Napoleão em Santa Teresita

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde miúdo que guardo a sensação de que cada ano, mesmo no seu término, nos trata como se tivéssemos a irrelevância de uma mascote pronta a ser esquecida. Não vejo o que haja a comemorar. Além disso, nem todas as cicatrizes são tão espectaculares que mereçam o relato do que as produziu.

Ganhei na última década o hábito de vir passar os derradeiros dias do ano numa lagoa, sem televisão, um lugar quase sem rede telefónica, com uma net gotejante, que exaspera quem dela necessite, e onde os fogos-de-artifício têm a fulgurância dos fósforos molhados no bolso de um esquimó. Chamo a este lugar, em homenagem à minha mulher, Santa Teresita.

Bem me tentam os amigos para que com eles festeje em lugares de estardalhaço e dissipação; acabo sempre por desviar-me para esta modorra. Eles não sabem porquê, mas vou-vos contar.

Meia-noite e dez sob o alpendre. As miúdas festejam cada “fulminante” que se recorta nos céus. Eu, nas costas delas, sentado à mesa, beberico a Ermelinda e espero uma visita. Todos os anos tenho uma visita.

Tossem nas minhas costas, diligentemente encho de vinho a caneca que mantinha vazia ao meu lado e só depois olho por sobre o ombro.

É Napoleão. Diz-me, Espero que não te importes, estava entediado em Santa Helena. Não, estás à vontade, esperava por ti. Convido-o a sentar-se

Lembra-me como celebrámos o fim de ano em Moscovo. Na véspera caçámos o veado que agora nos era servido, e eu ao seu lado, com um martelo de ouro partia nozes, enquanto a pequena orquestra atacava uma polca. Um conde russo, que apostou no cavalo errado e espera futuras prebendas do imperador francês, introduzia-nos nas delícias da vodka artesanal e trouxe-nos duas irresistíveis gémeas ucranianas, com rasgados olhos fulvos, que partilharemos. São onze e trinta, faltam trinta minutos para o réveillon e Napoleão insiste em oferecer-me o comando da cidade de S. Petersburgo. Agradeci-lhe mas intuo que me quer desviar do meu béguin por Josefina (esperto como um alho, ele já entendeu) e rejeitei-lhe a oferta, contrapondo: “Tão a norte até o meu sangue tropeça no seu passo, se me queres ocupar preferia que me oferecesses Amsterdam, até porque estou comprometido com uma neta de Rembrandt”. Ele não me diz que não, replica apenas, enchendo-me o copo com mais uma dose de rum, “Deixa que o duende da bebida seja bom conselheiro!”. Passámos a noite em transe a recordar algumas noitadas em Viena de Áustria ou a discorrer sobre a cosmologia nas tatuagens dos quioquos.

É disto que os meus amigos se foram esquecendo, aturdidos pela festa, urbana e desmemoriada. Na passagem, entre os anos, podemos ter uma visita. Nem vos conto os meus réveillons com Baudelaire, Stravinsky, Pasolini e em Cuba, com Lezama Lima. Com Lezama, vi à mesa (provei-o) o menu do banquete do Satíricon, que vos descrevo, deliciado: ovos de pavão, um papa-figos muito gordo untado de gema com pimenta, vinho com mel, grão-de-bico cornudo, uma vulva de porca estéril, empadas de javali, tâmaras frescas e secas, uvas, salsichas e chouriços, um bezerro cozido, uma franga gorda, à guisa de tordo, e ovos de pata encapuchados; um porco coroado de morcela e, em redor, sangue coalhado e miúdos de ave muito bem preparados; acelga e pão integral; lombo de urso; queixo fresco preparado com vinho abafado; um caracol por pessoa; empadas de tordo recheadas de passas e nozes; marmelos eriçados de espinhos. Não foi nada mau. À vulva de porca estéril tive de desfrutá-la às escondidas para que a minha mulher não notasse.

Há três anos conversei com Picasso, que nessa noite me levou a Paris. Os sinos acetinavam o ribombar dos fogos. Já tínhamos aviado três garrafas de Bordéus, e ele mete na mesa uma bagaceira caseira. Todos os outros convivas estavam na varanda. Só nós dois quedávamos à mesa, e ele comentava, a voz já levemente pastosa, “… muita gente julga que não vendi de imediato as Demoiselles d’Avignon por apego à arte, tolos, eu sabia que os meus quadros iriam valer ouro nos leilões de arte, escuta o que te digo, daqui a setenta anos, só os quadros do Da Vinci se equipararão no valor que será alcançado pelos meus quadros nos leilões…”. “E isso, para ti, é importante?”, pergunto-lhe intrigado. “Bom, prefiro a água de uma fonte na montanha à que sai das torneiras de ouro, em Versailles, mas só o dinheiro nos pode dar a ilusão de que o nosso tempo não se gasta…E vais ver que um dia os árabes, com os petrodólares hão-de fazer museus onde quererão pôr a Renascença e as Vénus nuas a sair das águas, eles que sempre proibiram a representação do rosto e do corpo humano… Acho que o mundo enlouquecerá sem dignidade…”.

Tomei aquela por uma conversa de ébrio, até que hoje, dia 1 de Janeiro de 2018, li no Público de 31 que o quadro de Da Vinci, Salvator Mundi, um dos símbolos da arte cristã, foi rematado num leilão por trezentos e oitenta e dois milhões de dólares, tendo sido a quantia expedida pelo Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, a capital dos Emiratos Árabes Unidos, onde abrilhantará as paredes da sucursal do Louvre.

E leio que, ao lado, os demais países árabes descobriram os museus e assaltam como gafanhotos de patas de amianto e cabeça em aricalco o mercado da arte. Não sei como a arte ocidental, a preferida por tais compradores – pelos vistos -, se compadecerá com os dogmas religiosos muçulmanos, mas é uma curiosidade a seguir com atenção. Esperemos que, como aventava Picasso, isto não seja mais um sinal do mundo estar literalmente chanfrado mas antes um indício de abertura.

Temo agora que as conversas com os meus visitantes não sejam inocentes mas proféticas e ter quebrado alguma corrente mágica quando não aceitei governar S. Petersburgo. Embora toda a noite Napoleão, afinal o criador do Louvre, tenha revelado uma grande capacidade de perdão.

4 Jan 2018

Preparar a Primavera

24/12/17

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho o fôlego curto para as compras, mais curto que a bolsa, que propende à fífia.

Mas pelo Natal, antes da minha mulher me pôr a ruminar o anátema, afasto os olhos da décima leitura de As Metamorfoses de Ovídio e tento arrastar-me com alguma fluência pelo tremeluzir das montras.

Entramos na Levi’s, onde as malhas respiram até debaixo de água, dou uma concordância silábica a uma cor, a um padrão, porém o que me atrai é reencontrar Leda e saber que um cisne esgaravata em mim para sair.

Passamos ao Massimo Dutti, as calças fazem figas para me encontrar, e ao balcão diviso Europa. Sinto-me de imediato um touro de uma coruscante fotogenia.

Segue-se a Timberland e os seus botins alinhados como vagens. O jeito voluptuoso com que a rapariga me afeiçoa a calçadeira ao calcanhar projecta-me nas delícias de Io e no secreto miolo das nuvens.

Gosto depois de sair para a aragem da rua com as mãos pejadas de sacos de papel e de, observando os gestos inábeis da minha mulher, pasmar com as alegrias da renúncia.

E é ao entrar no táxi que invariavelmente me ocorre a máxima da minha avó Judite: «ao pó tornarás, mas antes serás gaiteiro!»

27/12/17

Vou-vos contar o que me levou à leitura. Eu tinha um pai muito severo e muito competitivo. Apesar de pobre estava disposto a tudo para consolidar a formação dos filhos. Quando eu fui para o ciclo preparatório, o meu pai fez comigo um trato em relação ao “quadro de honra”. Se eu ficasse no quadro de honra no primeiro período, ele dava-me cem escudos, muito dinheirinho para a época. E sobre cada ponto que eu tivesse a mais ele acrescentava cinquenta escudos. Ainda hoje salivo a pensar nos cento e cinquenta escudos!

No primeiro período andei em velocidade de cruzeiro e tive média de catorze. Lá pude estoirar o dinheirinho, nem imagino em quê. No segundo período acelerei o movimento e tive quinze. No terceiro período entrei em economia de esforço, e pus a velocidade do relaxe e tive média de treze. Resultado, passei com média de catorze.

E vai o meu pai pôs-me de castigo os três meses. Os meus amigos passavam com dez, onze, e iam para o Algarve, eu com catorze era remetido ao quarto. Só podia sair meia hora, estritamente para ir à biblioteca buscar livros.

E nesses três meses, entre os dez e os onze, acabei por ler o D. Quixote, vários do Dickens, o Defoe, o Marc Twain, o Moby Dick, do Melville. Deste gostei tanto que nunca o devolvi. Quando me exigiam o livro eu respondia, Mandem-me prender. Teve a minha mãe de ir devolvê-lo, cheia de vergonha, seis meses depois. Para o que importa, eu estive três meses retido e só tinha como evasão os livros. Fiquei simultaneamente grato ao meu pai e incapaz de perdoar-lhe. O que aliás deu a tónica da nossa relação futura.

Eram estes os livros que lia na juvenília. Nessa altura, era ainda incipiente a indústria do livro infanto-juvenil e a nossa ambição era imitar os adultos e não as crianças. Aliás, em quarenta anos passámos de um estado em que, no dizer do Walter Benjamin, “o racionalismo via o menino como um adulto em miniatura” para uma mentalidade social dominada pela puerícia, e na qual os adultos são a obsolescência residual das indústrias culturais exclusivamente devotadas ao infanto-juvenil e subordinadas aos limites perigosos que hoje fazem da irresponsabilidade um estilo e da imaturidade um género.

Mas hoje não estamos aqui para nos queixarmos, mas para contar que a minha filha Jade, de dez anos, ficou radiante no Natal porque recebeu oito livros, e destes, até hoje, dia 27, já despachou dois. E não precisei de a meter de castigo para isso.

28/12/17

Para o Cioran toda a ideia é neutra, sendo o homem que a anima ao projectar nela o seu fogo, as suas expectativas ou demências. E chama a este processo “passar da lógica à epilepsia”.

Nunca soube viver sem ser “em epilepsia”, mesmo quando me entretenho a pensar contra mim mesmo, pois pensar assemelha-se a navegar à bolina.

E é consequente que o Cioran se compare a Macbeth, apesar, diz, de “não ter cometido qualquer crime”. Sentirá afinidades com a falta de medida a que o poderia empurrar uma Lady Macbeth (a qual, ela sim, se identifica com a ideia neutra que procura a sua encarnação), talvez por reconhecer que há vezes em que a faca nos vem à mão e ficamos atolados numa frágil condição humana, demasiado humana – consciência que também me parece ser a que matizava os estóicos.

Contudo, como escrevi num poema, já não acredito como o Cioran que um livro seja um suicídio diferido. Prefiro associá-lo a um plágio do coração. Talvez porque me tornei sensível aos argumentos de Christian Bobin que em La Lumière du Monde (um maravilhoso livro de entrevistas) defende: “o Cioran é um benfeitor e não, como dizem os seus precipitados discípulos, porque ele desencante o mundo, mas porque antes neutraliza qualquer falso encantamento. É alguém que limpa o deserto. Com uma pequena vassoura, ele recolhe todos os resíduos das fáceis consolações, e para mim é depois deste trabalho que começa a palavra verdadeira. Ele faz o trabalho do inverso; ele retira as ramagens mortas: chama-se a isto preparar a primavera”.

Preparar a primavera, uma ideia consoladora para os invernos mais agrestes.

28 Dez 2017

Do Natal e da Paixão

19/12/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]atal era o nome de um papagaio que à evocação dos três Reis Magos desatava a dizer palavrões numa catrefada de línguas e que o Al Berto conheceu numa taberna portuária em Antuérpia. Mostrou-me a anotação num caderno e uma fotografia do bicho, nessas duas semanas em que estivemos a filmar, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde então vivia.

Realizava o filme o Guilherme Ismael, um amigo que fiz na Escola de Cinema, dez anos mais velho do que eu e que estivera exilado com o Al Berto em Bruxelas. Aí haviam escrito a quatro mãos um delirante exercício narrativo em que cada um deles contava a sua versão da queda livre de um pára-quedista cujo dispositivo se revelou avariado. Na câmara e na produção estava o Costa e Silva e eu, que fazia o papel de um escritor mergulhado nos seus fantasmas, todas as noites, duplicando a coisa, martelava na máquina de escrever para continuar o guião e fixar o que iríamos filmar no dia seguinte.

A intenção era anti-naturalista, com cenários pintados em telões pela pintora Lourdes Sendas. Pouco me recordo do relato – eu estava fechado no casarão a escrever uma novela e havia um segundo plano da narrativa em que os personagens da história que eu tecia regressavam de muito longe para me matar: um parricídio do autor. O Al Berto de vez em quando aparecia nos espelhos como um espírito da casa. Tinha-me alcunhado como o “De Niro das Torcatas” (o meu bairro de nascença). Mas levávamos tudo muito a peito e estivemos uns doze dias fechados no casarão a filmar aquela média-metragem.

O Guilherme trabalhou dois meses na montagem do filme no Centro Português de Cinema e lá depositou as latas quando foi chamado para trabalhar na BBC. Faltava unicamente acrescentar dez minutos de música à banda sonora – de resto a fita, com 50 m, estava pronta e seria um ovni no panorama do cinema português dessa altura. Numa mistura ousada de Straub e Syberberg e Duras (- isto, ó há ambição ou não há!), tremo só de pensar no que de tal amálgama resultaria.

Quando ele regressou no ano seguinte, para passar o Natal e gozar as suas férias e acabar o filme, deu conta que os seus colegas cineastas, num gesto canalha, tinham aberto as latas e usado a película como pontas de montagem. Nunca ouvi o Guilherme, que era negro, acusar a atitude dos colegas como um gesto de racismo, mas visto à distância era bastante plausível. E a brincadeira começou de certeza como um comentário irónico ao título que tínhamos dado ao filme: “Para demolição!”.

Foi um dos meus piores Natais, recordo eu agora, deste meu Natal a 33 graus.

21/12/2017

Mesmo quando o homem se encontra num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «crêem no divino/ só aqueles que o são».

Vêm-me estas notas ao ler o magnífico A Dança de Shiva/ Ensaios sobre arte e cultura índia, de Ananda K. Coomaraswamy, sobretudo o terceiro capítulo: A beleza é um estado.

Para quem vive como eu numa cidade moderna e decadente, uma cidade cariada, em que a especulação imobiliário se sobrepõe a qualquer idealizada harmonia urbanística, onde não existe o que seja uma sensibilização para ou que eduque pela arte, em que apesar de enxamearem os artistas se carece de qualquer prática crítica, campeando por isso o relativismo mais básico e ignorante; uma cidade em que os livros produzidos são maioritariamente feios, os museus escassos e a memória não se cultiva – sou impelido a transmitir aos alunos um vislumbre do legado da beleza na arte, quer promovendo discussões sobre esta categoria na arte e os seus modos de manifestação e de mutação histórica (até à sua periferização no último século), quer como pretexto para os iniciar ao Gosto e ao temperamento estético. Neste contexto, este livro funciona como um refrigério.

Apesar de associar a arte ao sagrado, na Índia, os livros sagrados são só a sua expressão temporal e a escuta do que foi revelado depende da sensibilidade do ouvinte e da sua circunstância, pelo que ao contrário do que esperaria, Coomaraswamy não sustenta uma concepção essencialista da arte e do belo –– embora admita que «a beleza está por todas as partes, esperando ser descoberta, ser recolectada pela nossa memória (no sentido sufi e no de Wordsworth): pela contemplação estética, como no amor e no conhecimento, recuperamos momentaneamente a unidade do nosso ser, libertando-nos de nossa própria identidade».

Portanto, para ele, a beleza (uma das três manifestações do sagrado) é um estado que nos reconduz ao indivisível, resultando mais do que “fazemos de” uma obra de arte do que de uma qualidade patente no objecto. A verdadeira beleza não reside simplesmente no que é objectivamente dado como beleza, sendo antes como um perfume a que só acede quem o percepciona. A beleza advém mas depende da interacção de quem a observa. E a ser assim não se esgota a sua pertinência como categoria estética, ao contrário do que tem sido alvitrado. É um estado de existência.

Outra questão, aí sim central, é a tipificação de simulacros do Belo em formas degeneradas como acontece no Kitsch e se desencadeia na paródia.

Entretanto, já o Leonardo defendia que uma figura (na pintura) é tanto mais digna de admiração quanto melhor expresse, mediante a sua acção, a paixão que a anima. Apenas a paixão nos refresca um estado de presença – a tal “embriaguez” que Nietzsche reivindicava para o impulso artístico.

Seja na Arte, seja na Beleza, seja na Política: a paixão volta a ser necessária.

26 Dez 2017

Trump e a Minha Ida à Lua

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rump anunciou que voltaremos à lua. E, como dá sempre uma no cravo e outra na ferradura, selou o anúncio assinando uma declaração, a Directiva 1 de Política Espacial, algo ambígua e na qual não se especifica nem como vai fazer-se isso, nem com que orçamento dotará o projecto nem quando está previsto que se enviem essas missões tripuladas à Lua.

O que importava era anunciar a gesta, o mito de que os EUA também governarão o céu. Isso apaziguará os críticos, pois quem quer alhear-se da grandeza?

Trump é o terceiro presidente republicano consecutivo que promete ir à lua. Os Bush, pai e filho, propuseram-se ao mesmo. Os democratas, com menos visão, nunca prometem a lua.

Não se consegue resolver o problema coreano? Viremos o foco para a lua. Se Calígula queria a lua, porque não ele?

Embora na verdade ele não queira ir à lua. E eu sei porquê. EU SEI.

Uma vez tive acesso às Clavículas de Salomão (não interessa agora como), o tratado de magia que permite pôr todos os diabretes ao nosso mando, e o que a seguir relato é ipsis verbis o que se passou:

«Quem chamou?

Asmodeu tinha dois metros de altura e uma cabeça de carneiro envolta num turbante de crepe vermelho. De resto, apresentava-se nu. Ou antes, um tufo de penas de galo e de pavão coroava o púbis, donde pendia uma larga faixa de pergaminho virgem – o seu sexo. A sua pele, encarniçada, mudava de cor, consoante o seu ânimo, como fomos verificando.

Pensei, Nunca pensei ver um diabo nu. E ele, mostrando que me lia a mente, respondeu:

Para quê encobrir o vício?

Não ousei pensar mais.

Asmodeu… tenho sérios pedidos a fazer-te. Posso formular o primeiro? Desejo que… – Asmodeu lançou-me um olhar de viés que me roeu as tripas – o sr. Asmodeu converta a minha mulher – apontei-a – na Ofélia de John Milius.

Hum… – resmungou o monstro, observando-a – esta tarefa equivale a dois pedidos…

E estendeu a mão sobre o corpo adormecido dela. Da sua palma emanou um fumo verde, espesso, que a cobriu como uma nuvem. Durante dois minutos raios e coriscos sulcaram por dentro aquela nuvem, que tornava a metamorfose invisível. Após o que, gradualmente, se dissipou.

A visão de Ofélia adormecida na cama da minha suite golpeou-me num vómito: não estava preparado para tanta beleza.

Algum reparo a fazer ao meu trabalho?

Perdoe, sim… É de alegria. Mas diga-me, ela não me vai rejeitar?

Manterá a memória durante 72 horas, depois depende de si… – informou o diabo – e não pode ser tocada nas próximas 24 horas, sob risco de se desfazer a metamorfose. Despachamos o terceiro pedido?

Quero ir com ela à lua, em lua-de-mel? – Asmodeu entreolhou-me incrédulo. Tive de me justificar:

Sou um leitor de Ariosto.

Como o mafarrico tinha prometido acordámos na Lua. Estávamos no centro de uma enorme cratera cujos bordos divisávamos pela explosão súbita de astros que a circundavam e que sobre nós ramificavam, em abóbada. Era fabulosa a profundidade de campo e a miríade de pontos luminosos. Estaríamos por dentro da pele de Deus, a sinalizar a luz exterior que lhe entra pelos poros?

Ela, envolta num roupão de seda chinês, dormia ainda. Bela e intensa como nunca. Suspirei, ciente dos maus lençóis freáticos em que andava metido. Respirava tão brandamente que decidi deixá-la acordar ao seu ritmo.

Pus-me em pé, para experimentar o solo e ambientar-me. O simples acto de esticar o braço direito para impulsionar o corpo à sua posição erecta atirou-me para quatro metros de distância. Era a falta de gravidade. Dei aos saltos duas voltas à cratera, que devia ter uns trezentos e cinquenta metros de diâmetro. Depois sentei-me, contemplando a amada, e o globo terrestre, de um azul lancinante.

Ofélia semi-abriu uma das sobrancelhas, depois a outra, lânguida, tremenda. O espaço sideral deixou-a muda, mas rapidamente sorria. Levantou-se e descobriu o seu corpo leve como nunca. Foi uma euforia.

Entregámo-nos a um jogo de gato e rato, pés furtivos e dedos enclavinhados, assobios, num ziguezaguear que soltava um bichanar inocente, inocente… e logo lúbrico. Até o brilho dos dentes constelava naquela luz espectral. Eu sentia-me um carvalho em toda a sua floração e potência.

Não demorou que nos desnudássemos. Doidos por contacto, por nos beijarmos e fundir-nos numa sutura. Contudo, o menor movimento dos músculos separava-nos. A princípio foi motivo de risada a dificuldade em manter os quadris enquadrados, e por várias vezes ela se agarrou ao meu comprido apêndice nasal, o último recurso. Depois o movimento do membro na sua vagina aliviada de adstringência constituiu uma agonia de altíssimo grau, dada a quase impossível sintonia de movimentos para o casal que esgrime pela primeira vez. Após uma hora de combate com a microgravidade o riso converteu-se em rogo: o mais leve batimento das virilhas projectava-nos a dois metros de distância e havia que recomeçar tudo.

Para além disso, fui assaltado por náuseas, pelo enjoo espacial que em terra se designa «labirintite» e resulta das informações contraditórias que o cérebro recebe dos olhos e dos órgãos vestibulares (no ouvido). Um desequilíbrio vulgar quando se aterra na Lua, soube depois.

O encantamento pusera-nos a respirar na Lua mas não nos libertara das leis da gravidade. E de repente, ao olhar o extenso firmamento e a solidão da Terra senti-me atingido por uma punhalada pascaliana e brutalmente trespassado pelo abismo de tudo o que não sabia e não podia saber. Diante do infinito espaço sideral, não consola adivinharmo-nos uma gota de orvalho na borda de um balde.

Odiava-me. Estava na Lua com a mais bela mulher, a mais disposta a resgatar a lendária lascívia de Lillith, e pensava em Pascal.»

Compreendem? Na lua o assédio pode acontecer mas é mais incerto que as promessas da carne não se tornem tumultuosas. Para quem como Trump gosta de as agarrar pelo triângulo das Bermudas ir à lua é uma tremenda perda de tempo.

14 Dez 2017

52º Retrato do soldado desconhecido

01/12/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]efendia Derrida, em 1998, que a transformação tecnológica é um dos factores essenciais da aceleração política e que um regime totalitário não sobreviveria a uma certa densidade da rede telefónica, a uma certa densidade de informação televisiva, de mails, etc. Vinte anos depois constata-se uma torção na aprendizagem dos valores e também a qualidade da democracia cede ao influxo da informação e à densidade das redes sociais. A democracia padece do seu sucesso.

Pelos motivos mais simples, o pendor dos meios de comunicação de massas para a nivelação da experiência, a) foi nublando a separação entre representação e realidade efectiva, e, dada a redundância informativa, b) instalou-se uma atmosfera de imediatez e esquecimento que favorece a ilusão apriorística, a qual tem na opinião o seu grande instrumento.

Eis o conhecimento preterido pelo espectáculo da opinião, pela flutuação das pertinências. E foi-se tornando claro que o meio é (mesmo) a mensagem, à medida que perdeu relevo a qualidade ou a substância das opiniões.

Ora, ao arrepio da ideia dominante é preciso afirmar: nunca fomos todos iguais. Esta ilusão que uma utópica e generosa cultura de esquerda propagou e o multiculturalismo cavalgou, ganhou metástases na esfera da razão comunicacional. Mas é preferível a lucidez de Bloch, ao elaborar o seu conceito de não-contemporaneidade: «Nem todos existem no mesmo presente. Estão só exteriormente, porque podem ser vistos no dia de hoje. Mas nem por isso vivem o mesmo tempo dos outros», ou seja, – a discriminação é de José Jiménez, cujos argumentos cito – há um desnível entre o tempo exterior, a época e o tempo interior.

Mesmo vivendo na mesma época, porque tiveram oportunidades cognitivas diferentes ou vêem de tradições distintas nem todos os homens vivem o mesmo tempo.

Daí que apesar do esplendor da tecnologia emergente o enxamear das opiniões, tão histericamente reclamadas, não reflicta uma pauta de valores satisfatórios.

E invertendo a lógica libertária que impulsionou as utopias da internet, hoje ao reinado da opinião, tão rés ao mundano, foi reservado o mesmo papel dos Silenciadores oficiais na corte dos imperadores bizantinos – cuja função era calar os perturbadores de toda a ordem, para que reinasse apenas o pensamento estabelecido. Hoje silencia-se com a algazarra da opinião e o hábito de postar sentenças em vez de debater argumentos ou com a arrogância performativa do ignorante.

Ainda julgo com Jerome Bruner, que só a educação pode transformar a sociedade. Porque, demonstrou ele, até as revoluções não são melhores do que as ideias que personificam e que os meios que estas mobilizam para realizar tais ideais.

É porém inescamoteável: temos de lidar com as patologias do sistema de ensino, que se demite do seu papel de transmissor de cultura humanística e cede à pressão mediática e à cultura de massas – a tal que nivela tudo por baixo.

Contemos um episódio com uma filha. No 12º ano a professora de português pediu aos alunos que escolhessem um autor português que não fosse contemplado pelo currículo escolar e redigissem um trabalho sobre ele. Passei-lhe uma dúzia de livros e ela, para minha felicidade, escolheu o Carlos de Oliveira. A surpresa veio depois: a professora não fazia ideia de quem fosse. A mesma professora que eu havia encontrado em férias com exemplares de Dan Brown e de Gonçalo Amaral nas mãos.

Fiquei boquiaberto, mas não devia. Tal como Trump esta professora era já um fruto transgénico, com código de barras, dos códigos e limites da cultura de massas, ao que se aliou o desacerto dos currículos pedagógicos.

Todorov escreveu um livro sobre esta situação: A Literatura em Perigo. Aí lembra que a missão da escola desde o Iluminismo reflectia a vocação do ser humano em aprender a pensar por si mesmo, «em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor». Esta missão foi desvirtuada desde que também a Escola visa alimentar o Mercado, como função primeira, vendo-se arredada dos seus corredores a formação de um pensamento crítico.

Paralelamente – o que, se não é de propósito, parece – o estudante deixou de estar em contacto directo com a literatura, remetida para um lugar periférico e substituída pela Teoria da Literatura e por métodos de análise, esquecendo-se que a literatura é, em primeiro lugar, «a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade» que interpretam o mundo. A literatura passou a ser não o lugar da fruição como «a ilustração dos meios necessários à sua análise». Será por isso que a professora da minha filha prefere a “literatura” que prescinde totalmente de crivo hermenêutico?

Eis a contradição: as escolas não preparam os alunos para lerem Alberto Pimenta ou Herberto Helder, ou António Franco Alexandre, ou Manuel Gusmão. Totamente desfa-sados os programas escolares e as novas sensibilidades e códigos. Esteve um poeta excelente quase a ganhar o Prémio Oceanos, o Helder Moura Pereira. Faça-se um inquérito aos professores: quantos conhecem?

Ademais, a heterogeneidade manifesta em poetas como Fernando Pessoa, Haroldo de Campos, Carlos de Oliveira, João Miguel Fernandes Jorge, ou Luís Quintais, torna difícil explicar a experiência da poesia a quem não a experimenta. Por isso a poesia perdeu leitores e os professores vão-se apegando às receitas que o mercado fornece. É o pronto-a-vestir. Embora no difícil é que esteja o ganho.

Dantes havia o pronto-a-vestir e os alfaiates, a escola agora é a primeira a admitir que o fast food alimenta da mesma maneira. É uma mentira, ou o novo hábito dos fake news, apenas o mecanismo perverso do celebrado poder das redes sociais, meras instâncias da informação em autototelia.

06/12/2017

Faço um ano de crónicas no Hoje Macau. Gramo maningue. Por isso, meu (caro) leitor, meu hipócrita, meu irmão (Baudelaire), só me resta dizer como ao smart guy que tentava quebrar a última resistência da miúda à sua sedução: «…se não nos viermos entretanto, então até à próxima!».

7 Dez 2017

Pino com contorção & ventosa

25/11/2017

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onvidaram-me para participar de um dossier em torno de Clarice Lispector, que em 10 de dezembro conhecerá uma data redonda. É impossível recusar o desafio, ainda que tenha de fazer um pino com contorção & ventosa, dada a proximidade do prazo e a obra imensa da brasileira.

Ninguém escreve como a Clarice. Veja-se o retrato de uma velha senhora ao espelho: «Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole assim como gengiva desdentada.»

E como todos os grandes escritores que prefiro as suas frases estão pejadas de saltos quânticos, de uma lógica que só pelo isomorfismo se explica: «Ah Ulisses, pensou ela para o cão, não te abandonei por querer, é que precisava fugir de Eduardo, antes que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava de mais e crestava tudo. Ângela sabia que os tios tinham remédio contra picada de cobra: pretendia entrar em cheio na floresta espessa e verdejante, com botas altas e besuntada de remédio contra picada de mosquito. (sublinhado meu)» Da lucidez decapitadora de Eduardo passamos sem preparação para o veneno da cobra, afinal o mesmo mas noutro reino, noutro nível de realidade.

Enfim, suspeito que a Clarice que nasceu ucraniana e se considerava brasileira de gema afinal era chinesa e por isso «sua escrita se faz pelo avesso — sendo a escuta do que se

cala ou a visão do que se oculta (Yudith Rosenbaum)».

Numa coisa coincidimos. Ambos achamos que o mundo é uma coisa vasta demais e sem síntese possível, e somos (no possível) felizes nisso e na ideia de que se encontrássemos a verdade não conseguiríamos pensá-la, pois esta seria impronunciável – sem que tal visão nos atemorize.

Recordo uma discussão que tive com uma namorada, instrutora de ioga, a partir da surpresa que lhe chegou ao ter-lhe dito que tinha muitos momentos em que não pensava. Ela considerava improvável, eu, pelo contrário, estava atónito com a insistência dela de que seria impossível não pensar. E às tantas perguntei-lhe, Ouve lá, tu quando fodes pensas no quê? Não me respondeu. Nunca desejei para mim esse tipo de insónia branca.

Muitas vezes basta-me ser e esvazio o pensamento como o comboio nos carris.

Talvez eu seja aquele cavalo de que fala a Clarice: «A forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala.»

26/11/2017

Escreveu Valéry, em carta a um amigo: “Sonho com uma poesia curta – um soneto – escrita por um visionário requintado que seria ao mesmo tempo um agradável arquitecto, um algebrista sagaz, um calculador infinito do efeito a produzir”.

Parece-me profundamente entediante esta festa da inteligência.

Creio que um algebrista deste calibre – e Valéry não desmereceu sê-lo, tal como Pessoa – só escreve e escreve e escreve – ambos deixaram demasiados quilos de papel grafado – porque deseja desesperadamente que uma página o surpreenda com o que nunca antes havia imaginado e agora brote como um alimento nunca mastigado, algo desaustinado que o transporta ao medo, ao furor ou à paixão.

28/11/2017

Está confirmado, vou reeditar o meu livro de poesia Arte Negra (Fenda, 2000), um volume de mais de duzentas páginas. Do ciclo Cemitério dos Prazeres, o 1, o 2 e o 5: «Não sei que sucesso/ obterás. Depenas uma pedra,/ obstinas-te, lavas o ar/ com um pano húmido.// Em redor a morte ceva/ as letras mudas, carcome/ um mapa de seda/ na nascente do teu rosto.// Não sei que sucesso,/ assim solícito e crédulo,/ obterás, pois a anda das imagens/ já sentou a mixórdia/ no lugar de Deus.», «Uma infância perfurada/ por zepelins. Hoje, de comando/na mão, zappas. Melancolia/ que te sufoca o amor e as veias,/ uma a uma, esvaziadas de Deus.// Mas a que outra luz/ acederia o coração se o lugar/ não foi capinado, se a treva amarinha no interior das gavinhas/ sem tu a teres capinado –/ e os anjos e os rinos/ quase extintos? Vinte unhas/ são a energia que ultima/ o escuro mate da morte.»; «Cem anos depois do cinema/ bombeias ainda o branco em páginas/ sem consolo: candelabro/ exposto ao vento e que só encheu/ de mistérios areias movediças.// És o canhoto de um anjo/ ainda que o bico, o adunco da rapina/ que nenhuma entranha desperdiça/ queira lá saber de ícones/ e esburaque o ar que nos resta!// O mal não se decompôs em frames,/ é, como o infinito, cesta que não decora/ o fortuito nome dos seus ovos./ Que importa! Escreve e respira fundo!»

29/11/2017

Com o espírito boçal e traquinas de quem roça a insanidade mental, Trump gabou os novos aviões invisíveis do exército. Os aviões invisíveis têm sobre os pepinos invisíveis o defeito da algazarra, de resto transformam igualmente a morte numa salada.

Mais felizes os dias em que o combate não era anónimo e quem morria conhecia o nome de quem o matava.

Sinto-me um monge do século XXI a compor inúteis hexâmetros latinos.

30 Nov 2017

O clitóris e outros filmes

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando usei pela primeira vez a palavra clítoris? Certamente depois duma ida ao cinema; nessa “câmara escura” é que as coisas se passavam, em sadia troca de mãos, membros, bocas e flores carnívoras.

E tendo lido num livro sobre sexologia trazido de Badajoz que estimular o clítoris fazia a diferença, isso passou a fazer parte da “conversa, clínica e técnica” que ocorria sempre depois das sessões: gostaste, tiveste orgasmo…etc., etc.

Afinal, o que é um bem cultural? Se for toda a manifestação que incide directamente na consciência crítica do público e é objecto de experiência e de participação, naquele tempo o clítoris (e a obsessão analítica dos seus efeitos) era um inexcedível bem cultural. E era público: contaminava de decência qualquer discurso, como Wilhelm Reich, de resto.

Um dia emperrei. Numa sessão de cine clube às 18h30, um filme antigo a preto e branco para nos abstrairmos de réstia de interesse pelo mesmo, e comprámos bilhete para o segundo balcão do Cine Incrível, um “albergue espanhol” afamado desde que uma jovem imitou no orgasmo os carrilhões de Mafra. Era o nosso jardim edénico.

A luz apagou-se e a primeira poalha colorida foi projectada. E emergiu aquela voz tonitruante, hipnótica. Seguiu-se uma narração que à época julgava labiríntica e actuava como um anzol. E esqueci-me do nobre desígnio a que havíamos encomendado as almas. O filme chamava-se Citizen Kane e foi o primeiro que me arrebatou, numa viagem ao desconhecido. No fim, ela desviou-me para a garagem de uma amiga mas eu só me lembro do enigmático Rosebud.

De outra vez, entrei desprevenido numa sessão da meia-noite e saí de lá vidrado por uma felina prostituta de meias verdes, a que Shirley MacLaine encarnava em Irma, la Douce. E só se atenuou quando sete anos depois fui ver Laços de Ternura e me apanhei dividido entre mãe e filha, precisamente a mesma Shirley e Debra Winger.

Tenho saudades de me apaixonar no cinema. Ou de sentir que um filme ameaça a minha vida, como quando fui ver Lawrence da Arábia com a namorada e percebi no fim que a nossa relação tinha os dias contados porque ela saíra absolutamente apardalada pelo Omar Shariff, enquanto eu me aparentava ao Peter O’Toole, uma alva magreza de vela, com cabelos fulvos.

Não sei o que procuram os jovens que se inscreveram no meu curso sobre Guionismo e que teve dia 16 a primeira aula.

Suspeito que ao analisarmos a narrativa de Táxi Drive se estejam nas tintas para a estrutura trinitária das sequências, ou lhes passe ao lado o que quero eu dizer quando defendo que a montagem de um filme de acção é mais eficaz quando a sua progressão rítmica respeita o número de ouro no desenrolar das sequências. Não estão maduros para este tipo de informação ou para assimilarem que há uma geometria secreta na fabricação das histórias.

Basta-lhes que haja miúdas e movimento, se possível um bom turning point, no fim do primeiro acto, e uma orgia barroca a marcar o clímax.

Nada de revelações “estáticas” como a que ocorre no final de The Dead, de Huston, quando um homem olha do fundo da escada a sua mulher e percebe numa troca de olhares dela com um terceiro que a sua vida é uma soma de inapercebidos actos falhados. O “débacle” de uma vida há-de parecer-lhes pouco movimentado.

Mas tudo tem uma segunda face.

Esta semana – toujours en retard dans la vie – soube em Maputo que faz precisamente um ano que morreu Alberto Seixas Santos, para quem eu escrevi três filmes de ficção.

Os equívocos pessoais e profissionais em que nos embrulhámos não retira a menor parcela à evidência de que ele me ensinou a olhar e me aguçou o pensamento analítico.

Colaborei em três projectos: em Paraíso Perdido, em O Mal, e naquele que seria o projecto da vida dele mas de que ele desistiu sem nos dar cavaco, a mim e à Maria Velho da Costa, que estivemos um ano a escavar em três episódios de hora e meia sobre o Camilo Castelo Branco – visto sob o ponto de vista do dinheiro, do amor e da escrita, guião que acabei por publicar dez anos depois sob o título Inferno.

O Paraíso Perdido, o primeiro filme integralmente de ficção de Seixas Santos, foi um caso descoroçoador de junção entre a total inexperiência (a minha), uma absoluta conjunção de azares, nabices, e falta de nervo, dele, e uma circunstância um pouco canalha que para ser esmiuçada daria um livro.

Várias más escolhas entretanto se avolumaram, de actores e técnicos. Coitado do Seixas passava tardes a mostrar álbuns do Hooper ao cameraman que reagia a “tais arrebatamentos da sensibilidade artística” com o ar perplexo de quem nos dias de folga se maravilha com a pornografia.

O Alberto não aguentava a pressão. Era excelente a discorrer “no seu território” sobre qualquer aspecto da cultura. Com tempo e vagar. Não sitiado por uma equipa e actores que rogam por respostas prontas e um planeamento eficaz que não comporte lugar para a dúvida. A sua enorme capacidade analítica não se traduzia em beat, em ímpeto criativo, sobretudo naquele ritmo e numa produção desapiedadamente industrial.

Numa sequência filmada na Biblioteca Nacional a equipa técnica chegou às seis e trinta da manhã para preparar o trabalho e esteve à espera até ao meio dia enquanto ele, de bloco na mão, riscava e tornava a riscar, tentando decidir sobre a decupagem das cenas. Isto repetiu-se em inúmeros dias, o que lhe minava a autoridade diante da equipa.

O talento dele cumpria-se no vagar, não na prontidão das boxes.

Amanhã vou olhar de frente os meus alunos e vou tentar adivinhar qual deles daqui a vinte e cinco anos escreverá uma crónica em que me recorda como um homem cheio de talento mas incapaz de estar pronto.

Um homem sem clítoris – perdido para o pique, a sensação do instante, portanto.

23 Nov 2017

Arqueologia das marés

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]andelstam (1891-1938) e Vladimir Holan (1905-1980) são um exemplo manifesto de como um dia – dizia a Zambrano – todos os vencidos são plagiados.

Seres de excepção, expelidos pelos caprichos da História e por sistemas sociais mesquinhos, cínicos e redutores, ei-los hoje inevitavelmente celebrados como figuras nucleares.

Ocorre-me agora um terceiro caso, este africano, o do sul-africano Breyten Breytenbach (1939).

Narremos rapidamente os percursos de vida dos três.

Mandelstam, educou-se fora da Rússia – em Heidelberg e na Sorbonne – e voltou à Rússia depois de uma viagem por Itália e por outros países europeus, para se ligar ao movimento poético acmeísta e publicar em 1913 a plaquete A pedra, que o catapultou imediatamente na notoriedade.

No imediato da Revolução, foi dos primeiros poetas a enveredar por temáticas sociais. Mas só publicaria o seu segundo livro, Tristia (coisas tristes), em 1922, simultaneamente em Berlim e em St. Petersburg. Ainda viveria cinco anos de relativa discrição antes dos inquisidores começarem a procurar nos seus versos o pêlo no ovo. E em 1927 declara-se frontalmente contra o regime soviético. A escrita de um poema onde zurzia em Estaline, «cujos dedos gordos parecem engordurados vermes», em 34, valeu-lhe ser desterrado para Vorónezh, e morreria 4 anos depois num campo de trabalho.   

É um dos grandes poetas do século XX mas se lhe conhecemos a obra completa foi porque a mulher, Nadezha Maldelstam, apesar da indigência a que foi exposta, lhe copiou os poemas e escondeu-os, ou decorou-os, até que os pôde publicar em Nova Iorque.

Quando ela se lamentava da perseguição de que eram objecto, ele replicava com humor: «De que te queixas, este é o único país que respeita a poesia: mata por ela. Em nenhum outro lugar ocorre isso!».

Hoje apodrecem no negrume os seus detractores ou são notas quase ilegíveis no rodapé das biografias de Mandelstam.

Em Vladimir Holan, o grande poeta checo do século XX – que só tem rival no posterior Miroslav Holub – o encontrão que lhe deu a História conhece tonalidades grotescas.

Holan começou como um poeta mallarmeniano, precioso, obscuro e de rimas rebuscadas. Teve depois uma conversão à poesia social, tornando-se na voz nacional de resistência à invasão dos nazis. Correu riscos físicos e militou no Partido Comunista e escreveu inclusive um livro alinhado, Soldados do Exército Vermelho. Paradoxalmente, em 48, o novo poder saído da guerra acusa-o de escrever de forma «obscura e decadente» e condena-o ao ostracismo. No mesmo ano, também o destino escarnece dele e nasce-lhe uma filha portadora do Síndroma de Down. É uma espécie de escalpe cósmico.

Refugia-se na ilha fluvial de Kampa, no centro de Praga, e raramente saía de casa. Só noite dentro se entregava a longas passeatas, à hora em que na cidade só se ouviria o barulho dos seus passos. Chega a Primavera de Praga e querem recuperá-lo como poeta nacional, mas esmagada a reforma do regime fica mais isolado, até à sua morte em 1980.

Hoje é o poeta nacional. E a sua poesia despojada, bruta, prosaica, dissonante, de palavras esculpidas, é inimitável, enquanto a dos seus rudes inimigos foi diluída pela espuma do tempo.

Breytten Breyttenbach (1938) é um poeta sul-africano de um quilate inigualável. Foi preso durante o regime do apartheid por ter casado com uma indiana. Oito anos. Tornou-se amigo de Mandela. Mas uns anos depois da liberdade, não tolerando a direcção que o país tomava, mudou-se para Paris. Por ocasião dos 80 anos de Mandela dirigiu-se-lhe em carta no Le Monde, uma interpelação que interrogava os rumos do país e onde, no essencial, tocava nos pontos que com Zuma se potenciaram, arrastando o país para uma degradação triste e indesejável.

Está condenado a ser postumamente o grande poeta de um país que hoje faz tudo para esquecê-lo.

Três homens que não pactuaram com a mentira e tornaram mais exacta a proposição de Walter Benjamin, segundo a qual há uma arqueologia psíquica por detrás dos fluxos humanos que corrige a história, fazendo-a retomar com o máximo esplendor aquilo que primeiramente foi recalcado pela grosseira falácia do presente. Como aventava o Freud para os sonhos, o que importa afinal é o que está latente e não o que aparece manifesto. Pois «é ao ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, é ao ritmo dos recalcamentos e dos retornos do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória, antes de mais nada, se afina» (Didi-Huberman).

No fundo, a dinâmica do presente é uma propulsão para inverter os sentidos da história e semear no seu manto os sinais da reversão. O Ying devém Yang, contra todas as aparências e a marcha linear do progresso.

Neste sentido, não fiquei surpreendido que Putin tenha aproveitado a efeméride da Revolução de Outubro para insinuar que talvez a leitura oficial da sua História esteja equivocada e haja pouco a festejar. Uma meia verdade, pois há os factos e há os símbolos e estes mantém o seu capital de promessas. O que me chocou foi ter sido ele a dizê-lo.

Porém os poetas, mesmo que momentaneamente reprimidos, reduzidos à indigência  tinham a consciência desperta. Como Mandelstam: «a poesia é um arado que reinventa o tempo de tal modo que as camadas mais profundas, o seu húmus, afloram à superfície».

Um poema breve de Holan: ENCONTRO: «Chuva no descampado… O feno húmido …/ Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…/ Piscadelas… Carícias intermitentes… Desaparição das formas…/ Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão do cemitério…/ “Agrado-te?” – Sim, sim…/ – “Amas-me?” – Não.»

16 Nov 2017

Intervalo

07/ 11/ 2017

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, com a falta de tempo para me entregar ao “espírito do sério” faço um intervalo nas reflexões que andava a fazer para me entregar ao devaneio do instante e ao que o quotidiano me oferece, como, neste preciso momento, a visão daquela penca tão grande e adunca que ao beber a bica, antes que os lábios toquem o café, lhe fica o nariz pingue.

“Tinha o rosto branco de cólera”, leio, e eis coisa que não temo encontrar nesta cidade de acácias vermelhas. Contudo, deparei, numa banca de rua, com um volume dos diários de Mircea Eliade, Fragments d’un Journal, 1970-72, e custou-me euro e meio.

A chatice é que vou atrasar tudo, para me alimentar deste naco. E a 19 de Outubro de 72 deparo com uma entrada sobre Allan Watts.

Antes de a transcrever, conto a morte deste senhor. Dava uma aula e no meio de uma digressão esfuziante que entusiasmou os alunos, anunciou, Quando terminar este raciocínio, vou-me sentar em lótus e vou morrer. A extensa maioria considerou o anúncio mais uma charada do mestre, até pela energia física que dimanava. E, em calando-se, Allan Watts pôs-se em posição de lótus e não mais se levantou.

Narra agora Eliade:

«Acabo de ler a autobiografia de Allan Watts. Lembro-me das primeiras conferências sobre o Zen que ele fez aqui, em Chicago. Achei-as simplesmente extraordinárias. No entanto, na época, em 1956, eu não tinha captado bem a sua “mensagem”. E como prova disso conto a nossa surpresa, minha e de Christinel, quando ele nos veio visitar uma manhã e, contrapondo ao café que lhe oferecíamos, Watts nos perguntou se nós não tínhamos antes vodka…»

Este espiritualista heterodoxo, como Lao Tsé, gostava da sua pinga. São os que prefiro, os que prescindem do ascetismo e não iludem a embriaguez de ser humano.

No mesmo livro, um apontamento sobre Gide e o seu diário, de 1946: «O mundo não será salvo, a poder sê-lo, senão pelos insubmissos. Sem eles, etc.»

Hoje Gide teria necessidade de corrigir a coisa, substituindo insubmissos por insones. Só os insones não cabulariam na transformação de si porque a lâmina em que atravessam a vida não lhes deixa. Só nessa desesperada urgência dos insones antevejo uma pureza que não pode ser pervertida pelos meios.

Telefona-me a minha mulher, Como vai a revisão, pergunta. Trabalhamos na revisão de um grosso livro do arquitecto José Forjaz. Aí se reúnem palestras, dadas em todo o mundo, conferências, textos de reflexão vária, dirigidas à academia (ele foi professor em vários países e director da Faculdade de Arquitectura em Moçambique) ou a outros públicos.

Espantoso, neste tijolo de condensada sabedoria, é que raramente o Forjaz cita. Embora todo o saber aí esteja implícito e haja alusões, há um pudor em exibir o conhecimento. Atitude aliás comum aos livros de artistas. Creio que estas reflexões aparentemente mais ancoradas no empírico do que no confronto com o teórico (está lá, mas refractado) resultam do facto de que a arquitectura exige uma grande habilitação técnica e uma minúcia da ordem do fazer. Naquela as teorias são consecutivamente testadas – o que dá ao arquitecto uma visão holística. É o que acontece neste livro excelente, e gosto especialmente dos capítulos em que Forjaz relaciona a arquitectura com a medicina ou apela a uma contenção da “arquitectura espectáculo” em detrimento de um respeito para com a paisagem e o ambiente.

Uma lição que talvez fosse pertinente levar a Macau.

O Forjaz é o contrário de mim, que cito muito, e isso nem sempre é compreendido. O meu material afinal não é a pedra, o vidro, a coluna ou a abóbada, mas os livros, o pensamento alheio que interpela o meu e o nutre. Tal como o sapateiro não pode deixar de citar o formão, a cola, o martelo, o prego, o x-acto, seria desonesto eu não citar os meus materiais, aqueles que me permitem a aceleração do pensamento. Através deles penso com, e empreendo no que acredito: que a cultura seja sobretudo um acto de relação, uma plataforma em que o vivido e o lido se imbricam e irmanam.

Novo telefonema. É o Jonas. Dia catorze, a complementar a inauguração da exposição do ceramista Jonas Donato, Saudades da Lata, será lançado o livrinho que fizemos juntos, O blue da Majika (o nome popular para as violas de lata). Ele recriou quinze instrumentos musicais tradicionais e eu fiz um poema para cada um deles, tendo inventado uma Cosmologia em que no princípio era o Vento – o qual vendo como a desarmonia e a indiferença cresciam entre os homens inventou o ritmo e os instrumentos musicais para os unir e lhes alimentar a empatia.

E perderam os animais a fala porque rejeitaram a música.

Segue o poema para o Pankwé:

«DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ// Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava / um buraco que ela tinha com caril de amendoim/ e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado/ com a forma das setas por não conhecer nada parecido/ no seu corpo que desse a vida/ enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.// E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós. // Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas. / Eram de barro mas amoleciam se manejados. /A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava./ O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.// Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios! // Aí a minha mãe criou o Pankwé. / As duas cordas são os grandes lábios/ a cabaça o útero/ – do que aí ressoa nasci eu! / Eu e mais um cento de cabritos. // E desde então o meu pai só faz o que gosta:/ sobe aos imbondeiros e abre cisternas.»

9 Nov 2017

A culpa é do Pitágoras

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o José Rodrigues dos Santos publica um livro proliferam no FB os posts dos que “não leram e não gostaram”, dos desiludidos, e os posts com citações que se prestam a ser escarnecidos. Uma minoria revela lê-los com satisfação do conteúdo.

Contudo, os romances vendem cem mil exemplares – facto que leva o seu editor a estampar na última contracapa, a atrevida frase que se realça na foto – apesar de JRS, nas redes sociais, ser reivindicado por uma partícula de gente.

Infira-se então haver dimensões paralelas à literatura que contagiam a sua recepção.

Talvez o ar de Peter Pan que exibe o JRS – nunca envelhecendo a olhos vistos –, e a sua voz jovial de adolescente, ajudem: há lá avó que não quisesse aquele neto para si, um menino inexpugnável à morte. Traquinas para vestir fatos de astronauta e colocar chapéus de texano e dizer piadas no fecho do telejornal que vão directas ao coração do seu público, mas que como um verdadeiro queque sabe o seu lugar (- JRS é hábil nessa construção do afecto).

Acrescente-se o que Gadamer referiu quanto ao “volume” da linguagem, por oposição ao seu conteúdo proposicional ou apofântico, ou seja, na televisão, enquanto realidade física, a linguagem falada não toca nem afecta apenas o nosso sentido acústico mas também o nosso corpo na sua totalidade. Na televisão, a linguagem envolve-nos de um modo menos invasivo, é como um ligeiro toque do som na nossa pele. Daí que a televisão recupere uma “magia” atribuível à cultura oral, uma certa corrente de presença, sendo o ecrã uma fonte de mediação entre o nosso desejo de epifanias e o cepticismo que nos rodeia.

Há uma última dimensão, mais cínica. Esbocemo-la assim: juro que se houver um editor que coloque vinte mil livros de um romance meu nas livrarias com uma tarjeta que diga “3ª edição, mais de cinquenta mil livros vendidos” (e é irrelevante se é verdade ou não: o truque funciona), em mês e meio imediato esgotará os vinte mil porque é efeito dos números incitar à imitação e ninguém quererá subtrair-se à oportunidade de pertencer ao círculo que encontrou a panaceia para o seu vazio. Melhor ainda e mais rápido, se, sob pseudónimo, eu fizer publicar um artigo soez a atacar-me (método que usou o Camilo) ou se tiver muitos detractores porque um reparador sentido de justiça é acicate.

Está visto, eu mesmo devia promover os meus livros mas só tenho tido editores que confiam no poder da literatura – ingénuos! A literatura não vende. Digam-no os editores da Maria Velho da Costa, dos últimos Lobo Antunes, dos primeiros onze livros de José Saramago. O que de facto promove o livro são “dimensões ocultas” que despromovem a literatura, e quem tem culpa é o Pitágoras.

Achado um culpado passemos ao segundo aspecto

Vivo em Moçambique onde embati na mentalidade corporativa comum aos países do socialismo revolucionário; a qual se manifesta em aspectos medonhos.

Por exemplo, o mérito e a qualidade de algo nunca são mencionados como vectores de critério. O que importa é o colectivo, sobrepõe-se, e por isso nenhum indivíduo que faça algo de meritório pode esperar um elogio, um reconhecimento. A mediocridade não será igualmente objecto de alusão; porém, o caviloso é que os dois tipos de silêncio valham o mesmo. Este comportamento visa um objectivo claro: nivelar tudo. Não importa se é por baixo.

Da mesma estratégia faz uso a corrupção: se esta se estender a todos e não houver sombra de inocente quem possui legitimidade para apontar o dedo ao comportamento de um terceiro?

O sistema não autoriza que o mérito seja mencionado porque há que evidenciar que aos olhos do poder todos são iguais – ou seja, dispensáveis.         

O que gera uma perversa rede de dependências e esclarece porque há uns anos um inquérito de rádio junto a estudantes universitários sobre se consideravam mais importante acabar o curso com mérito ou ter o cartão do partido inclinava-se obscenamente para a segunda hipótese.

Ora, é extraordinário verificar que “a lógica de reconhecimento” que se instalou na sociedade de mercado dos países democráticos tem um cariz semelhante. Os números comandam e aplainam tudo, a mixórdia e os bens culturais de valor equivalem-se nos azimutes do menor quociente cultural que pauta a cultura de massas. Estranharmos que Erza Pound venda por ano em todo o território dos USA quatrocentos exemplares enquanto José Rodrigues dos Santos no nicho português vende cem mil exemplares, é inútil, pois a comunicação social colabora com esta distorção.

O mercado capitalista conseguiu transformar em fascínio e realizar com um fulgor único o que os sistemas socialistas tentaram mercê de tanto custo e sacrifício de gerações: decapitar o mérito, o trabalho intelectual, moldar na maioria a ideia de que todos os espíritos e bens se equivalem. Só o anonimato da expressão numérica conta. Que importa que o romance de JRS seja mau (caso seja, nunca li)? Não é nem o nome dele nem a literatura que estão em jogo nesta aposta.

Pelo contrário, na literatura «a forma é a satisfação de um conteúdo» (José Forjaz) que exprime precisamente aquilo que não se pode exprimir de outro modo. Entendem?

Quando abro um canal brasileiro e vejo que depois do samba, da bossa nova, duma plêiade de compositores extraordinários, o que se oferece agora como espectáculo é a música brega ficam evidentes os riscos deste triunfo do Pitágoras (brinco), do fascínio dos números, e desta paisagem de um regime cultural a “um só sabor”, como a propagada pelas indústrias culturais – as quais já vendem por música meros padrões sonoros.

É necessário uma nova espécie de crítica, uma espécie de urbanismo caosmótico que – dilucidando as linhas de nível de cada paisagem cultural e, reconhecendo-lhe as intersecções e os contágios – desenhe uma morfologia para os valores na pauta heteróclita das sociedades democráticas, sob risco de tudo sucumbir ao mais infame relativismo.

Vejamos como o sistema de ensino tem contribuído para esta hecatombe.

3 Nov 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 2

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mais das vezes, pensar é emboscar-se. Emboscar-se sob bancos de corais já formatados e cujo resguardo compensa a nossa dependência externa com um aparato de coerência interna.

Aí “pensamos” para reflectir a ordem estabelecida pelo repertório a que aderimos – um partido, um determinado modo de vida, uma igreja, uma convicção escolástica: todas as respostas-pronto-a-vestir que nos tragam conforto – e não como seria desejável para explorarmos a fundo o “caos” do pensamento pensante. Ao “pensarmos de um modo assistido” inserimo-nos, certificamos que pertencemos ao sistema de interesses instalados. E embora nos galvanize a nossa satisfação, dado que os elementos de persuasão montam uma viva aparência retórica, esquecemo-nos de que um dos efeitos eficazes da ideologia é apagar o seu rasto e fazer-nos crer que estamos estanques à auto-ilusão.

Ora, demonstrou-o René Girard, nós, no mais das vezes, não queremos pensar, queremos apenas pertencer. Daí a importância da mimetização nas virtualidades do jogo social. E a boa execução da mimetização recompensa-nos com a possibilidade de sermos populares.

Eis um dos significados da palavra «popular». Outros significados florescem no mesmo tronco semântico.

Ser popular significa algo ou alguém ser muito conhecido, como designa o que seja próprio de uma classe social particular, a mais desfavorecida da organização social. Donde decorre, um terceiro sentido: a pertinência de algo “não elaborado”.

Roger Pouivet, num ensaio em que descreve a mudança das agulhas que faz a arte popular deslocar-se para os carris das artes de massas, esclarece – a arte popular deve reunir duas condições de acessibilidade: a primeira é económica, a segunda condição é cognitiva.

Uma arte popular não exige uma cultura de segundo nível, uma cultura clássica – a qual  supõe sempre uma aprendizagem de que está arredada a maior parte das pessoas.

No feliz exemplo de Pouivet, um novo registo das Variações Goldberg, de Bach, não custa mais caro que um novo cd da Celine Dion. Mas captar a diferença entre a nova interpretação da obra de Bach e os registos anteriores da mesma obra é cognitivamente inacessível à maior parte das pessoas. Eis uma razão para haver menos compradores para esta obra do que para a de Celine Dion.

Embora Bach tenha hoje mais compradores do que nunca, persistir em ouvir música clássica e tirar o pleno proveito da mesma já exige um manejo cognitivo cujo acesso só será franqueado pelos que se tornarem amadores de música e forem pacientes para estudar os vários níveis de leitura das obras – o que não se compadece com a lógica aditiva da massificação nem com a ansiedade da novidade que as indústrias culturais herdaram das vanguardas artísticas.

A arte de massas oferece-nos o que seja consumido rapidamente e não necessite do esforço da interpretação – e, por sua vez, para o consumidor, ter obnubilada a necessidade de compreender.          

Para ajudar-nos a entender a emergência sufocante da cultura de massas sobre os demais regimes culturais, será útil socorrermo-nos da tipologia estabelecida pelo alemão Hans Ulrich Gumbrecht, o qual defende que o mundo está polarizado entre as culturas do sentido e as culturas da presença.

As primeiras desenvolveram as tradições hermenêuticas e uma certa racionalidade afim da lógica e do discursivo. Já as culturas da presença são mais performáticas, associam-se ao corpo e desenvolvem um tipo de inteligência mais holística.

O que importa realçar é que Gumbrecht sintoniza com Pouivet neste diagnóstico sobre um dos principais motivos para a adesão “sem espinhas” à arte de massas:

«As finalidades da música de massas – e das artes de massas mais gerais – não são cognitivas, morais, religiosas, sociais, históricas, como o são as obras da cultura humanística. Elas são fundamentalmente afectivas» (e, neste sentido, poderão ser até terapêuticas).

O segundo grande motivo para uma adesão decapitadora associa-se a um vector básico que separa a arte popular da arte de massas.

As artes populares são de comum expressões de comunidades de que elas emanam. Há um lastro identitário. O que nos autoriza a localizar as origens do fado, do folk, da morna, do flamenco ou do sushi.

Pelo contrário, as artes de massa não reflectem as comunidades que com elas se identificam. Os U2 são ouvidos por jovens holandeses, chineses ou africanos. Talvez por causa do que adianta Pouivet:

«As obras da arte de massas dirigem-se ao comum denominador de seres que não partilham uma mesma cultura, no sentido humanístico, que não falam as mesmas línguas, que não vivem da mesma maneira. Madonna, os Rolling Stones, U2, mas também Matrix ou O Silêncio dos Inocentes, romance ou filme, interessam todos os seres humanos dos mais jovens aos mais idosos. Eles dirigem-se ao seu mais pequeno denominador comum não cultural.»

E para interessarem a todos, esclarece o francês, a estética destes produtos desenvolve aquilo que se chamam os efeitos genéricos do humano: a amizade, o medo, a alegria, o amor, o fascínio pelas máquinas, etc.

Por efeitos genéricos entenda-se o grosso modo: daí que hoje nas obras se privilegiem a estrutura sobre a linguagem e o detalhe, a funcionalidade sobre a deriva romanesca. As grandes subtilezas ficam do lado da poesia, ou do romance de cariz humanístico. Porque na verdade, mais de metade dos romances de hoje não passam do que dantes se chamavam as novelizações, ou seja, as adaptações dos filmes de êxito.

Mas como vendem e estando o esforço de classificar fora de moda –  ao arrepio de uma corrente que privilegia os matizes da «presença» – então os media tomam tudo por igual.

E isto ajuda-nos a discernir porque, a) um novo “romance” de John Grishman, ancorado ao “género” e ao cinema, conhecerá maior sempre cobertura mediática do que uma tradução, esta sim louvável, de uma obra de Arno Schmidt, b) porque a maioria expressiva dos jornais generalistas prefere tratar preferencialmente a cultura alheia do que a nossa, dando uma menor visibilidade, atenção e credibilidade ao que se produz na nossa língua. Mas não nos adiantemos.    

26 Out 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 1

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ornámo-nos mais pobres, à medida que fomos ficando mais ricos – farto de martelar isto nas aulas, constato que nada é levado a sério enquanto não ganha a autoridade da letra de forma. Impõe-se-me um esforço de síntese.

Comecemos pelo mais corriqueiro exemplo: o Michael Jackson não é um génio e a sua contribuição para a música será avalizada numa nota de rodapé de um subcapítulo sobre o século xx e a extensão pop-rock da música popular. Mas motiva cinco mil vezes mais artigos nos media do que, por exemplo, John Cage, este sim, um génio.

Por que se dá esta distorção das perspectivas?

Devido às falácias próprias às indústrias culturais, que ameaçam submergir-nos.

Acentuou-se nas duas últimas décadas o recrudescimento de uma inversão na ordem simbólica dos valores culturais, impelido por dois factores que se conjugam simultaneamente: pela primeira vez na história da humanidade vivemos mergulhados num caldo comunicacional simbiótico em que se enfeixam como ingredientes farrapos de distintos regimes de cultura (a Cultura Popular, a Cultura de Massas, a Cultura Humanista/Erudita, e a Cultura Digital – fiquemo-nos por esta tipologia, para simplificar), sem que se tome em conta que esses regimes, afinal, manejam modos de produção e mesmo pautas cognitivas diversas; depois, as “indústrias culturais” (digamos, o braço armado da Cultura Popular) fizeram da globalização o seu combate e tendem a procurar algoritmos que uniformizem o que se oferecia como estrias identitárias profundas e (até certo ponto) inconvertíveis.

Ora, de entre os vários dispositivos emanados pelos diferentes regimes de cultura, só os da denominada indústria cultural lograram a capacidade para atingir e disseminar-se por todo o mercado global – e a escala desta dimensão perverte tudo.

Vou exemplificar dois aspectos observáveis na última Revista do semanário Expresso.

José Mário Silva, “obrigado” pela pressão do que seja considerado mainstream (ele que não o fizesse e seria acusado de elitista, etc.), abriu a secção dos livros com uma crítica de página e meia ao último romance de Dan Brown, para avisar afinal que o romance além de falhado é fake (- previsível, quem enriqueceu a escrever tão mal vê necessidade de escrever melhor?), razão suficiente para só lhe dar uma estrela. E não foi por avarícia, acredite-se. Na página ao lado temos no curto espaço de uma coluna a recensão de Pedro Mexia ao último Roth saído em Portugal, com direito a cinco estrelas.

A lógica que preside ao critério desta ordem dos artigos é simples: Dan Brown, que esta semana lançou o seu livro na Feira de Frankfurt, é tratado como acontecimento – e aqui a suposta qualidade literário daquele produto é uma dispensável cereja no bolo. O marketing acrescentará ao produto a notoriedade q.b. para que ele se venda, a granel. Um filme que o adopte já estará negociado, etc. O resto é sustentado pela pressão do mercado sobre o gosto e as subjectividades enquanto aos disjecta membra da cultura irá sobrepor-se o poder das “instituições” daquele. E a ordem simbólica deste novo poder fixa e enclausura, satisfaz e codifica. O que implica rituais de assimilação, de interdição e de desqualificação – mesmo que nada disto passe do domínio do implícito.   

Para exemplo desta suave lógica de desqualificação (feita de forma inconsciente para si mesmo, a jornalista – que conheço – é boa pessoa) atenhamo-nos à entrevista a António Mega Ferreira, com chamada de capa igualmente nesta última Revista.

Mega Ferreira é um prolífico escritor que tem contra ele o estigma de ser um homem público e de ter sido e continuar a ser um gestor cultural de qualidade. Num país como Portugal, de parca imaginação, nunca se admite que alguém possa fazer bem várias coisas ao mesmo tempo, o seu eclectismo soa a crime inconfessado.

Como sou um teso, só lhe li o primeiro livro de ficção, O Heliventilador de Resende, que tinha mais do que a graça de ser bem arejado, e um dos dois livros de poesia, bom o suficiente para merecer uma atenção cuidada aos seguintes, mas li-o no registo biográfico, com Macedo, Uma biografia da Infâmia, e vários livros de ensaios, nomeadamente o D. Quixote : o literato, o justiceiro e o amoroso (2006), O deserto da Europa (2007), Viagem à Literatura Europeia (2014), Vidas Instáveis (2014) ou Viagem à Literatura Sul-Americana (2017). Neste género de ensaios que cruza a história da cultura com a da literatura, não vejo quem se meça com ele em Portugal. É o nosso Simon Leys.

Contudo, poucos o lêem ou se manifestam e ele próprio se queixa de não ter leitores: «Ou me lêem pouco, ou sou um péssimo escritor.» Há evidentemente um laivo de ironia neste queixume.

Na capa, retirada a citação do contexto, é que me parece essa ambiguidade perder-se de todo. Somemos agora a uma eventual leitura literal a observação final da entrevistadora, que roça a sentença: «Provavelmente António Mega Ferreira será lembrado como o homem que fez a Expo-98», ao que o próprio replica, elegantemente: «E se as árvores continuarem a crescer como cresceram até agora ainda bem» (- e foi imprudente a jornalista, de certeza que não leu metade dos 32 livros que o intelectual Mega Ferreira tem publicados).

Com que ficamos, subliminarmente, somados o título da capa mais o desfecho da entrevista? Com um autor que parece atestar a menoridade do que escreveu.

Não creio que Mega Ferreira o merecesse, não creio que a Ana Soromenho tivesse calculado esse efeito – apenas no elementar jogo de regras fixas (a chamada de capa de uma entrevista tem de ser uma citação, etc.) em que a informação se tornou calhou assim, fazendo realçar a perversa dimensão (atenção, não falo de intenções) oculta com que o sistema pensa por nós.

O Estado, escrevia Freud, proíbe ao indivíduo a injustiça, não para aboli-la mas sim porque pretende monopolizá-la, tal como faz com o tabaco e o sal. Se substituirmos aqui o Estado pelo Mercado, teremos lenha para continuar… (à suivre)

19 Out 2017

Os crimes públicos

10/10/17

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]dianta Olivier Rolin que Michaux viajava «para expulsar de si a sua pátria, as suas amarras de cultura grega ou romana, ou germânica ou hábitos belgas».

«O que é uma civilização?», pergunta o belga a fechar Um Bárbaro na Ásia para responder com uma radicalidade que não receia o paradoxo: «Um impasse (…) Um povo devia ter vergonha de ter uma História».

Como isto acerta na mouche, ou com mais precisão, na tsé-tsé, visto da minha varanda de Maputo sobre os falhados estados africanos e a ignóbil façanha com que os “libertadores” se locupletam alarves, limpando os pés ao capacho em que converteram o seu povo.

Ser «enraizado», escarnece Rolin, «deixemos isso para as beterrabas».

Uma nação só está madura quando se esquece de si mesma. Não a que esteja alienada de si, como a nação colonizada, mas esquecida, ou seja, tão saturada de si que prefere entregar-se ao cosmopolitismo. Aí não lhe dão as febres nacionalistas, que resultam de uma identidade cultural ter caído na patologia da abstracção. E educa os seus cidadãos para serem cidadãos do mundo.

Entretanto, a confrontação no conflito catalão está assegurada e será estúpido acreditar que se vai confinar ao campo institucional e aos tribunais.

Com verdadeiro destemor (cojones ele tem) Puigdemont, no seu discurso de hoje, foi o mais longe possível na retórica da independência e sem declarar guerra aberta reiterou a falta de fidelidade ao rei (aliás, em vez da bandeira da independência imediata ergueu a da República, o que para bom entendedor…) e face à sua provocação a violência que vimos no dia do Referendo, apesar de um aparente apelo ao diálogo, vai crescer. Repare-se, primando por um cinismo exemplar, Puigdemont suspendeu a  independência para reafirmar a legitimidade desta, o que deixa sem recuo Rajoy e o rei Felipe.

Eu que fui a favor do Referente, tinha sérias dúvidas sobre a necessidade de uma suposta independência da Catalunha, porque nem tudo o que é plausível é o mais funcional. Agora é totalmente incerto o que vai acontecer.

Rajoy, que deveria aproveitar a oportunidade para alterar a Constituição e transformar a Espanha num estado federal, dando maior autonomia às nações hispânicas, não vai resistir – até para mostrar como a legalidade tem por si a força – a aplicar o artigo 155, jugulando a honra catalã.

Aí será o ponto do não retorno. E a irracionalidade vai crescer como os cogumelos.

Uma última proposta: exporte-se o Costa (por muito dinheiro) para a Catalunha. Ele negoceia, ele reconcilia.

10/10/2017

Ontem baixei vinte livros da net, de três autores de quem gosto muito: Philippe Sollers, François Cheng e Pascal Quignard. Para quem como eu vive sem boas livrarias nas imediações é um consolo. Fiquei radiante, e simultaneamente apreensivo. A facilidade com que hoje se fura o pneu que permite ao autor viver à tona de água é alarmante.

Em Moçambique não há livrarias, ou só as há de best-sellers e que carregam no preço do livro, que chega a custar meio ordenado mínimo. A única teta à mão é a net, e a pirataria campeia. É a única e verdadeira indústria cultural por estas paragens. O jovem ou lê um dos vinte e muitos livros do Mia Couto – é um exemplo – que hoje se baixam na net, ou não lê.

Ainda esta semana descobri na net um livro de que acabei de fazer um posfácio para uma segunda edição (nem sei se já saiu da tipografia), de uma ensaísta brasileira. É um livro fantástico que cruza filosofia e estética e que aborda os regimes da figuração do corpo na arte da primeira metade do século XX. Inclui-o na bibliografia obrigatória de duas disciplinas e já pus duzentas pessoas a lê-lo. Agora baixa-se, gratuitamente.

Tudo isto está errado e está certo. Do ponto de vista antropológico os desfavorecidos têm de corrigir os desequilíbrios sociais, as entropias, e às vezes os danados da terra só pelo crime se resgatam.

Como autor fico alarmado.

Há definitivamente que estabelecer-se um novo tipo de contrato social para que a rica opulência de alguns (em Inglaterra publicam-se por ano 9000 livros só do género infantil, em Moçambique 100, de todos os géneros) não degenere nesta tribulação dos direitos intelectuais.

Antes que, como diria o Xie Lingyun, o Yang na sua frescura renda o Yin exausto.

11/10/2017

“Os mortos não têm mais a palavra, ou antes, têm-na mas seca, sem a água que a faça viver. E por isso em muitas culturas se faz a libação à terra, para devolver com a humidade um pouco de palavra aos mortos”: leio numa entrevista de Geneviève Calame-Griaule sobre os Dogons.

Eram belas as tradições quando eram realmente vivas, antes de se converterem em tradicionalismos tacanhos e de uma severa esterilidade.

Preparando entretanto uma colecção de livros orientais, petisco à esquerda e à direita, e apanho esta coisa maravilhosa do Sri Aurobindo sobre as realizações espirituais: «esta assombrosa reverência pelo passado é algo desconcertante e temível! Ao fim e ao cabo, o Divino é infinito e o desdobramento da Verdade pode ser um processo infinito ou ao menos que permita o espaço para novos descobrimentos e novas afirmações, inclusive, até novos conseguimentos…». Isto é importantíssimo e convém repeti-lo: o tradicionalismo faz de Deus um coxo e dos seus atributos infinitos algo determinado com régua e esquadro. A mim que sou um ateu intermitente um tal conceito handicapado não afecta. Mas é perturbador pensar que supostos crentes abraçam com fervor e de cara lavada a hipótese de uma amputação divina, como se não se sentissem culpados por transformarem Deus num galo capão.

A aventura espiritual, que a há, aquela que nos transforma, é que não consente em tais limites. É mesmo uma questão ética.

12 Out 2017

As afinidades colectivas

23/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue árido viver a solidão quando o sujeito insiste em afirmar-se de “uma só peça” -uma poça tem pouco enredo. Outra forma muito distinta ocorre quando o sentimento avulso de estar ilhado se torna apostila e nos refazemos em arquipélago, entrosados num feixe. Tem sido essa a minha experiência do “exílio”.

Isolado do meu meio ambiente “natural”, qualquer incidente ganha as perspectivas de uma categoria que se irisa ao vento, porque o mais leve tecido de dúvidas e expectativas nos compromete, gerando uma tensão dinâmica. Desabrocha aí uma energia, dir-se-ia desaforada, que desencadeia a paisagem interior que equilibra o que nos assalta pelos poros e o olhar parecia esgotar.

Contra a cronologia dos acontecimentos ergue-se então a trama luminescente das afinidades electivas e a realidade que nos sitia evola-se num ramo, confina-se. E onde antes só jorrava a imaginação agora associa-se a memória, num ajuste novo, o mais fecundo quando a memória é ejectada pela imemorialidade arquetípica.

Sem ficarmos livres do mal, já vivemos aí num universo paralelo, obliquamente simples, isto é plural, com uma consciência em arquipélago ou em continuada transumância.

É assim que imagino “o encontro” de Pessanha com Ruben Dario (1867-1916) como um outro eu, que nele fez carne, a carne do verso reminiscente. Nunca tinha lido o sul-americano com a devida atenção e as afinidades que confessa o poeta de Clepsidra em relação ao autor de Azul… encorajou-me. Ruben Dario, é simplesmente monstruoso, volve até perdoável a saturação dos cisnes.

E várias coisas são coincidentes. Começando pelos elos familiares, pois igualmente Dario padece do sentimento de que a sua origem é um desconcerto que engendrou desvarios: “A voz do sangue, escreve, que flácida patranha romântica!” Também ele escolhe viajar cedo e parte para o Chile, reside em Costa Rica e Guatemala; mais tarde rumará a Espanha, que encantará (como Pessanha em Portugal, exultam com ele os salões e os ágapes), em França é elogiado por Victor Hugo e prende-se de amizades com Verlaine e Gautier; desembarcará nos States… e a sua liberdade vai brotando de um patriotismo que, paulatinamente, se faz universal.

Igualmente em Dario, a sintaxe do poeta não é senão a matemática de sua música. E onde quer que esteja, apesar da absoluta seriedade do seu trabalho literário, não se entrega à vida como um literato e antes bebe e fuma e não hesita em empregar palavras fortes e o seu humor é truculento, sendo um dandy que frequenta a prostituição. Se num campeia o ópio, no outro há uma feroz entrega ao vinho e ao uísque, ao ponto da calcinação. A ambos interessa sobremaneira «desacreditar a realidade», posto que carregam a sua própria realidade consigo. E pede Dario Em Prosas Profanas: «Ámame en chino, en el sonoro chino de Li-Tai-Pe». E podia não ter escrito mais do que estes dois versos: «La onda, cuando el viento canta,/ llora.», que chegava.

Experimente ler a biografia Yo, Ruben Dario, de Ian Gibson, que hoje se baixa, free, na net.

24/09/17

O problema com a Catalunha é a existência de cinquenta bandeiras que aguardam por precedência para assomarem às janelas. Catapultada a Catalunha nas nuvens da independência suceder-se-á uma marcha de imensos esqueletos até aqui escondidos nos armários e que poderão significar uma pulverização de inúmeros países europeus.

Portugal deve à Catalunha a sua independência dado a Espanha em 1640 ter preferido manter a riqueza catalã à perfídia em que o carácter luso se transformara.

Também eu intelectualmente devo muito à Catalunha. Muito do precário pensamento que consiga elaborar, a nível filosófico, estético e cosmoteândrico, devo-o às drageias que fui recebendo de Barcelona. Eugenio Trías, para a filosofia, Rafael Argullol e Xavier Rubert de Ventós para a estética, Raimon Pannikar para a antropologia das religiões, e Pere Gimferrer, Joan Brossa e Gabriel Ferrater na poesia, são minhas referências quase diárias há vinte anos. Gostaria de saber o que Trías, a par de Ortega y Gasset, o grande filósofo hispânico do século XX, pensaria desta derrocada para que o estulto autoritarismo de Mariano Rajoy, que ele toma por destemor, empurrou o país.

Já não há recuo – sou a favor do referendo catalão. Com angústia, mas só depois se avançará com legitimidade para quaisquer tipos de negociações que esclareçam a nova relação entre as duas nações ibéricas.

26/09/17

No dia em que as mulheres são autorizadas a conduzir na Arábia Saudita – meu Deus, adivinho o abuso dos polícias de trânsito que aproveitarão para exigir às mulheres que tirem o tchador para supostamente conferirem o rosto do motorista com as fotos nas cartas – leio que o rapper norte-americano B. o B quer enviar satélites para o espaço para tentar encontrar a curva da Terra.

«O artista deu início a uma campanha de GoFundMe para tentar provar cientificamente que o planeta azul é mesmo plano e descobrir a curva da Terra, pois sustenta que se o planeta tivesse a forma circular isso seria possível perceber a olho nu.

Por isso. B. o B, pretende lançar satélites no espaço para refutar o que a ciência e a tecnologia têm como provado. Para dar corpo à sua ideia necessita de 200 mil dólares – 168 mil euros ao câmbio actual – e da autorização das autoridades, refere.»

Pois se a curva das ancas de uma mulher se percebe logo a olho nu, como pode a curva da Terra, que é muito maior, não se notar de imediato? E deve ser esmagador viver com a certeza de que triliões de imagens manipuladas nos querem enganar, de que não há um cientista ou um astrónomo de confiança no mundo! E porque mentem tanto o Papa e os telescópios? A lua é chata como uma moeda!

A mim choca-me que um artista tão grande venda tão poucos cds que precise de pedir emprestado 200 000 dólares. Estou devastado!

Eu por 250 000 dólares provaria que a Terra tem a forma da popa do Elvis Presley. Só elucubra quem pode!

28 Set 2017

Três fachadas

18/09/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão se confessava há vinte e cinco anos. Estava em processo de divórcio, depois de um ano rocambolesco em que (achava ele) se portara indignamente com a mulher e a amante e os filhos, e com mais a terceira que arranjara no fito de se aliviar da pressão e do sarilho de saias em que se enfiou. Duma paixão assolapada com a amante, passara a ser uma relação a cinco na cama, ele, mais a mulher, mais a primeira amante, mais a segunda amante, mais a culpa, toda esta desordem assistida pelo fantasma que segundo Lacan existe “entre” e excita os dois travesseiros.

Foi confessar-se, sentindo-se uma nódoa, indigno, e após um relambório de meia-hora, declara o padre, “Que quer que lhe diga, acho que o senhor não tem espessura humana para pertencer à comunidade católica, aconselho-lhe uma igreja apostólica, os seus pecados são daqueles que prescrevem rapidamente e pelo menos aí com o dízimo continuado sentirá mais a fatalidade da culpa de que nitidamente precisa”.

Ele nunca soube interpretar esta reacção do padre, nem eu. Faltar-lhe-ia uma certa crueldade que dilatasse a extensão do mal, em primor do bem? Hesitávamos.

Até eu ter visto a fachada das ruínas de S. Paulo em Macau e ter entendido diante desse simulacro que as religiões nunca descolaram do oráculo, e que em todas elas o homem está sozinho com aquilo que “ouve” e com o modo como interpreta a mensagem que ouviu. Aquela fachada barroca não passa da simulação de um tímpano, embora a longa escadaria seja subida com veneração (mais que não seja museológica, turística).

Ir à igreja, um templo com miolo, púlpito e tecto, não passa de uma incubação. Como acontecia nalguns templos romanos em que se ia para a cura de uma doença e aquela era dada com o adepto a dormir tendo por almofada uma pedra de toque. Aquela que lhe permitia contactar em sonhos com quem lhe daria uma receita para o problema. Uma frase que se destacaria no seu sonho, a qual, dizia-o Heraclito, era mais um apelo à atenção dos sinais que uma prescrição.

O Matrix colocou os pontos nos is: ao contrário do que julgamos, dormimos. Só que não existe, como se supõe no filme, um único sulco – no caso, satânico – para a navegação onírica. Há sonhos que nos habilitam ao bem, no meio do aleatório e do caos mais adstringente, embora estejamos na plena “guerra dos sonhos”, de que nos fala o antropólogo Marc Augé, num livro de que gosto muito. 

19/09/17

Esta semana, no dia 22, às 18h30,terá lugar o lançamento do meu livro de poemas Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, na Fnac, em Lisboa. Estando em Moçambique enviei um depoimento em vídeo. Onde, para arranque, me socorri de uma coisa assombrosa que descobri em Macau. E cito, esse excerto:

“Pego no missal que é a Clépsidra, na belíssima edição que dela fez o Carlos Morais José, e vou para a banheira, gesto em que imito o Jean-Paul Belmondo que passa uma parte substantiva da acção nos filmes do Godard a ler na banheira – eis o único tique de cinéfilo que me ficou.

Tamborilo com os dedos dos pés na água tépida, descontraído, julgando que poucas surpresas me estarão destinadas e ao abrir ao acaso num soneto sou golpeado pela evidência de estar frente a frente com uma estrutura fílmica. Para que não haja dúvidas, passo a decompor o soneto numa découpage fílmica.

«Desce em folhedos tenros a colina/ – Em glaucos, frouxos, tons adormecidos»: temos um travelling de recuo em plano subjectivo e é fim de tarde; «Que saram frescos, meus olhos ardidos/ Nos quais a chama do furor declina»: passámos a contracampo, para apresentar o sujeito da acção, em GP (grande-plano), e interpõe-se uma sombra no olhar dele que confirma a gradação do poente; «Oh, vem do branco, do imo da folhagem!/ Os ramos, leves, a tua mão aparte»: voltámos ao plano subjectivo mas agora o plano supõe um movimento de câmara interno para fechar em detalhe, ou seja num GP da mão, antes de voltar a câmara a incidir em quem olha. E ouve-se: «Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,/ Reflectir-te virgem a serena imagem.», havendo agora a necessidade de mantermos o GP sobre o observador porque é mais forte que o que se segue seja sugerido na expressão do olhar de quem está de fora: «Da silva doida uma haste esquiva/ Quão delicada osculou um dedo/ Com um aljôfar cor de rosa viva.» E aqui a câmara volta à mulher que desce a colina: «Ligeira a saia!/ Doce brisa impele-a!/ Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo./Alma de silfo, carne de camélia.». E a carne da camélia aqui será reflectida na nódoa de sangue da saia sobre a qual o zoom fecha.”

Nunca se sabe o que um leitor e a sua circunstância podem extrair de um poema. Principalmente se atrás da fachada de um soneto havia um cineasta.

21/09/17

VI-O, ao pé que torna bamba qualquer medida. Bebia uma beer, absorto num ensaio viscoso como crude, e ao ouvir na tv do bar aquela canção com uma letra mais estúpida do que um carrapato quis ver o rosto do grotesco. E ao meu lado, acomodado numa cadeira de chanfuta, interpunha-se O PÉ. Baloiçava. Seria em negro o pé da mulher de Hércules, esta bisarma com ar de destino ou de foz e cuja genitália presumo ser um chamariz de atritos, forrada a papel de parede? É normal que cada pé modele uma sintaxe, à semelhança da vespa que galga a pé-coxinho a parede húmida da minha imperial, mas eis-me gago ou, pior, siderado. Que conexões, que deliciosas incorrecções se poderão fazer à sua sombra! A fachada para uma futura Igreja de Santa Madalena? Pior, o sorriso é-lhe tão abrasivo como o pé é longitudinal. Traga-me duas Laurentinas!

21 Set 2017

A sombra do inimigo

10/09/2017

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sfalfado pela viagem, desde Macau, reencontro um país congestionado pelos desastres que têm na arbitrariedade dos homens a sua origem natural.

No mesmo dia, três notícias deprimentes.

Moçambique está a ser investigado por supostamente ter comprado clandestinamente, violando o disposto nas sanções da ONU, mísseis à Coreia do Norte. Primeiro, é um país que se vilipendia aquele cujo governo persiste em fazer tudo às escondidas; depois, que inimigos pode ter uma nação que não consegue sequer produzir (tendo água a rodos e terra fértil) a alface e o tomate que mete na mesa, tendo de comprá-los à vizinha África do Sul? Mísseis?

O maior inimigo do moçambicano é a sua própria sombra.

A nova lei do cinema, aguardada pelo sector há décadas, é um tiro no pé do bom senso.

Moçambique teve como uma das poucas singularidades da sua história ter apostado no cinema desde a independência, e daí que cá tivessem aterrado personalidades como Jean-Luc Godard, Jean Rouch, ou Ruy Guerra e se gerassem algumas gerações de cineastas que anualmente, mal ou bem,  iam produzindo filmes. Para além disso era um dos poucos países africanos com técnicos de cinema para poder atrair produções internacionais.

Só houve dois critérios para o delineamento desta lei carimbada contra todos os avisos da classe: o controlo dos conteúdos (isto é a censura) e o maior lucro possível e imediato à mínima visibilidade de qualquer câmara na rua. Vou caricaturar porque a realidade o mais das vezes imita a caricatura.

Para um cineasta poder ir à rua gravar o acto de compra de tomates pela protagonista, para posteriormente os lançar à cara da segunda mulher do seu marido, teve de previamente ter depositado no Instituto de Cinema um guião que foi esmiuçado por um comité de leitura (o qual averiguou se aquela cena não “feria os costumes”) e de pagar uma taxa (absurda, de alta) por filmar em espaço público. Fora o reforço dado ao poder discricionário do tal comité de leitura, tudo pareceria normal.

Só que entretanto houve greve de chapas e a vendedora dos tomates não conseguiu chegar a horas ao sítio habitual da sua venda, pelo que só há beringelas à venda – então terá de se mudar a cena e depositar o novo guião no Instituto de Cinema, pagar uma taxa (penalizadora), desta vez por se ter modificado o guião (que será reexaminado, auscultando-se se a nova cena “não fere os costumes”), acrescida pelo pagamento de uma nova taxa para se “renovar”a autorização de filmar vegetais naquela esquina. Tudo isto, supostamente, controlado por fiscais.

Num país onde o transe da burocracia reina imagine-se a agonia, o sufoco e o delírio a que se chegará, em nome da lei.   

Terceiro sinal deprimente. O relatório independente da Kroll sobre o processo das Dívidas Ocultas confirma o que já se sabia mas nunca fora declarado por uma instância internacional: para liderar as empresas e os projectos de interesse e âmbito públicos são invariavelmente escolhidos os gestores mais incapazes. A única regra é: Percebe de futebol? Vai para reitor da Universidade de Direito. A única habilitação: ter o cartão do partido. O que resulta num desbarato de tempo (de gerações), de dinheiro e energias que só se explicará à luz da hipnótica euforia do “potlach”.   

Tudo o que um país em crise profunda não precisava.

Não sei se me apetece sair à rua, uma desgraça nunca vem só, sobretudo quando o círculo é vicioso.

12/09/2017

Após uma hora de prospecção encontro a frase de Peter Sloterdijk que procurava: «Alma é aquilo que não se mediatiza» (in O Estranhamento do Mundo, Relógio d’Água, 2008, Lisboa). E busca dentro, folheando à esquerda e à direita, constato: o Sloterdijk é um verdadeiro designer da filosofia.

Será um dos filósofos actuais mais estimulantes, porém, simultaneamente, enche as frases de achados. «Aí, onde termina a história das religiões começa a história do design.»: uau! É uma tremenda frase de efeito e que faz de imediato eco em nós: eureka! Que bela citação, resulta sempre.

Foi só quando reli o livro, num dia de descontracção absoluta que me permitiu ir petiscando sem a pressão de procurar um apoio funcional para qualquer ideia, que, dando de novo com a frase, me acudiu perguntar: mas afinal as leis do design, o telos que motiva esta disciplina, não estavam já claramente presentes nas catedrais góticas? Não há até uma banda desenhada franco-belga onde as catedrais góticas se transformam em naves espaciais exactamente por causa da sua sugestão aerodinâmica? Dei comigo a suspeitar da fiabilidade da frase do Sloterdijk –  talvez mereça um exame mais atento aos seus fundamentos.

A condição básica para me libertar do fascínio da frase, que me obliterava o raciocínio, foi não andar à procura de nada, estar entregue a uma leitura deambulatória, arredia a qualquer utilidade imediata. Só nesta leitura sem tensão, dir-se-ia imotivada, é que enfrentei o livro de forma activa. Ou seja, as leituras excessivamente orientadas, dada a pressão e a ansiedade, correm o risco de volverem uma escuta com projecção. E aí alheiam-nos quer do distanciamento, quer do detalhe que faz toda a diferença no essencial.

Tome-se outro exemplo: «É característico dos místicos inverterem a tendência básica do desenvolvimento do líquido em sólido (…) os ensinamentos místicos são passíveis de serem interpretados (…) como escolas de mergulho (…)». A adesão é imediata.

Contudo, algo em mim – o ácido úrico? – resiste a esta solubilidade total.

O design na filosofia – tal como o encontramos também em Nietzsche, autor de fórmulas brilhantes – é tão fascinante como decapitador. Assemelha-se a um farol nos olhos, encadeia.

Por isso tomei sempre a atitude de ler os autores da moda depois do seu pico de unanimidade, só então lhe enxergamos os caboucos para além da momentânea alucinação colectiva. Poucos sobrevivem.

14 Set 2017

Fábula de um marciano em Macau

04/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem chegasse de Marte, de talhe e olhos verdes, assim como eu, e passeasse distraído pelas ruas de Macau não deixaria de notar a verdadeira obsessão que os humanos têm pelos relógios.

Há mais lojas de relógios do que Madrid tem toureiros.

Será terra de filósofos, interrogar-se-ia o marciano da melena verde (como a minha). Em Portugal, rezam os canhenhos também era assim no século XVIII. Casa que não tivesse na sala cinco relógios de pêndulo e dois de cuco não valia um caracol.

Disso soube o corsário francês Du Bocage, irmã de uma poetisa francesa que o Voltaire elogiara, e que se apoderou dum navio holandês que levava no porão seis toneladas de relógios e rumou imediatamente a Lisboa, no farejo de vender a mercadoria.

Rapaz pragmático, enamorou-se de uma rapariga de Alfama, e depois de outra, e de outra, enquanto ia enchendo a cidade de tique-taques.

Deste modo se amodorrou por Lisboa o antigo pirata francês e nela fez uma filha – a mãe do poeta Bocage.

É inútil procurar rasto de Bocage por Macau, embora, após ter desertado da marinha, tivesse o “carão moreno” aqui desembarcado, antes de mão amiga o salvar de novas dissipações, “deportando-o” para Lisboa, para alegria dos salões que nesse tempo andavam à míngua de rimas.

Mas coloco uma hipótese que me animará o resto da semana. Bocage chega a Bocage na penúria (como eu) mas com uma carga de que nunca se separava por afecto: o relógio que fora do seu avô e que a mãe, no leito de morte, lhe entregara à sua mão pequenina.

Por duas vezes ainda dormiu na Gruta de Camões, embalado pelo mavioso tique-taque, enquanto reflectia, Que tipo de devaneio cabe aos relógios, ou, Onde se localizará o clitóris do tempo, etc.,etc.

Mais nada lhe ocorreu, pois nada mais lhe sobrava e nessa altura não havia ainda os casinos para experimentar a sorte. Na manhã do terceiro dia, faminto e alquebrado, entrou numa venda na cidade e penhorou o relógio do avô, que tinha marchetado em marfim um camaleão cuja língua tocava o baixo ventre de uma Virgem com as faces encarniçadas… pelo assombro.

Só me restam quatro dias para vasculhar, de coração contrito, rasto do relógio de Bocage. Baterei um a um todos os relojoeiros de Macau, mesmo sabendo que ruborizarei ao descrever a volúpia nos olhos da Virgem.

Dado que em Macau é tudo perto, como no Alentejo, estafarei as solas e ficarei verde (como o marciano) a quem finalmente chegou “o cheiro da carne que nos embebeda”.

05/08/17

Gosto, quando aterro numa cidade e passado pouco tempo na minha cabeça fervilha a ervilha dos projectos. É o que me está a acontecer em Macau, onde se me deflagrou o desejo de escrever uma peça sobre as relações entre Pessanha e o seu arqui-inimigo Silva Mendes, um tradutor de Lao Tze que invejava o poeta. O modelo da peça será o conflito entre Mozart e Salieri. Já tenho o actor para o Salieri: o Manuel Mendes – como se diz em Moçambique, um xará do primeiro. Uma comédia que fale da difícil acomodação dos poetas na cidade e brinque com o manto de irreais com que os portugueses se entregaram em todas as colónias à devotada replicação das suas aldeias. Ainda não gizei o enredo, mas creio que o relógio de Bocage será um motivo de disputa, que a cabeleira verde (em jade) do marciano igualmente, e que haverá um travesti que se julga a Lady Macbeth.

06/08/17

Faz-se em Macau o que em Moçambique não se ousa. Manter viva a voz do poeta que sinalizou o acume simbólico da presença portuguesa. Aqui Pessanha revivifica, em Moçambique o ausente, a grande figura genial é ainda um filho bastardo do vento (que como se sabe é fêmea) e do esquecimento. E tem nome, ou antes tem vários: António Quadros, pintor/ João Pedro Grabato Dias, ou Mutimaté Barnabé João, o poeta guerrilheiro que ele inventou.

E foi o bruto poeta, arquitecto, pintor, pedagogo, apicultor, autor de manuais sobre óptica – este único poeta que o Zeca Afonso musicou.

Começou por ganhar um reputado prémio literário que nunca levantou, escreveu uma continuação paródica dos Lusíadas, em as Quibíricas, atribuídas a um frei Joannus Garabatus, suposto confessor do El-rei D. Sebastião (livro que mereceu um prefácio paródico de Jorge de Sena); fez reportagens poéticas sobre as incidências em Moçambique após a independência, ao jeito de uma que Lusa tivesse Ovidio e Virgílio como redactores; escreveu longas odes sobre temas existenciais e sobretudo A Arca (de Noé), uma suposta tradução do sânscrito ptolomaico com versão contida, na qual Grabato só larga o espaldar depois de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese.

Aqui deixamos um excerto de um outro poema:

«Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?/ Estive sempre em viagem. Só agora regresso. / Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca / De entre os linhos, alfazemas, naftalinas /E usa-os no domingo de todos os dias do ano (…)/ Estou catando os cachorros, apanhando limões/ Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca./ Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios/ Com o esticar dos fios da complacência doméstica./ Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha/ Virando de barriga para cima os veludos das crias./ Espero daninho o teu regresso, acocorado no verão/ E, porque cheguei ao verso, estou vivo»

06/08/17

Acordo e sento-me no útero da minha mulher. Serão já saudades de Macau?

7 Set 2017

Trabalho de casa II 

26/08/17

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso que os princípios estéticos taoistas me trazem um tópico que me fascina: o isomorfismo.

Potenciar ressonâncias em sistemas distintos pressupõe a existência de isomorfismos  – uma similitude de estruturas, como nos fractais, entre os diversos seres, níveis de realidade ou sistemas – e ilustra o velho postulado chinês da harmonia universal.

É o que acontece naquela célebre história em que Tzang Tsu e Hui ’Tzu atravessam uma pequena ponte e desatam a discutir sobre como pode Tzang Tsu avaliar se os peixes que nadam e cabriolam na torrente se sentem felizes. Ao que sage responde prontamente: Eu conheço o gozo dos peixes no rio pelo  gozo que eu sinto ao caminhar junto do mesmo rio.

Entretanto, para que se perceba como o potencial estético do isomorfismo não está refém do mimetismo, piquei em Chesterton um exemplo que me delicia:

Um homem que se apega à literalidade das harmonias, que não associa as estrelas senão com os anjos, ou os rebanhos com as flores primaveris, arrisca-se a ser bem frívolo, porque se limita a adoptar um só modo a cada momento; e passado esse momento ele pode esquecer o modo em questão. Mas um homem que se esforça em conciliar os anjos com os cachalotes deve, por seu lado, ter uma visão bastante séria do universo.

Esta formulação afere a seriedade dos processos em muita poesia moderna, tantas vezes tão incompreendida: os anjos e os cachalotes não devem andar de costas voltadas – ainda que tenhamos que fazer as ligações porque elas não nos são dadas.

Em suma, a poesia obriga-nos a sondar novas associações intelectivas que desencadeiam uma multiplicidade de relações nunca entrevistas, numa dinâmica que não se fecha mas se estua.

Ou como diria o Chillida, sobre a arte, mas extrapolando-o para a poesia: trata-se de fazer luz onde estava escuro, o que nos empurra continuamente para fora da lógica do discurso em que nos movíamos, para vermos iluminados âmbitos novos.

Se quiserem, a metáfora que traduz a transversalidade isomórfica é o passe vertical no futebol, que produz uma economia de tempo ao conectar automaticamente vários níveis do campo.

Eis um bom ponto de partida para compreender o que a poesia nos ofereceu desde Baudelaire e para nos aquietar quando constatamos que a posição da arte é quase sempre um desmentido à posição do discurso (- ó Lyotard, estás bom, rapaz?).

É no que creio e só por aqui começo a compreender como anjos e cachalotes rimam.

27/08/29

Provavelmente tudo o que vou dizer na palestra sobre Camilo Pessanha, dia 5, em Macau, seria desmentido pelo que se vazou nesse mítico caderno desaparecido do poeta de que alguns falam com, pasme-se, sete mil páginas.

Confesso que suspeito desta cifra, não lhe encontro grande nexo. Sete mil páginas correspondem a catorze resmas de papel, seria uma árvore maior do que a floresta, e que não se deixaria ver. Provavelmente, na sua aludida letra pequenina, eis a hipótese que me parece plausível, João de Castro Osório viu sete mil linhas e cometeu um erro de simpatia. O que a trinta linhas por páginas daria algo como duzentas e tal páginas, um número mais viável.

Mas preferia ser desmentido (tenho este carácter mole, que não se importa nada de ser desmentido) e que à chegada a Macau me contassem que o tufão da semana transacta removeu umas lajes e se encontrou embrulhado em couro o caderno perdido do Pessanha. Eu acredito em Shangrilá   

29/08/17

Prófugo, solerte, adrede, enteléquia: palavras com as quais não teço qualquer empatia, modo de emprego, sinal de apaziguamento. Já cem vezes as soube, já cem vezes as perdi, não pertencemos à mesma comunidade. Puro mármore, não me entram no sangue.

E mais duas centenas delas, vieram-me agora estas, como se fossem o primeiro sintoma de um Alzheimer a vir. Há palavras de que não nos apropriamos, é caso para dizer, nem mortos. Cada um imagino ter as suas.

Bom, para minimizar, sirvo-me de um dito de Bachelard, «Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se contradizer», que afinal até é o princípio das comédias românticas. Porém, elas não se dão ao trabalho de me contradizer – repelem-me.

Se é assim com as palavras, pressinto que seja totalmente artificial qualquer ideia de comunidade.

Um sentir comum, eis uma afecção a que sou ligeiramente avesso. Pontualmente sim. Mas de forma mais prolongada incomoda-me estar entre pessoas que não desapegam e nunca querem estar sós, no anonimato, ou entre dissonâncias, e que se pelam por  montar discursos muito articulados sobre a necessidade de estar em grupo. Pessoas sempre a subir os estores e que para tudo acham argumento e nunca gaguejam e prosseguem juntas até ao fim, sem nunca se despedirem.

Nunca tive um só grupo de amigos ou um só tipo de amigos.    

Nunca me adaptei a grupos, do mesmo modo que um cardume grande de palavras da minha língua nunca me adoptou.

Ardem-me nos olhos as coisas que não sei nomear, mas uma palavra que mil vezes se relaxa no balde das coisas recalcadas, à qual só volto a encontrar irritantemente por acaso no velcro de uma página, que pretende senão capacitar-me de que nunca deixei de estar só?

Creio que somos um quarto sem ninguém reflectido nos espelhos. Quando alguém aparece na superfície prateada há festa. Mas é como uma batida rítmica, tem intervalos. Querer mobilar o quarto com uma multidão não neutraliza a mudez do espelho. Mesmo que seja um espelho de Veneza.

Pode ser lancinante o sentido comum e raramente uma partilha que é de todos e para todos é justa. E receio que a sociedade da comunicação se esteja a transformar numa sociedade holística, numa daquelas comunidades que se concebem a si mesmo como um todo. Mete medo!

Um dia destes só temos por nós as palavras que não nos gramam. Que elas nunca transijam! Eu por mim abomino-as!

31 Ago 2017

Trabalho de Casa

20/08/2017

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]a-se a banhos. Quando se vive nos trópicos isso deixa de fazer sentido. E então, por alternativa, vai-se a Macau. Será o meu caso. Eis-me (quase) de véspera.

Inquieto por ir a Macau. A Marlene Dietrich já não deambula pelas imediações e dizem que quem viaja leva consigo as suas paisagens como dantes os viajantes costumavam levar consigo os seus penicos  de porcelana. Falta-me o penico. Bom, há as sombras chinesas. Gosto de sombras, sobretudo ao vento.

Ocorre-me um episódio que contou o John Cage. Na sua infância, houve um amigo do pai que, findo o jantar em família, à despedida lhe desarrumou o cabelo, enquanto lhe anunciava, Rapaz, falei com os teus pais e, como no próximo sábado vou à Grécia e não me apetece ir sozinho, levo-te. Mas os gregos detestam quem lá vai e está desinformado, tens uma semana, vê o que podes fazer. Cage correu para a biblioteca do bairro. Devorou o Homero, O Banquete e o Timeu do Platão, leu o Hesiodo e uma História da Grécia. No sábado acordou às cinco da manhã e fez a sua mala. Remoeu uma ode de Píndaro, que havia decorado, para o caso de lhe ser perguntado. Ainda hoje poderia esperar sentado. O amigo do pai não apareceu. Em casa ninguém pronunciou uma sílaba para abordar a banhada, o homem ou a viagem. Sentiu-se ludibriado. Ou pior, devastado. Porque entretanto tinha lido o Homero e nunca mais foi o mesmo.

Isto é que é pedagogia!

Pus-me eu também a ler sobre a estética Taoista. Estou tramado.

Quando o Camilo Pessanha por lá se imiscuía – entre esteiras de ópio e a fala em papel de arroz de uma rapariga com nome de águia – Macau, como todas as províncias, devia ser madrasta, no sentido em que arruinava as liberdades. Há duas formas de arruinar a liberdade. Por coacção da lei e dos costumes, sob o ritmo dos não-ditos, ou quando se constata que executar o nosso livre arbítrio não muda nada, ou muito pouco. Aí, um tipo, como dizia o Pessoa, “liberta-se para dentro.” Foi, cheira-me, o caso de Pessanha.

Libertou-se em primeiro lugar do corvo do tempo. O tempo é um corvo que bebe o nosso sangue e se alimenta das escórias que nos navegam as vísceras. E bica e bica até romper os tecidos. Porém, na China, Pessanha aprenderá que afinal a vida é consumação e retorno. Mudam-se as aparências mas não o miolo de que são feitas. Pelo que podemos candidatar-nos a beber igualmente nas veias do tempo, sugando-lhe o seu extremo vagar.

Aí o tempo liberta-nos, vai incomodar outros.

Não sei se é isso que irei fazer a Macau. Mas não falo cantonês e o meu inglês é a gaguez do hamster que encontrou o urso polar. E gostaria de lá ter ido com menos cabelos brancos e menos apegado à Circe.

Macau, la petite, espera-me.

21/08/2017

Fazendo o trabalhinho de casa para aterrar em Macau com um olhar menos esbugalhado do que é costume vi-me embutido na paisagem que descrevo no soneto:

A gorda ou o combate de estéticas: “Cada pernoca vale o velame de um iate / inflado em carne por ser nela o vento interior /aos tecidos. O tom de pele é mate. /É o namorado quem recheia // com chocolate o montanhoso pico /do sorvete, e, a avaliar p’lo entusiasmo /com que lhe enche de ideogramas/ a baunilha, aprecia. ‘Tico-Tico sardanico… ‘, //mimoseia o aventureiro. Não caberia/esta imperiosa coxa num haiku japonês /escrito por sindico e que, delicado, só sugira… //Ou traria à liça embondeiros, tsunamis, /e a onda de Hokusai, que, pasma, mira/o prenhe refego do Índico? “

22/08/2017

A propósito de chegar aos lugares tarde, recordo outra história. A de Marcel Conche, o grande especialista francês dos pré-socráticos. Julgava-se o erudito aos setentas e muitos aposentado. E então começa a receber cartas de uma jovem de trinta, da Sardenha, a Emily. As cartas eram atordoadoras, de prolixas e belas. Propunha-se a jovem a examinar com ele os subterrâneos vasos comunicantes entre os pré-socráticos, os sufis e os taoistas. E como não queria perder tempo aterrou em Paris.

Foi uma ventania que fez soar todos os carrilhões adormecidos na líbido embalsamada de Marcel. Em dois meses viu-se o filósofo várias vezes nu (salvo seja) e arrastado pela lotaria do pensamento. A sageza foi à viola, tudo o que ele pensava comandar. Num ápice, intempestivamente como havia chegado ela partiu. Deixando o filósofo a nu (salvo seja) com as suas insuficiências. Oh pá, se o objecto do desejo se escapuliu entre os buracos da chuva há que fazer das tripas coração! Foi o que fez o pobre Marcel. A dobrar os oitenta foi aprender chinês e aos oitenta e cinco lançou uma tradução mais comentários ao Tao te King, de Lao Tse. Parece que o livro é notável.

Acho esta história um exemplo. Era esta a coragem que desejava para mim. Mas temo que o meu coração não passe de um fruto, não seja uma tripa.

23/08/2017

Transcrevo: “o confucionismo parte do pressuposto de que o homem é bom. Pelo contrário, no Ocidente, hoje, toda a organização social se baseia no pressuposto de que o homem é mau: homo homini lupus. Uma profecia que se autoconfirma. Quando as relações humanas se estabelecem pensando que o homem é mau, o homem acaba por sê-lo… “. Sou interrompido pela minha filha que há dois dias trauteia em voz alta, sem piedade (ensaia para algum Got Talent) , uma canção dos Abba. Infatigável.

Calma, o homem é bom, não há tensões entre o homem e a sua incógnita.

25 Ago 2017

O regresso de O Rinoceronte

08/08/2017

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ilene. Pisámos pela primeira vez a língua de areia que separa a lagoa do mar. Elas foram em expedição, à cata de tartarugas. Eu fiquei em decúbito dorsal sobre uma duna a reler O Inumano de Lyotard. Nas minhas costas o remanso da lagoa, às vistas o fragor do mar. E anoto: “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa (…) Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida no ‘interior’. Perde-se o tempo em busca do tempo perdido. A anamnese é o antípoda, o outro, da aceleração e da abreviação. “

Chegados da falésia que ladeia esta fimbria, alguns gorjeios aveludam o ríspido grasnido das gaivotas. Eu interrogo-me se a interioridade não será apenas a actualização duma anterioridade desmembrada. A maré enche, rebenta com ímpeto as suas ondas na rocha. Uma criança foge da água aos berros, tem um calcanhar castigado pela queimadura de um tentáculo de garrafa-azul. Leio, “Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é ao que devemos chamar pensar”. Estou certo de que tenham sentido estas minhas garatujas? Não. O sol estrela-se nas minhas costas. Persigo a disjunção, o pensar sem corpo enquanto elas perseguirão as tartarugas. Achá-lo-ei, achá-las-ão elas? A indeterminação é a pauta – embora lhes caiba (a elas) a maior propensão. Nesta latitude é mais plausível tropeçar – se em  tartarugas ou avistar-se baleias do que eu achar vaga na gávea que permite enxergar o pensamento sem corpo.

A um palmo de mim uma pequeníssima, quase invisível, aranha, suspende-se de um fio preso onde? Lamento não ter trazido a máquina para fotografar o inefável. Ao meu lado o Vítor, deitado de papo para o ar, lê o 4321 do Paul Auster, um senhor tijolo, e comenta, Este livro além de excelente exercita os músculos.

Pensamento com corpo.

10/08/2017

É impossível não sorrir quando leio no Magazine desta semana:

A selecção nacional de xadrez qualificou-se para o mundial da modalidade, a ter lugar na Índia, no próximo mês de Dezembro, fruto da conquista do “africano” da modalidade, recentemente realizado em Moçambique, que contou com a participação de dois países do continente africano (…) A organização contava com mais participantes mas por motivos financeiros e burocráticos, à última hora, os restantes desistiram da prova.

O certame foi designado Africano Zona 4.3/ Sub-16, por equipas.

Este mega evento é a primeira vez que é organizado em Moçambique e contou com juízes internacionais provenientes da Zâmbia e os restantes são de Moçambique. Com a ausência de um número considerável de países, o certame resumiu-se a dois países nomeadamente, Moçambique e Suazilândia. Foram divididos em quatro equipas, equipa A,B,C e D. A equipa “B” foi a grande vencedora da prova. Tendo a Suazilândia ficado em último lugar…

Parabéns Moçambique.

Isto faz-me lembrar o exemplo que costumo dar na primeira aula quando quero frisar o fosso que é preciso ultrapassar para dar o salto para o desenvolvimento. E então aí informo que o jornal que mais vende em Moçambique é o matutino Notícias, o único que chega a todo o país e que, para uma população de 23 milhões, vende 20 000, recordando em contraste que em 1890 os principais diários de Paris, Londres e Nova Iorque vendiam entre 90 000 a 100 000 exemplares.

Há muitos mundos no mundo, repetia a minha mãe.

11/08/2017

Pascal morreu aos trinta e nove anos… e já era, no seu tempo, uma idade avançada. Alexandre Magno e Catulo morreram aos trinta e três anos, Mozart aos trinta e seis, Chopin aos trinta e nove, Spinoza aos quarenta e cinco, Santo Tomás aos quarenta e nove, Shakespeare e Fichte aos cinquenta e dois, Descartes aos cinquenta e quatro, e Hegel com a avançadíssima idade de sessenta e um. Também o Bolano se finou aos quarenta e nove.

Face a estes dados só nos resta reconhecer que somos de uma preguiça incomensurável e que há ossos que não se liquefazem no efémero.

11/08/2017

Folheando cadernos adentro pesco um episódio caricato que se passou com o Ionesco.

O velho gnomo recebeu o telefonema de um encenador de Nova Iorque que além das palmadinhas nas costas lhe comprou os direitos para encenar O Rinoceronte, uma peça onde todas as pessoas de uma aldeia se metamorfoseiam em grandes mamíferos. A peça na altura foi lida como uma metáfora sobre a alienação ou sobre a indiferença. As interpretações variavam. E o Ionesco lá pagou um tintinho ao Cioran e a outros compinchas.

Passado dois meses recebe um novo telefonema do americano, que estava encabulado. Desembuche homem, incentivou o romeno. O nova-iorquino lá esclareceu que tivera de contratar um “negro” para reescrever a transição do segundo para o terceiro actos. Mau Maria, de que é que você fala? E o encenador confessou que fora obrigado a introduzir um telefonema em que Berenger (o protagonista) tenta em vão telefonar ao seu maior amigo, antes de concluir, Bom, eu tentei avisá-lo várias vezes que ia a casa dele, mas como não me atendeu o telefone…

Resumindo, o que deixou o Ionesco siderado, para o americano era normal que um corno de rinoceronte irrompesse da testa das personagens e que toda a aldeia se bestializasse, isso fazia parte da lógica poética, o que era impossível de acontecer era que um amigo fosse a casa de outro sem o avisar previamente. Convenção social, afinal, que derrotava  o absurdo da peça.

Seja a alienação seja a indiferença, qualquer uma das duas chaves tornam O Rinoceronte actualíssimo.

17 Ago 2017

Adonis, um santo

06/08/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Iémen, à beira de uma casa de campo, o realizador com quem viajava teve a ingenuidade de tirar fotografias a uma menina de três anos que sentada num degrau dava à perninha e sorria.

Só que a coitada tinha uma sainha pelo joelho. Ao terceiro clic assomou de dentro uma avó endemoinhada que nos repele aos gritos, secundada por um pai de kalachnikov nas costas e que imediatamente incitou a mãe a espancar a criança à nossa frente. A dita havia mostrado as pernas aos estrangeiros.

Foi um “espectáculo” que conduiu e acabámos por pagar caro a nossa retirada – mitigação traduzida em dólares porque a moral (helás!)  negoceia-se sempre.

Toda a minha atracção pelos páramos dos sufis, pelo Ibn Arabi, pelo Rumi, etc., vacilou naquele instante e fui vasculhar no fascinante Islam, l’autre visage, de Eva de Vitray-Meyerovitch, a raíz daquela violência. Não fui esclarecido.

Ē-me explicada agora a causa das coisas no abrasivo Violence et Islam (Seuil, Dec. de 2015), um livro de entrevistas de Adonis (1930), o poeta sírio, no qual este, com a cumplicidade do psicanalista franco-marroquino Houria Abdelouahed, desmantela o carácter ferino do islão, demonstrando não apenas a sua violência genética como a sua falência. Citando os textos dos Hadiths, do Corão, dos Sutras, e “saturando-nos” com a sua autoridade de um homem de dentro… Adonis zurze quase envergonhadamente por ver a “sua” civilização de quinze séculos definhar na pulsão degenerativa do Daesh – um caso, diz, de arterioesclerose religiosa.

Neste livro não encontramos um ajuste de contas mas um homem que ama as “fontes vivas” da cultura de onde emergiu – e que lhe alimentou dezenas de livros – mas que ama igualmente a verdade e que desgostoso, começando por fazer uma análise da malograda Primavera Árabe, diagnostica um final triste para a cultura que sempre almejou dignificar:

«O homem que se pensa mais vigoroso do que a morte – porque se imagina a piquenicar agradavelmente no paraíso – pratica a barbárie sem medo ou sentimento de culpabilidade. Ele simplesmente está separado da natureza e da cultura. Vejo no Daesh o fim do Islão. Ē um seu prolongamento, certo; sendo igualmente o seu fim. Actualmente, sobre o plano intelectual o Islão não tem nada a dizer. Nem élan, nem visão para mudar o mundo, nem pensamento, nem arte, nem ciência. Esta repetição é o próprio signo do fim. (…) O Daesh não oferece uma nova leitura do Islão ou a construção de uma nova cultura ou de uma nova civilização. Antes é o encerramento, a ignorância, o ódio do saber, o ódio do humano e da liberdade. E é um fim humilhante!»

Percebe-se porque sendo Adonis um dos iniludíveis poetas mundiais da actualidade e um consecutivo (desde há década e meia) candidato ao Nobel (invariavelmente, dos mais falados), a distinção lhe tem escapado.

Fosse eu uma voz decisiva na deliberação e votaria contra pela razão mais simples: quero-o vivo e não exposto a uma fatwa – o que automaticamente se seguiria à publicidade sobre a sua obra.

Este livro – tocado pela inusitada coragem dos santos que pairam com a sua liberdade acima do medo – deixa sem vértebras o corpo institucional da religião e dos poderes islâmicos (evidentemente que, como um homem de bem, e não como um tolo iconoclasta, Adonis não confunde a fé dos seus membros com o anquilosamento estrutural da religião).

Citemos a mais inocente das passagens:

«O Islão matou a poesia. Este assassinato, com efeito, é igualmente o da subjectividade, representa o detrimento do indivíduo e da sua experiência de vida em proveito da crença comum, a da Oumma (a comunidade). O Islão rejeitou que a poesia fosse um conhecimento e uma demanda da verdade. Ele baniu-a e condenou-a. Ora, a poesia perde todo o sentido se não for exactamente uma busca da verdade. Posso mesmo dizer que a poesia é uma desmontagem e um desmantelamento da religião, tanto na sua crença como no seu conhecimento. Ademais, é a poesia que diz a verdade. (…) Do ponto de vista poético, a religião é um duplo niilismo: dado que é uma destruição da beleza da existência sobre a terra, querendo-a substituir por um enchimento infinito de lendas em torno do paraíso. A poesia tem a vantagem de afrontar directamente a divindade sem se transformar numa outra religião. Ela rechaça a ideologia. Como a mitologia, antes questiona e abre e desdobra horizontes infinitos para a busca.»

Olé!

Repita-se: este não é o livro de um ressabiado mas apenas o de um homem que à obediência preferiu a inquirição e que não receia ferir-se no acto de abordar a verdade. Ē como um sudário limpo que sonhasse que o seu corpo corrupto se metamorfoseasse numa cesta de fruta.

E o melhor de tudo é que neste livro quem sai mais dignificado é o feminino e cada uma das mulheres, sequer alguma vez reduzidas à abstracção de um género. Como pai de cinco filhas, agradeço-lhe.

Sim, mestre Ibn Arabi: «todo o lugar que não aceita o feminino é estéril».

08/08/2017

Subimos da Macaneta (praia) à cidade mais próxima (a dez quilómetros), Marracuene, a trinta km de Maputo, para depositarmos na filial local do nosso Banco a renda da casa.

Estivémos quarenta minutos na fila. E chegados ao balcão sentencia a intrépida funcionária, Não temos fotocopiadora, cada cliente tem de trazer de fora as fotocópias da sua identificação… (o que deu mais meia hora em apalpação de um território peculiar, que vive ao retardador). Ainda que seja o próprio que se apresenta, com todos os seus documentos, numa filial do Banco onde tem a sua conta.

Ē indubitável o delírio kafkiano nos países à deriva.

Bom, para as minhas gatas também sou um fabuloso primeiro-ministro!

10 Ago 2017

O planeta dos macacos

26/07/2017

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus amigos de esquerda são – como eu antes de ter mudado para o sul e como diriam as minhas filhas – “muito fofinhos”, mas têm as bússolas avariadas. O combate contra os Trump deste mundo e os nefastos desiquilíbrios que o rasto do neo-liberalismo nutriu só ganharão em serem subsidiários de uma causa mais estrutural e de uma legitimidade acrescida.

Não basta ter boas-intenções, urge um esforço para distribuirmos um pouco mais, globalmente, em vez de nos confinarmos na defesa dos nossos privilégios.

Para que se entenda ao que aludo lembro o modo como um dirigente do período mais aceso do samorismo definia a “disciplina” nos sermões que dava aos seus subordinados.

Contava o dirigente, deliciado: quando os japoneses invadiram a China, o Exército Vermelho e o de Chang Kai-chek, fizeram um pacto tendo em vista combaterem o inimigo comum. O Exército Vermelho enviava contingentes para se juntarem ao exército nacionalista e Chang Kai- chek nunca desdenhava a oportunidade para os chacinar.

Embora sabendo disso o exército revolucionário nunca deixou de enviar novos soldados para a matança porque considerava a luta contra os japoneses um imperativo nacional. E os seus soldados, sabendo igualmente a sorte que os destinava, entregavam-se à traição dos seus compatriotas, por disciplina. Era este o espírito  elogiado pelo dirigente moçambicano, disposto a trocar a bagatela de muitas vidas pela grande causa. Claro que se esquecia de acrescentar que como grande dirigente ele estaria sempre fora da lista dos disciplinados. Pormenores.

Merda para a disciplina.

Muito disciplinadamente a esquerda repete slogans, princípios e reivindicações como se a natureza dos desafios fosse imemorial e unicamente diagnosticada como abalos ou avanços económicos. É a que nos convém à nossa esfera de consumidores e por isso a nossa disciplina vê – se condicionada pela leitura dos “nossos” problemas.

E então esquecemos feridas inaparentes e invisibilidades essenciais, porque ocultas pela distância e a nossa tolerância face ao sofrimento alheio.

O essencial, por exemplo, prende-se antes com o que se denomina neotenia humana. Um conceito que não se desconhece mas de que ninguém tira as devidas consequências.

Explica-o Gilbert Durand: “(…) o cérebro humano vem ao mundo imaturo e incompleto. Enquanto um jovem chimpanzé termina o seu crescimento cerebral nos doze meses que se seguem ao nascimento, são precisos seis anos no mínimo, e depois ainda dez a doze anos, para que o cérebro humano se desenvolva. Dito de outro modo, não há desenvolvimento do cérebro sem ‘educação ‘ cultural. “

Por educação cultural entenda-se aqui sensibilidade para o problema e condições de possibilidade  para a sua elucidação, do mesmo modo que os problemas de género só são resolúveis a partir de uma educação de base que discirna costumes e natureza, até que a anomalia se torne percepcionada.

Considero um escândalo que ninguém brame contra as desigualdades que a desatenção à neotenia gera. Que se omita haver dezenas de nações – de todas as latitudes, raças e regimes políticos – que não oferecem as menores condições para que o grosso das suas crianças possa desenvolver plenamente o seu crescimento cerebral. Que no miolo de países ricos, como os States, haja bolsas de pobreza com efeitos afins.

Em Moçambique chama-se à criança subnutrida e de olhar mais vago que a varejeira em linha recta: marasmada. Está marasmada. A criança marasmada não aprende mais do que um  cogumelo no frigorífico, tem o seu futuro hipotecado. Acrescente-se à subnutrição os traumas de guerra. Aí o marasmamento constela pelo negativo, vira cratera lunar.

Devia acrescentar-se à carta dos direitos humanos o direito das crianças ao pleno desenvolvimento cerebral. País que não oferecesse condições para tal perderia momentaneamente o seu direito à soberania e a ONU – sob uma legislação precisa que  coarctasse na base qualquer tentação dirigista nomearia um governo de técnicos nacionais que, num período de transição, devolvesse a essa comunidade o desenvolvimento técnico, social e humano que lhes garantisse a autonomia futura. País rico que tivesse ainda crianças nessas condições ficava interdito de produzir armas.

Era evidentemente uma investida que colocaria de fora ideologias e fronteiras étnicas e culturais. O único aferidor válido para determinar se um povo tem direito à perpetuação da sua soberania seria o de verificar se nele se poderia cumprir a neotenia.

Creio mesmo que se tal fosse consignado na Carta dos Direitos Humanos as nações em falta reagiriam para colmatar essa pecha e por uma vez se afastariam da exaurivel cobiça com que intestinamente se esquecem do bem comum para se digladiarem pelos pequenos poderes – sob a ameaça de se verem arredados dos seus privilégios.

Eis uma daquelas causas ao lado da qual noventa por cento das demais são modas e bordados. Urge redefinir totalmente a cartografia política. Anulem-se os conceitos de raça e as falácias da identidade, substituindo-os por esta nova pedra angular: todas as crianças de todos os lugares do planeta têm de ter as mesmas oportunidades para o seu desenvolvimento psico-genético… e nem culturas, ideologias ou religiões seriam chamadas ao caso.

Evidencia-se aqui uma forma simples e irrenunciável  de “organizar o pessimismo “(Pierre Naville ) a que se tem remetido o pensamento crítico.

Até aí nunca sairemos do Planeta dos Macacos, creio que nenhuma outra fábula é tão justa.

O verdadeiro e mais insidioso colonialismo é este, interno às nações que irresponsavelmente andam à deriva, e é transversal.

Claro que dos meus amigos da direita não espero nada.

3 Ago 2017

Mondrian e outros vícios

22/07/2017

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] mais do que certinho, por um sorriso já se travaram batalhas. O sorriso de Helena de Troia, por exemplo, devia ser de estalo. E eu tive de bater-me ao sorriso da minha mulher contra um espanhol de má raça. Coube-me agora a sorte de em três semanas em Lisboa ter encontrado três mulheres com um sorriso coruscante, por quem se iluminariam batalhas.

Azar meu que seja falso que tenhamos todos as nossas idades ao mesmo tempo. E que me sinta um coral vivo, colorido por dentro, enrugado por fora. E chega de lamúrias.

23/07/2017

Domingo, uma hora na fila, cativo da máquina de bilhetes para Cascais, para depois viajar de pé, no meio de uma chinfrineira pouco atraente, como se tivesse despertado em Babel.

Os custos de uma Lisboa aturadamente cosmopolita. Adivinho que daqui a duas gerações brotará uma meia-dúzia de poetas bilingues, trilingues, sendo o português um resíduo esquinado pelos ventos da história.

E prevejo que o número de videirinhos subirá em flecha. Sempre gostei de histórias de videirinhos e admiro-lhes a manha – suponho, por ser prato que nunca confeccionei, “pateta em aberto” de bolso roto e sem agenda secreta. Mas vão proliferar os videirinhos, verdadeiros canivetes-suiços da patranha. Na literatura idem e etc.

Ainda ontem, num bar, logo de entrada, me jurava um tipo:

“O que acontece comigo e me diferencia é que não tenho vícios!”

E eu vejo como o corpo o desmente, como cresceu sem parar, por puro vício; como lhe caiu o cabelo sem parar, por embriaguez genética; como a sua linguagem gestual está num perpétuo ponto-cruz, pelo vício de esgrimir argumentos sem parar até só ouvir o eco da sua voz. Vejo um homem à míngua de tímpanos, incapaz de aceitar o seu silêncio, emaranhado no grude da inteligência – a prazo só lhe resta mentir-se até convictamente acreditar no que a mentira bolça. Com talento, mas ao modo de um cardume num aquário, refém de si mesmo, sem exterior.

E eu que não me lembrei de Luis Buñuel nem me enfrasquei em dois gins!

Chego a casa e abro um António Ramos Rosa que nunca lera, de prosas e diálogos. E o poeta, para falar da sua extrema fragilidade, começa assim: “Sempre falaram alto. Muito alto. Demasiado alto. Todos exemplares e eufónicos, erectos no seu convencimento, na segurança de si, no excesso de personalidade e de expressão,”

Parece um retrato do outro, o homenzinho impoluto. É deste jaez – incontinente, insuperável.

Prefiro os sujos, os contraditórios, os que sabem que a si mesmo mentem e por isso perseguem envergonhadamente e falhos a bainha da verdade; os noctívagos que amam a luz; os que têm sede do mal para a diluírem no seu fígado, no afã de não se afastarem do lema de Camus que é o veio de uma ética: «sofrer, não te dá direitos!»; prefiro um gago à rasca a um sofista eloquente; preferirei sempre quem foda a quem se gaba de foder.

Talvez porque como Pessoa e tantos outros a quem amo mergulho na submersa nascente do sujo. Pior: há tanta gente digna que se encharcou em vícios que é inadmissível alguém se arrogar ao desplante de produzir sentenças sobre o menor dos vícios.

24/07/2017

Mantive sempre com Mondrian um trato difícil. Em sonhos espancava-o e chamava-lhe bandalho, e voltava a dar-lhe no focinho, agora com cubos e rectângulos e quadriláteros e losangos. Eu, que nem sou viciado na violência – há porém visões ascéticas que me cansam, sobretudo as que se esquecem de que a vida é um funil ao contrário, em centrifugação; que a vida, expansiva, não admite mandamentos.

Então descobri-lhe as flores, nos antípodas da sua pintura abstracta. A sensualidade, os matizes de uma cor que procura o seu tecido ou a sua carne, a fulgente precaridade da sua dimensão corpórea, com caules sempre à beira de soçobrarem, pétalas na agonia de caírem, pedúnculos num fio, e uma pincelada láctea, às vezes hesitante, mas prenhe de um lirismo tangencial ao humano e que dá, afinal, outra densidade aos futuros ganhos expressivos da sua abstracção. Desde então, deixei de o espancar nos meus sonhos, temos tido até excelentes conversas sobre os relojoeiros de Samarcanda.

Um dia destes conto-vos os meus sonhos com a Ava Gardner. Sou o seu melhor amante de sempre – o Sinatra. onde ficou! Porque, geometrias, só as que se despenteiam ao vento.

25/07/2017

Não digam a ninguém, mas estou a construir uma Arca. Como a de Noé. Para financiar a operação apoiámo-nos nos emolumentos da cultura que me represou e que agora guarnecem as provisões da Arca.

Leiloámos as ligas e mais lingerie da última amante de Lacan a pala do olho de John Ford, e, recursivamente, o braço recuperado de Cendrars, as tesouras de unhas de Deleuze, o fígado restaurado de Malcolm Lowry, o pezinho em diamante de Moravia, o mistral de Joris Ivens, a Anne Karenine do Pierrot le Fou, a neve sobre a alameda de coqueiros, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde o Al Berto espatifava os triciclos, o Casanova de Sollers, cinco rentéis de vinho de palma, as máscaras do mapiko, um pote com os pulsos das palavras de Guimarães Rosa e o lugar de onde a minha infância olhava a camisa-de-onze-varas que nos despia os fetiches: o Cabo Espichel.

E para quem acredite em Deus, leiloaremos por fim, a radiografia do pirilampo.

Falta-nos discutir o regime musical, pouco transigente

Impolutos não arrependidos é que nunca levaremos para a Arca.

27 Jul 2017

Ter galo e ser galo

18/07/2016

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez escrevi um sketch de teatro que contava o drama de um assaltante de bancos que amargou sete anos na cadeia sem ter dito onde havia escondido o bolo do assalto e que quando sai finalmente para a sua suprema recompensa dá conta de que houve na semana anterior uma alteração das células e que com a conversão perderá milhões.

Este tipo de situação – “ter galo”, chama-se na gíria – é-me comum. Vou dar um exemplo.

A semana passada fui a um congresso. Designava-se assim: “Cartógrafo de memórias: a Poética de João Paulo Borges Coelho”. Em Moçambique há um deserto no que toca a textos para teatro e à dramaturgia. Decidi então levar ao congresso não um trabalho de académico, mas de um prático, e intentar explicar como se poderia operacionalizar a tradução de um romance de Borges Coelho em peça de teatro. Enfim, só esquematicamente, porque não apresentei a peça mas uma sequencia sinóptica que inclusive só pode servir como ponto de partida pois o teatro é sempre um work in progresso.

Cheguei a Lisboa e estive três dias fechado a imaginar a coisa e a escrever a comunicação. No dia, fui até o primeiro a chegar ao Anfiteatro III, na Universidade de Letras, e enquanto esperávamos tive uma deliciosa conversa com a Ana Paula Tavares sobre o meu emérito bisavô, o explorador de África novecentista Henrique Dias de Carvalho, que lhe serviu como sujeito de tese.

E depois demos início aos trabalhos. Eu era o primeiro a falar, coloco o texto à frente dos meus olhos e espero que o moderador da mesa faça de lebre. Tiro da partida. E à primeira sílaba engancha-me, por causa do ar condicionado, uma irritação na garganta que me faz tossir, tossir sem remissão. Um verdadeiro nó de crude. Nos primeiros dez minutos (tinha direito a 20 m) tossi e fiquei áfono e só consegui ler a primeira página da comunicação. Cavalgo depois o texto, desenfreadamente, enquanto a moderadora da mesa me ia mostrando pequenos alertas, primeiro o cartão amarelo (FALTAM CINCO MINUTOS), depois o vermelho, vários (TERMINE A SUA COMUNICAÇÃO; POR FAVOR), que atrapalharam a menor hipótese de fluência e distraíram a recepção de algo que já estava a ser transmitido com ruído. Foi um verdadeiro acto não-comunicacional. Enfim, a moderadora fez o seu papel, eu tentei agonicamente fazer o meu, mas no ar condicionado havia um um diabo sentado.

Eis o que é ter galo! Veja o meu texto aqui: https://revistacaliban.net/teatralizar-as-m%C3%A1scaras-eab0401ef35b.

Mas desta vez o galo não é só meu. É uma vergonha haver um escritor do calibre de Borges Coelho (muito resolutamente um dos melhores no espaço da língua portuguesa) que é contemplado com um congresso internacional – com gente vinha de Moçambique, Brasil e Estados Unidos –, e não haver espaço nos jornais para uma notícia, não se ter deslocado um único jornalista para cobrir e divulgar o acontecimento.

Pelo contrário, temos páginas duplas dedicadas ao regresso de A Guerra dos Tronos e outras tantas que bordam sobre o falecimento de George Romero, o crânio que institucionalizou em sub-género os filmes sobre zombies.

Faz-me lembrar que uma vez no décimo segundo ano, na disciplina de Português duma filha minha, a professora pediu que eles escrevessem sobre um livro e autor à escolha e a minha filha escolheu um romance do Carlos de Oliveira, o que levou à perplexidade a professora porque não sabia quem era.

As prioridades mediáticas estão todas trocadas e assim de lixo em lixo vamos entristecendo.

Em Macau talvez não, que o escritor moçambicano vai deslocar-se até aí para a semana para, em companhia de Helder Macedo e de Carlos Morais José, oferecerem com certeza uma sessão magnífica a quem se atrever acompanhar tais ventanias mentais.

 

19/07/2017

Lisboa está mesmo transfigurada por causa do turismo. “Já houvera dizer”, como dizia o outro mas não há memória descritiva que assimile uma tal enxurrada. Filas intermináveis nas bilheteiras e um afã desfigurador nas tascas e restaurantes são sinais que exasperam.

Aconteceu-me duas vezes, esta semana, sentar-me com um amigo em restaurantes que frequento há vinte anos e ter de sair porque não reservara previamente uma mesa. Tudo muda, mas por que não poderá ser para melhor?

E há claramente um excesso de oferta cultural na cidade. É uma borbulhagem, um ziguezague que não pode obter qualquer inscrição, qualquer anelo para a memória – pois esta funciona como a arquitectura de jardins, só é despertada se a um nicho de árvores se suceder uma clareira. Se só houver uma mancha opaca de árvores estas tornam-se anónimas, anulam-se entre si. Como não entender isto?

Contra esta massa, densa como todos os equívocos, entrei na INCM e tive a inspiração de pedir o II volume da Obra Poética do Vitorino Nemésio (que me tinha sido surripiada por empréstimo). Há 15 anos que não lia o Limite de Idade e Sapateia Açoriana. Não têm uma ruga, o Nemésio continua a ser um dos grandes poetas do Século XX português, só precisa de leitores menos distraídos. Veja-se o início do poema O AFILHADO: « O meu afilhado epiléptico veio ver-me./ Veio verme. / Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?/ Os anelídeos têm os seus anéis elásticos, / Num começo de élan superior, bem soldado,/

A blocos de controlo e direcção,/ Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos/ E fica pobre e triste entre os apáticos.// O meu afilhado epiléptico/ Veio ver-me/ Veio verme, / Veio eclético (…)», e continua, numa liberdade que não acaba e que faria inveja ao Cesariny.

Sempre que adormeço a ler Nemésio, volto pela manhã a ouvir os galos.

Os que são, não aquele que se tem.

20 Jul 2017