200 páginas que verte os ingredientes homéricos para o ambiente dos pescadores antilhanos, e recomendaria igualmente, de entre os cinco ou seis livros que lhe pude ler, Midsummer e The Arkansas Testament. E hoje consegue-se baixar, free, da net, os Selected Poems. Aqui deixo um poema, breve, Arquipélagos, numa versão minha: «No fim desta frase começará a chover./ Da bainha dessa cortina de água desponta uma vela.// Com vagares, há-de a vela perder de vista as ilhas;/ a crença nos portos de toda uma raça/ esfiapar-se-à na névoa.// Terminou a guerra dos dez anos./ O cabelo de Helena, um cirro gris./ Tróia é um fosso de cinzas brancas/ amassadas pelo chuvisco, na orla do mar.// Engrossa a chuva como as cordas de uma harpa./ Um homem de olhos nublados tange-a com os seus dedos/ e recita o primeiro verso da Odisseia».   

20/03/17

Eu, judeu, me confesso: chateia-me que Guterres tenha metido a pata na poça e mandado retirar do site da ONU um relatório elaborado por juristas e académicos idóneos e que, examinando as políticas e práticas de Israel, acusava Israel de cometer “apartheid”.

Nova era a acusação emanar da ONU. Creio que Guterres cedeu ao medo da reacção de Trump, capaz de deixar a organização descalça. Que pena Edward Said não estar vivo para o ouvirmos comentar, ele que foi sempre justo com um lado e outro. Mas lembremos o que o insuspeito judeu George Steiner, há dezassete anos, já lamentava: «Há trinta anos eu escrevi um ensaio onde dizia: “este estado de Israel vai torturar seres humanos. Terá de fazê-lo para sobreviver!” (…) Durante dois mil anos, na nossa fraqueza de vítimas, pertenceu-nos a aristocracia suprema de não torturar o outro. É para mim a maior proeza da nossa herança. E agora, em Israel, é necessário, é necessário criar-se um campo armado, armado até aos dentes. É preciso ter gente nos calabouços em condições muitas vezes terríveis. Isto parece-me um preço que eu não vejo como queira pagar.» Pois. Depois da tortura, o apartheid. Esfuma-se a dignidade, a diferença de ser judeu. Só sobram os falcões e uma máquina de guerra imparável, que se autolegitima quando a retórica sombria das identidades se torna matéria de vida.

Temendo o próximo passo – já dado pelos extremistas do DAESH –, recordo que a escravatura foi abolida não em razão dos bons sentimentos mas porque já saía mais caro ao sistema pré-industrial e era-lhe menos lucrativo do que transformar os escravos em operários.

E eis-nos de novo expostos aos ventos da arbitrariedade com que a diabólica razão financeira distorce as percepções das prioridades no governo das nações para lhes impor os mais abjectos desígnios, ou para esconder (de si mesmo?) as suas enfermidades mais grosseiras.

Nos idos de oitenta do século XX houve um teólogo afrikander que, dado o milagre que conduzira as mãos do dr. Barnard no transplante do coração, defendeu que a raça negra fora criada por Deus para servir de “banco de órgãos” para os transplantes dos boers.

Será o próximo passo face aos palestinianos?

Era vital que a ONU tivesse tido a coragem de aceitar os resultados do relatório que mandou elaborar.

21/03/17

As dimensões ocultas. Baixo da net um ensaio precioso de Cynthia Fleury, que há anos desejava ter: La Fin du Courage (Hachette, 2010). Imprimo-o.

Ao fim de 40 páginas, a minha entusiástica leitura é interrompida pela empregada – quer instruções para o almoço. Dá-se então um sobressalto da geografia e sou abanado pela irreprimível saudade de comer javali. Fica-me de tal modo aguada a boca que abandono tal matéria superlativa para o espírito e rumo ao restaurante da esquina para adoçar a boca com um leitão de medíocre confecção. Salvam-me do desconsolo os lúzios peregrinos (assim no século XVIII se chamava aos “galanços”) de uma trintona, parda, bonita e atrevida, que me faz imaginar que o meu triste bacorinho é um artista de circo e anda de mota. Resisto à tentação e volto disciplinadamente para casa, sem sequer trocarmos números de telefone.

Agarro-me ao ensaio da Fleury mas a minha determinação fraqueja, a vontade de pensar até ao fundo das suas consequências as hipóteses que o texto levanta não é o mesmo; desconcentra-me a falta de sentido de oportunidade para seguir as vias do apetite. Terá sido falta de courage? Adoraria estar em paz quando repito o Aldous Huxley: “sou um intelectual, há coisas que me interessam mais do que o sexo!”.

23 Mar 2017

Diários de guerra de um ornitólogo

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] o quarto telemóvel que me impinge desde que me sentei na esplanada. Não desiste. Já passaram na rua uma trintena de grávidas. Dois vendedores de dvds piratas esperam encostados à acácia que eu me levante para me acossar. Uma miúda de olhos de boga, tão afadigada a digitar no seu cell, fica tremendamente desiludida quando eu a interrompo para lhe perguntar as horas… E extensões eléctricas, não quer? Fazem sempre jeito. Vendo duas tábuas de engomar pelo preço de uma. Quarenta e um graus, e o café não tem gelo. A minha mulher liga-me, Faz cinquenta dias que entregaste o relatório – como se estivesse nas minhas mãos. Não me pagam, interpôs-se uma guerra idiota entre a bondade e a administração do Estado. Um gala-gala sobe pela acácia. Abro o gmail, um aluno enviou-me a proposta do seu projecto de fim de curso, pedindo que o supervisione. Dou uma leitura na diagonal. É uma vala comum onde se esqueceram de deitar os corpos. Não há uma vírgula onde se note que a criatura esteve quatro anos na universidade.

Face a este caos, é preciso um método, um simulacro de ordem. Como faço tudo ao contrário do que é costume, descanso fazendo traduções, assim como outros pescam o merlin ou vão ao Kruger fotografar os leões.

Tenho uma péssima, uma canhestra relação com as línguas. Leio quotidianamente em várias delas mas é frequente sentir-me como quem lê as pegadas de tartaruga na praia, incerto sobre a morfologia do animal que aqueles sinais indicam. É porque me é difícil que persisto. Da mesma forma que só a dificuldade me levou a não abandonar a escrita. Estou para todas as línguas como Moisés para as costas de Deus. E sentindo ao perto a luz dos sessenta afigura-me inútil invejar aqueles que por berço articulam os vocábulos alheios como morrões que displicentemente abandonam nos cinzeiros. Traduzo numa espécie de selvático urbanismo mental, em inconspícuo labor, enquanto na rua os jacarandás se desnudam ou a casca do limão cai no gim. É aquilo a que chamo: os diários de guerra de um ornitólogo.

Sem dar-me conta reuni quinhentas páginas de poesia, traduzidas do espanhol, do francês, do inglês, do italiano. Ia agora editar todos os hispânicos, duzentas páginas. Mas o editor, numa atitude infantil de animal birrento, quis polemizar em 360 graus e disparou no seu próprio pé, pondo-se fora do baralho.

Creio que só uma coisa terão em comum, os meus poetas: a ideia da destruição da linguagem não lhes é afim. Se nos atermos ao que dizia Bataille: «a poesia há-de ser o comentário de sua própria ausência de sentido», nenhum deles abraçaria tal dogma. Contudo, já os imagino a assentir com o que Andrès Sánchez Robayana anotou no seu diário: «A poesia é agora, para mim, um novo estado de consciência. Um estado ilegível. Porém um estado que provém da leitura paródica do ilegível. Por um momento, vejo, leio o ilegível. Não é decifrar um inimigo, mas sim vivê-lo» (La Inminencia/ Diarios, 1980-1995, pág.44). São coisas muito distintas.

De SALVADOR ESPRIU (1913-1985), catalão, um poema, OS JACINTOS: «Sentir sem mais,/ conhecer de cada coisa/ o lhano e simples nome, carícia/ como a de abril sobre as folhas novas/ enquanto a luz de chuva da tarde/ se reclina pouco a pouco entre os jacintos./ Claro momento da flor, reflectida,/ e por vezes recôndita: beleza/ última do seu recorte nos meus olhos./ Depois, pelo ar, ténue/ recordação, o mais além do intenso verde/ da erva que molha esta chuva lenta».

14/03/2017

A minha mulher, Teresa Noronha, editora e escritora, foi convidada para um encontro de literatura infantil, em Lisboa. Aceitou e tendo o passaporte caducado foi renová-lo. A um mês da partida. Pagou a taxa de urgência, para o levantar em cinco dias. Na data indicada pelo recibo deslocou-se à Migração. Nada. Mais uma semana de peregrinações. Nada. Um dia fez finca-pé, queria que a esclarecessem sobre o atraso do seu passaporte. Ao fim de três horas, sentiram-se maçados e resolveram ir verificar.

Tem um problema com o seu processo… Que problema? Tem um «V», uma abreviatura em vez de um nome e na fábrica recusaram fazer o passaporte… E por que não me avisaram logo, para se resolver? Esqueceu…

No dia seguinte, ela levou a cópia da certidão de nascimento requerida. Como se a Migração não tivesse um cadastro identitário dela há cinquenta anos, como se… Entregou a cópia ao “chefe” e reforçou a sua urgência. Explicando, a) que o problema fora dos serviços, a funcionária que recebera os documentos requeridos não assinalou a anomalia; que pagara uma taxa de urgência; que a urgência agora era total pois ia representar Moçambique num encontro dos Palops com data marcada. O “chefe” descansou-a, o seu processo “vai ser muito bem encaminhado!”. E tudo desacelerou.

Talvez porque a senhora foi maçadora. Talvez pelo motivo não-declarado que de outra vez levou uma funcionária a dizer descaradamente a uma filha nossa, Menina, pagaste a taxa de urgência, mas se não me deres mil o teu documento fica pronto daqui a seis meses… Talvez só por incompetência e relaxe… Embora “muito bem encaminhado”, houve descaminho. O V tornou-se “um caso” e o passaporte não saiu. E a minha mulher não compareceu no encontro.

Dá um enorme cansaço insistir em viver num país que todos os dias se afadiga a maltratar os seus melhores elementos, porque a qualidade destes ilumina a mediocridade reinante.

Ah, mas porque não recorreram ao Ministro da Cultura, que vocês conhecem, perguntam amigos. Exactamente porque não podemos colaborar com o estado das coisas, a nenhum preço. Queremos um país onde seja possível a um cidadão comum ser respeitado pela simples inerência dos seus direitos. Mesmo que a honestidade seja o que nos trama, preferimo-la. Seguir-se-á o protesto.

16 Mar 2017

Falhar menos

02/02/17

[dropcap]N[/dropcap]ão escrevo para que me interpretem. Como Melville acredito que o mundo e o mistério são maiores que eu. Há, por isso, momentos em que uma leve sintonia me faz bem como quando leio numa conferência de Foucault de 1966, intitulada O corpo utópico, que o pensador francês opõe a utopia ao corpo. Diz ele que «o corpo é o único que não se pode trasladar para um espaço imaginário perfeito», porque todas as manhãs o espelho mostra-me mais calvo e que os músculos me caem lassos e a pele começa a ter manchas inarredáveis e que o que se passa com o meu corpo se afastou milhas do modo com que imagino todas as minhas construções. Ou seja, o que eu idealizo e por outro lado a minha presença que, dia a dia, se desvanece. Bom, a clivagem desta consciência toda a gente a adquire por experiência própria. Até aí nada de novo. O que me parece inédito é a chamada da utopia para um contraponto com o corpo, habituados que estamos a localizá-la no campo das ideias. Seja pois a utopia o inverso do corpo, a sua sombra: isto supõe que todas as outras ideias, porque menos radicais, se inscrevem no corpo, florescem à margem do seu desgaste, como órgãos, extensões daquele, ou vidas virtuais possíveis, para o que aprende a ausentar-se. Suponho que esta será a melhor das maquilhagens.

Em relação a este aspecto são interessantes as reflexões com que Michel Onfray demonstra a presença do corpo (ou a sua censura) no delineamento do pensamento, mesmo em Deleuze, que quis teorizar o «corpo-sem-orgãos».

05/02/17

Nina Simone, vi-o agora, teve direito à sua biopic. Vale o filme o que vale a sua intérprete – Zoe Saldana, magnífica – e por três ou quatro pormenores que iluminam uma vida e as suas circunstâncias. Uma entrevista na rádio de Nina com um jornalista francês funciona como a vértebra do filme, voltando-se repetidamente a ela; a uma pergunta sobre porque decidiu Nina ir viver para França, onde é adorada, Nina responde: “A América falhou. Falhou com o meu povo, e comigo. A América falhou como país”. Fala evidentemente do racismo. Noutro filme sobre Miles Davis, o genial trompetista, que a dado momento se exilou em Paris, onde é idolatrado como artista, também diz que na “cidade luz” vive uma liberdade que nunca conheceu na América. A América falhou.

Se formos vinte anos atrás, à história de Josephine Baker temos outro exemplo de uma vida extraordinária e fustigada pelo racismo e que encontra em Paris o porto de abrigo. Porque em Paris é respeitada e no seu país era perseguida. Três exemplos que atravessam um século mas que atestam pelo menos que a meritocracia na Europa tem menos cor – é de artistas que falo, gente comum terá mais problemas, mas o modo como se tratam os artistas é um indicador civilizacional.

Entretanto sabemos: a América de Obama falhou, a América de Trump, já se viu, vai falhar melhor. Hoje, no essencial, o racismo mudou o seu foco mais encadeante, é menos étnico que islamofóbico, contudo, o que está em jogo nas eleições europeias deste ano é saber se a Europa – que, na generalidade, resolveu melhor a condição pós-colonial que a América as suas tensões internas – vai continuar a ser um porto de abrigo ou se as restrições que decorrerão de resultados contrários aproximarão a Europa de um modelo afim do americano, racista, xenófobo e áspera e orgulhosamente clivado. Às vezes era preciso falhar menos.

06/02/17

A descoberta dos sete exoplanetas semelhantes à Terra, com possibilidades de ter água, excitou meio mundo. Era uma descoberta que faltava à necessidade de descomprimir a solidão do homem no vasto, álgido, universo que nos rodeia. Digamos que, no meu caso, foi o modo mais feliz da realidade contrariar o convincente mas terrível diagnóstico que o ensaista de arte e poeta de Barcelona, Rafael Argullol, fez em Maldita Perfección/ Escritos sobre o sacrifício y la celebración de la belleza (2013), e que nos colocava à beira de uma depressão irredimível. Num texto intitulado A Solidão de Shakespeare, Argullol sustenta o seguinte: «Nenhum poeta posterior ao século XVII teria podido escrever como o fez Shakespeare sem ser acusado de inverosimelhança total. Se um escritor actual, por exemplo, vinculasse as paixões humanas a supostas paixões dos astros, ventos ou moléculas, seria justamente culpável de um maneirismo que lhe faria perder toda a eficácia literária. Ninguém imagina um cenário deste tipo como campo metafórico de um poeta contemporâneo. Todo o contrário acontecia com Shakespeare, cujo enorme potencial de metáforas há que entendê-lo, em boa medida, como consequência da sua disposição, convergente com uma consciência todavia era da sua época, para enlaçar os fenómenos da natureza humana com os fenómenos do conjunto do cosmos». E a seguir Argullol mostra como a grande fronteira do espaço se revelou um poço sem fundo: «Inalcançado qualquer indício de diálogo, nunca como agora parece evidente a consciência de solipsismo. O homem é um relato sem ouvintes no qual se conta o seu solitário protagonismo no mundo».

E esta viragem das esperanças antigas para um horizonte tão abissal como mudo, este confinamento, imaginei eu a partir da leitura de Argullol, foi desde a desilusão da aventura espacial, destapando (como uma Caixa de Pandora) todas as depressões, com correspondências visíveis desde a sensação de uma «falta de alternativas políticas», à crença de que os fármacos podiam substituir a psicanálise, até à suposta incapacidade da poesia sair do beco do quotidiano: atravessávamos um mundo sem exterior fora da alucinação, sem saídas, gélido e destituído de – lá está – utopias.

Esta descoberta da astronomia, de sete planetas com condições para ter vida, devolve-nos um ponto de fuga, uma ilusão que nos faz de novo exigir o impossível: a derrota das distâncias insalváveis.

9 Mar 2017

Arquitectura e poética 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Maputo existe um hotel, o Taj Mahal, onde os mictórios do bar se localizam exactamente por trás do balcão da recepção. E a porta de tal fétido lugar tem de há muito os gonzos enferrujados pelo que a primeira visão que algum hóspede pode ter, quando faz o registo de entrada ou pede a chave do quarto, será a de uma morcela que urina.

Será igualmente um modo insólito para se entrar no teor desta crónica que pretende dar conta de uma feliz exposição de arquitectura que inaugurou em Maputo, mas através do bizarro exemplo talvez se entenda a oportunidade de uma verdadeira lição de arquitectura numa terra que foi perdendo qualquer noção do que seja um plano urbanístico, a ordenação do território, o respeito pelos planos directores das cidades ou a adequação arquitectónica.

A exposição é de José Forjaz, o arquitecto decano no país, que aos 84 anos, decidiu mostrar 40 projectos não edificados, no Instituto Camões.

Numa nova deriva prévia, vou contar o que me aconteceu na ida à casa de uma amiga. Ela não estava e fiquei na sala à espera dela, a espreitar a estante. E então aí vi um livro que se chamava “How to think like Leonardo da Vinci”. Fiquei estarrecido. Eis que nos impingem métodos para chegar instantaneamente às vistas largas do Leonardo sem termos de passar pelo esforço de subir à montanha, aplainando de imediato o terreno. O que acontece é que o vale altíssimo a que ele chegou e a percepção que aí ganhou era indissociável do processo da subida, das dificuldades e dos conseguimentos na escalada e nenhum livro de 300 páginas, que se lêem em oito horas, supre os quarenta anos da subida, as vicissitudes, os méritos e os sentimentos frustres que tanto acompanharam o Leonardo no seu percurso. E só aí, na sua provação, pôde converter o estudo das topologias do terreno que tanto o cansaram em vantagens e conhecimento.

Ora a lição que se tira destes projectos no papel de José Forjaz, considerado internacionalmente como um grandes arquitectos de África, é o seu flagrante aspecto totalizador. A relação com a arquitectura é aqui pensada de um modo total – fazendo convergir no esquisso todos os aspectos da relação do homem com o ambiente e a paisagem, o corpo, o espaço físico, material, a memória tangível ou intangível dos lugares, o solo, a meteorologia, a antropologia, a economia, a energia, a estética, a funcionalidade, a geomancia, etc., etc. Ou seja, só a idade faz o arquitecto – não há recurso à mentira.

Vamos agora ao aspecto poético.

Não se confunda poético com estético, que pode ser a sua declinação em estereotipo, em cânone. O que em rigor é bom como aquisição vernacular imediata mas é sempre mau quando uma conquista expressiva se torna hábito.

O poético não é um mero jogo das formas, é uma relação mais profunda e exige, entre outras, duas características basilares. Uma delas, assenta naquilo que a arquitectura partilha com as outras artes, o ritmo.

O ritmo está para a arquitectura como as estrofes, as rimas e as aliterações estão para o poema. Mas também acontece que de uma forma plástica a arquitectura nos traduza, por vezes, acordes musicais. Um poeta espanhol, o José Bergamin chamava à tourada a “música calada”. Não está mal visto, mas podemos deslocar esta definição, se calhar até com mais propriedade, para certas obras de arquitectura.

Outro atributo da poética é especificamente arquitectónica e define-se pela empatia revelada entre o projecto e o lugar, numa espécie de co-nascimento retroactivo.

Bom, o sentido de uma paisagem, o que estrutura o seu campo visual, não resulta de uma análise intelectual dos elementos que a compõem mas de uma apreensão sintética das relações que os unem. É como se a paisagem ajudasse o seu espaço construído a encontrar a sua verdade perceptiva.

O José Forjaz que num seu texto fala sobre as relações entre a arquitectura e a medicina não poderia deixar de ser sensível a este aspecto.

A poética, nestes projectos, encontra-se no encontro entre a experiência sensível de estar diante da paisagem e de se tornar evidente que o espaço construído fala com ela, ou melhor que ele diz o que a paisagem queria dizer de si mesma.

Este sentido inscrito no sensível é mais do que uma troca, ao mesmo tempo material e cultural, que se estabelece entre o homem e o seu meio, é entender o mundo como uma ressonância em que todos os elementos interagem para dar mais do que a soma do todo.

Isto até pode acontecer de maneiras muitos diferentes. Pode dar-se por “substracção”, como na Casa de Chá, um projecto para o Japão, que ilustra a crónica, em que a transparência se funde no espaço em vez de lhe impor intrusamente um volume, ou noutro exemplo, este construído, no caso do Memorial de Mbuzini, erguido no lugar onde se deu o acidente de avião que vitimou Samora Machel, em que um dos elementos estruturantes para a idealização do memorial foi o vento, tão presente na colina. O que deve ter sido compreendido por muito poucos.

Mas é por isso que uns são dotados de poética e outros não.

O mais vulgar exemplo desta espécie de simbiose ou de sentimento-paisagem é a célebre Casa na Cascata do Lloyd Wright. Aquela casa enriquece a paisagem, era como se a cascata tivesse corpo mas lhe faltasse algo, houve a partir dela um co-nascimento, algo mais do que uma simples correcção sintáctica. A cascata e a vivenda mobilizam um traço de união entre o espaço e o espírito.

È o mesmo que eu encontro por exemplo no projecto do Museu de Arte Tomihiro, no Japão, um museu destinado a duas artes quase intangíveis, a aguarela e a poesia (cf. em Caliban.pt)

Aqui só lamento que a tecnologia não permitisse ainda ao José Forjaz ter posto o museu a levitar sobre a encosta, sendo aliás ao que o projecto propende.

2 Mar 2017

A alma não se tem, faz-se!

16/02/17

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]orreu Tzevan Todorov, o búlgaro exilado em Paris, um humanista com intuições de valor. Lembro-me desta: “O público prefere ler um romance a uma novela, prefere um livro longo a um curto, não porque ser longo seja em si um critério de valor mas porque o leitor, se lê uma obra curta, não tem o tempo de esquecer que se trata de literatura e não da vida”. É bem visto.

Nos últimos anos, ele que começou como teórico de literatura, fazia uma cruzada contra os perigos em que a mesma se encontrava. E que se resumiam ao equívoco de que os programas de literatura nas escolas se centrem mais nos manuais que pretensamente ensinam métodos para ler os livros do que nos romances em si; sistema que, com razão, ele achava danoso porque só aumenta a rejeição à leitura.

Talvez pelo mesmo motivo que não se explica o sarampo pelo telefone: ou se contrai a doença ou não se consegue imaginar a experiência da doença no corpo.

20/02/2017

Os poetas, coitados, estão pelas ruas da amargura, mas de vez em quando acertam. Ou sempre acertaram? Para Keats os homens tinham “chispas de divindade” no seu interior mas não seriam “almas” até que adquirissem uma identidade – o que exigia a descida de cada um a si mesmo. E assim, numa carta para os seus irmãos, chamava ao mundo o “vale fazedor de almas”. Nascíamos assim incompletos, num estado paródico – portadores de um vislumbre de alma, sob condição de a “fazermos”.

Muito diferente de já a termos formada e de podermos corrompê-la à vontade.

Estimo que se fosse ao contrário, como Keats preconiza, algumas coisas melhorariam. O Mugabe (que, com 93 anos, se mantém no poder desde 1980 e destruiu o país), por exemplo, não diria numa entrevista, como aconteceu esta semana, que não sai do poder porque não encontra “um sucessor aceitável”. Ah, e também se congratulou com as políticas nacionalistas de Trump que, jura, ecoam a sua posição de “Zimbabwe para Zimbabweanos”. Afinidades electivas.

Fosse como defendia o Keats e o Mugabe a esta hora estaria a aprender acordeão debaixo de um baobá, a ver se ainda sintonizava com a música das esferas.

Creio que a África Austral ganhava com isso.

21/02/2017

Não deixa de ser trágico e patético que o senado americano aprove a suspensão de uma lei que impedia pessoas com problemas mentais de adquirirem armas de fogo. Em nome da liberdade individual comete-se uma barbaridade em relação à sanidade mental comum, só para agradar ao lobbie pró-armas. Um negoçião.

Grotesca, a atracção dos americanos pelas armas. Virá das cowboyadas? Têm para com elas um sentimento de estetas. Que é um esteta? O Moravia ajuda-nos: Alguém que tem uma visão exterior de alguma coisa. Quem vive por dentro um assunto, um pensamento, uma situação, nunca é um esteta. Um esteta considera belo, e talvez adore, algo que não conhece. Há escritores e poetas que cantaram a guerra, do lado de fora. Quem a viveu por dentro não a pode amar. Como não a amou Fernando Assis Pacheco, que escreveu um dos melhores livros de poesia em Portugal no século XX, “Catalabanza, Quilolo e Volta”, de 1972, mas de que poucos falam porque ele não deixa que a guerra não doa: «(…) Eu narrador me confesso./A guerra lixou tudo.// É curioso como se bebia/ água podre./ Não falando no vinho, muito./ Durante os ataques doía-me um joelho./ Estou pronto, pensei./ Ninguém me conhece./Os ratos são felizes.//Vocês não sabem como se perde a tusa./ De resto não serve para nada./ A melhor noite que eu tive/ em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky./Sei fazer versos mas doem./ Ninguém me conhecia dentro do arame.// O único joelho decente de Angola/ embebeda-se no Norte./ Vou para escrever e paro./ Deixei-me disso./ Sou feiíssimo ao espelho./ Recordação súbita duma litografia/ castelhana: o garrote./ Não vos perdoo.// Suponho que a violência tem os dias contados./ Se não é assim é parecido./ Eu vi-os sair do quartel/ com as alpergatas nas últimas./ Vai ali o Ocidente, escrevi./ Vai beber água podre.// E depois há um que pisa uma armadilha./ Houve um que pisou uma armadilha!/ Sei fazer versos. Ou seja: nada./ O coto em sangue./ Neste ponto o narrador sofreia a imaginação./ Ninguém disse que me conhecia./Conheço um rato, está em cima duma viga/. Serve para a gente olhar.»

Um dia destes mais um doido entra numa escola em Orlando e mata 13.

Nem tudo pode ser olhado só pelo prisma dos negócios. Urge que volte a ter vigência o que para a maioria das sociedades humanas foi uma trivialidade durante séculos: a submissão das actividades económicas a critérios morais.

22/02/2107

Desloco-me ao Instituto Camões, em Maputo, para a inauguração de uma bela exposição de trabalhos de arquitectura de José Forjaz e à volta para casa apanho um chapa e sento-me ao lado do motorista.

Este observa-me, estala os lábios numa exclamação, morde mais o palito e atira: Como está o Bud Spencer? – lança uma gargalhada e justifica, piedoso: Ya, mulungo, és a cara chapada do Bud Spencer.

Terá querido dizer Buda Spencer? Não, ele articulou o nome correctamente, sem o a final. O Spencer de Trinitá (um mega-sucesso local nas vendas de dvds piratas). Eis-me catapultado para a minha infância de grunho do mato, ignorante e irresgatável.

A fita que levou o Sergio Leone quase ao desespero quando a viu, agoniado por perceber que o western spaghetti havia desembocado naquele enchumaço de peidos e bofetadas.

Bud Spencer, não sei se hei-de rir ou chorar. A partir de tal parecença, vejo-me fora do baralho de qualquer apreciação esteta feminina. Rio.

O irónico é que na semana passada vi um filme do Ermano Olmi em que o Bud Spencer faz de pirata envelhecido – um pirata com assomos intelectuais.

Também tu, Brutus! – perguntei-lhe.

23 Fev 2017

O Tigre e a Neve

07/02/2016

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ui crítico de cinema vinte anos. Escrevi doze filmes. Mas nunca deixei de crer na realidade, nunca usei a imagem como escape. Por isso eram-me insuportáveis os Festivais de Cinema e a sua fauna que transpira cinema e segue religiosamente o programa das festas, das 9h às 24 h. Eu escolhia dois filmes por dia e no resto do tempo flanava, ia às livrarias, demorava-me nos restaurantes, visitava galerias de arte, cafés, em calhando namorava.

Uma vez em Berlim começou a nevar e achei mais interessante ir ao zoo ver os tigres na neve do que o filme da sessão das 15. Foi o filme que ganhou o Urso de Ouro.

De outra vez, também em Berlim, a neve intensificava-se e entrei no primeiro vão de uma porta para me proteger. Vi depois que seria uma livraria hispano-americana. Estive dois dias sem ir às sessões, a ler os diários e os loucos ensaios de Luis Lezama Lima em restaurantes gregos e turcos, à luz de vinhos de nomes impronunciáveis. Claro que este era pecado inconfessável aos olhos dos meus amigos críticos.

Penso que eles no fundo julgam que a morte não lhes toca – se estiverem dentro do filme. É o Rosa Púrpura do Cairo ao contrário. Infelizmente para mim, creio na infatigabilidade da morte, é o que nos separa.

Não sei quem ganhará este ano o Festival de Berlim. O Francisco Ferreira, do Expresso, há-de dizer-me. Sei que nos últimos anos, se eu fosse realizador, só teria realizado três filmes: o Água, (da indiana Deepa Meth), O Tigre e a Neve (do Roberto Benigni), e o Youth (do italiano Paolo Sorrentino). Acho que não ganharam nenhum Festival (pelo menos desses principais).

(A propósito: o La La Landa, é mesmo bola preta – Emma Stone à parte. Tantos prémios e indicações para os Óscares só significam o triunfo da puerilização do mundo).

10/02/2017

Vou iniciar o meu primeiro filme em Moçambique, com o cineasta bissexto Lopes Barbosa. A história do Barbosa, por si mesmo dava um filme. Fez uma longa antes do 25 de Abril, com o Malangatana e a comunidade deste, a primeira e única longa filmada em ronga. O produtor fica em pânico, o filme é absolutamente anti-colonial. Claro que a fita é proibida. Dá-se 74. O filme acaba por estrear finalmente num 7 de Setembro fatídico em que há uma «intentona branca» em Lourenço Marques para tentar segurar o poder. O golpe falha e o produtor foge com o filme. O realizador não soube mais dele durante trinta anos. Até que uma investigadora, a Maria do Carmo Piçarra, descobre há poucos anos uma cópia nos armazéns da Cinemateca, aonde o produtor, num rebate, o depositou antes de morrer. Chama-se o filme Deixem-me ao menos subir às Palmeiras e causa espanto nos Festivais por onde tem andado porque é de facto excelente. Um ovni. Há anos que o Barbosa insiste em fazer um filme comigo. Acedi desta vez porque o tema me interessa muito: a história de amor entre o jornalista e ideólogo Aquino de Bragança e a pintora Silvia Bragança, dois luso-indianos, uma soberba história de amor potenciada pelas circunstâncias e a qualidade das personagens.

O Aquino foi uma figura activíssima em Paris, como estratega dos movimentos de libertação; sendo amigo do Melo Antunes e do Almeida Santos esteve por detrás das negociações para a independência, mas nunca aceitou prebendas nem cargos no poder e actuou apenas como assessor crítico de Samora enquanto na universidade fundava o Centro de Estudos Africanos. Acabou por morrer com o Samora no desastre de avião.

A ligação entre a Silvia e o Aquino só pôde durar quatro anos mas é uma magnífica história de amor e o melhor meio para evocar a qualidade do Aquino como homem. Começamos a filmar esta quarta-feira, 15. Se este filme correr bem, farei de seguida outro sobre o pintor/poeta António Quadros/Grabato Dias. Curtas, que só temos a maquinaria e a vontade de fazer.

11/03/2017

Preparar as aulas levanta sempre lebres, que superam a ingrata tarefa de sensibilizar os indiferentes. Descubro que para o teórico de arte Rudolf Arnheim «o máximo de informação é directamente proporcional à sua inatendibilidade e precipita-nos na entropia». Eis resolvida por si mesma a velha dicotomia entre a comunicação e o conhecimento – por um equilíbrio homoestático menos comunicação nutre mais do que a saturação dela. O que a pintura oriental já ensinava há muito com os seus vazios e o primado na sugestão.

No que à poesia diz respeito, para mim, o espanhol José Ángel Valente já dissera o essencial: «Entendo que quando se afirma que a poesia é comunicação não se faz mais do que mencionar um efeito que acompanha o acto de criação poética, mas que em nenhum caso se alude à natureza do processo criador (…) todo o momento criador é em princípio um acto de tactear no escuro. O material sobre o qual o poeta se dispõe a trabalhar não está clarificado pelo conhecimento prévio que o poeta tenha adquirido, mas antes espera, precisamente, essa clarificação». Quanto àquilo que se pode comunicar, associo-o sempre ao provérbio chinês que diz: “Tudo o que já sei deixa de me interessar”.

12/02/2017

Vocês sabem, aquelas peúgas que, irritantemente, escorregam para se meterem no calcanhar!? Era assim a pele dele, preta, passava a vida a cair-lhe da raiz dos cabelos até ao calcanhar, não porque fosse albino, mas queria imitar os tiques dos brancos (o que ele entendia por essa abstracção). Radialista. Um dia nas barracas do Museu, em ouvindo-me falar do problema das mulheres em Moçambique, comentou: “Gramo deveras, pá, ouvir-te falar sobre as mulheres… Até te levava ao meu programa, mas não posso, pá…via-se logo que és tuga…». E eu sosseguei-o, «Tens razão, a rádio não deixa escapar nada daquilo que se possa ver…». Disseram-me hoje que morreu. Ou foi cobrir alguma rebelião dos anjos, num beco lá para Orion. Não ouço rádio, não tinha dado conta. Paz à sua peúga!

16 Fev 2017

Actos de fé & Fumo negro

03/02/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira vez que aterrei em Maputo, em 1995, encontrei à entrada do Hospital Central um amputado, de ambos os pés, que vendia sapatos só de pé esquerdo. Impecavelmente engraxados. Cem meticais por sapato. E o par, perguntava o traunseunte curioso. Há-de chegar… – jurava com aquele brilho fanático nos olhos que encontramos nos aficionados da agricultura biológica – o mister passa cá pra semana… e lhe garanto o par.

O eventual comprador era convidado a um acto de fé. Ai de quem pusesse em dúvida a convicção de que o vendedor completaria a entrega da metade que faltava.

Tão insubornável fé só a reencontrei num vendedor de cautelas em Cacilhas, no outro lado do Tejo. Ia apanhar o cacilheiro e apanhei-o a limpar com papel de jornal as lentes de casco de garrafa dos seus óculos, de haste presa à armação por um arame, enquanto a sua boca de um verdete desdentado, proferia para um tipo de fato Boss, sapatos italianos e pingente de ouro na gravata: Eu há vinte anos que jogo no mesmo número!

Apanhei a frase no ar e desviei-me para um balcão, no fito de beber um café e de ruminar três minutos no absurdo de um maltrapilho tomar a miséria por oráculo.

Gente que acredita cegamente em «factos alternativos», tal como Kellyanne Conway, a assessora de Trump, que, para justificar um decreto idiota, inventou um alegado atentado que nunca se verificou, o massacre do Bowling Green.

Simultaneamente, e não é acaso se na moldura da comédia humana tais actos coincidem com a institucionalização dos «factos alternativos», foi destaque da semana a ímpia permissão que esteve quase a ser sancionada pelo parlamento romeno, o qual queria legitimar o desvio de fundos públicos, por abuso de poder, desde que não se ultrapassasse a irrisória quantia de duzentos mil euros. Esta piedosa imoralidade ganhou o seu primeiro argumento em plena Europa.

Porque foi com certeza uma primeira tentativa e este novo guião para uma futura regulação política dos bens e dos erários públicos irá repetir-se e vingará, dado que cai como ginjas no estado pantanoso em que se locomovem inúmeros Estados. Lembremos o caso do Brasil.

Há-de pois espantar-me o que li hoje nos jornais moçambicanos, sobre o ex-genro do ex-presidente Guebuza, o mesmo que assassinou a filha deste, há dois meses atrás? Relatava-se assim no novo «facto alternativo»: «Zofino Armando Muiane, segundo consta da acusação particular da família Guebuza, é um espião sul-africano que usava o nome de Washington Dube». Hesitamos, se rimos se choramos.

A seguir, na grande maioria dos estados africanos, virá impor-se a nova lei, imitada da desenvolvida Europa.

04/02/2017

É uma coisa maravilhosa a força com que as mulheres sobressaem no actual momento da literatura portuguesa. Tanto na poesia – e bastam-me cinco nomes: Raquel Nobre Guerra, Joana Emídio Marques, Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos e Maria João Cantinho – como na prosa, aonde, dentro do que pude ler (e mais não refiro por não terem chegado a Maputo), dois nomes se destacam com livros recentes que são a todos os títulos excepcionais: Ana Margarida Carvalho, com Não se pode morar nos olhos de um gato, e Alexandra Lucas Coelho, com Deus Dará. A literatura no feminino dá cartas, aparenta ser um feixe de enorme energia que veio para ficar, o que não significará apenas uma afirmação individual como um insofismável avanço na paridade social, cunhada nos patamares simbólicos,

E interrogo-me no mal-estar que estas mulheres emancipadas, inteligentes, maduras, poderão sentir perante a notícia de que a lei russa despenalizou a violência doméstica, mormente se o homem a não pratica mais do que uma vez por ano. É que tudo o que é mau, tende a repetir-se em todas as latitudes.

Uma vez por ano, argumenta-se, não faz um agressor, é um mero problema de comunicação no casal, que muito carinho posterior pode atenuar. Bom, há casos em que a violência no casal pode ser mútua. Mas são minoritários. O que interessa é o pano para mangas que o retrocesso desta lei dá ao álibi, esquecendo que as relações assimétricas são claramente maioritárias. E ficando o agressor sem cadastro isso não dará azo a novas investidas? Ao fim de quantas vezes se considerará ser a primeira vez?

O que me faz lembrar certas tradições rurais moçambicanas pelas quais se ensina a seviciar a mulher sem deixar marcas (consulte-se sobre estas e outras matérias o portal da Wlsa. Talvez por isso tenhamos assistido a esta aberração: a independência de Moçambique, durante 35 anos, não produziu uma única poeta à altura das duas que o colonialismo fez brotar: Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna.

07/02/2017

O que é um ateu? Agrada-me esta definição: alguém que é imune à idiolatria e que livre, até de si mesmo, não teme contradizer-se.

O que autorizará o caso de ateus-que-são-intermitentes, como eu, no sentido em que têm fé, na graça epicurista do vestido amarelo que esculpiu o corpo da macua que passou agora à minha frente na esplanada, espalhando no ar uma intensidade que contamina, por exemplo, como num género de inteligência-não-circunscrita – sem que para isso necessitem de acrescentar um nome à origem dessa energia transpessoal. O Budismo, neste sentido, alheia-se da necessidade de nomear Deus.

Vem isto a propósito de uma das palavras que mais tem inundado o imaginário popular dos últimos tempos e que está de facto a ter um peso terrorista: a apostasia e o seu praticante, o apóstata. Palavra que julgava banida. Considero insultuoso que metade da humanidade me considere um apóstata.

O ateísmo e o laicismo tem sido vilipendiados, nestes últimos anos, e considero que um dos combates do século passará por recuperar o direito e o bom nome de uma espiritualidade sem Deus.

8 Fev 2017

As janelas roubadas

28/01/2017

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s janelas roubadas: um esboço para um projecto que alia texto e fotografia, que achei num caderno, e adoraria concretizar com a minha filha Maria Leonardo (é dela a foto desta crónica).

A coisa é simples: flanaríamos por Lisboa e, escolhidas algumas janelas que nos parecessem sugestivas, pediríamos delicadamente aos donos das casas que nos deixassem fotografar a partir das suas janelas. Inspirado por tais “vistas” eu escreveria algumas micro-narrativas que juntas (como os favos de uma colmeia) dessem “um clima” de Lisboa.

Mas a minha filha está em Munique e eu em Maputo – a vida não é exactamente, ou só, o «processo de decomposição» de que se lastimava Fitzgerald, mas às vezes parece.

31/01/2017

“Era uma vez um ilhéu que gostava muito de uma mulher que vivia noutra ilha. Gostava tanto dela que lhe escrevia todos os dias. Ela acabou por casar com o carteiro. O carteiro era o meu avô”: eis um tipo de narrativas que eu já não julgava possível desenvolver com credibilidade por causa do progresso. Hoje o e-mail dispensaria o papel do carteiro – o tremendo charme do meu avô ficaria a ver navios.

Mas há um lugar onde a sua história ainda se encaixa: a maravilhosa lagoa do Bilene, a 200 km de Maputo. A primeira vez que cá vim foi em 95. E vi um lugar paradisíaco, com condições para um crescimento exponencial rapidíssimo… embora os tempos fossem de vacas magras. Nessa altura fiz três amigos: o Chico, o Artur e o Momed, três miúdos que palmilhavam diariamente doze quilómetros pela praia para irem à povoação comprar sal ou arroz, ou fósforos, coisas básicas.

Entretanto Moçambique, antes da crise actual, teve uma década de boom económico. E esta semana voltei, com a filharada. Foi uma reinação. E, em casa, alto incremento da sueca.

Nos breves momentos à solta que nos deixam três crias + o namorado da mais velha, observo o movimento dos pescadores, da população autóctone, das mulheres e crianças que circundam a lagoa pela praia para ir buscar farinha, arroz, ovos, material para o remendo das redes, sei lá. E penso nas duas horas que eles perdem nisto, para lá, e nas duas da volta, quatro horas extraviadas que só deixam tempo para uma vida fisiológica, de resposta às necessidades e estímulos mais primários. Estou a lamentá-los e não é que de repente nesse magote de figurinhas ambulantes descubro o Chico, o Artur e o Momed?

O Chiquinho já sem dentes, o Momed analfabeto como antes e o Artur (que era o mais bonito) com uma cicatriz na testa que se escusou a explicar. Se calhar foi o carteiro das cartas de amor de alguém para uma cachopa que vivia em Macia e um dia quis fazer de padrinho à italiana (como o meu avô) e lixou-se.

O Chico vem com um filho, o Nelson, de cinco anos a quem ele inicia às longas estiradas. Interrogo-me se o rapazito depois das tarefas obrigatórias para a comunidade familiar (ó Nelson, pede a mãe, vai-me comprar fósforos, ou arroz…) terá tempo para ir à escola, duas horas para lá, duas na volta, mas ofereço-lhe uma coca, felicito o Chico por estar vivo, e calo-me.

Olho em volta, certifico as condições ideais para um crescimento explosivo em duas décadas e interrogo-me: como é possível que vinte anos depois as infra-estruturas sejam rigorosamente as mesmas e só os ricos tenham beneficiado das potencialidades do lugar? Encolho os ombros, peço um uísque no imemorial Estrela do Mar e sento-me diante da televisão a ver o telejornal, e então ao meu lado ouço, pela nonagésima vez, um Laurentino gabar-se: Nellspruit (a cidade sul-africana mais próxima, a 200km) cresceu à custa dos moçambicanos! Sou de imediato varado pelo enigma, inconveniente, pertinaz: mas porque não cresce Bilene à custa dos moçambicanos? E porque não cresce Moçambique a outra velocidade, apesar do labor com que os moçambicanos fizeram crescer Nellspruit?

Talvez porque quando os moçambicanos começaram a ir largar o dinheiro a Nellspruit os sul-africanos tiveram «uma visão» em relação ao que fazer com essa mina. Não basta ter o dinheiro, é preciso ter uma estratégia… começar por oferecer bicicletas à população e montar bibliotecas itinerantes – é um exemplo.

1/02/2017

O Trump tem o ímpeto cavernícola e caprichoso de Calígula que um dia nomeou o seu cavalo senador. E assim mina involuntariamente até aquele mínimo em que poderia ter razão – creio que cava a passos largos a sua destituição por um país que se cansará de passar pelo ridículo. Mas, entretanto, a sua postura, que se pretendia técnica e pragmática, prova que não existe a neutralidade ideológica. O que pode ser o trampolim para o retorno da discussão política à mesa das necessidades elementares.

Entretanto, a escolher uma máxima para o definir, mais à doença contemporânea que ele representa, seria a seguinte, de Rochefoucauld: “Preferimos falar mais de nós mesmos do que não falar em absoluto!”. É disso que acho que ele padece: do pânico ao silêncio. Se ele aceitasse calar-se teria de escutar os outros, teria de escutar-se a si mesmo e aí ponderaria algumas dúvidas. Mas não, ele é um indubitável filho da “sociedade espectáculo”, e, cromado dos pés até à alma, não se enxerga nele um milímetro de superfície onde a pulsação dos reflexos se torne reflexão.

Eis o que devia ser uma regra universal: “ninguém com um espectro lexical de menos de quinze mil palavras pode ser candidato pois, como explicou Wittgenstein de forma convincente, a amplitude do nosso mundo/horizonte, depende do tamanho das janelas da nossa linguagem”.

E ficam já a saber, e aqui sou um tirano: os candidatos a casar com as minhas filhas têm de ter lido pelo menos oito peças de Shakespeare. Não há nesta exigência uma ponta de snobismo – é apenas uma reserva ecológica.

2 Fev 2017

Alinho pelas duas

21/01/2017

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ete da manhã, vou buscar a minha filha ao aeroporto. Há ano e meio que não nos víamos. Desta vez chegou acompanhada de namorado. O qual, ao fim do dia, não consegue calar o desabafo: «É estranho estar numa cidade onde todas as casas, janelas e varandas estão gradeadas!». Na mouche. A paranóia securitária, em Maputo, é total e alimenta uma indústria de segurança que não faz qualquer sentido em relação aos números concretos de delitos que se praticam na cidade. Maputo, na «cidade de pedra», é relativamente pacífica, não se comparando aos relatos que nos chegam de Joanesburgo ou Luanda.

Uma vez comprei o Notícias que em grandes parangonas anunciava: « Cinquenta crimes cometidos esta semana na cidade». Pus-me a ler a descrição dos crimes e avultava o caso do rapaz que tinha partido as unhas postiças a uma velhota e o pai que chegou bêbado a casa e começou a implicar com os filhos para depois malhar, por engano, na irmã da mulher, em vez de na consorte. E explicava: «Quem a manda ser gémea? Com a babalaza nem vi que lhe faltava a verruga no nariz que a minha tem…». Bom, tinha havido cinco roubos por esticão e dois homicídios. Lisboa não terá menos delitos e crimes semanalmente, não tem é uma imprensa histérica a alimentar o medo e uma indústria de segurança a “alimentar” a imprensa.

Quando cheguei há doze anos e fui passar os primeiros meses (em casa de família) a Sommerschield, o Restelo local, o bairro onde vive a grande burguesia em Maputo, divertia-me a passear por aquelas ruas arborizadas com dois guardas, armados e fardados, sentados à porta de cada vivenda. Divertia-me sobretudo ao crepúsculo, quando eles começam a dormir. É uma coisa que se pega. Ou conversam entre eles, animadamente, em voz alta, na inércia de um ócio que só a farda ilude, pois durante o dia mais não fazem do que abrir o portão uma dúzia de vezes, ou um começa a chonar e é imitado pelo seguinte e a cadeia propaga-se, para grande segurança dos que guardam.

Uma vez escrevi numa crónica que se fosse antropólogo faria uma investigação sobre os sonhos dos guardas em Maputo. Tive um telefonema de um amigo que era PCA (administrador) de uma empresa de segurança e transmitiu: Eles não acharam muita graça. Não sei porquê – sonhar é um direito indeclinável.

22/01/2017

Há uma interessante correspondência trocada entre George Sand e Gustave Flaubert. O objecto dessas cartas é o desacordo sobre a concepção de literatura que lhes coube abraçar. Sand reconhece a superioridade artística de Flaubert, mas rebate: «Entretanto, creio que lhes falta, e a você sobretudo, uma visão mais definitiva e ampla da vida.» E acusa-o de faltar vida aos quadros humanos que ele retrata, pois o seu método, adianta Todorov, donde saco a informação, é sistemático em demasia e, por conseguinte, monótono, ao que ela contrapõe:«Quero ver o homem tal como ele é. Ele não é bom nem é mau: é bom e mau. Mas há algo ainda, a nuance, a nuance que para mim é o objectivo da arte». E retoma o tema numa carta seguinte:«A verdadeira realidade é uma mistura de beleza e feiura, de palidez e luminosidade». Assim, conclui Todorov, «aqueles que num determinado momento foram chamados de realistas fizeram uma escolha que trai a realidade: eles obedecem a uma convenção arbitrária que lhes exige representar unicamente a face negra do mundo. O que os niilistas traem não é o Bem, mas o Verdadeiro (sublinhado meu)».

Não só isto é vital – sendo a compreensão disto que me separa conceptualmente de alguns poetas das gerações a seguir à minha – como é evidente que Sand dá aqui um KO técnico a Flaubert.

24/01/2017

Já escrevi duas antologias de fábulas moçambicanas, que foram editadas com ilustrações de artistas locais, a primeira de um maconde, o Matias Ntundo, a segunda, que se reportava a histórias do sul, com bonecos de Jorge Nhaca. Chegaram-me as estórias em forma de borrões orais, recolhidos nos anos oitenta, e cuja transcrição deixava muito a desejar, quer pelo português, quer pela nebulosa com que se apresentava a narrativa, pelo que muitas vezes tinha de adivinhar o veio principal, respeitando, simultaneamente, a lógica não-aristotélica e mágica.

O estado informe deste material genético resulta de não se ter efectuado um trabalho crítico, seja antropológico, seja filológico, sobre as recolhas, deixadas ao abandono, nas instituições. O que me deixava a sós com algumas decisões controversas  sobre a fixação do texto  – além disso, o propósito das duas edições era comercial, não pretendiam ser edições científicas.

Enfim, levantaram-se as resistências, por causa do meu olhar «africanista», que traía supostamente a essência pura e africana das histórias.

Um dia pego num livro de fábulas de Esopo para ler às minhas filhas mais pequenas e descubro que uma das histórias macondes que recriei era decalcada de uma fábula grega. Ora, os macondes não falam grego. Recebo entretanto uma novela de um amigo escritor da Amazónia, o Nicodemos Sena e fico fascinado: a história que ele conta, inspirada numa fábula local, era ipsis verbis, uma fábula maconde. Na mesma altura, a propósito de não sei o quê, releio O relatório de Brodie, de Jorge Luis Borges e descubro estampada no conto A Intrusa  outra das fábulas que havia trabalhado.

Ou são coincidências que dão razão ao Jung quando diz que a partir de um certo estrato psíquico emerge um inconsciente colectivo comum que torna semelhantes os bestiários e as narrativas orais de todo o mundo, ou são uma prova de que todas as culturas resultam do contacto, pelo que não existem essências puras e as culturas são identidades compósitas que nos tornam a todos mais aparentados do que provavelmente gostaríamos. Alinho pelas duas.

26 Jan 2017