O autismo, ano a ano

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 2 de Abril é inevitável que vos fale de autismo. Tendo em conta de que o resto do ano carrego esse peso sem vos aborrecer por aí além, parece-me justo que hoje, apenas hoje, possamos fazer de conta que repartimos a carga.

O meu filho fez 14 anos no ano passado, em Setembro. A infância está a terminar sem que tenhamos uma ideia clara do que podemos esperar que seja a sua adolescência e idade adulta. Na infância deixámos alguns problemas de monta. O Gui levou muito mais tempo que uma criança normal a deixar a fralda, por exemplo, ou a aprender a vestir um casaco ou a pôr o cinto de segurança no carro. A aprendizagem das tarefas quotidianas no autismo é morosa; todos os dias se insiste num pormenor específico: segurar garfo e faca, lavar as mãos depois de ir à casa de banho, calçar os sapatos. Tudo aquilo que nos parece óbvio nada tem de óbvio para um autista, e só convocando doses industriais de determinação e paciência somos capazes de perseverar, numa repetição de Sísifo, até ver surgir pequenos mas fundamentais progressos.

Na infância, infelizmente, ficaram também muitas esperanças. A linguagem, por exemplo. Tenho quase a certeza de que o meu filho nunca falará. Nunca será capaz de me chamar “pai”. Nunca será capaz de dizer “dói-me aqui” – o meu maior medo, confesso. O meu filho comunica contextualmente: se tem sede, vai buscar um copo; com sorte e se conhecer a casa, consegue enchê-lo. Ainda assim, não evito o cuidado decorrente de um estado de alerta contínuo: e se está a beber de um copo sujo? E se por acaso ligou a água quente quando encheu o copo? Nada é óbvio ou garantido quando lidamos com crianças com este tipo de necessidades especiais. Não podemos presumir que um comportamento repetido está consolidado; que algo que correu bem algumas vezes continue a correr bem. Há que estar em alerta mesmo quando nada indica que tal seja necessário. Porque, como com todas as crianças, basta falhar uma vez.

Com 14 anos, o meu filho já exibe um buço tímido. Imagino que daqui a um par de anos tenha de lhe fazer a barba regularmente. Acaso acabe por ter uma barba tão esparsa como a minha, apará-la não será difícil. Difícil será, porventura, gerir as consequências do natural incremento de hormonas masculinas com que podemos contar. Ou não. Nada é óbvio ou linear.

Uma amiga minha que mora em Londres dizia-me, há um par de dias, que o filho dela, com 13 anos, lhe conta como é confusa a puberdade; os papéis sociais, a mudança do corpo e, sobretudo, o desejo sexual. As histórias da adolescência são enternecedoras. Por um lado, fazem-nos automaticamente regressar a um lugar que nos foi frequentemente inóspito com outros olhos, capazes de o apreciar no conforto da distância. Por outra parte, rimo-nos do drama que cada acção ou contexto comportam na adolescência – por mais pequenos que sejam. O filho desta minha amiga está a descobrir que gosta de raparigas, e que gosta de as beijar. E claro, nada no processo da sedução é óbvio. Ao que parece, ser cool, neste início de século, implica ter uma sexualidade indeterminada. As miúdas da escola dele adoptam alcunhas masculinas; os rapazes dizem-se pansexuais. Mesmo que tal não corresponda à verdade. É como se, à natural confusão decorrente do encontro com outro pelo prisma da sexualidade, se acrescentasse um nível suplementar de desordem. Nada é óbvio, nada é linear.

O meu filho não terá esse tipo de problemas. Mas, como em tudo, um problema é só uma face da moeda existencial. Há muitas coisas pelas quais passámos – com mais ou menos dificuldade, com maior ou menor prazer – que lhe estão, à partida, vedadas. O nosso trabalho, enquanto pais, é dar-lhe tanto quanto possível do mundo e manter uma dose de esperança que nem sempre radica numa racionalidade escorreita. Porque nada é óbvio e linear, e porque isso não tem que ser sempre mau.

3 Abr 2018

E depois disto?

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]erminada uma trilogia que me ocupou os últimos cinco anos de vida, é inevitável pensar no que vai acontecer a seguir. No que vou escrever. Um romance é uma longa travessia solitária de resultados imprevisíveis que não enriquece ninguém – salvo raríssimas excepções. É preciso estar apaixonado – ou doido – para querer continuar a fazê-lo. E, ainda assim, o sujeito que escreve tem mais receio de ficar parado do que das longas distâncias pelas quais se mede a produção de um livro.

Neste momento, estou na fase do flirt. Atraem-me algumas ideias, sobretudo as que comportam a possibilidade de perceber um nadinha melhor o mundo depois de trabalhar longamente nelas. Uma dessas ideias tem que ver com as teorias da conspiração que não cessam de granjear adeptos. Enquanto estas não produzem quaisquer consequências de monta, é fácil ignorá-las. No fundo, até parecem ter piada. São uma espécie de excentricidade louvável numa sociedade muitas vezes desinteressante e cinzentona. É aquele tipo que passa duas horas de um jantar de Natal da empresa e explicar-te que, afinal, nunca fomos à lua. “É o embuste do século”, diz, entusiasmado. “Tudo não passou de uma encenação razoavelmente bem urdida para fins políticos. Era a guerra fria, pá, e os americanos tinham de marcar pontos!” A cereja no topo do bolo vem na normalmente na forma de um segredo sussurrado: “sabes quem estava a trabalhar para a NASA na altura? O Stanley Kubrick.” Say no more.

Mas nem sempre as conspirações são inócuas e, a espaços, divertidas. Por vezes remetem para assuntos sérios que podem ter graves consequências no bem-estar e na saúde daqueles que não perfilham as crenças dos conspiradores. A ideia segundo a qual as vacinas são, na verdade, mais prejudiciais do que benéficas é uma delas. Grande parte dessa crença radica num estudo fraudulento de 1998, de um médico entretanto caído em desgraça, que apontava para uma ligação causal entre a administração da vacina tríplice e o autismo. O estudo em questão mereceu o escrutínio amplo da comunidade científica, que foi lesta a apontar-lhe tanto as lacunas como as falsidades. Mas a dúvida, junto da opinião pública, ficou. Como dizia um amigo meu, “experimentem colocar um aviso na porta de um refeitório a anunciar que o sumo de laranja já está próprio para consumo e atentem em quantas pessoas bebem sumo de laranja nesse dia”. A desconfiança – legítima ou não – é uma nódoa muito difícil de limpar.

Portugal está a braços com um surto de sarampo. O sarampo é uma das doenças abrangidas pelo plano de vacinação nacional. Acaso a vacinação tivesse a cobertura desejada, o efeito de protecção desta faria com que os casos de sarampo fosse apenas residuais e episódicos. Mas, além de a cobertura não ser a ideal, por motivos alheios à vontade de todos, existem pessoas que, por motivos alheios à racionalidade, não vacinam os filhos. Desconfiam da bondade da vacina e confiam na imunidade de grupo que a vacinação produz. No fundo, pensam, até não estão a fazer nada de mal: os outros estão vacinados e isso faz com que todos estejamos seguros. Não cuidam de se preocupar com a quantidade de pessoas que podem pensar da mesma forma. Mesmo em doses moderadas, os conspiradores acham-se na posse de uma verdade de teor secreto que os distingue dos restantes, da manada. Esse é, alias, o poder das teorias da conspiração: o de nos fazer sentir especiais e únicos.

Estas brechas de imunização passam muitas vezes despercebidas porque nada resulta delas. E isso convence as pessoas de que podem continuar tranquilamente a ignorar a comunidade médica e aquilo que ela recomenda há décadas. No entanto, quando as fissuras atingem uma determinada dimensão, basta uma faísca para termos um surto de uma epidemia qualquer. Parece que estamos condenados a não aprender nada por via da história. As coisas têm de nos acontecer ou de acontecer no nosso tempo de vida. E isso é assustador.

28 Mar 2018

A fábrica de radicais

[dropcap style=’circle’] H [/dropcap] á regras que nunca passaram por uma fase de redação e de concordância e que, ainda assim, são comummente reconhecidas e implicitamente aceites. Uma delas, e de que damos conta todos os dias e cada vez mais expressivamente, é a que consiste na impossibilidade de ter uma conversa ou discussão minimamente civilizadas no Facebook.

Paradoxalmente, quando o Facebook surgiu fê-lo com a promessa implícita de que seria uma comunidade; um lugar ideal para a troca de ideias, usando a quase omnipresença da internet para encurtar a distância entre pessoas para a medida mínima que medeia o espaço entre os olhos e o ecrã e entre os dedos e o teclado. Formalmente, não se pode dizer que não tenha resultado. Nunca estivemos tão próximos, de um ponto de vista técnico, e os smartphones foram decisivos na consolidação desta ideia de acessibilidade constante.

No que diz respeito ao que o Facebook pode ter acrescentado à qualidade da discussão, muito pouco. Ou melhor, antes pelo contrário. Da esquerda à direita, dos assuntos mais vagos aos mais concretos, o mínimo denominador comum parece ser a radicalidade na qual cada posição é expressa. A conversa deixou de acontecer na zona cinzenta que separa, de modo mais ou menos difuso, uma posição da outra, e que é, por excelência, a zona do consenso. Ou seja, o local onde duas posições antagónicas encontram espaço para negociar o que é necessário e o que é acessório para cada uma delas. No fundo, a posição da política.

No Facebook, que prometia tornar-nos todos agentes políticos com a força potencial das multidões, o que acontece, pelo contrário, é um estranho fenómeno de deturpação da gravidade do debate: duas posições extremadas atraem a maior parte dos interlocutores e, no meio, de onde poderia surgir a superação que algumas conversas profícuas geram, existe apenas vazio ou, no melhor e simultaneamente mais trágico dos casos, três ou quatro moderados a quem aqueles que estão nos extremos chamam traidores. E estranho tempo este no qual a posição moderada ou do bom senso se constituem como as mais radicais possíveis.

Seja o tema o turismo em Lisboa, o conflito israelo-palestiniano ou a canção merecedora de ir à Eurovisão, as posições são quase sempre radicais e imbuídas de uma força que a causa, muitas vezes, ora por ser distante ora por ser aparentemente menor, não parece merecer convocar.

Dir-se-á que o meio não ajuda. Um sujeito atrás de um ecrã tem uma confortável distância de segurança e não precisa de ser moderado na conversa, ao contrário do provavelmente teria de acontecer acaso a conversa acontecesse no mundo real. Ou mesmo que não fosse moderado, saberia que as consequências da radicalidade na esfera física são distintas e obrigam uma avaliação muito mais cuidada do modo como cada um se expressa.

Apesar de aborrecido e, de certo modo, até violar os termos contratuais que assinámos com a Internet (um mundo melhor por via da possibilidade de comunicação praticamente instantânea), se este fenómeno ficasse circunscrito à parte do mundo que é virtual, e mesmo que esta se tornasse cada vez mais a mais frequentada, bastaria ao sujeito ser parcimonioso na frequência das estádias no continente do digital para se manter a salvo desta maré de bílis.

O problema, porém, é que o imenso reservatório de ácido produzido pela interacção das pessoas nas redes sociais tem tendência a não ficar contido no espaço onde foi originado. Pouco a pouco, vai pingando sobre a sociedade e sobre os laços que lhe conferem forma, sobre a política e sobre as suas formas de criar consensos e sobre a própria família.

A promessa da comunicabilidade da escala global e de esta fazer com que nunca mais estejamos sós concretizou-se da forma mais trágica possível: o nazi do Uganda pode agora falar com o nazi do Uruguai; os terroristas mudaram-se para a internet; os racistas passeiam despudoradamente as suas convicções em grupos fechados que lhes fornecem a sensação de legitimação que procuravam.

A internet, no fundo, uniu-nos, é verdade. Mas mais por aquilo que odiamos do que por aquilo que amamos.

20 Mar 2018

Os nossos minúsculos virtuosos

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]esta feita é Feliciano Barreiras Duarte, recém-empossado secretário-geral do PSD. Ao que parece, este terá não somente mentido no currículo – que já se prontificou a rectificar – como terá forjado uma carta que Deolinda Adão, Professora e Directora Executiva do Programa de Estudos Portugueses na Universidade da Califórnia, embora reconheça a sua assinatura, diz nunca ter escrito.

Na missiva, em Português, a Professora Deolinda Adão afirma, em nome da Universidade da Califórnia, Berkeley, que “Feliciano Barreiras Duarte se encontra inscrito na Faculdade como visiting scholar” – um estatuto concedido a professores ou estudantes que visitam a universidade com o propósito de dar aulas, conferências ou investigar em tópicos nos quais o seu trabalho seja de reconhecido mérito. Diz ainda a carta que a mesma Deolinda Adão planeia ser orientadora da tese de doutoramento de Feliciano Barreiras Duarte.

O problema dessa carta é que nem dez porcento é verdade, se quisermos glosar Manoel de Barros. A única coisa que a Professora Deolinda Adão reconhece no documento, aliás, é a assinatura. Tudo o mais parece ter sido forjado. Feliciano Barreiras Duarte confessa-se surpreendido. Reitera a sua incompreensão perante as declarações da Professora Deolinda Adão, afirmando que a carta – que ele próprio produziu enquanto prova – terá mesmo chegado dos Estados Unidos, tendo este sempre confiado na sua autenticidade.

Percebe-se ao longo das declarações que este tem dado à comunicação social, que o seu estatuto de visiting scholar na Universidade de Califórnia nunca passou de uma ideia avançada pelo próprio e por Manuel Pinto de Abreu (também este professor na Lusófona, onde Feliciano igualmente lecciona). Manuel Pinto de Abreu pertence ao PSD, como Feliciano. Surpresas? Nenhuma. A pedra de toque do despudor total surge quando Feliciano Barreiras Duarte afirma ter pensado em ir para Berkeley mas que nunca pôde concretizar o projecto por não lhe ser economicamente viável.

Se atentarmos ao currículo presente no site do parlamento e o compararmos com o aquele que está no DeGóis – um repositório de dados relativos a académicos e investigadores portugueses – notamos algumas diferenças de monta. No currículo que enviou para o parlamento, Feliciano menciona ter um Mestrado em Direito, na vertente de Ciências Jurídicas e Políticas. Naquele que podemos consultar no site do DeGóis, o Mestrado em Direito não existe. O que existe, outrossim, é uma frequência no Mestrado em Sociologia na Universidade de Évora, na variante Poder e Sociedade. Qual destas informações corresponde à verdade? Não sabemos.

Na realidade, o comportamento de Feliciano Barreiras Duarte é tudo menos original. Estamos decerto lembrados de José Sócrates e da sua Licenciatura domingueira, só para dar um exemplo. As Autónomas, Independentes e Lusófonas desta vida parecem ter sido criadas não para disponibilizar, por via privada, cursos nos quais os alunos com médias menos satisfatórias poderiam ver realizadas aspirações académicas e profissionais, mas para dar guarida a políticos que, de outro modo, teriam de se conformar com uma titularidade académica abreviada.

Se pensarmos que estas criaturas – para além de assumirem competências pedagógicas em áreas nas quais a sua formação é tudo menos clara – mostram uma inteligência tão débil que pensam viver numa época anterior ao Google e têm como aspiração governar-nos, é difícil não sentir um arrepio na espinha. E, simultaneamente e como que numa epifania, compreender uno tenore a história recente do rectângulo, transformado simultaneamente em coutada e em chiqueiro.

Feliciano Barreiras Duarte, no fundo apenas um subproduto clássico do pós 25 de Abril, representa aquilo que de mais pernicioso existe na política contemporânea, moldada conceptualmente pela sociedade do espectáculo e do entretenimento: o aparecer tem primazia ontológica sobre o ser e, para quase tudo, como diria o Raposão do Eça, basta ter “a ousadia de afirmar”.

12 Mar 2018

Os sítios entre sítios

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á locais cuja função inerente lhes confere a estranha propriedade de se situarem entre mundos. Os hotéis e os aeroportos são alguns exemplos possíveis desses lugares. Não se destinam a ser permanentemente utilizados ou habitados por quem os frequenta. São pontos de passagem, apeadeiros, horizontes provisórios entre locais de partida e locais de chegada.

Devido à sua natureza transitória, acabam frequentemente por revelar propriedades confessionais. Como o estranho que conhecemos num bar e a quem entregamos a guarda dos segredos que seríamos incapazes de confiar a família e amigos, estes pontos tangenciais tornam-se numa espécie de refúgio onde a vida, deixada à porta, pode ser observada de longe como se fôssemos espectadores desinteressados da sua ocorrência.

Os hotéis são intervalos habitáveis. Nunca se destinando a um uso permanente e desprovidos da familiaridade que até numa casa de férias se obtém passado pouco tempo, a impessoalidade dos quartos de hotel permite criar um enclave entre a vida e aquele que vive semelhante a um instante de silêncio numa cidade ruidosa. A ausência de marcas pessoais, de cheiros e a higienização permanente a que são submetidos os quartos retiram, de algum modo, aquilo que de humano perpassa uma casa. E essa ausência de roupagem humana e da vida a que isso corresponde transforma de facto o modo como olhamos para a nossa própria vida e, de algum modo, cria um espaço especular onde o olhar do sujeito, incapaz de se deter no somatório das coisas anónimas que compõem e pontuam o espaço, acaba por regressar ao ponto de partida e incidir sobre o próprio sujeito.

As estadias prolongadas nestes espaços intersticiais acabam por alterar a coloração da vida. Esta parece menos intensa do que é, menos real. Tal como um sonho, no qual tudo é idêntico à realidade e só se distingue desta última quando se acorda, a vida nos quartos de hotel parece-se em tudo com a vida fora deles. Mas quando o sujeito regressa a casa, o seu millieu devolve-lhe não somente a familiaridade mas também a inteireza da vida. Chegar a casa depois de uma longa estadia num hotel é, de algum modo, acordar. E acordar pode ser um alívio ou uma desilusão. Tudo depende do sonho e da realidade para onde o sujeito regressa.

Amiúde, todos precisamos de um sítio onde possamos deixar os problemas à porta como se deixam guarda-chuvas molhados à entrada de um café. Eles não desaparecem – nem os guarda-chuvas nem os problemas – mas a sua influência diminui consideravelmente e respirar volta a ser possível. Um sítio onde, afastados da azáfama de uma rotina que erroneamente acreditamos ter escolhido e que, na verdade, nos calhou, possamos fechar os olhos sem ser para dormir. Um sítio onde tenhamos um vislumbre de nós mesmos. E, por vezes, os quartos de hotel são esse sítio, esse monastério possível da pós-modernidade.

5 Mar 2018

A última morada

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]u não quis dizer nada, mas achei a cova pequena. Tal como percebemos, a olho, que o espaço entre dois carros não vai ser suficiente para conseguirmos estacionar, a cova, assim que me acerquei dela, pareceu-me estreita para receber o caixão do avô Malaquias. Mas não disse nada. Afinal, tenho a certeza de que não é o primeiro buraco que os coveiros abrem, e não me apetecia de todo encetar conversa sobre um assunto tão melindroso quanto este e poder estar equivocado.

Enquanto o padre dizia as coisas que sói dizer-se nestas ocasiões, eu fazia contas de cabeça. O avô Malaquias tinha à vontade mais de metro e setenta. Um palmo aberto da minha mão tem cerca de vinte centímetros. Tendo em conta de que o caixão não pode ser exactamente do tamanho da criatura que recebe, e dando pelo menos quinze centímetros de desconto para a parte dianteira e para a traseira, cheguei à conclusão que a cova, no mínimo, teria de medir dois metros e dez. Ou, em contas de mão, dez palmos e meio. E por mais que me esforçasse em ver ali dez palmos bem medidos, ficava sempre aquém.

O pouco interesse que poderia ter pelas palavras do padre não sobreviveu a curiosidade que tinha em ver o avô Malaquias, esticadinho e sossegado como nunca o fora em vida, descer para dentro daquela cova sem precisar de flectir os joelhos. As restantes pessoas alheavam-se como podiam: uns compilavam listas de supermercado imaginárias, outros pensavam em como iriam chegar ao final do mês, outros ainda passavam em revista as resoluções de ano novo que haviam sido tão lestamente adoptadas como abandonadas. Ninguém, num funeral, quer estar atento ao que se passa no funeral. A convivência com a morte no outro não é salutar. A não ser por cauterização afectiva decorrente da profissão que se escolheu, a caixa-de-ressonância que é o humano não lida confortavelmente com a presença da morte.

Mal começaram a baixá-lo disse: “não vai caber”. O tio João, normalmente reservado, não se coibiu em corrigir os coveiros: “rapazes, isso vai muito torto”. E ia. Como de facto o caixão era ligeiramente maior do que a cova e não cabia na horizontal, os coveiros (na minha cabeça subitamente tão experientes a abrir buracos como a enchê-los de forma pouco ortodoxa) baixavam a cabeça do avô Malaquias primeiro, fazendo fé de que na diagonal aquele tetris inusitado encontrasse uma solução elegante. O tio João, embora ciente das dificuldades encontradas, estava pouco convencido da bondade da manobra. “Vão dar cabo da cabeça ao homem”, dizia, “pelo menos orientem os pés para baixo”, e os coveiros, ainda assim atentos à civilidade das observações do tio João, lá se esforçaram por inverter a posição do caixão, e o avô Malaquias lá entrou de pés para a cova.

Mesmo assim, e porque a geometria não se compadece do esforço dos homens, o caixão, apesar de inclinado – uma posição que me parecia assaz desconfortável para o tempo que o avô Malaquias ia passar naquele buraco – teimava em não caber totalmente. Uma pequena parte dele ficava de fora, malgrado o esforço dos coveiros em empurrá-lo para baixo. “Não é muito”, dizia um dos presentes; “mas não pode ficar assim”, ripostava outro. “Se cavarem um bocadinho mais no fundo, já não fica com nada de fora”, aconselhava um rapaz, visivelmente orgulhoso pela simplicidade e economia de esforço com as quais pretendia resolver o problema.

Quando voltaram, os coveiros vinham com marretas. À vez, como os trabalhadores dos caminhos-de-ferro enfiando tachas no solo, batiam com as marretas no caixão. “Vão parti-lo”, receava uma velhota. “Eles têm que resolver isto”, confidenciava o meu pai ao meu tio. Aos poucos, a terra cedia e o caixão, às sacudidelas, ia desaparecendo na cova. O tio João, à saída do cemitério, confidenciava-me, visivelmente perturbado: “não devia ter insistido em que o virassem”.

21 Fev 2018

A nossa primavera perpétua

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é suposto fazer frio em Portugal. Nem calor. O nosso clima mediterrânico é, por definição, ameno. No entanto, a maior parte dos estrangeiros que vivem cá dizem que nunca passaram tanto frio – e calor – nos países de onde vieram como cá. E não falo, obviamente, de equatorianos. Falo de alemães, suecos, italianos, franceses. Gente que, a priori, sabe de frio de uma perspectiva que – felizmente – desconhecemos de todo. O segredo desta nossa inusitada capacidade de fazer tremer de frio um islandês advém, quase exclusivamente, da forma como pensamos e contruímos casas.

Edificamos com base numa crença estranha mas amplamente difundida, a de que em Portugal é primavera todo o ano. As casas não têm aquecimento central ou climatização de raiz, a não ser as que apenas 1% da população pode adquirir. A malta remedeia-se com aquecedores a óleo e ventoinhas, muita roupa dentro de casa no Inverno e doses tão prolongadas de praia quanto o subsídio de férias permitir no Verão. Portugal vê-se e vive-se a si próprio num particular daltonismo meteorológico.

Até os estabelecimentos públicos sofrem deste modo peculiar de negação da realidade. Escolas, tribunais e repartições públicas ou não têm climatização de todo ou, tendo-a parcialmente, não dispõem de dinheiro para mantê-la em condições de funcionamento adequadas. No Inverno, a comunicação social entretém-se a filmar a neve nas Penhas Douradas como se esta fosse uma anomalia da natureza. Já quanto aos alunos que levam sacos-cama para as aulas, o país assiste ao fenómeno mais ou menos resignado. Parece-nos normal que as pessoas, no século XXI, passem frio nos espaços públicos. Parece-nos até impossível que seja de outro modo.

O turismo possível que fazemos pela Europa dos países verdadeiramente frios mostra-nos que as coisas não têm necessariamente que ser deste modo. Que as pessoas não têm que pensar no aquecimento ou arrefecimento das suas casas como um luxo incomportável. Que o estado tem de garantir condições básicas de habitabilidade nos espaços onde serve a população que o sustenta. E que isso é especialmente necessário quando se tratam de crianças e idosos, dois grupos especialmente susceptíveis às maleitas que acompanham frio e calor em excesso.

Não raramente, estamos tão ou mais vestidos dentro de portas do que na rua. Tiritamos de frio só de pensar em sair da cama. A nossa roupa de andar por casa consiste em diversas peças compostas por múltiplas camadas de tecidos polares. Quando ligamos um aquecedor sentimos que tal corresponde a implementar uma dieta involuntária, tal o receio que nutrimos das facturas da EDP. Acabamos por nos ver reduzidos ao dilema que consiste em escolher entre tremer de frio ou de fome.

Tendo Portugal convergido de forma notável na direcção da Europa em quase todos os indicadores relevantes, seria mais do que altura indicada para trocar a mentalidade “de que somos um país de clima ameno” por qualquer uma que reflicta com acrescida acuidade as condições meteorológicas reais. Porque a primeira coisa que os turistas e demais residentes temporários estrangeiros verificam, quando cá chegam, é que temos uma percepção de nós próprios tão desadequada como temos do clima. Pensamo-nos menos do que aquilo que de facto somos. E o clima parece-nos ser sempre muito melhor do que aquilo que de facto é.

12 Fev 2018

A grande purga

[dropcap]N[/dropcap]ão disseram muito, à chegada. Mostraram-nos a identificação e perguntaram-nos pela exposição temporária. Com um nó na garganta, porque não os esperávamos e porque da presença deles nunca resultava nada de bom, conduzi-os até à ala onde eram ultimados os preparativos da exposição. “Estejam à vontade”, disse-lhes, “obrigado, estamos sempre”, respondeu um deles.

Os vídeos não lhes mereceram especial atenção. O mais velho, no entanto, deteve-se num quadro. “Confirma-me que isto faz parte da exposição?”, dirigiu-se-me. “Sim”, respondi, “é um dos trabalhos constantes do catálogo. “Bem, já vi o suficiente”, adiantou. “Fechem tudo”. “Como”? Respondi, incrédulo. “Esta exposição foi devidamente autorizada pelo Ministério da Arte e da Moral, como consta do documento afixado à entrada do museu. Enviámos fotografias de todas as peças que pretendemos exibir e nenhuma foi alvo de objecção, tenho a certeza de que”. “Fechem tudo”, interrompeu-me, “fechem tudo agora mesmo”.

Aparentemente, havia sido uma notícia numa revista de celebridades que espoletara o encerramento coercivo da exposição. Um rapaz alegava que certa vez tinha ficado sozinho com o artista e que este comentara o seu aspecto físico. O artista, claro está, era o autor das peças que nos preparávamos expor. Uma notícia destas podia passar perfeitamente despercebida ou propagar-se pelas redes sociais como lume em pasto seco. É fácil perceber o que acontecera. Replicada vezes sem conta ao longo do dia, a notícia obrigou o Ministério a tomar uma posição que aplacasse a fúria justiceira que ameaçava repercutir-se negativamente na imagem do governo.

Fecharam a exposição, queimaram as peças apreendidas e encerraram-nos o museu durante seis longas semanas, nas quais tivemos que fazer vários pedidos de desculpa públicos e demonstrar “o mais sério e sincero arrependimento respectivo aos factos que motivaram o castigo aplicado”. Demos diversas entrevistas através das quais aferimos a avaliação que as redes sociais faziam da nossa sinceridade. Se desconfiassem da honestidade da nossa contrição, poderiam nunca mais autorizar a reabertura do museu. Felizmente, o nosso advogado era muito competente na gestão de processos públicos desta natureza. Para além da preparação que nos ministrou antes de cada entrevista, ainda nos deu uns comprimidos – de que nunca ouvira falar – que nos fazia parecer imbuídos de pena como se tivéssemos acabado de enterrar o nosso melhor amigo. “A molécula da tristeza”, segredava-nos, enquanto tomávamos os comprimidos.

Felizmente, a pena foi a menor possível. O museu, apesar das perdas consideráveis que uma publicidade desta natureza acarreta, sobreviveu. O mesmo não se pode dizer do autor das peças que originaram o castigo a que fomos sujeitos. Depois de semanas de bullying público – queimaram-lhe o carro, envenenaram-lhe o cão, grafitaram-lhe as paredes – o homem acorreu à polícia para pedir ajuda. Após consultarem o processo, disseram-lhe que nada podiam fazer: o Ministério da Arte e da Moral tinha ascendente hierárquico sobre o Ministério do Interior, que tutelava a polícia.

Um dia, ao sair do supermercado, deu conta de que o filho chorava compulsivamente. “Eles disseram-me que te iam esfolar vivo à minha frente, pai”. Irado, virou-se para trás e gritou indiscriminadamente para as pessoas que se acotovelavam junto das caixas registadoras. Alguém terá testemunhado ter ouvido um insulto de género. Era dos poucos casos do processo penal que dispensavam provas ou testemunhos. Foi condenado a dois anos de prisão mas não chegou a cumpri-los. Suicidou-se passados seis meses e várias surras recebidas.

5 Fev 2018

Até chá!

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] desgraça acontece de formas muito distintas. Por vezes é apenas uma modificação subtil, aparentemente benéfica; um hábito abandonado ou adquirido, uma resolução de ano novo que sobrevive aos primeiros dias de Janeiro. Normalmente, é qualquer coisa que promete muito por muito pouco. O sujeito nem se esforça por escrutinar tamanha bondade. A única coisa de que se lamenta é de não ter sabido daquilo antes. É tão bom que parece nem fazer sombra mas, como em tudo, o diabo está nos detalhes. E é assim com o chá e as agruras que o acompanham.

Nunca é tarde para se cair no vício. Nem a maturidade na sua forma mais entediante garante qualquer tipo de resistência aos hábitos malsãos. É uma regra elementar da vida, ao modo epicurista, que deveria estar gravada em baixo-relevo algures no cerebelo. Ainda assim, e mesmo sabendo de gingeirinha as múltiplas formas de cair na vertical, ver passar homens crescidos com termos de chá a caminho de um jantar de grupo aflige-me cardiacamente como poucas coisas o conseguem.

Homens de barba pré-hipsteriana, homens com biografias tão distintas como intensas, homens que já viram pessoas sucumbir das mais diversas fomes só para não arregimentar as fileiras da maioria ruidosa. Homens que dão aulas, que escrevem livros, que acolhem filhos, sobrinhos e netos com uma inesperada docilidade, homens que traçam tangentes entre si na noite de Lisboa, movendo-se como grandes predadores imunes à maior parte dos ataques. Homens destes, que antes secavam adegas só pelo respiro, a beber chá.

Começam normalmente porque amealharam uns quilos a mais para fazer face ao Inverno. Mas, regressando dos ginásios para casa com passagem pela tasca, dão conta de ser cada vez mais difícil deixar na elíptica ou nos ferros as cervejas que acumulam fora de horas. E a vaidade, esse subestimado aguilhão demoníaco, fala mais alto. Redefinem o percurso para casa para evitar as tascas e, com tanta ansiedade como orgulho, entram apressados em casa, fechando a porta com as costas, como se o mundo quisesse – ou pudesse – resgatá-los.

À medida que o tempo passa e os quilos teimam em não desaparecer da agulha da balança, vão incorporando hábitos cada vez mais radicais. As costeletas à salsicheiro dão lugar a saladas de tomate cherry e mozarela, as natas do bacalhau passam a ser de soja e tudo quanto é doce é como se tivesse inscrito na embalagem um pentagrama. Depois, em desespero de causa e por indicação de um amigo, compram umas infusões de cidreira ou lúcia-lima para acompanhar o hambúrguer de Portobello que debicam, enjoadinhos, ao jantar. Nos primeiros tempos deste Alcatraz alimentar só se ouve “passa-me o sal”. Mas como a fúria adelgaçante não poupa nada, até o sal deixa de ter sabor. É quando se resignam.

Na segunda fase desta condição, o sujeito já aceitou a morte do cozido à portuguesa como realidade inelutável. Investe toda a sua energia em pesquisar, Google afora, as zonas de produção de chá mais afamadas. Entretém-se como pode, naturalmente. Encomenda bugigangas que recebe com sorriso infantil: um filtro de água feito de um material futurista ou arqueológico; uma chaleira com controlo de temperatura ao décimo de grau; um coador numa réplica de marfim muito aceitável. Lenta mas inexoravelmente, o sujeito vai-se transformando num especialista e as suas conversas, dantes espraiadas de uma invulgar elasticidade mental, afunilam-se até serem monotemáticas. O sujeito só fala do chá.

Este hábito mortal que gatinha sob pele de cordeiro transforma radicalmente o sujeito. A pele, dantes marcada pela vida como o papel que recebe a agulha do sismógrafo, aparece lavada pela lixivia da saúde: branca, lisa e desprovida de história. A cara, adornada com um sorriso tão imóvel como omnipresente, exprime um estranho vigor histriónico, como se diversas criaturas atoleimadas, dentro do sujeito, concorressem entre si pela cadeira de comando. É um espectáculo a que não se assiste sem um misto de pena e de repulsa.

Falem aos vossos amigos e familiares sobre o chá e as desgraças que dele advêm. Ainda estamos a tempo de, pessoa a pessoa, reclamar de novo o mundo a cores.

 

29 Jan 2018

As muitas caras da morte

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma das grandes lutas do homem moderno – talvez a maior – consiste em ter tentado fundamentar, a partir do século XIX até os dias de hoje, a colocação do “eu” no centro da hierarquia de sentido do humano, e a de construir, a partir dessa atomização, uma ética que simultaneamente justifique e seja justificada pelo radical mínimo a que chamamos “eu”. O sujeito, deposto do fardo e do cajado das múltiplas instâncias que ordenavam a existência – os deuses, a natureza, o destino – encontra-se sozinho perante as forças que ameaçam degluti-lo e arrotá-lo antes que ele consiga anotar a matrícula daquilo que o esmagou, e defende-se como pode, com a tecnologia, com a ciência e os seus múltiplos remendos, com o reiki, os chakras, a meditação progressiva, a psicanálise, a hipnose regressiva, a homeopatia e todo e qualquer par de botas que, não sendo de todo científico, tome da ciência as palavras pelas quais evoca o que pretende ser sem o sendo: quântico, comprovado, evidente, estatístico, atómico. A canga que arrasta consigo para se justificar é semelhante à colecção avulsa de citações com que uma tese anémica se escuda da crítica. É assim que veste a moderna banha da cobra.

Afastando o sobrenatural, o homem acabou por afastar igualmente a morte. Pelas múltiplas representações artísticas que temos do acto de morrer, até pelo menos à idade média, percebemos claramente que a morte era, para todos os efeitos, um acontecimento de tal ordem de grandeza que o seu sentido transcendia claramente o homem que a recebia. Por isso a morte era pública e, como diz Walter Benjamin no ensaio “The Storyteler”, sobre Leskov, esta revestia-se da maior importância porque justificava o sujeito, não somente nos aspectos do conhecimento ou da sabedoria que legava, mas, e sobretudo, no sentido em que encerrava, à vista de todos, uma ordem de sentido que começara no nascimento e que terminava no leito onde o moribundo, rodeado da sua comunidade, dizia as suas últimas palavras enquanto que, dentro de si, desfilava a sequência de imagens a que ele chamaria “a minha vida”. A morte é a autoridade pela qual estas últimas palavras, ainda que proferidas pelo mais indigentes dos mendigos, se revestiam de uma clareza e poder impassíveis de serem contestados. A morte, como continua Benjamin no ensaio citado, é a fonte de autoridade do homem que morre e de todas as histórias que o homem conta (não é difícil conceber que contaríamos histórias distintas – ou que não as contaríamos de todo – se fôssemos imortais).

Não contente com o afastamento da morte, o homem moderno afasta tudo quanto possa estar remotamente ligado a ela: a velhice, a doença, a exaustão física e mental. Os velhos, os doentes e aqueles que de alguma forma foram tocados pela deformidade do corpo ou da mente são atirados para as valas comuns a que se dão nomes cada vez mais higiénicos e despidos de sentido: casas de repouso, cuidados continuados, lares de terceira idade (este cada vez mais em desuso porque ainda quer dizer qualquer coisa). Assim se constrói na esfera pública a imagem sanitizada do homem e mulher ideais: jovens, impecavelmente cuidados, saudáveis até à náusea, tão tonificados como ditam os Tom Fords de plantão, confiantes e empreendedores e conscientes do seu papel atómico nesta grande estrutura molecular a que se dá o nome de civilização e que enche a boca de Aristóteles e Shakespeare para, na verdade, olhar para o passado com bafio e nojo indisfarçáveis, convencidos de que os Tinders, Facebooks e Ubers do momento são os faróis pelos quais o mundo redundará numa gigantesca agremiação de escuteiros felizes.

22 Jan 2018

Regressar não é um conceito preciso

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus pais emigraram para França para escapar da pobreza e insalubridade que se viva em Portugal. Tirando algumas famílias de privilegiados do sistema, os portugueses não alimentavam quaisquer sonhos de mobilidade social. Aqueles que, às escondidas, conspiravam na esperança de pelo menos abalar as fundações do putrefacto estado de coisas que se abatia sobre a maior parte das pessoas eram sistematicamente delatados, perseguidos e aprisionados. Ou fugiam. Portugal era um país que primava pela ausência de meios-termos: ou se era pobre ou se era rico; ou se tinha tudo ou não se tinha nada.

Não tendo nada, o meu pai achou que não tinha igualmente nada a perder quando decidiu dar o salto para França. Sem meios e com pouquíssimo dinheiro, o meu pai e um amigo caminharam até a fronteira entre Espanha e França e, chegando a um ribeiro que tinham de atravessar a nado em pleno Inverno, o meu pai fê-lo e o amigo dele, alegando não saber nadar, arrepiou caminho e voltou para Portugal: antes morrer pobre e velho do que doente e jovem num país estranho, terá pensado.

A minha mãe, já grávida, foi ter com ele e eu nasci em França, em Outubro de 1974. A democracia, neonato de saúde precária, tentava sobreviver às convulsões de um recém-criado regime que, oscilando violentamente da direita para à esquerda, mostrava ainda desconhecer a virtude do meio-termo. O meu pai acompanhava a revolução à distância, pelos jornais e pela rádio, consciente de que o regresso a Portugal dependia de uma luta para a qual ele não podia contribuir senão com o desejo de que uma ditadura não se substituísse a outra.

A minha infância em França nada teve de feliz. Apesar dos excelentes cuidados de saúde a que tínhamos acesso, eu estava sempre doente: asma, amigdalites e uma meningite que não me matou porque os médicos franceses e algum deus piedoso não o permitiram. Não tinha amigos: para os franceses, eu era demasiado português e, para os portugueses, demasiado francês. Assim como Portugal, eu tinha dificuldade em achar a justa medida das coisas. Quando aos dez anos, os meus pais me perguntaram se queria ficar em França ou regressar a Portugal, a resposta pareceu-me óbvia: mal por mal, em Portugal sempre havia sol e alguma família.

No meu primeiro ano em Portugal, dei conta de que regressar não era um conceito preciso. Descobri um país com um atraso de 40 anos em geral e de pelo menos um século no que dizia respeito a centros de saúde e hospitais. Um país que, malgrado a minha vontade de lhe pertencer, me tratava como um corpo estranho. Na escola, a minha alcunha era “o francês”, apesar de ter sido sempre muito bom aluno a português. Os meus ténis, uns adidas e uns le coq sportif comprados em saldo num hipermercado em França, despertavam a inveja dos meus colegas. Imaginava com frequência o dia em que voltaria descalço para casa e as justificações que seria capaz de prover. Não tinha violência em mim para combater quem quer que fosse. Quando me desafiavam para andar a porrada, esforçava-me para os cansar tanto quanto possível. Tornei-me proficiente na arte da esquiva.

O tempo e o esquecimento que dele decorre ajudaram-me. Deixei de ser “o francês” e, como fui dos primeiros miúdos a ter um computador, as crianças da minha idade começaram a convidar-me para coisas. Aos poucos, deixei de ser um corpo estranho para passar a ser apenas mais um nerd sem óculos. Até aviar-me deixou de ser divertido. Tinha finalmente deixado de ser estranho para toda a gente. Tinha finalmente chegado ao meio-termo. E tu, Portugal?

 

15 Jan 2018

Enfartamento natalício

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] natal, na minha família, envelhece mal. Quando era criança e durante o tempo que estive em França, os únicos natais felizes eram aqueles em que a minha família (irmãs, cunhados e sobrinhos) chegava de Portugal para passar o Natal connosco. Os meus avós moravam no interior algarvio e pouco ou nada viajavam dentro de Portugal, quanto mais para fora. A vida do campo era duríssima e o tempo, embora desabitado do stress contemporâneo, não abundava. Os natais com avozinhos a contar histórias e crianças aos pulos na excitação das prendas, só os conheço da televisão.

Com o tempo e como é natural, as pessoas vão morrendo e as famílias reorganizam-se em redor dos que nascem. No caso da minha família, os nascimentos são pouquíssimos. Temos tendência para a monocultura (rapazes) e para fechar a loja à primeira venda (um filho por casal). Como os casamentos e demais ajuntamentos não têm durado, a presença de cônjuges é pouco frequente. Ainda assim, o meu cunhado insiste em cozinhar como se fôssemos uma corporação de bombeiros a sair do ramadão. São semanas a comer sobras.

A medida que os anos passam, a coisa torna-se cada vez mais deprimente. As pessoas chegam cansadas ou enfadadas à mesa – e, às vezes, ambas – e olham para o repasto com o fastio de quem se está a ver a comer a mesma coisa durante um mês. No tempo em que dávamos guarida a dois ou três convidados com famílias ainda mais depauperadas do que a nossa, esforçávamo-nos para disfarçar o enfado. Agora, o natal é só um jantar em jeito de exagero.

A mãe queixa-se de não ter conseguido acabar de ver o telejornal, o sobrinho e cunhado disputam o comando da televisão da cozinha, a mana diz que detesta canja de cabeça de javali e come, enjoadinha, uma gamba “com demasiado sal”. Quem não bebe, nessa noite concede uma excepção. Quem bebe, bebe mais e mais depressa. O objectivo é a obnubilação rápida da consciência. Com a parca educação restante, dá-se os parabéns ao cozinheiro: “muito bom, acho que é o teu melhor borrego de sempre”. A coisa decorre com a alegria de um funeral até ao estertor final, sinalizado normalmente pelo início de um dos Sozinho em casa. As pessoas continuam a disputa pelo comando no sofá e o meu cunhado, infelicíssimo, fica a contemplar a quantidade de comida na mesa como se esta se houvesse transformado em dinheiro em chamas.

Como estamos todos progressivamente mais pobres, não há prendas. Nem simbólicas. Tendo em conta de que não temos convidados, já não nos damos ao trabalho de fingir que comprámos qualquer coisa a pensar em alguém. Tapamo-nos com umas mantas à frente da televisão e deixamos o cérebro esbracejar sem grande vontade no lago de vinho em que o afogámos. Na televisão, sucedem-se os “filmes de família” – a expressão pela qual cunharam o amontoado de lixo que Hollywood tem vindo a produzir com abastança e regularidade.

Daqui a vinte anos, com mais mortes e o mesmo número nulo de nascimentos, talvez possamos deixar de fazer de conta que no natal temos de fazer de conta e passamos, sem vergonhas, a dizer não à ceia natalícia. Seremos poucos, é certo, mais isso é somente uma razão mais para dizer não. Não à ceia, não à comemoração daquela coisa nenhuma, não a qualquer tipo de promoção da quadra. Como defesa, poderemos sempre dizer que as épocas festivas deveriam servir para nos sentirmos melhores e, por pouco tempo que fosse, especiais. Se nem para isso servem, de que servem então?

8 Jan 2018

Escondam o Courbet, eles vêm aí

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]gora são os quadros. Não aqueles capazes de causar controvérsia e que, de modo mais ou menos feliz, fazem luz sobre as contradições da contemporaneidade. São obras perfeitamente integradas no cânone da história da arte ocidental e, por vezes, tão discretas e inofensivas que sobre elas recai unicamente a atenção dos especialistas. À partida, não há muito para dizer sobre Egon Schiele que já não tenha sido dito. E, ainda assim, consegue ser notícia, por razões que lhe são alheias e que configuram um quadro de puritanismo revisitado a que Schiele teria provavelmente respondido com muito mais ousadia do que aquela que a censura lhe descobre agora.

Reformulemos: não é de censura em sentido canónico de que se trata; não é um programa de estado ou sancionado por uma autoridade central com o intuito mais ou menos explícito de moldar a sociedade em função de um determinado programa político. É uma coisa muito mais anónima, volátil e caprichosa, disseminada em grande parte pelas redes sociais, posta em prática por activistas de sofá e ratificado por uma ou mais minorias que reclamam dores próprias ou alheias como pretexto e fundamento para a tomada de uma posição moral. E tudo se resume a isto: o mundo ideal é um lugar de onde toda a possibilidade de afectação negativa deve ser eliminada. O disparate desta tese pode ser visto de dois ângulos distintos. Em primeiro lugar, se pensarmos num mundo como uma imensa sala de estar cuja climatização depende das definições escolhidas para o ar condicionado, é fácil percebermos que será não somente impossível regular todos os parâmetros de forma a satisfazer toda a gente como a constante afinação milimétrica exige da sociedade a imposição de uma vigilância neurótica. Por outra parte, a tese referida parte do pressuposto ingenuamente epicurista segundo o qual tudo quanto é desagradável ou inquietante é moralmente condenável e pernicioso. Uma das características mais interessantes de uma obra de arte, a de ser desafiante e perturbadora, deixa de ser uma vantagem para a compreensão deste ou de outro tempo e desta ou de outras culturas para passar a ser uma obsolescência agressora que reduz a obra de arte a um insulto sem mérito. Não é difícil imaginar no que se transformariam os museus acaso a curadoria das exposições fosse entregue aos activistas da higiene.

Esta posição moral, de que os subscritores garantem o carácter justo, é tudo menos justa e tudo menos moral. É uma posição acrítica, sem qualquer fundamento teórico e absolutamente infantil. Rege-se pelo princípio da máxima subjectividade em duplo sentido: qualquer pessoa que se sinta afectada negativamente por qualquer coisa pode e deve exigir que a fonte desse desconforto seja eliminada ou escondida. Não visa uma ideia de uma sociedade mais equilibrada e madura – pois tal exige esforço e sacrifício – nem propõe qualquer alternativa que não seja a abolição – pois tal exige pensamento. Propõe banir coisas e, a reboque de tudo quanto as sociedades civilizadas lograram obter em termos de ganhos sociais – a abolição da escravatura, o sufrágio universal, o reconhecimento constitucional dos direitos de todos os cidadãos – o seu fim último, mesmo que o desconheça, é o de deitar fora o bebé com a água do banho. Veste progresso mas tresanda a retrocesso. Diz-se da liberdade mas age como o mais empedernido fascista.

Por isso quando surgem notícias como a censura dos cartazes publicitários da exposição de Egon Schiele pela empresa de transportes públicos londrinos ou o mais recente caso de petição asinina – relativa a um quadro de Balthus (Thérèse Révant) – exigindo a remoção de uma obra constante da exposição permanente do MET, apetece perguntar para que serviram guerras mundiais e cadafalsos quando o monstro, na verdade, aprendeu a caminhar incólume mesmo no meio de nós.

11 Dez 2017

Do místico onde não há misticismo nenhum

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ovembro de 2017. Raleigh, Califórnia. Cerca de quinhentas pessoas participam na Conferência da Terra Plana, um evento no qual os oradores convidados esgrimem os argumentos pelos quais defendem que todas as provas de que a terra é redonda são inconclusivas, erróneas ou fabricadas. Em 2017, num mundo em que as viagens interplanetárias – pelo menos dentro do sistema solar – são uma realidade com quase 50 anos (Neil Armstrong pisa o solo lunar no dia 21 de Julho de 1969).

Juntar quinhentas pessoas interessadas num debate acerca de uma evidência científica tão esmagadoramente aceite é obra. A mais banal das missões espaciais para colocar em órbita uma mão-cheia de satélites é capaz de providenciar imagens esclarecedoras da curvatura da terra. Segundo os proponentes da teoria da terra plana, todas estas supostas evidências são fabricadas. Há uma conspiração internacional que envolve os muitos milhares de pessoas responsáveis de algum modo pela produção e divulgação das imagens captadas em órbita. O governo mente. A comunicação social mente. O teu vizinho que é astrónomo amador é um tolo ou um vendido. A verdade comummente aceite é o resultado de um processo de manufactura por parte do governo e das instituições que dele dependem. Como diria Kierkegaard, “a multidão é mentira”.

Na realidade, a teoria da terra plana é o sintoma de uma doença contemporânea muito mais vasta. No programa da Conferência de Raleigh constam igualmente assuntos como a conspiração do 11 de Setembro, os famigerados chemtrails que, em Portugal, contaram com assinaturas suficientes para merecer debate em assembleia da república e a evolução das espécies – ou, mais correctamente, a ausência dela. Ter-se-ão igualmente discutido os malefícios das vacinas, o grande embuste científico que é toda a mecânica quântica e a altura do muro de gelo que circunda a terra e que impede a queda dos barcos que navegam os nossos oceanos.

A teoria da terra plana é apenas uma das múltiplas teorias da conspiração que grassam mundo fora. É um sintoma de uma sociedade que, tendo atingido um patamar de conquistas tecnológicas e científicas assinalável, se encontra na incómoda posição de não conseguir responder às perguntas relativas ao porquê de estar nesta terra – plana ou não. É uma espécie de neblina existencial que tudo recobre e tudo põe em dúvida. Malgrado o conforto e a longevidade adquiridos ao longo de séculos de duríssimas batalhas, falta qualquer coisa, qualquer coisa absolutamente essencial para a definição do sentido disto a que chamamos vida, qualquer coisa indefinida e inominável. Não só perdemos algo como perdemos a memória desse algo.

O conceito de fake news assenta fundamentalmente neste equívoco espiritual, nesta síndrome de Matrix que contamina toda a versão de realidade socialmente aceite. Não conseguindo encontrar a metade em falta que ilumina a vida e lhe daria sentido, o cínico contemporâneo aposta todas a fichas na hipótese de estar a ser enganado por uma elite mais ou menos invisível que controla as pessoas que os cidadãos elegeram. O propósito desta manipulação não é claro, mas radica na noção de controlo: alguém nos empurrou bucho abaixo a noção de terra redonda com o motivo claro de nos domesticar. A verdade está por trás ou ao lado: por trás ou ao lado dos meios de comunicação social, por trás ou ao lado dos discursos políticos, por trás ou ao lado dos manuais escolares. Embora não sejam evidentes os ganhos decorrentes de uma fraude planetária acerca da forma da terra, duas coisas parecem ser claras para os profissionais da conspiração: os governos e as elites estão viciados na mentira, e só isso seria razão suficiente para o monumental embuste e, em segundo lugar, a posse da verdade equivale à posse do poder, pelo que a mentira generalizada se converte numa coisa muito mais perniciosa: o roubo massificado de poder aos cidadãos por parte daqueles que os deveriam proteger.

A verdade vai perdendo o seu valor como critério. A eleição de Trump é um sintoma claro deste cinismo contemporâneo e desinformado. Se tudo quanto é veiculado é mentira e se a verdade está por trás ou ao lado daquilo que pretendem fazer passar por verdade, a figura do demagogo populista que despreza o sistema e as suas regras torna-se irresistível. Aposto as minhas fichas que a maior parte dos participantes do patusco comício da terra plana ou é apoiante de Trump ou acha que Trump ainda fica aquém do que seria necessário para dissipar este neblina colectiva. Este grande abandono da racionalidade em prol de uma atitude patológica de desconfiança paranóide é um prenúncio de algo terrível que está por vir.

 

4 Dez 2017

A importância das ideias

[dropcap style≠’circle’]“T[/dropcap]enho uma ideia bestial para um romance!”Tenho a certeza de que todos os escritores já ouviram isso. Normalmente surge em conversa com uma criatura bem-intencionada mas incapaz de aquilatar o valor de uma ideia relativamente à sua concretização literária. “Isto daria um livro óptimo!”. Talvez. Talvez não. O que não faltam são exemplos de ideias geniais arrastadas pelo pântano de uma trama incipiente até ao suspiro da vergonha alheia. E, por outra parte, os exemplos contrários também abundam: Romeu e Julieta, por exemplo, o franchise de boy meets girl mais aclamado de sempre.

O problema está na percepção do valor intrínseco da ideia. O capitalismo aplicado à tecnologia decorrente da ciência produziu um entendimento muito específico do que é uma ideia. Uma ideia deixou de ser uma possibilidade passível de materialização técnica mais ou menos feliz para ser o valor absoluto na cadeia de concretização das coisas. Mesmo que a realidade não corresponda a este enunciado romântico da importância superlativa da ideia, a verdade é que passámos a encará-la deste modo.

Quando pensamos no Google, na Apple ou no Facebook, pensamos naqueles que perseguiram um sonho visionário sobre o qual alicerçaram fortunas incomensuráveis e uma influência de nível planetário. O problema é o da memória selectiva: por cada multinacional ciclópica, há milhões de projectos que definharam do trajecto do estirador para o público. Por cada Google, houve um Hotbot, um AOL Search ou um Altavista; por cada Facebook, um Hi5 ou um Myspace. E estes exemplos dizem respeito a empresas com milhões de utilizadores que, por motivos mais ou menos óbvios, foram perdendo popularidade e clientes até se tornarem uma nota de rodapé na história da internet. Os projectos que não passaram sequer de animadas conversas com amigos e de apaixonados sales pitches perante investidores são, na verdade, a pilha de cadáveres sobre a qual repousam as pouquíssimas coroas de glória da indústria.

A verdadeira dificuldade não parece ser a de pensar num “computador pessoal”, num “smartphone” ou numa “rede sem fios”, só para citar exemplos mais óbvios. A verdadeira dificuldade, não obstante o peso decisivo da ideia que preside ao percurso que cada projecto percorre, é precisamente o espaço entre o lampejo de génio e as carteiras dos clientes, e esse espaço está minado das mais diversas dificuldades, desde as puramente técnicas às financeiras, desde as estruturais às que dependem da moda em vigor. Esse espaço é também um espaço invisível ao público e um limbo do qual a maior parte dos vencedores não se orgulham.

Portanto, quando alguém me conta uma ideia genial para um romance, o que apetece imediatamente pedir à criatura em questão é um caderno de encargos e um mapa ou, mais comedidamente, um algoritmo; qualquer coisa que faça a ponte entre as resoluções de ano novo e deixar de fumar. Qualquer coisa que não seja a andorinha perdida a caminho da primavera que nunca mais chega. Qualquer coisa grande em todas as medidas. Ou dizer, pura e simplesmente, faz tu.

20 Nov 2017

La grande bouffe

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma a uma, as estrelas de Hollywood têm vindo a cair dos pedestais olímpicos para onde foram catapultadas pela legião de fãs que o cinema de entretenimento granjeia. Correcção: os homens de Hollywood. O escândalo em redor da figura tentacular de Harvey Weinstein, um dos produtores mais bem-sucedidos da indústria, abriu as portas do sótão para onde a elite de Hollywood estava acostumada a atirar os escândalos que pudessem colocar em risco as fundações e a sobrevivência da indústria.

As denúncias têm vindo a crescer de forma exponencial, e até os tipos mais consensualmente simpáticos como, por exemplo, o comediante Louis CK, não lograram escapar à enxurrada de denúncias que dia após dia fazem as primeiras páginas dos jornais. As perguntas que toda a gente faz, mesmo que não as verbalize, são: Quando é que isto vai parar? Quem é o próximo.

Na verdade, a exposição deste comportamento aparentemente transversal às diversas áreas da indústria de entretenimento peca apenas por tardio. Inúmeras denúncias morreram na praia das redacções dos jornais, muito graças à proximidade cúmplice entre media e actores, realizadores e restantes elementos da engrenagem de Hollywood e também devido à acção concertada de uma espécie de mordaça colectiva, composta pelos mais diversos elementos que, por meio de chantagem ou de ameaça pura e simples, reduziam às denúncias a rumores maledicentes e infundados e deturpavam a lógica da acusação, transformando a vítima numa espécie de predador movido pela inveja e pela sede de fama.

A direita americana não perde pitada da novela. Críticos das instituições culturais em geral e do mundo das celebridades em particular, os media mais próximos da actual administração americana saltaram entusiasticamente para a caravana do linchamento mediático. É claro que nada disto tem que ver com justiça. Nem a acusação sobre a qual recai este esquema de ponzi dos múltiplos abusos sexuais cometidos ao longo do ano, a de Harvey Weinstein, acontece motivada por um sentimento de justiça. Harvey Weinstein teve o seu tempo, um tempo em que o seu toque de midas fazia a carreira de um filme da bilheteira aos óscares. À medida que a sua influência foi diminuindo, ficou mais vulnerável, numa lógica análoga ao funcionamento de um gangue: um líder enfraquecido ou que mostra fraqueza não sobrevive muito tempo.

Os votantes de Trump, sobretudo, desprezam profundamente esta elite que, para eles, nunca trabalhou um dia de trabalho honesto, esta gente que tem uma opinião acerca de tudo: o aquecimento global, os direitos das minorias, a imigração, o racismo, o controlo de armas. E, na grande maioria dos casos, uma opinião radicalmente contrária à dos blue-collar workers que se sentem, por um lado, portadores dos ideias que presidiram à génese dos EUA, desde a segunda emenda ao american dream, e por outra parte, ameaçados pelas minorias que, pouco a pouco, estão destinadas a tornar-se a maioria, fechando dessa forma o ciclo histórico do povo europeu, branco e cristão que colonizou o norte da américa e fez dos Estados Unidos o país de todas as possibilidades. Não é por acaso que o slogan de Trump é Make America Great Again e que quase todos os comentários nos media online mais próximos da actual presidência terminam com o hashtag #MAGA.

Veremos como Hollywood consegue reagir a esta epidemia de acusações. Para já, vai tentando uns tímidos e muito cautelosos passos de marketing positivo, escolhendo cuidadosamente figuras que sejam impolutas e que possam reavivar a imagem de Hollywood enquanto território de sonhos. Mas não se prevê que num futuro próximo as mulheres abusadas durante tantos anos por estas criaturas inebriadas de poder decidam calar-se. Que sobrará deste fogo?

13 Nov 2017

As histórias dos outros

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] maior parte das vezes que um escritor se cruza com alguém interessante ou com alguém com histórias interessantes – o que nem sempre coincide – entra em registo vampírico. Se tem boa memória narrativa, finca pé e só arreda do local quando tem a certeza de que a fonte secou. Se não, finge idas à casa de banho para tomar notas em guardanapos que acumula nos bolsos das calças. A curiosidade de um escritor é inesgotável. Nas palavras de Virginia Woolf: “Os romancistas diferem das restantes pessoas porque não deixam de estar interessados no carácter humano mesmo quando aprenderam o suficiente sobre ele para efeitos práticos” (Mr Bennet and Mrs Brown).

Há pouco tempo foi-me contada uma história deveras suculenta. Ao que parece, numa cidade da Roménia, os muitos cães adoptados e posteriormente abandonados começaram a reproduzir-se e a organizar-se em matilhas. Os habitantes da cidade, cada vez mais amedrontados, passaram a evitar certas ruas onde os cães eram mais numerosos. Poder-se-ia ter alcançado um estranho equilíbrio de zonas rosa e zonas azuis na topografia da cidade mas os cães, esfomeados, eram cada vez mais afoitos na sua busca por comida e cada vez mais selvagens na obtenção desta. Em pouco tempo, a cidade ficou em estado de sítio e as pessoas entrincheiraram-se nas suas casas, saindo unicamente para procurar víveres onde ainda pudessem subsistir alguns, aterrorizadas com os latidos distantes que podiam tornar-se próximos muito rapidamente.

Os ratos e os gatos tornaram-se as primeiras baixas de guerra. Quando estes desapareceram, por terem sido comidos ou por, sabiamente, terem abandonado a cidade, os cães viraram-se para a única refeição doravante disponível: as pessoas. Os relatos macabros multiplicaram-se. Ao telefone, vizinhos, amigos e familiares contavam como tinham assistido ao desmembramento do padeiro que fora incapaz de deixar para trás as duas sacas de farinha que levava às costas. Nem tudo seria certamente verdade. Algumas coisas corresponderiam ao diz que disse comum em situações de violência e medo. Mas os gritos, os latidos e os vestígios de sangue na rua eram mais do que suficientes para que os habitantes tomassem a decisão de se meterem nos seus carros e fugirem.

Cerca de uma semana depois da debandada geral, o exército chegou à cidade tomada. Não terão sido meigos: o sangue resultante da chacina ainda recobre parte da cidade e os muros das casas estão crivados de balas. Mas o problema foi resolvido e as pessoas ocuparam novamente as suas casas e reouveram os seus pertences e as suas vidas. Talvez das vidas fique para sempre algo em falta, mas esse balancete só poderá ser feito no futuro.

Ao ouvir esta história, não pude evitar a torrente de imagens que me assaltaram: uma cidade tomada pelos cães; o surgimento de um inusitado sistema político canino; os cães organizando-se como a resistência francesa aquando da ocupação nazi; um memorial ao cão anónimo; um jogo de computador, num futuro não muito distante: Counter Strike: The Wrath of the Romanian Pitbull; filmes, novelas gráficas, canecas e t-shirts, um musical na Broadway e um capítulo inteiro do próximo livro do Žižek. As possibilidades pareciam-me infinitas.

Ela interrompeu-me dizendo: isto parece-te muito engraçado porque não aconteceu contigo. Verdade, anuí. Mas pensei para mim próprio: mesmo que tivesse acontecido comigo, acho que não conseguiria evitar escrever sobre isso. O carácter humano, dizia a outra.

 

6 Nov 2017

É isto um festival

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]rande parte da vida de um escritor é feita de outras coisas que não a escrita. Trabalhar é uma delas, e é uma realidade com a qual os escritores têm de conviver a maior parte da vida, porque aquilo que recebem pela sua actividade literária é, na maior parte das vezes, insuficiente até para levar a mais frugal das vidas em regime de campismo selvagem.

Outra das coisas que de certo modo constituem a carcaça daquilo que pode ser chamado “a carreira do escritor” são os festivais literários. Estes multiplicaram-se consideravelmente nos últimos dez anos. Neste momento, há dezenas de festivais por ano, muitos deles organizados sob a alçada da autarquia da cidade em que se inserem, o que acaba por revelar – perspectiva optimista – o reconhecimento por parte da classe dirigente do interesse crescente da população pelo mundo da cultura, em geral, e para a constelação livro, em particular. Ou – perspectiva pessimista – tudo não passa de uma moda contagiosa que a qualquer momento se vê ser substituída por feiras do chocolate, feiras medievais ou encontros de medicinas alternativas. O tempo o dirá.

Um festival literário é uma experiência diferente para cada escritor convidado. Uns, recusam sempre (o Herberto, por exemplo, termina uma carta de resposta a um convite escrevendo “a minha ambição é não aparecer”). Outros, aceitam de bom grado todos os convites porque estes se transformam numa oportunidade de conviver com os seus públicos, de ver ou rever amigos escritores, ou simplesmente de comer e beber à pala durante o decurso do festival. Para muitos, as razões sobrepõem-se num cocktail mais ou menos homogéneo de motivações equitativamente distribuídas.

Há um aspecto a ter também em conta: o escritor faz também parte de um determinado público de leitura e de leitores, embora numa categoria de “leitor especializado”. Ele próprio pode ter, em condições privilegiadas, a oportunidade de conhecer os escritores que admira. Lembro-me de quando conheci o Ruy Castro em Óbidos, há cerca de dois anos (o grande biógrafo em língua portuguesa, que escreveu uma biografia que muito me impressionou, a do Garrincha). E lembro-me de ter ficado com uma cara semelhante àquela que um adolescente dos nineties faria se estivesse frente a frente com o Kurt Cobain. E de ter sentido que disse tontices ainda maiores do que é costume. Not my finnest moment. Adiante.

Por vezes, quando as coisas correm menos bem, há muito pouco público e este dá a sensação de ter vindo ao engano. O moderador fez o trabalho de casa com demasiado afinco e vai desfiando penosamente e sem critério todos os acontecimentos de vida de todos os convidados. No tempo que resta para o debate propriamente dito, os convidados descobrem que se detestam e passam os quinze minutos sobrantes a insultarem-se uns aos outros, a despeito das tentativas canhotas de o moderador pôr alguma água na fervura. No final, ninguém esconde o alívio de ver aquele espectáculo chegar ao fim.

Às três da manhã, no hall do hotel, os mesmos escritores que tinham descoberto serem inimigos de infância abraçam-se e brindam à amizade e ao futuro.

31 Out 2017

Das paranóias dos escritores

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]odos os escritores têm as suas paranóias. Alguns, enquanto estão a escrever. De escrever de pé, como Hemingway ou Virginia Woolf, a escrever deitado de barriga para baixo, como Twain, a escrever nu ou em roupa interior, como Balzac ou Cheever, existe quase sempre a presença de um hábito, superstição ou paranóia intimamente ligada ao processo de escrita.

A minha paranóia (maior) tem lugar na apresentação do livro e na sessão de dedicatórias que normalmente lhe sucede. Imagino sempre que todos os leitores a quem escrevi uma dedicatória se reúnem algures no exterior do local do lançamento para compararem aquilo que escrevi a cada um deles. E imagino sempre que, ofendidos com as inúmeras repetições das múltiplas dedicatórias que cada um julgava serem pessoais e intransmissíveis, me vêm devolver os livros entre exigências de recuperar o dinheiro que deram por eles e juras de desamor eterno. E já sonhei com isto mais do que uma vez.

Para contrariar esta apreensão irracional, de cada vez que me calha em sorte ter de escrever umas palavras de apreço a um leitor, tento invariavelmente grafar qualquer coisa que, pelo menos no contexto da sessão em causa, seja original. Às vezes descubro-me repetindo dedicatórias que escrevi a outras pessoas, noutros lugares, e fico com medo de existir a possibilidade de um e outros se conhecerem.

Desenvolvi algumas técnicas entre o amador e o incipiente para conseguir evitar tanto quanto possível a repetição. Faço ligações entre coisas que disse durante a sessão e a pessoa defronte. Talvez o olhar de uma das personagens do livro seja semelhante ao olhar do recipiente da dedicatória. Talvez seja a forma de andar ou a forma de sorrir. Talvez a voz. Quando nada aparentemente resulta, recorro aos objectos e perspectivas à minha volta: um naco de rio que avisto da janela, o céu, as cadeiras espalhadas anarquicamente pela sala. Às vezes, nada acontece e, quanto mais tempo falta, mais pressionado me sinto. Sorrio, respiro fundo, mexo no cabelo, volto a perguntar o nome. As pessoas na fila impacientam-se (felizmente, as filas são normalmente pequenas). Acabo por escrever “a fulano, um abraço forte do Valério Romão”. Vergonha.

Há dias em que tudo corre bem e cada dedicatória tem laivos de verso. Nesses dias, saio do local do lançamento com inusitada confiança, cumprimentando quem ainda esteja à porta. A tensão pré-lançamento é debelada e, como – imagino eu – no final de um concerto particularmente gratificante, há uma sensação de vitória que parece redimir todas as ocasiões nas quais tudo correu mal.

Quando não é assim, acabo por pensar quase sempre porque estou ali e na razão pela qual me sujeito àquilo. E empatizo com os escritores que se recusam a cumprir aquele momento específico do ritual ou mesmo todo o lançamento. E parecem-me tão sábios como paternalistas: “eu não te disse, Valério?” é o que repetem em uníssono.

Passado algum tempo, até a maior vergonha acaba por beneficiar da distância cronológica e do esquecimento que a acompanha e o “nunca mais, nem pensar!” transforma-se primeiro em dúvida “se calhar, se…” e logo em optimismo infantil “não, desta vez vai correr tudo bem, tenho a certeza”. E volto ao lugar do crime, insuflado de uma confiança tão exagerada como precária. Mas mal sento na carreira de tiro, arrependo-me. Tarde demais.

25 Out 2017

Uma história de outro mundo

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ra um pequeno planeta muito semelhante ao nosso, no qual hominídeos em tudo semelhantes a nós tinham chegado ao topo da cadeia evolucionária e alimentar. Tinham aprendido muito cedo a dominar a natureza; faziam chover onde era necessário chuva, o sol acontecia onde era necessário o sol acontecer e debelavam tempestades e terramotos com comandos vocais que accionavam complexas contra-medidas.

Tecnologicamente, eram muito mais avançados do que somos hoje. Como tinham inventado o teletransporte, não havia acidentes de trânsito ou engarrafamentos. Mas, como contrapartida, não havia ninguém na rua ou nas praias, ou junto dos lagos e das montanhas. As pessoas eram transportadas de uma casa para outra casa, consoantes as suas necessidades. O trabalho tornara-se obsoleto. O complexo industrial de produção de tudo quanto podia ser produzido entrara em autogestão. Não havia guerras, não havia doenças, não havia poluição. Quando as pessoas morriam, eram desintegradas e convertidas numa sopa de partículas que reencontrava o seu lugar no universo.

Existia um Deus, embora fundamentalmente não interventivo, ao contrário do nosso. E esse Deus estava tão velhinho que a sua omnipotência já não era o que a omnipotência deve ser. Já não conseguia, por exemplo, ver dentro de espaços cujo revestimento fosse sólido. Esta aberração óptica – comum a muitas divindades de provecta idade – aliada à tendência de recolhimento que progressivamente se instaurara naqueles hominídeos, faziam com que este Deus desfrutasse cada vez menos da sua condição divina. Era como ter um formigueiro de estimação num terrário, em casa, no qual as formigas evitassem teimosamente fazer túneis junto dos vidros.

Tremelico – tanto quanto uma alma pode tremer – e míope, Deus contentou-se durante alguns milénios em olhar para aquele mundo tão organizado e funcional como uma criança olha para as luzes de Natal. À medida que o planeta rodopiava sobre si próprio na órbita de um sistema binário de duas estrelas anãs brancas, as cidades que deixavam de receber luz solar acendiam as múltiplas luzes pelas quais pintalgavam a superfície do planeta imersa na escuridão.

Mas um dia, Deus desconfiou. E quando um Deus desconfia, a desconfiança tem um tamanho e alcance incomensuráveis. E se as criaturas dele tivessem perecido de uma qualquer doença arqueológica incapaz de ser debelada mesmo com recurso às tecnologias de que dispunha esta civilização? E se tivessem sido involuntariamente envenenados? E se tivessem pura e simplesmente renunciado àquela vida completa e perfeita em todos os sentidos menos no da imortalidade (o único atributo que Deus optara sempre por guardar exclusivamente para si próprio)?

A dúvida e a desconfiança entranharam-se como uma nódoa, e Deus não mais conseguiu ter sossego. Incapaz de perceber, pelo estado muito condicionado da sua audição e da sua visão, a verdadeira condição daqueles a quem chamava seus, o divino entregou-se a um desespero lento como quem se entrega à bebida. Deixou de ter vontade de ser, o que, para Deus, implica conseguir, de facto, não ir sendo, e, como uma estrela que parece infinita e intemporal até perecer, por vezes numa explosão frouxa e morna, Deus deixou-se ir até se anular.

Passados apenas alguns dias, as pessoas começaram a sair das suas casas.

17 Out 2017

Do comércio local

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]nde vivo, num bairro da baixa de Lisboa, é raro o dia em que não se inaugure uma loja nova. E isto num espaço relativamente reduzido que compreende a distância do café mais perto da minha casa ao mini-mercado igualmente mais próximo. São creperias francesas tradicionais, lojas de roupa africana, espaços de co-work e os inevitáveis tudo-em-um paquistaneses ou indianos.

As lojas, no entanto, estão quase todas vazias. Apesar de se apresentarem impecavelmente limpas, apesar dos sorrisos com que nos brindam do outro lado do balcão aqueles que estão encarregados de receber os clientes, os clientes, esses, teimam em não aparecer. Não sei qual é a demanda por roupa africana, donuts porto-riquenhos ou café normalíssimo a dois euros. Mas não tenho de saber. Não sou parte interessada na dinamização e rentabilidade dos sítios que oferecem esses produtos ou serviços. O problema, no entanto, é que mais ninguém parece saber.

A massificação do turismo em Lisboa parece ter contagiado a maioria dos lisboetas de gene empreendedor com uma espécie de febre do pioneiro. A presença de tanta gente na rua provoca no aspirante a milionário a ilusão de que seria apenas abrir uma porta numa loja virada para a rua para começar imediatamente a enriquecer. Só assim se parece conseguir explicar a tanta porta aberta corresponda tanta loja vazia.

Entretanto, e apesar da multiplicação pipoqueira de tudo quanto é gelataria indie e decoração vintage, à zona onde habito falta ainda uma pastelaria decente onde não seja necessário empenhar um órgão para comer um pastel de nata e um minimercado que compita com o minipreço. Bem sei que abrir uma pastelaria ou um minimercado não possui o glamour associado a concretização do sonho de ser o legítimo proprietário de uma banca de smoothies orgânicos, mas é capaz de ser mais interessante de uma perspectiva económica. E talvez o factor económico tenha alguma importância quando se trata de abrir um espaço comercial.

No mundo dos negócios, o conservadorismo e a inovação têm a mesma importância na dinamização do mercado em que o negócio se insere: as pessoas que aderem às dietas paleo-crudo-mesozóicas são as mesmas que precisam de fazer uma fotocópia ou de comprar vegetais. Quem compra comida africana também há-de eventualmente comprar cigarros. Há uma série de necessidades porventura menos trendy que, ainda assim, compõem uma fatia bastante apreciável do mercado.

A isso acresce o facto de os turistas, esses canalhas, não serem os autómatos gastadores que deveriam ser. Ao que parece, o homo turisticus, apesar da fama esbanjadora, tem critério. Ou seja, mesmo que seja enganado naqueles restaurantes de fama duvidosa na baixa e pague trezentos euros por um bacalhau com natas, dificilmente comprará com a mesma facilidade aquele porta-chaves com camarões de plástico multicolores e réplicas de olhos de mocho que se vende na loja de “artigos típicos das caraíbas na perspectiva das religiões sincretistas e da magia negra”. Ou um gelado de sardinha e maionese. Mas a insistência em prover de soluções desnecessárias a maior parte das lojas recém-abertas que se vê por aí tem porventura origem no mesmo fenómeno que ocorre com as bandas que parecem tocar apenas para os músicos que a integram. Espero que, pelo menos, se estejam a divertir.

9 Out 2017

A cultura do copy paste

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] escândalo desta semana no Facebook português prende-se com a acusação de plágio que o ministério público moveu contra Tony Carreira e o compositor Ricardo Landum. De repente, o ministério público deu conta de uma evidência que já tinha sido amplamente difundida nas redes sociais: algumas das músicas do Tony Carreira – e sabe Deus quantos mais intérpretes de sucesso comercial – são decalques perfeitos até à semifusa de autores estrangeiros.

Poder-se-ia questionar o timing da notícia. Numa altura em que o governo se vê a braços com o rescaldo dos escândalos de Verão – desde os incêndios e o malfadado SIRESP, aparentemente tão fiável como um Windows 98 SE, até ao furto das armas de Tancos que, afinal, e pelo que vamos sabendo pelos jornais, a) não existiam, b) existiam mas foram furtadas muito antes de existirem, c) existiam, foram furtadas e são tão obsoletas que constituem um perigo para o pobre malfeitor que as operar, d) armas? Que armas? e) nenhuma das acima – e sem o respaldo mediático de um campeonato da europa ou de uma eurovisão, o conspirador insuficientemente medicado que há em mim vê nesta acusação a oportunidade perfeita para folgar as costas do governo enquanto o pau da opinião pública vai e vem.

A despeito do que se possa pensar sobre a oportunidade da acusação, a verdade é que esta é importante e traz a lume uma cultura de chico-espertismo que seria importante desmantelar se queremos afirmar de uma vez por todas a nossa maioridade e debelar a tacanhez própria de um país pequeno que, em tempos, já teve tudo.

Os senhores Carreira e Landum dizem-se vítimas da típica pequenez tuga e do seu correlato primordial, a inveja. Aparentemente, quem os acusa é movido por uma espécie de menoridade que não tolera o sucesso alheio. Terem êxito nas suas actividades deveria ilibá-los da necessidade de se justificarem. É a lógica do empreendedor: o facto de prover trabalho às pessoas eclipsa naturalmente o facto de lhes pagar salários de escravos contemporâneos. Deveríamos estar gratos aos senhores Carreira e Landum por entreterem tantos milhões de pessoas com os seus exercícios de romantismo de jogos florais. Ao invés, esta acusação vem demonstrar empiricamente o postulado do caranguejo: quando um está finalmente a escapar do balde, os outros tratam de puxá-lo de volta para dentro.

A verdade é que o plágio não começa nem termina com os senhores Carreira e Landum. O plágio grassa, por exemplo, num meio que conheço significativamente melhor do que o da música popular: a academia. Há teses inteiras, de mestrado a doutoramento, que são autênticas cópias requentadas de teses alheias. Há trabalhos que não sobrevivem a uma simples pesquisa literal no Google. Insere-se no motor de busca uma frase aleatória e o algoritmo devolve em milissegundos a formulação original. Dir-se-á que aqueles que o fazem não estão a tirar valor aos detentores originais da ideia, porque não a comercializam. Certo. Mas estão a defraudar de forma demolidora o objectivo fundamental da academia, que não é o de papaguear o pensamento alheio mas o de produzir uma tese que contenha, pelo menos, uma nota de rodapé de originalidade.

Quando há uma dezena de anos os mestrados e doutoramentos começaram a tornar-se mais frequentes, muitos políticos e detentores de cargos públicos viram os seus estatutos de doutores a serem postos em causa. Viram-se repentinamente privados da legitimidade hierárquica decorrente dos seus graus académicos perante os seus subordinados. Desataram a encomendar doutoramentos para, pelo menos, se dizerem tão letrados como aqueles que arrojaram anos a fio nas bibliotecas para os conseguir. Muitos deles nem sabem sobre que versa os seus trabalhos, pois a complacência dos júris assegurava uma aprovação suma cum laude a quem se propunha à certificação de competências.

É por isso, também, que esta acusação é importante: para desmontar a cultura do chico-espertismo e da absolutização da aparência. Independentemente do desfecho do processo e da minha costela de teórico da conspiração.

18 Set 2017

Auf Wierdersehen, Macau

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o contrário de muitos dos meus amigos, não achei o Lost in Translation, da Sofia Coppola, minimamente merecedor do hype que despertou na altura em que foi exibido em cinema. Pareceu-me uma colecção de clichés absolutamente banais adornando uma história ainda mais banal. Uma sopa instantânea temperada com uma mistura de especiarias exóticas de exportação. Sentia que o Japão – e toda a Ásia – eram muito mais do que o mosaico de caricaturas que a nossa ignorância compõe na tentativa de inscrever um sentido para um estado de coisas que não compreendemos.

Os dias que passei em Macau não me ensinaram muito sobre o que é ser chinês. Ou macaense, ou estrangeiro em Macau. Mas dissiparam muitas das ideias pré-concebidas que tinha acerca da região. E aprender que não se sabe é tão valioso como acumular conhecimento. O desconhecimento das coisas muito raramente é nocivo. Não temos medo daquilo que não sabemos sequer existir. Não o odiamos. Não formamos qualquer opinião sobre isso. Já as construções que derivam de uma interpretação truncada de uma realidade distante podem ser tóxicas. Como li algures: o melhor antídoto para o racismo é viajar.

Fui extremamente bem acolhido em Macau. Tanto pelos chineses como pelos portugueses que lá residem. Não que esperasse ser maltratado. Mas considerava deveras provável a possibilidade de me sentir muito mais indefeso no contraste com uma cultura que me era absolutamente desconhecida. Para tal contribuiu certamente o facto de Macau ser uma cidade muito segura. Um tipo pode andar por todo o lado sem receio de ser assaltado ou vigarizado. A quota-parte de atenção que poderia reservar, noutra cidade, para a percepção do perigo fica disponível para tudo o resto. E para um tipo que fica tão mais ansioso quanto menos compreende a língua falada em seu redor, como eu, não é um aspecto de somenos.

São os caracteres e os néons, a temperatura e, sobretudo, a humidade. São as salas de jogo dos hotéis, apinhadas de gente apostando um ano ou mais de trabalho, são os cheiros e os sabores, as chuvas torrenciais ao final da tarde, as árvores assemelhando-se a um entrelaçado de cobras comunitárias, os colegiais de uniformes impecavelmente brancos, os letreiros em português, o barulho incessante do ar condicionado omnipresente, as oferendas aos mortos na forma de comida e bebida e pequenas piras pontuando a calçada portuguesa, são os gestos que não compreendemos à primeira, a língua que não logramos compreender nunca.

A contaminação resultante do processo de globalização em curso acaba por hipernormalizar todas as culturas, por mais remotas que sejam. A quantidade de locais exóticos diminui à medida que o capitalismo se impõe como modo de vida dominante. Mas cada um dos lugares expressa de forma muito particular essa contaminação. E gradualmente vão aparecendo os detalhes, sem que com isso a compreensão do que se passa efectivamente sofra uma modificação radical. Não vai fazendo mais sentido, mas vai desfazendo equívocos e perspectivas caricaturais. E quando damos por nós a finalmente entreler uma pequena parte da realidade com que deparamos no dia-a-dia, é altura de voltar. Voltar de uma experiência tão intensa que em apenas oito dias a sensação é de se ter estado fora um mês. Até à vista, Macau.

11 Set 2017

Da revisão

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente um tipo chega ao final de um romance. A disposição que acompanha o término desse processo maratónico é, normalmente, o alívio. Erradamente, o sujeito pensa: “acabou”. Mas, na verdade, o processo mais penoso começa precisamente nesse momento.

Um dos passos mais desmotivadores – e, simultaneamente, mais profícuos – que sucedem à finalização de um romance é a releitura do mesmo. As múltiplas releituras. Um tipo começa a reler o resultado de meses ou de anos de escrita e o desalento com que embarca no processo só tem tendência a aumentar exponencialmente. Um sujeito confronta-se com sua própria ininteligibilidade, com imagens que, na altura em que foram escritas, pareciam veicular adequadamente um sentido essencial de forma sucinta e esteticamente apelativa. Na verdade, muitos dos exercícios de estilo semeados um pouco por toda a parte não sobrevivem a uma releitura. São toscos, óbvios, desenquadrados do propósito macroscópico do livro. Ao invés de simplificarem elegantemente um pensamento ou uma disposição, complicam-nos. São artifícios atrás dos quais os escritores se escondem e escondem as suas inúmeras inseguranças. São a grandiloquência estéril que se empresta à literatura na tentativa espúria de ser algo mais ou algo diferente. Felizmente, muitos deles não sobrevivem.

Depois de duas ou três releituras enjoativas como uma viagem de cacilheiro nos piores dias do Tejo e de ressaca, o livro segue para revisão na editora. E um sujeito, ingenuamente convencido de que o grosso da escória já foi devidamente joeirado, vê aterrar na caixa de correio electrónica a primeira prova de revisão, normalmente tão carregada de sugestões de mudança, correcção de gralhas e perguntas sobre o sentido de muitas das imagens sobreviventes que a vontade de publicar decresce de forma tão acentuada como a disposição de um depressivo no pico do outono. Após uns dias a fingir que não viu o mail, o sujeito atira-se ao texto e tenta responder adequadamente aos problemas que o revisor enuncia.

Na segunda ou terceira revisões, um tipo já dá por si a concordar ou a discordar de tudo. Quando inquirido sobre a formulação de uma determinada imagem, acontece-lhe explicar a coisa tal qual como a deveria ter escrito em primeira instância. Mas não lhe ocorre substituir a imagem coxa pela explicação acertada. Está demasiado embrenhado na defesa da sua primeira versão para lograr ter a lucidez necessária para mudar o que quer que seja. Na verdade, o escritor encara a revisão como um combate. De um lado, ele e o seu trabalho, de outro, alguém que está empenhado em mostra-lhe todos os defeitos que encontra naquele produto de meses ou anos de teimosia: as rugas, o crescimento desarmonioso dos membros, as múltiplas imperfeições de que se reveste o resultado de um processo desta natureza.

Quando finalmente o suplício termina, o escritor, não raramente se sente derrotado. Pela revisão, pelo tipo de fonte escolhida para o corpo do texto, pelo título menos mau sobre o qual toda a gente teve de chegar a acordo, pelo acabamento da capa, pela data de publicação, pela influência do clima mediterrânico no cultivo industrial de pinheiros nórdicos. Por tudo, na verdade.

Quando, anos mais tarde, um fotógrafo insiste em que o sujeito apareça no enquadramento com o livro sobre os braços, há todo um passado cujo escondimento resultou de muito esforço que volta à tona para assombrar um tipo. E a gente percebe, pela fotografia resultante, que alguma coisa não está bem. Toda a gente já viu fotos assim.

28 Ago 2017