What’s new pussycat?

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente perguntarem-me, até em eventos de carácter literário, nos quais as perguntas tendem a ser sobre personagens, contextos ou sobre o papel da inspiração – seja lá o que isso for – no ofício da escrita – seja lá o que isso for – “então e os gatos, qual a importância dos gatos na sua vida?” E isso reconduz-nos inevitavelmente ao Facebook e à minha prolífica actividade de divulgador do que de melhor se faz no campo dos gifs, vídeos e memes de gatos. Para além desse meritório trabalho de interesse público, sou também biógrafo oficial dos dois gatos que generosamente acedem a dividir casa comigo, o Rim e o Croquete, e não me poupo ao esforço documental de registar nos mais diversos formatos e suportes as suas aventuras domésticas e as suas muitas, muitas tropelias.

Escritores e gatos partilham histórias de amor e afecto desde sempre. Bukowski dizia num poema que estudava os seus gatos e que estes eram os seus mestres, a Doris Lessing escreveu um livro sobre gatos, o Hemingway gostava tanto de gatos polidáctilos que estes acabaram por virem a ser conhecidos por “gatos de Hemingway”. Os gatos e os escritores são criaturas de uma curiosidade inesgotável, são caçadores solitários e, no caso dos escritores mais argutos, são de uma radical honestidade. Os escritores são, no fundo e na melhor das hipóteses, gatos falhados.

O meu pai era caçador e, por isso, um homem de cães. Os gatos, para ele, eram toleráveis meramente por terem uma função no controlo das pragas de roedores. Eram uma ferramenta ao lado das outras, uma espécie de pesticida com cauda e dentes. Foi difícil convencê-lo a ter o meu primeiro gato, um floco de pelo a que chamámos “gatinho”, quando ainda cabia na palma da mão, “gato”, quando de tão gordo eu mal o conseguia erguer e “filho da puta”, quando ocasionalmente arranhava a mobília ou desatava a fugir rua fora com uma fatia de fiambre na boca.

Quando regressámos de França, o gato regressou connosco. Fiz a minha mãe prometer-lhe sardinhas frescas caso ele não fizesse xixi durante os dois dias da viagem de carro. De passagem por Bordéus o carro avariou e tivemos de pernoitar num hotel enquanto o meu pai discutia com os homens da oficina sobre a origem da avaria e a peça a substituir. O gato, esse, desaparecera algures. Inconsolável, pedi à minha mãe para irmos ver se não estaria escondido algures na oficina, com medo, frio e fome. A minha mãe, insensível a lamentos imberbes e pragmática até à medula, garantiu-me que seria a primeira coisa que faríamos pela manhã. O gato estava lá, debaixo do banco do passageiro, miando como quem quer e não quer ser notado. Os meus pais ficaram provavelmente tão felizes como eu, eles que já se viam a fazer o resto da já penosa viagem com uma criança em modo carpideira no banco de trás. Infelizmente, o gato apaixonou-se pelo campo da primeira vez que fomos visitar a minha avó. Acabou por ficar por lá, gárgula de pêlo sobre o beiral do telhado de quatro águas, dono daquilo tudo, e eu, triste mas resignado, soube pela primeira vez na minha vida o que era ser abandonado.

Já na Faculdade, em Lisboa, adoptei a Joana, uma gata preta e, à altura, minúscula, para me fazer companhia nos intermináveis fins-de-semana que eu passava a estudar Platão ou Kant. A Joana acompanhou-me durante o curso, quando comecei a trabalhar, em quatro mudanças de casa, velou pelo meu filho quando ele era apenas um bebé de berço com dedinhos tentaculares, acompanhou-me no meu casamento, na minha separação, na tristeza profunda dos dias em que a morte range os dentes e no solstício das alegrias mais intensas e perenes. A Joana teve a sua primeira e única ninhada em cima de mim. Quando acordei, de olhos ainda fechados, pensei ter urinado na cama pela primeira vez na vida. Abrindo finalmente os olhos, descobri um tufo de pêlo miando, mesmo à frente do meu nariz, e outros dois deambulando cegos sobre a minha barriga. O quarto, esse, já o teve sobre a cama. A Joana foi uma das melhores partes de mim e da minha vida e, quando ela morreu, em 2014, enterrei-a como se enterra um amigo que nos deixa na desconfortável posição de lhe sobreviver. Dediquei-lhe um livro de contos e vários poemas e penso nela sempre que vejo um gato preto.

Por isso quando me perguntam pelo porquê dos gatos e desta obsessão infantil por um animal que, ao contrário do cão, não ama com o coração todo, respondo normalmente com um sorriso e um encolher de ombros, como as pessoas que tentam explicar o amor. Os gatos são os bichos que mais se parecem connosco. Podem ser meigos até à lamechice, violentos ou simplesmente snobs, elegantes ou gordos como lontras de cativeiro. Gostam de carinho, ma non troppo, de atenção a espaços e têm um ronronar que compete com o xanax em eficácia terapêutica. Às vezes olham-nos como se fôssemos nós o animal de estimação. Às vezes, e não tão raramente, têm razão.

9 Jan 2017

Os filhos dos outros

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha vida civil trabalho em informática, e não raras vezes tenho de ir a Barcelona, ora para resolver problemas específicos da empresa em Portugal, com ajuda dos meus colegas espanhóis, ora para assistir aos infindáveis monólogos motivacionais a que as pessoas, por inexplicável obstinação semântica, continuam a chamar “reuniões”.

A frequência das idas e vindas faz com que acabemos por acompanhar, em jeito de folhetim, a vida uns dos outros: quem casou, quem se separou, quem finalmente se apercebeu de que pagar o dízimo do ginásio sem lá pôr os coutos uma única vez não era suficiente para levar a bom porto o projecto biquíni, que tanto sentido fazia enquanto resolução de ano novo.

O Raul era o mais caladinho dos meus colegas, uma espécie de contraponto ao típico espanhol, normalmente tão efusivo e entusiasmado como ruidoso. O Raul não, caladinho, no seu canto, dedos ágeis sobre o teclado, olhos postos na pantalla onde desfila aquele sânscrito digital que faz com que as coisas que têm que funcionar funcionem. Interrompia-o amiúde, para saber de um procedimento ou para pedir acesso a uma base de dados que ele administrava. Eu associava a sua cordialidade à sua introversão: o Raul não discutia com os colegas, não levantava a voz e, ao contrário dos restantes elementos do departamento, aceitava as reprimendas ocasionais do chefe num silêncio de eremita. Eu sabia da vida dele o que me iam dizendo: que era casado, malgrado ninguém conhecer a sua mulher, por ele nunca a ter levado aos jantares para os quais ambos eram convidados ou ao Family Day, que morava na periferia de Barcelona, como quase toda a gente que trabalhava na empresa e que estava à espera de um filho há cerca de catorze meses. Como, perguntava-se, entre risotas, catorze meses, insistiam os colegas do Raul, sem conterem a galhofa, se espera un elefante, rematavam, para gargalhada geral.

Eu acompanhara a história do filho desde o início. A tímida alegria quando anunciara a novidade no escritório e a reacção dos colegas, adubando-o generosamente com palmadões nas costas, genial, coño, vincavam, o seu sorriso envergonhado perante aquela inédita demonstração de efusividade, ele que estava habituado a que o interpelassem somente quando alguma coisa corria mal e as felicitações do chefe, habitualmente reservado, até soavam bem, naturais, humanizando-o inesperadamente, mas como nem um nem outro estavam habituados aquele trato sem farda o chefe rematava, seco, em jeito de pai: ahora hay que trabajar aún más, Raul.

Os meses passaram tão depressa como o tempo pode passar num escritório. O entusiasmo dos colegas, sobretudo quando se acercava a data na qual se esperava que o pequeno Raul nascesse, deu lugar a um silêncio consternado e árido de perguntas, porque o pequeno Raul, desafiando todos os prazos conhecidos para o desenlace da concepção humana, não havia meio de nascer. Ora era uma complicação clínica que impedia o parto, oram era dois obstetras que se desentendiam sobre a forma mais adequada de entregar aquela criança ao mundo, ora era porque se aproximava o Natal e aquela altura, tão confusa como exasperante, não dava jeito nenhum. Não dava jeito nenhum, chegou mesmo a dizer.

Aquele silêncio de sepulcro, tão inesperado como contranatura – sobretudo para um espanhol – deu rapidamente lugar à zombaria e o filho do Raul tornou-se de repente uma metáfora para tudo quanto tardava demasiado tempo naquele escritório. Mas esta impressora, não imprime, reclamava a directora financeira, para logo alguém por detrás do anonimato de um monitor replicar: deve ser filha do Raul. E o café, quando é que pediram o café, nunca mais chega esse café? Filho do Raul. Ainda não pagaram o subsídio de férias? Filho do Raul. Esse relatório, como vai? Filho do Raul.

A piada durou até o director de recursos humanos, eventualmente necessitado de mostrar algum serviço, decidir convocar o Raul e o chefe do Raul para uma reunião cuja agenda era de ponto único. Raul, esta empresa, principiou o director de recursos humanos, não tem por hábito imiscuir-se na vida pessoal dos seus funcionários, mas há-de convir que esta situação, tendo em conta o seu carácter inusitado, pede de certa forma um esclarecimento, e acredito que o seu chefe estará de acordo comigo neste ponto, ao que o director de informática anuía, silenciosamente, com um acenar de cabeça. Raul, finalizava, podemos saber o que se passa com o seu filho?

Saindo da reunião, Raul passou pela secretária e meteu na mochila os poucos objectos pessoais que lá tinha: uma caneta de tinta permanente, dois livros de poesia, uma miniatura articulada do Wall-e. Despediu-se educadamente dos colegas, como sempre. Nunca mais o vimos.

Há duas semanas fui a Barcelona e lembrei-me de o procurar, de o rever. Mas não tinha a sua morada, não tinha o seu telefone. Não sabia nada dele. Na verdade, nunca soube. Só podia ser uma personagem.

19 Dez 2016

A bizarria como fonte

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cada vez que vou ao Porto, acontecem-me coisas estranhas. Na verdade, acontecem-me coisas estranhas em todo o lado. Para a maior parte das pessoas, a ingerência cíclica da bizarria nas suas vidas é, no mínimo, um indesejado impedimento de que se livram tão depressa quanto lhes é possível: é aquele maluco no autocarro que afiança transportar material radioactivo nos bolsos e ser perseguido por todas as agências de espionagem mundiais; é a velhota no talho a pedir repetidamente ao incrédulo mas cada vez mais divertido talhante para lhe assegurar que na carne moída não usam gato; são todas conversas com que as pessoas esbarram dia-a-dia e que estão a montante ou a jusante das suas zonas de habitualidade e conforto. Viram costas. Despedem o assunto com um sorriso anémico e um encolher de ombros. Fingem perceber. A criança temente às coisas estranhas do mundo que há em cada um de nós estanca subitamente e, ao longe, o medo criando raízes até passa por uma apreciável e salutar dose de educação.

Para um escritor, no entanto, o absurdo não interrompe a vida. Pelo contrário. O absurdo e as suas diversas tonalidades de bizarria são o combustível que alimenta a linha de montagem da maior parte das produções literárias. Combustível tanto mais valioso como de achamento imprevisível: pode andar-se tempos infindos, nas zonas onde a bizarria mais prolifera, numa procura atenta do melhor e mais refinado absurdo, sem lograr topá-lo sequer de longe. Por isso me é particularmente difícil, mesmo que a intuição me alerte para a possível enxurrada de um tédio interminável, afastar-me das conversas com alguns sujeitos que, a pretexto de me cravarem um cigarro, se entregam imediatamente a uma espécie de confissão diarística temperada com LSD.

Regressava da apresentação do meu livro de contos “da Família”, no Porto, quando, à entrada do hotel, um rapaz aproximadamente da minha idade e cujo ganha-pão é encaixar os carros no tetris confuso do estacionamento urbano disponível, se acerca de mim, numa educação inversamente proporcional ao seu aspecto andrajoso, e me pede o habitual cigarro com que conto aforrar karma suficiente para, na minha velhice, ser agraciado com a bondade alheia de um cigarro ocasional. Acabadas de cumprir as formalidades referentes ao lume e demais agradecimentos, o rapaz, olhando-me fixamente, pergunta-me: não achas que a esquizofrenia pode ser um acto de deus? Não sendo as intervenções divinas a minha especialidade, malgrado ou talvez por causa dos quatro anos num colégio de freiras de onde até da catequese consegui ser dispensado derivado a motivos de fazer “demasiadas questões”, achei precavido esperar pela sequência de pensamentos subjacentes à interrogação, até porque tinha a certeza de quem formula semelhante pergunta deve ter muitas mais coisas a dizer. Deus, como percebi de imediato – e como sempre – foi sol de pouca dura. A esquizofrenia, essa, foi ficando.

A conversa, custosa não tanto pelo tema mas sobretudo pelo frio – uns típicos três graus numa noite de Dezembro, no Porto – assemelhava-se ao percurso confuso de um atirador furtivo incerto do seu alvo: era o pai, os maus-tratos recebidos na infância, a “filha da puta da droga”, expressão repetida ao ponto de se tornar mais uma forma de pontuar a conversa, a mãe, omnipresente pela total ausência dela no discurso, a vida e as suas minudências esclavagistas, a vida de pobre, a vida de quem é abandonado por deus, a vida da rua.

Mais de meia hora decorrida sobre o início da conversa, o Vítor – vamos assumir que se chamava, Vítor, dada a minha impossibilidade crónica de me lembrar de nomes próprios – confessa-me, aliviado como não o vira ainda, que “tinha um problema”. A única coisa que não esperava e que me fez confusão na frase foi, na verdade, o tempo verbal. No entanto, pela primeira vez na conversa, o Vítor não muda de assunto, não tergiversa, não entra e sai dos temas sem qualquer tipo de ordem ou sequência. Pela primeira vez na conversa, o Vítor está absolutamente focado.

Sabes, principia, eu ouvia – para logo corrigir – e ainda ouço, um escaravelho que está sempre num raio de oito milhas à minha volta (escusado será dizer que a custo consegui suprimir a natural tentação de lhe perguntar se se tratavam de milhas marítimas ou terrestres). Não me deixava descansar, dormir, comer uma bucha em tranquilidade. É daqueles barulhos, sabes, tipo frigorífico ou água a pingar, à noite, sabes, e eu abanava a cabeça em sinal de assentimento, cada vez mais curioso, e quando me aproximava dele, estás a ver, prosseguia, o gajo calava-se, mas era só o tempo de eu voltar para onde estava e o gajo começar a fazer barulho outra vez. Ia dando em maluco, afirmava, com aquele olhar de quem procura no interlocutor o conforto da empatia. E como resolveste o assunto, perguntei. O Vítor, não se fazendo de rogado, até porque estava à espera da pergunta desde que começara a falar no escaravelho, começa a despir as múltiplas camisolas com que se protegia da noite invernosa do Porto. Chegado à pele, aponta, orgulhoso, para uma das inúmeras garatujas que tatuara no corpo. Vês, afirma, orgulhoso, ele continua a fazer barulho, mas agora sei sempre onde está.

Queres mais um cigarro, Vítor?

Quero.

5 Dez 2016