Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO excesso de tudo • “Qual a sua opinião sobre a situação na Síria?” • “Acha que devemos dar voz, no seio da democracia, aos movimentos políticos de matriz anti-democrática?” • “Como vê o conflito no Iémen? E o papel da Arábia Saudita na geopolítica do Médio Oriente?” • “O futuro treinador do Benfica deveria ter que tipo de perfil?” • “É um anacronismo anunciado falarmos de «trabalho humano» num tempo em que a Inteligência Artificial parece cada vez mais ser capaz de fazer qualquer tipo de tarefa?” • “Depois do Bosão de Higgs, que nos falta descobrir a nível de partículas elementares?” [dropcap]C[/dropcap]om o advento da Internet, a informação massificou-se. O que não tornou especialmente fácil a tarefa de analisá-la convenientemente. Ao acréscimo da quantidade de dados não correspondeu qualquer incremento na capacidade de processamento do humano. Continuamos a ser as criaturas excepcionais mas excepcionalmente limitadas que éramos antes da World Wide Web. Pelo contrário; a desproporção entre o acesso rápido e maciço à informação e a nossa módica capacidade de analisá-la tornou-nos coxos. E não se vê como colmatar a lacuna que só agora se fez ver. É comum assistirmos, no decurso de um noticiário televisivo, a uma ou mais rubricas de comentário, normalmente de cariz político ou generalista. Quando estas são de teor político, o convidado é quase sempre um senador do regime, ou seja, um tipo que activamente contribuiu para a erosão do estado-de-coisas no rectângulo sem nunca mostrar o ensejo ou a capacidade de alterar a percentagem de inclinação negativa do declive. A maior parte das vezes até foi parte activa na sua acentuação. O sucesso em Portugal não se mede pelos resultados obtidos. Os critérios pelos quais se afere o sucesso e correspondente visibilidade mediática são da ordem do oculto. Quando o comentário é de índole generalista, o convidado – muitas vezes um senador ou figurão do regime, as únicas criaturas com passe vitalício e dispensa de exame de comentador – é inquirido sobre os mais diversos temas. Como procurámos caricaturar no início deste texto, é a guerra na Síria, a validade científica da homeopatia, a relação preço-custo dos vinhos chilenos ou a recente alunagem chinesa. Ninguém, a não ser duas ou três pessoas que se escusam a aparecer publicamente, sabe alguma coisa interessante e esclarecedora de matérias tão diferentes e específicas. A verdade é que o comum dos mortais, preocupado em conseguir fazer da vida um terreno menos inóspito, também não. E é por isso que a coisa passa e la nave va. Se cada um de nós conseguisse alçar o pescoço além do horizonte da mediocridade difusa, a nudez do rei apareceria sem qualquer esforço de focagem. A grande petulância do desconhecimento nunca foi a da sua admissão. A ignorância confessa sempre foi – e é-o sobretudo nestes tempos – um sinal de lucidez: é normal não se saber de um assunto, ora por este ser extremamente complexo ora por falta de interesse ou de tempo para estudá-lo. O que nunca foi normal foi saber um pouco de tudo sobre tudo, e este é precisamente a aura que preside ao nosso tempo e que de algum modo reflecte, em jeito de acto falhado, a aura da nossa época: o de não sermos capazes de admitir que enquanto indivíduos – o grande credo da modernidade – estamos votados a saber muito pouco e a contar para muito pouco. Ao contrário do que prometiam as nossas mães, não somos especiais. Haverá excepções, homens e mulheres que sozinhos empurram continentes história adentro. E talvez a evolução, no sentido lato, seja de facto a marca filigranar que une os indivíduos excepcionais ao longo do tempo. Mas isso não resolve nada, em termos de aquietar o espírito. Nós, os que porfiam para se manter à tona, não somos excepções. E saber que há tanta coisa que poderíamos ser mais do que somos só nos parece esmagar ainda mais.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAs opiniões são piores que os coelhos [dropcap]A[/dropcap] conversa acerca do declínio do jornalismo ultrapassa largamente as nossas fronteiras. Um pouco por toda a parte organizam-se conferências, debates e outros e mil e um enclaves nos quais se revezam no púlpito os profetas do apocalipse, os médicos-legistas e os coveiros. Numa coisa, pelo menos, parecem todos de acordo: o jornalismo de investigação, tal como o conhecemos, está morto. Divergem quanto às causas de morte. Uns apontam o dedo ao aparecimento da Internet, dos motores de busca e das redes sociais, que sorvem a fatia do bolo publicitário que antes alimentava a rotativa, outros ensaiam um mea culpa através do qual tentam arregimentar apoios e adeptos: o jornalismo, para estes, definhou porque o mantra economicista se sobrepôs com tal peso às directivas capazes de estabelecer uma linha entre o bom e o mau jornalismo que tudo acabou por ficar nivelado por baixo; os bons jornais ficaram maus e os maus ficaram piores. A verdade é que ainda estamos demasiado próximos do epicentro da batalha para lhe ver claramente os contornos. Uma coisa é certa, no entanto: independentemente do desfecho, nada será como dantes. Além das fake news, contendo em si o poder e perigo tremendos de se tornarem o Pedro e o Lobo capaz de cravar o último prego no caixão do defunto, existem motivos mais discretos para que o jornalismo se tenha tornado uma espécie de activo tóxico. A Internet teve o condão de despertar uma consciência colectiva cujo modo de funcionamento está longe de ser claro. A imediatez do meio tem tendência a despertar no humano a tentação da resposta pronta. Bem vistas as coisas, isto não é nada de novo. A recompensa que advém da prontidão é imediata. A reflexão é um desporto de fundo; leva tempo, requer ponderação, calma e tempo. É muito mais exigente no trabalho a que obriga e proporciona uma satisfação desfasada do tempo em que se dá. A velocidade a que os assuntos se sucedem dificulta a nitidez necessária para dirimir aquilo que importa daquilo que é puramente acessório. A indignação resultante da morte de um gato por atropelamento pode ser idêntica aquela que advém das atrocidades cometidas num cenário de guerra. Noutra coisa são idênticas: no tempo que duram. São indignações a prazo, reacções cuja intensidade é inversamente proporcional ao tempo e à profundidade a que a elas nos dedicamos. Estamos muito mais focados na sucessão das coisas no mundo do que nas coisas que compõem essa sucessão. É uma corrida de velocidade na qual só fugazmente temos uma ideia de quem é quem na procissão interminável dos assuntos. A Internet tem o condão de nos confundir tanto como de nos reassegurar. Por um lado, tudo acontece a uma velocidade para a qual não fomos obviamente treinados – e alguma poderemos sê-lo? E não estaremos a ver a coisa ao contrário? Não seria mais profícuo para todos desacelerar o mundo? Por outra parte, se tudo está a acontecer e nada nos prende a atenção mais do que umas míseras horas, não se poderá dar o caso de não estar a acontecer nada de importante, de facto? E mesmo que esteja, que posso eu fazer? Há uma tremenda desproporcionalidade entre a quantidade de coisas que me são dadas a ver e o meu limitadíssimo poder de intervenção sobre elas. Parece inclusive uma metáfora de um putativo inferno: o mundo existe, acontece e afecta-me; mas, por mais que me esforce, a minha capacidade de o afectar é praticamente nula. Uma linha de montagem de frustrados e neuróticos. Se o jornalismo é só a vertente informativa, puramente informativa, não tem préstimo social. As notícias, a existirem, devem ser capazes de modificar a realidade. Notícias de corrupção devem originar processos e demissões. Notícias de guerra mandam que a sociedade se mobilize de algum modo. Notícias de abusos de direitos humanos devem provocar reacções de censura a vários níveis. Muito pouco disto está a acontecer. A relatividade instala-se, muito por via da democratização falaciosa da opinião: à liberdade opinativa não corresponde a equivalência valorativa das opiniões. Estamos num caminho muito perigoso. O nosso farol, neste momento, é a irrelevância generalizada.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDireito de proposta [dropcap]N[/dropcap]a semana passada escrevi uma crónica chamada Make Portugal Great Again. Do título ao conteúdo, era um texto provocatório. Além de pretender causar algum desconforto, dado conter elementos de populismo que nos remetem para outros tempos ou outras latitudes, tinha um propósito ulterior: o de mostrar, por contraste, que o horizonte do populismo e de outros movimentos tendencialmente totalitários, sejam eles de tendência fascista ou comunista, não é sempre claro e perfeitamente identificável. A maior parte das vezes, o corpo narrativo destes movimentos que, na prática, calçam botas cardadas, é composto de mensagens bastante mais cálidas e aceitáveis do que os pontapés e bastonadas nos quais se traduzem nas ruas. Qualquer discurso populista tem que conter elementos de verdade para ser aceite, digerido e assimilado. Normalmente estes são lestos a identificar os problemas que preocupam a fatia maioritária da sociedade sobre a qual se funda o conceito vago de identidade nacional. Alguns destes problemas são-no de facto, i.e., correspondem a um defeito ou a um excesso no modo como o estado dá conta dos obstáculos com que os cidadãos se deparam no dia-a-dia. Alguns destes problemas assentam em deficiências estruturais dos recursos estatais disponíveis ou alocados: é assim normalmente nos incêndios de Verão, nos hospitais e nas escolas públicas, na administração da justiça. A maior parte das vezes não há dinheiro que chegue para tudo e, ainda por cima, o pouco que há é mal desperdiçado, seja por via da incompetência seja por via da corrupção. Outros problemas, porém, advêm da própria concepção de estado, do poder que nele investimos e do que ele esperamos. Mais estado pode equivaler a mais impostos, menos liberdade individual mas, como contrapartida, mais segurança social para todos. Menos estado é commumente sinónimo de mais investimento privado, menos impostos e – não há bela sem senão – menos capacidade de resposta aos problemas dos mais desfavorecidos. O texto que escrevi e que ainda está disponível no site do Hoje Macau é essencialmente caricatural. Propõe diagnosticar uma série de problemas sem na verdade equacioná-los à luz dos factos. Apela sobretudo à inesgotável capacidade de indignação do leitor. E não é assim por acaso. A primeira reacção de qualquer sujeito perante um texto desta natureza é essencialmente emotiva: ou se revê nele e as palavras são uma espécie de espelho no qual surge tudo aquilo que ele gostaria de ter dito e não o soube ou pôde fazer, ou o rejeita porque a mensagem que este veicula fere a matriz de convicções que o norteia. Apenas após assentar a poeira disposicional é que o sujeito se dispõe a ver a coisa pelo prisma racional. Na maior parte das vezes, as convicções de cada um nós são tão fortes na expressão como fracas na estrutura, pelo que o sujeito prefere a sensação de ter razão do que a certeza de o ter. Não lê o texto duas vezes, não admite segunda opinião. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Embora as falácias do populismo sejam instrumentos assaz eficazes na manipulação de massas, a verdade é que estas só têm algum efeito quando o contexto sócio-político e económico lhes é favorável. Não surgem Trumps, Bolsonaro ou Salvinis a toda a hora, embora eles não deixem nunca de existir. Apenas o contexto não lhes é favorável ao crescimento. Seja porque a economia vai de vento em popa, seja porque o fantasma de uma guerra recente ainda ensombra a população, seja porque as pessoas decidiram trabalhar para algo que os transcende e que confere um sentido superior aos interesses imediatos que o capitalismo e a economia de mercado estimulam incessantemente. Na ressaca de uma crise económica mundial e com dezenas de problemas em mãos, uns nacionais, outros europeus, a nossa confiança não parece estar em alta. Ninguém arrisca uma previsão a médio prazo. A qualquer momento, uma nova crise económica pode mergulhar o país ou mesmo a Europa no caos. Mais: não parece ninguém capaz de endereçar os problemas que nos tolham os movimentos. Mais ainda: não parece haver ninguém capaz de falar sobre eles e de mobilizar a atenção pública para um debate de vários níveis – a segurança social, a produtividade, a sustentabilidade das contas públicas e o seu modelo de receita, o ensino e as saídas que este proporciona ou deveria proporcionar, o turismo e os custos e benefícios, os salários miseráveis dos portugueses e as diferenças gritantes entre os mais mal pagos nas empresas e os mais bem pagos – que deveria acontecer e que deveria produzir respostas de consenso que ultrapassassem o prazo de uma legislatura. As pessoas estão entre a indignação, o cansaço e a raiva. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Estão fartas da política e dos políticos que temos. Estão cansadas de sentir que são permanentemente descartadas do diálogo no espaço público. Sentem que os políticos não falam nem para eles nem com eles. A esquerda portuguesa move-se há algum tempo entre causas de conquista civilizacional – direitos das minorias, paridade de salários entre homens e mulheres, fim da violência doméstica, direitos lgbt e outros temas que são fracturantes até deixarem de o ser – e aquilo que parece ser óbvio em Portugal, i.e., que se ganha mal, que se trabalha demais e por migalhas e que é necessário aumentar o salário mínimo. Mas nem por isso os impostos – directos ou indirectos – baixam. A esquerda é aquele coleguinha de trabalho que está sempre a dizer o óbvio acerca daquilo que está mal e que responde invariavelmente “só estava a dar a minha opinião” quando lhe perguntam o que fazer para resolver as coisas. No melhor dos casos, oferece soluções que esbarram no cálculo mais simples. A direita, por sua vez, é apenas uma piada. Ou os agrobetos do CDS ou o autismo entrincheirado do PSD do Rui Rio. Não falo da aliança do Santana por vários motivos, um deles a indispensável manutenção de uma réstia de higiene mental. Depois temos a corrupção, que nos últimos anos tem vindo a ser posta à luz de diversas formas. Parece ser endémica, tentacular e deveras resistente à exposição do antibiótico da justiça. Fora umas carpas de rio que mal cabem na cova de um dente, nada de particularmente doloroso tem acontecido a capangagem que forrou os bolsos com dinheiro público anos a fio. Salgado, João Rendeiro e tutti quanti ou esperam julgamento sogaditos nas suas vidas milionárias ou foram condenados a penas suspensas. A justiça igual para todos é um dos pilares fundamentais da democracia e um garante de paz social. Por fim, o racismo latente, a xenofobia, o preconceito. A maior parte das pessoas que não gosta de gays não conhece um gay sequer – conscientemente, i.e. A maior parte das pessoas que insistem em fazer piadas de pretos não passa qualquer tempo com pretos. A maior parte das pessoas que… E assim por diante. A ignorância é quase sempre a raiz de todos os preconceitos. Desconfiamos daquilo que não conhecemos, e é muito fácil passar da desconfiança para o ódio quando as coisas não correm bem e temos de encontrar um culpado. O que não é de todo claro que funcione é combater a ignorância com repressão ou de cima de um púlpito moral. A ignorância combate-se com educação, com tolerância. A ignorância não é o fascismo ou o comunismo, mas estes últimos alimentam-se da primeira. De igual modo, a ignorância não se combate de uma posição de superioridade, mas de uma posição de igualdade. Se a conversa começa por repudiar, julgar ou acusar alguém, a conversa não continua. Cada um dos intervenientes numa relação de entrincheiramento acaba mais entrincheirado do que antes. Chamar alguém à razão não é chamar alguém à pedra. E, por fim, temos de aceitar que existem pessoas as quais nunca seremos capazes de modificar quanto às suas crenças, por muito antiquadas e grotescas que nos pareçam, e com as quais teremos de conviver. Podemos punir quaisquer comportamentos ilegais que tenham, podemos tentar minorar os efeitos de contágio das suas convicções, mas não podemos impedir que pensem ou sintam o que pensam e sentem. À ignorância e preconceitos alheios teremos de contrapor a nossa tolerância e aceitação. É difícil, é em muito contranatura, mas é a única forma que temos de integrar uma convicção que repudiamos sem esta nos consumir. Talvez esta crónica hormonada não consiga esclarecer quem na semana passada fez uma leitura literal do texto a que faço referência aqui. Talvez eu próprio não esteja a conseguir articular correctamente a cadeia de pensamentos que me levaram a escrever o que escrevi. Espero, no entanto, que pelo menos desfaça o equívoco segundo o qual o texto era lido como uma apologia do populismo ou era classificado de perigosa e desnecessária provocação. A minha intenção foi sempre a de mostrar que o populismo mistura e confunde para seduzir e não se apresenta de uniforme. O mais importante, de qualquer modo, é sair das trincheiras que cavámos – de boa ou má-fé – e encontrar os consensos sobre os quais se fundam as sociedades democráticas, porque a minha intenção não é a de calar ninguém ou de ter a última resposta: a minha intenção é a de que voltemos rapidamente a falar.”
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasMake Portugal Great Again [dropcap]P[/dropcap]ortugueses e portuguesas, trabalhadores e desempregados, ricos e pobres, irmãos e irmãs. Passamos por um período histórico particularmente difícil. Leio o desespero na vossa cara, aqui e agora, mas também nas caras de tantos homens e mulheres que vejo todos os dias, a caminho dos seus empregos, vagueando na ilusão de terem um rumo para a vida. Como vocês, também eu fingi anos a fio perceber o mundo e o meu lugar nele. Como vocês, também eu pus uma máscara com a qual me apresentava, feliz e optimista, aos meus colegas de trabalho, à minha família, aos meus amigos. Mas, como vocês, também eu carregava no coração um peso ao qual não sabia dar nome ou cara. Um peso que me consumia todos os dias. Um peso que me fazia desejar o dia em que a morte, finalmente, me libertasse desta obrigação incompreensível de estar vivo. E, no entanto, como vocês, sorria. Procurava atenuar este peso assistindo a programas de televisão. Vendo a bola com amigos. Bebendo e falando com amigos. As nossas conversas, como as vossas, iam sempre dar ao mesmo ponto, por muitas voltas que déssemos. Sentíamo-nos abandonados. Pelos políticos nos quais nos habituámos a votar vezes em conta. Pelos empresários que sempre disseram que a riqueza deles seria a nossa. Pelas pessoas a quem entregámos a nossa fidelidade e amizade à espera de que nos fossem recíprocas. Por aqueles que tinham poder sobre nós. E toda a gente parecia ter poder sobre nós. Anos a fio assistimos a este desastre em câmara lenta: desemprego ou trabalho precário para quase todos, riqueza apenas para alguns; uma justiça para a classe média, outra para os ricos e impunidade para os marginais; suborno, corrupção, compadrio e gatunagem por parte daqueles que foram eleitos para cumprir a vontade do povo. Na verdade, só cumprem a pequeníssima e mesquinha vontade deles: da esquerda à direita, não passam de corruptos que compram votos e poder distribuindo o nosso dinheiro. Para eles, somos apenas os agrilhoados dóceis cuja manipulação se tornou tão fácil que já nem precisam de nos agradar aqui e ali. Habituaram-se à nossa passividade e à nossa complacência. Contam com elas. Alimentam-se delas. Um dia, porém, depois de ter chegado ao fundo do poço da minha desgraça, estando vivo apenas de nome, sem nunca realmente o estar, vi claramente que o problema não era eu. Que, a despeito de tudo quanto nos repetem todos os dias como um mantra, não somos a areia na engrenagem do progresso desejado. Não somos nós os culpados pela baixa produtividade, pela criminalidade alarmante, pela corrupção nas empresas e no estado, pela imigração que nos tira o trabalho e nos desvirtua a paisagem social, pela fraqueza que acomete os braços e pernas deste povo que outrora conquistou um país aos árabes e deu mais de meio mundo ao mundo. Não somos nós. São eles. São eles que estatizaram a sociedade, que destruíram a família e o seu sentido, que impõem agendas marginais que apenas servem para fazer implodir a coesão social e disfarçar a cobardia que têm de tomar decisões verdadeiramente importantes. São eles que reescrevem a história para que nos envergonhemos dela ao invés de nos orgulharmos dela, são eles que manipulam a comunicação social e que impedem que a verdade veja a luz do dia nas páginas dos jornais, são eles que entregam o país e os portugueses que nele habitam à Europa, aos chineses das multinacionais e dos fundos de investimento, aos terroristas islâmicos que se aproveitam das nossas fronteiras abertas e nos colonizam às claras. São eles, são a cruz no boletim de voto, a cara no cartaz numa rotunda, as frases batidas que lhes ouvimos desde sempre como se fossem transmitidas hereditariamente. São os nossos políticos. No Partido pela Verdade Democrática, não vos pedimos sequer para que votem em nós nas próximas eleições. Rogamo-vos, isso sim, que não votem naqueles que nos andam a enganar desde sempre. Votem em alguém que tenha como prioridade Portugal e o Povo Português. Votem em alguém que fale com vocês, que trabalham e contribuem, e não com os párias da sociedade que tantos nomes têm e nenhum benefício social trazem. Qualquer que ele seja e a despeito das mentiras e do medo que vos tentem influir. Votem na esperança. Precisamos de refazer esta sociedade e este destino. Precisamos cumprir Portugal.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO eu abreviado [dropcap]Q[/dropcap]uando entro no café e peço uma água das pedras e uma bica, a menina que me atende sorri e eu sorrio de volta. Nenhum de nós imiscua no comércio da vida cotidiana aquilo que de mais pesado e verdadeiro transportamos todos os dias no coração como trocos na algibeira. A maior parte das nossas interacções rege-se pela batuta da cordialidade superficial. Aquilo que somos, aquilo que temos de verdadeiramente único, escondemo-lo. Às vezes, à vista de todos; outras, em sítios de que até nós nos esquecemos. Manda a etiqueta da convivência social que não andemos nus. Não impomos a nossa intimidade física a outrem. É desadequado. É estranho. Há sítios remotos e cercados para onde vão as pessoas que têm vontade de andar em pêlo. Chamam-se colónias de nudistas e praias de nudistas. Com os nossos segredos, é muito assim; não os partilhamos desnecessariamente porque tal seria infringir um código não escrito e, simultaneamente, um sinal de vulnerabilidade e de desequilíbrio. Mas como são esses segredos que, em grande parte, nos definem, o seu radical escondimento acaba por no fundo configurar uma forma de mentira socialmente aceitável: respondemos afirmativamente às perguntas cotidianas sobre o nosso bem-estar, negamos a existência de problemas quando nos chamam a atenção pela nossa ausência, divergimos imediatamente de assunto quando confrontados com a possibilidade de alguém adquirir indevidamente informação que não pretendemos transmitir. E todos fazemos isso. O tempo todo, ou quase. Estranha forma de vida, esta, e estranhamente bela. Passamos noventa e tal porcento do tempo a fingir o que não somos para termos oportunidade de sermos o que somos para pouquíssimas pessoas por pouquíssimo tempo. É como se a vida fosse uma espécie de mina de baixo rendimento onde é necessário processar dezenas de toneladas para obter um mísero grama de ouro. Uma mina com uma rentabilidade tão negativa como a nossa já teria sido fechada. A maior parte de nós, no entanto, opta manter as portas abertas, a despeito de por vezes ter imagens muito claras do logro enorme que são as relações humanas: uma gigantesca teia de formas que supostamente devemos assumir, de acções que supostamente devemos ter, de respostas que supostamente devemos dar. E nada disto é claro, e nada disto está escrito. O código mais complexo e poderoso de regulação social encontra-se ausente de qualquer manual. De vez em quando, somos confrontados com pessoas que, em situações extremas, nos deixam nas mãos muito mais do que aquilo que tínhamos pedido. Que nos emprestam, contra a nossa vontade inicial, parte do peso que carregam e que se dispõem a receber da nossa parte a intolerância e a incompreensão ou a radical bondade de querer ajudar a encontrar no peso e na profundidade uma leveza ou um ângulo que facilite o transporte. A vida que se diz passar à frente dos olhos quando a mente antecipa a morte não corresponde a mais do que meros segundos de experiências vividas. A uma sequência de imagens de que muitas vezes desconhecíamos a importância. O eu tem uma forma de escalonar a grandeza daquilo que vivemos e o cérebro parece ter outra. Ambas correspondem na forma: qualquer vida pode reduzir-se a um filme de 30 segundos. Esses trinta segundos são a sinopse daquilo que de facto nos faz sentir únicos. São os sete ou oito picos de intensidade no sismógrafo existencial que nos definem e definem em grande parte a nossa forma de agir. O resto, o filme em si, é o cotidiano. É a mentira.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs idiotas úteis [dropcap]A[/dropcap] penúltima cena do filme Sicario, de 2015, mostra um dos protagonistas da história, um advogado de acusação mexicano chamado Alejandro Gillick – protagonizado por Benicio del Toro –, a participar numa operação da CIA que culmina na invasão da mansão de Fausto Alarcón, capo de um dos cartéis de droga mais sangrentos do México. Alejandro, separado da equipa da CIA que lhe permitiu descobrir o caminho para a casa de Alarcón, tem um motivo muito pessoal para não desistir da perseguição: este, quando Alejandro era um incómodo advogado de acusação, mandou matar-lhe a filha e a mulher. Quando chega à mansão de Alarcón, Alejandro encontra-o a jantar no jardim, tranquilamente, com a sua mulher e os seus dois filhos adolescentes. Fausto Alarcón, reconhecendo o antigo advogado de acusação e os motivos que o levam a estar ali, diz: “à frente dos miúdos, não”. Alejandro, como resposta, mata a mulher e os filhos de Alarcón antes de atirar sobre o capo di tutti capi. Brazil, 2018. Bolsonaro terá sido eleito chefe de Estado da República Brasileira ontem mesmo. Multiplicam-se as dezenas de análises políticas versando sobre as condições que levaram a que isso pudesse acontecer. Uma coisa é clara: muitos daqueles que votaram Lula e Dilma em eleições anteriores votaram agora Bolsonaro. O povo brasileiro, diz-se, ou ensandeceu ou eclodiu em fascismo. Não sendo politólogo, graças a Deus, posso avançar com o meu bitaite descomprometido de necessidade de rigor conceptual acerca do que vem acontecendo um pouco por toda a parte no mundo ocidental. Os partidos de consenso – o centrão, como sói dizer-se – têm vindo a distanciar-se cada vez mais uns dos outros e dos cidadãos. A política do possível, aquela que aproxima a vontade de partidos de eleitorados distintos e que permite a negociação de interesses opostos, foi substituída pela política de claque: confrontos hostis entre forças de esquerda e de direita fazem com que a zona de consenso tenha sido terraplanada. Ao invés de negociações e permutas, que fazem a democracia funcionar sem sobressaltos, porque se atendem a petições de sectores muito diferenciados da sociedade, temos imposições de agendas únicas: a esquerda é cada vez mais esquerda (ainda que esta esquerda de causas e de identidades não seja a esquerda de há 50 anos) e a direita cada vez mais direita. E ambas são cada vez mais surdas às necessidades de quem não lhes pertence ideologicamente. O bom senso deu lugar à radicalização. As razões de fundo a razões de forma. O apelo à calma ao apelo à turba. Há cada vez mais eleitores a não se sentirem representados por ninguém. A sentirem-se injustiçados. Há cada vez mais pessoas solidárias com o gesto aparentemente redentor de Alejandro Gillick. Frente a Fausto Alarcón, frente ao sistema que as injustiçou e que as torna mais indefesas e minúsculas que formigas à mercê de uma bota, há cada vez mais pessoas que não têm dúvidas: antes o fascismo, antes a anarquia, antes o sangue do que isto. Do que este estado ignominioso de coisas que parece beneficiar apenas e sempre os mesmos. Os do sistema. Os votos em Trump e em Bolsonaro são votos anti-sistema. São votos anti-surdez. São votos de um profundo desencanto com o estado de decomposição a que o sistema e a política que o sustenta chegou. E não perceber isso, rotulando de doidos ou de fascistas inúmeros milhões de brasileiros e de americanos que elegem fascistas ou extremistas, é não perceber sequer porque é que o vizinho insiste em não pendurar a roupa do avesso. É estar tão intoxicado de superioridade moral que se dispensam todas e quaisquer perguntas ao outro e às suas razões. Chegamos terrivelmente a este ponto por nossas próprias mãos, quando nos convencemos de que o outro – e não estou a falar dos fachos e dos nazis, que são uma minoria – é apenas um idiota útil a quem não endereçamos perguntas, mas reprimendas, quando ele age como não esperamos ou queremos que ele aja.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasProlegómenos para um manual de sobrevivência em cidades sobrepovoadas [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]nosso primeiro-ministro disse a um canal de televisão qualquer, há coisa de dias, que Portugal pode e deve receber mais turistas. Para quem esperava um módico de bom senso e de pudor por parte dos nossos governantes, estamos razoavelmente conversados. Para António Costa e Fernando Medina, as minudências de ter uma cidade selvaticamente ocupada por hordas de mochileiros expondo a periclitância das infraestruturas de Lisboa é largamente compensada pelos dividendos obtidos na forma de impostos e pela diminuição da percentagem de desemprego. É pensar em grande, dir-se-á. Não podemos deter-nos nas tragédias pessoais das rendas meteóricas, nos Robles da situação, nas lixeiras a céu aberto em que se tornaram a maior parte das ruas, no emprego precário e mal pago resultante do turismo com que se maquilham as estatísticas que se atiram para cima das mesas de reunião em Bruxelas com indisfarçável orgulho. Afinal, António Costa e Fernando Medina não vivem na cidade dos turistas, não frequentam os mesmos locais, nem sequer têm que conduzir nela; são as criaturas das garagens: saem da garagem de casa e entram na garagem dos locais para onde se deslocam. Da cidade conhecem o que se vê pelo vidro do carro e uma ou outra rua previamente higienizada para acolher uma arruada ou inauguração. “As pessoas não são números” é um belíssimo mantra pré-eleitoral. Depois da nalga bem assente na cadeira do poder, as pessoas são o que eu quiser. As coisas não vão mudar por decreto municipal ou governamental. Continuar-se-á a ordenhar a vaca até das tetas só lhe sair areia. E, ainda assim, haverá quem diga tratar-se de leite em pó. A ganância desgovernada só conhece saciedade de curto prazo. Felizmente, podemos fazer algo em relação a isto. Vivemos num tempo em que muitas das escolhas dos consumidores – e isso inclui o homo turisticus – são decididas por via de ratings e de comentários nas redes sociais e em plataformas disponíveis em qualquer smartphone. E parece ser mais fácil modificar as avaliações resultantes de uma visita a Lisboa ou ao Porto do que o comportamento de quem elegemos. Comecemos pelo básico. Graças a não sabemos que providência divina, Portugal não tem sido assolado por qualquer tipo de catástrofe. Não temos tido a atenção do Daesh, a violência urbana é residual, as doenças são as que se conhecem um pouco por todo o lado e que não demovem ninguém, o custo de vida é ainda bastante razoável e até o terremoto tem-nos feito a fineza de não despertar abruptamente. Mas, naquilo que nos compete, podemos fingir. Pode não ser o suficiente para impedir a nossa trasladação para os subúrbios dos subúrbios mas, pelo menos, não teremos saído sem dar alguma luta. Comecemos por ir para a rua de máscara, como em boa parte das cidades da ásia onde, graças à poluição, só se pode andar assim. Se nos perguntarem se é por causa da poluição, responderemos negativamente. Se insistirem em saber por que é, diremos apenas “que achamos que já não é transmissível e que já está tudo bem”. Deixemo-los laborar nos seus próprios receios. Como aprendemos com Hitchcock, uma porta fechada é mais assustadora do que o reflexo de um monstro. Abandonemos, pelo menos por algum tempo, a nossa cordialidade linguística. Nous sommes super sympa, as everybody knows, mas não carece ser sempre assim. Finjamo-nos iletrados, tontos, distraídos. Reduzamos a nossa competência nas línguas estrangeiras a uns míseros “hello” e “thank you”. Quando passarem os eléctricos sobrelotados e ávidos de captar para o Instagram os nativos na sua natividade, saquemos dos telefones e captemo-los com o mesmo embasbacamento com que eles nos fotografam. Invertendo a lógica do zoológico, pode ser que eles se manquem. Não lhes sirvamos os melhores pastéis de nata, as sardinhas mais frescas, a fatia maior do abade de priscos. Abracemos o lema “em cada ementa pelo menos três tipos de hambúrguer excessivamente passado”. As ameijoas da ria são nossas. NOSSAS. Aqueles que sobreviverem ao atrito civilizacional, adoptemo-los. Serão certamente os melhores. E, como em qualquer relação, temos de ser conquistados.
Valério Romão h | Artes, Letras e Ideias MancheteTodos os nomes [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] minha mãe foi perdendo nomes. Há cerca de vinte anos, quando teve que renovar o bilhete de identidade – agora cartão de cidadão –, perdeu um apelido: Pereira. De Maria José Pereira Romão, passou para Maria José Romão. Nem se deu conta. A minha irmã, no entanto, ao pedir-lhe o bilhete de identidade para tratar de uma burocracia qualquer é que notou: mãe, como é que perdeste um nome?, perguntou-lhe. A minha mãe não foi capaz de responder. Até hoje não sabe. Quanto mais velhos somos, mais vezes temos de renovar os documentos que atestam a nossa identidade ou nos permitem conduzir. Como se, em se aproximando a hora que o estado calcula ser o limite do nosso fôlego, tivéssemos de prestar provas de que ainda respiramos muito mais frequentemente para aplacar a desconfiança de quem vê na morte apenas mais uma possibilidade de fraude. A minha mãe, que já leva no alforje umas respeitáveis décadas, teve de renovar o cartão de cidadão há meia dúzia de anos. Maria José, ficou. Perdeu o apelido que recebera do meu pai no casamento de ambos. Como é que é possível, perguntei quando soube, isto não devia ser um processo automático? Tenho a ideia de que renovar o cartão de cidadão não consiste em soletrar os nomes que fazem um nome perante um burocrata meio surdo ou meio tolo, cabendo-lhe em desatenção ou dureza de ouvido a culpa da míngua onomástica. Não será igualmente uma questão de transporte ou de logística: os nomes que fazem um nome não estão depositados num armazém de onde são retirados quando um cidadão precisa de renovar um documento. “Ó Zé, foste tu que deixaste cair um Alves?”. “Nepia, eu hoje só me tem calhado Silvas e Pachecos. Vê se terá sido o Rogério”. ”Seja quem for, tem que vir buscar isto rápido, antes que apodreça”. Podia ser assim, explicava muita coisa e até seria divertido. Mas não é. Perder um apelido tem o seu quê de insólito, e é uma história perfeita para desbloquear uma conversa num jantar ou numa reunião, mas acarreta algumas consequências práticas sem qualquer piada. A minha mãe tem de fazer uma prova de vida anual perante o estado francês para continuar a receber uma pensão de reforma que lhe cabe pelos anos que o meu pai trabalhou em França (sempre me pareceu maravilhosa esta coisa da prova de vida, imagino uma fila de velhotes a respirar, à vez, para um espelhinho, sendo que aquele que não lograsse embaciá-lo seria declarado “tecnicamente morto” e inapto para os benefícios dependentes da prova). Já foi difícil explicar-lhes(?) da primeira vez que a minha mãe tinha perdido um nome. Inventámos um problema informático, uma certidão equívoca, uma funcionária desatenta. Os franceses, a contragosto, aceitaram. Desta feita, e com estatuto de infractores repetentes, a coisa complicou-se muito e precisámos de reunir um número considerável de depoimentos a atestar a vida da minha mãe e a nossa boa-fé. O estado – qualquer estado – desconfia da morte quando há descendentes envolvidos. Às vezes divirto-me a pensar que este processo pelo qual a minha mãe tem passado, involuntariamente, devia ser obrigatório. Um tipo nasceria com uma série de nomes que, à medida dos anos pesando sobre os ossos, iriam sendo retirados até ficarmos só com a primeira letra do primeiro nome. Depois era só esperar que a ceifeira reparasse em nós e saímos daqui tão limpinhos como quando entrámos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs disponíveis [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão há emprego onde um tipo não se depare com esta casta particular de trabalhadores. À primeira vista, parecem estar lá para descomplicar situações: oferecem-se para colmatar a ausência de um colega adoentado, para executar uma tarefa para a qual não têm competências, para entrar mais cedo ou sair mais tarde. A devoção que manifestam ancora-se no medo que têm de ser prescindíveis ou numa auto-estima comatosa que necessita de palmadinhas nas costas para arrebitar. Às vezes, em ambas. Não sabem dizer que não. Acatam ordens como se estas se tratassem de dogmas. Estão lá para o que der e vier. Literalmente. Por todos os trabalhos que passei, os disponíveis sempre foram aqueles que mais prejudicaram as condições laborais deles e dos seus colegas. Metendo medo ou ego à frente de horários e regras, acabam por criar para o empregador uma zona cinzenta, contígua à definida pelo contrato, onde a exploração legalizada encontra forma de continuar a ordenha dos famélicos sem o prurido decorrente de ter que assumir a sua ilegitimidade e avareza: afinal, se o Silva se ofereceu, nenhum mal advirá ao mundo de pedirmos a outro para fazer o mesmo. “Sim, é verdade que o horário é até às 19H, mas há que fazer a caixa, limpar e arrumar e fechar a loja, pelo que é natural que saia às 20H. O Silva, ontem, ficou até às 21H para atender uma família de japoneses que entraram em cima da hora e não perder essas vendas.” “De facto, devíamos ter os turnos escalonados com mais antecipação, mas há muitos imprevistos e o Silva na semana passada até se ofereceu para fazer dois turnos de seguida porque um colega faltou.” “É claro que tem hora de almoço, mas era preferível comerem na recepção, onde podem continuar a atender clientes, do que num restaurante ou assim. O Silva come sempre cá e em quinze minutos apenas.” Quando um Silva abdica de respeitar uma regra, sofrem todos os outros apelidos. Uma relação entre patrão e trabalhador é semelhante a uma relação entre adulto e criança: basta falhar uma vez para tornar infrutífera uma insistência coerente de anos. O Silva, por via da sua disponibilidade infinita, mete em causa não somente aqueles que o rodeiam como toda uma história de conquistas laborais que o precedem. Para o Silva, há dias em que vai trabalhar no Séc. XXI na Europa, dias em que vai trabalhar na China, dias em que vai trabalhar nos finais do Séc. XIX. A sua peculiar disposição para disponibilidade indevida acaba por lhe conferir, aos olhos do empregador, uma dupla patine: para além da sua generosidade laboral, é ainda pouco apreciado pelos calões que o rodeiam. Os calões, diga-se, são aqueles que tentam cumprir as regras e os horários. “Por mim, o Silva pode trabalhar até às seis da manhã, se quiser, e aviar todos os japoneses de Tóquio numa noite. Nem eu sou o Silva nem o Silva é modelo para qualquer empresa”. “O Silva, se quiser, pode nem ir a casa. Eu tenho uma vida, uma família, outros afazeres e ocupações. Preciso de definição no que diz respeito a horários e turnos.” “Se a questão se coloca dessa forma, nem há conversa. O Silva podia vir trabalhar de soro na veia para não ter que perder tempo a comer. Eu tenho uma hora de almoço e nessa hora vou fazer o que quiser. O que inclui não querer estar no local onde passo as restantes sete.” Se de cada vez que um Silva se apressa a militar no esclavagismo houvesse um patrão que o proibisse ou um Ferreira que lhe mostrasse o lado obscuro da disponibilidade gratuita, talvez os restantes apelidos deste mundo não tivessem que emular este empreendedorismo de amochado para justificarem os seus postos de trabalho. Arranjem uma namorada ao Silva, um hobby, um gato bebé que tenha de ser alimentado de hora a hora. Arranjem-lhe uma vida.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA rainha das faculdades [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hesterton diz no primeiro capítulo da Ortodoxia que um homem sem imaginação é louco; que não é a ausência de racionalidade, mas o excesso, que torna os homens dementes. O nosso entendimento da loucura é normalmente inverso: mesmo sem pensar nisso, achamos que a loucura – pelo menos uma boa parte – resulta de um excesso imaginativo e de um défice de racionalidade. Chesterton argumenta precisamente o contrário. Para ele, a racionalidade em excesso corresponde, simbolicamente, à figura do círculo e da espiral, duas figuras ilimitadas (um homem pode caminhar para sempre sobre um trajecto em círculo e cair para sempre dentro de uma espiral) mas absolutamente finitas. Um homem que acredita ser Napoleão vive circularmente. Tudo o que está à sua volta está relacionado – ou relaciona-se imediatamente – com a sua forma específica de loucura. Tudo quanto aparece confirma aquilo em que acredita ou, no caso contrário, é interpretado como um sinal da grande cabala pela qual o querem destituir da sua crença e dos direitos que esta promete granjear. Está preso a uma ideia da qual não consegue abstrair-se e de que não se consegue distrair. Caminha em círculos. Se conseguisse imaginar outra coisa ou relaxar por momentos, aquela ilusão podia desabar e o véu que a caracteriza podia desaparecer. Mas este homem é escravo da racionalidade, na forma de uma ideia que tudo polariza e nada deixa de fora. Nem o caminho de saída. Num texto chamado Advice to a Graduation, proferido no Canadá em 1964, para alunos finalistas do Royal Conservatory of Music, Glenn Gould diz “Devem tentar descobrir o grau de tolerância que têm às perguntas que fazem a vocês mesmos. Devem tentar perceber qual o ponto depois do qual a exploração criativa – perguntas que engrandecem a vossa visão do mundo – abrange mais do que aquilo que é tolerável e paralisa a imaginação, confrontando-a com demasiadas possibilidades, demasiada oportunidade especulativa. Encontrar esse ponto no qual as questões práticas do pensamento sistemático e as oportunidades especulativas do instinto criativo estão em equilíbrio é o mais difícil e importante empreendimento da vossa vida na música.” A imaginação, para Gould, não somente é indispensável à manutenção da normalidade como é a faculdade pela qual o instinto criativo organiza o espaço negativo que o rodeia em qualquer coisa que corresponderá, mais tarde, a um adquirido do pensamento sistemático. O sistema é uma ilhota frágil a partir da qual o homem mergulha para recolher algo que possa trazer para a sua ilha para torná-la mais vasta ou mais sólida. A imaginação é a faculdade do mergulho em apneia. “a linha que divide o cérebro e a alma é afectada de diversas formas através da experiência – alguns perdem completamente a mente e tornam-se apenas alma: lunáticos. alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente: intelectuais. alguns perdem ambas e tornam-se: aceites.” Bukowski, no poema supracitado – Lifedance – parece indicar que a imaginação (neste caso, sob a regência da alma) é a única coisa pela qual um homem pode evitar tornar-se intelectual. Este intelectual de Bukowski não corresponde à noção positiva de produção de conhecimento mas a uma coisa exangue, repetitiva e impermeável à novidade e à mudança. Algo ao modo do louco de Chesterton, mas socialmente sancionado, logo, mais perigoso. Há um lado em mim, muito racional, ao qual o romantismo das afirmações grandiosas acerca da imaginação e das suas virtudes lhe faz comichão cínica. Talvez seja o adulto que tenta amordaçar a criança que teima em espernear ainda. Mas quando olho para o mundo em meu redor – e tenho evitado fazê-lo, por razões a que nenhum de nós é alheio – penso que a única possibilidade que se nos apresenta, enquanto espécie, é a de imaginar uma saída. Porque duvido que a encontremos se apenas nos limitarmos a procurá-la.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasFechem tudo, caramba [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]echaram o Adamastor. A Câmara Municipal de Lisboa, a pretexto da “Requalificação do Jardim do Miradouro de Santa Catarina”, elenca objectivos como “melhor segurança” e “melhor ambiente urbano” para gradear o icónico miradouro de Lisboa. Por ora, a vedação é provisória, mas a Câmara assegura que pretende torná-la definitiva, para assim poder controlar o acesso ao espaço. O Adamastor tem muitos problemas que não vêm de hoje. Falta de higiene – que as casas de banho públicas deficientemente cuidadas não resolvem –, excesso de vasilhame resultante das noites de festa no local, algum barulho, alguma confusão. Mas tem igualmente condições únicas e incríveis: é um espaço verdadeiramente democrático, onde convivem criaturas de esferas sociais e culturais inteiramente diversas, betos e amigos do djembê, turistas e moradores, miúdos de escola e velhos sequiosos de sol. A pressa em resolver o “problema” do Adamastor não será alheia ao facto de ter sido implementado um hotel de cinco estrelas a poucos metros do Miradouro. No Booking.com, o Hotel é descrito do seguinte modo “Esta luxuosa propriedade beneficia de uma localização privilegiada, no centro histórico de Lisboa e oferece vista para o Rio Tejo. O Verride Palácio Santa Catarina disponibiliza quartos e suites elegantes, que combinam detalhes vintage com confortos modernos. A área do último piso do edifício proporciona vistas deslumbrantes de 360º para a cidade.” Paula Marques, directora do Hotel, diz ao Público: “O problema são os traficantes aqui em volta. Ao longo da rua, com os clientes a virem para o hotel, são abordados esquina sim, esquina sim por traficantes. Não acho que a segurança seja uma questão, o problema é mesmo a abordagem insistente. Não é uma vez, são várias vezes.” Várias vezes, veja-se o topete destes traficantes. O que está em causa no Adamastor é sintomático de um problema mais vasto. Lisboa é uma cidade excepcional por diversos motivos, mas um deles é precisamente a convivência transversal e relativamente pacífica de pessoas de diversas proveniências. Não é uma cidade guetizada, higienizada, falsa. No mesmo edifício podemos ter uma tasca frequentada pelos bêbedos profissionais do Caís do Sodré e uma gelataria gourmet. E uma coisa não choca com a outra porque as coisas foram acontecendo assim, organicamente. Como a vida. É esta ocorrência múltipla e desordenada de modos de vida diferentes que lhe dá um carisma único e irrepetível. Diria mesmo que é isto que as pessoas vêm ver. E é isto que o capitalismo, na sua vertente mais estúpida e incisiva, quer destruir. Para quem não conhece Lisboa, para os departamentos de marketing das agências de viagem um pouco por todo o mundo, esta liberdade é inadmissível. Há que domar a vida pulsante da cidade e torná-la mais civilizada – a saber, plástica, artificial, redundante. Há que planear e executar a Lisboa que se pretende para o turista de classe média francês, para o abonado russo, para o chinês investidor. Porque Lisboa não pode ser só Lisboa, tem que ser um produto. Até isso acontecer, esta gente não vai descansar. Já ouvimos ou presenciámos histórias semelhantes. Às vezes é uma cidade que vai acolher os jogos olímpicos e de onde os cães vadios desaparecem misteriosamente antes da cerimónia de abertura. Às vezes são os pobres que deixam de ser vistos. A cultura do empreendedorismo não admite sequer a existência visual daquilo que esta considera ser o fracasso. Tudo o que é vivo e livre tem que ser reconduzido à lógica do parque de diversões temático. Até que, de cidades inteiras, restem unicamente os edifícios – renovados e silenciosos – e uma mão-cheia de figurantes pagos para passar por locais.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO corpo digital [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e há uma coisa que as redes sociais vieram inequivocamente provar é que não estávamos preparados para as redes sociais. A forma como a nossa identidade habita o espaço cibernético é assaz diferente daquela a que estamos acostumados. Por um lado, a nossa voz está “ali”. Mas é uma presença amputada, já que esta dispensa o corpo. E talvez a imortalidade tão almejada pelo humano desde sempre – sem qualquer noção das consequências que dela podem advir – acabe por ser isso mesmo: uma consciência desprovida de corpo, visto que o corpo, como toda a matéria, está exposto à degradação que o tempo provoca. Mais a mais, e mesmo que o corpo fosse incorruptível, subsistiria um problema de monta: se todos fôssemos imortais, o espaço disponível para nos albergar seria sempre limitado. As almas, mesmo que na versão digital, são muito mais económicas na área que ocupam. Ora esta ausência de corpo é porventura o aspecto que melhor define a radicalidade das posições do sujeito digital. Não é raro vermos sujeitos, no Facebook – sujeitos que conhecemos pessoalmente e que prezamos pela capacidade de diálogo e pela moderação – demonstrarem uma extraordinária intolerância perante opiniões que não perfilham. Intolerância amiúde acompanhada de violência verbal. Esta síndrome Mr. Hyde cibernético, pela qual um sujeito cordial na vida quotidiana se transforma num arruaceiro digital radica fundamentalmente na ausência de corpo que é a marca de água da presença da identidade nas redes sociais. Do corpo e da forma como este condiciona e define a nossa relação com outrem. De facto, não há consequências físicas para o excesso de tenacidade com que defendemos determinada posição. Não há olhares que se cruzam, não há os múltiplos indícios pelos quais o nosso substrato animal percebe imediatamente a fronteira da passagem do confronto verbal ao confronto físico. O sujeito que discute na internet não aposta o corpo nessa discussão. É apenas um tipo num quarto com um teclado sob os dedos e a possibilidade de transcender o constrangimento físico que advém de estar cara a cara com aquele com quem se discute. Pode crescer à vontade em volume e violência. Pode crescer infinitamente. Esta ausência de consequências físicas dá azo aos comportamentos arruaceiros que vemos um pouco por todo o lado, desde as caixas de comentários dos jornais aos murais do Facebook. Como canta Sérgio Godinho “foi muita liberdade de uma só vez / e o rapaz está confuso”. Até a característica fundamental das redes sociais que podia prevenir este tipo de atitude – que é a memória infinita e infinitamente precisa que subjaz à internet – não é suficiente para condicionar e restringir o excesso. O sujeito conta – e bem – com a rapidez esmagadora dos conteúdos digitais a que estamos expostos. Dada ao particular confinamento do nosso foco de atenção, uma coisa rapidamente substitui outra no fluxo de consciência. O que resta saber, em boa verdade, é se com o tempo conseguiremos crescer civilizacionalmente e sair deste wild west digital onde nos encontramos ou se, pelo contrário, a ausência de corpo e das consequências a que este está sujeito condicionará sempre a nossa presença cibernética. No melhor dos cenários, ultrapassaremos esta infância digital de algum modo. No pior, a violência virtual acabará por nos transformar e por transformar o modo como nos relacionamos com os outros “cá fora”. A despeito do corpo.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm adeus invisível [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s redes sociais vieram revolucionar a forma como fazemos negócios, como acedemos à informação ou como ouvimos música. Mas acabaram por mudar, ainda que mais subtil e gradualmente, a forma como nos relacionamos. Por um lado, alargaram o campo de possibilidades: a nossa presença online permite-nos não depender do corpo e da sua geografia existencial para encetar ou manter contacto com alguém. Habituámo-nos a dispor de duas formas de apresentação distintas: no Facebook (e restantes redes sociais) e pessoalmente. Uma não exclui nem complementa a outra. São dois mundos que – embora por vezes se possam sobrepor – têm uma existência perfeitamente independente. Esta adjudicação mais ou menos involuntária de um património alargado de conhecimentos virtuais não acontece sem um acréscimo de ansiedade da nossa parte. De repente, este “outro mundo” passa a exigir-nos uma atenção existencial: há toda uma série de comportamentos e de reacções digitais que nos convidam a estar atentos e a interagir. Seja na apreciação do conteúdo que os outros colocam na rede, seja na análise do modo como os outros reagem ao que fazemos online. Este mundo fosforescente não é – ainda – um substituto da realidade física e do leque de estímulos e perspectivas que esta possibilita. É antes um faz-de-conta assaz elaborado que nos permite ter uma presença social semi-velada, semi-comprometida de que podemos dispor sem o receio de que as nossas escolhas tenham as consequências que estas costumam ter no “mundo real”. Mas esta vida dupla não acarreta somente a ansiedade da notificação. Traz também o conforto de ter sob a alçada dos polegares um conjunto de situações no formato da disponibilidade. Se fulano não pode sair hoje há sempre sicrano ou beltrano – e, coincidência, até estão online; se a mulher ou homem com quem estou decide, por algum motivo, deixar-me, não fico refém da minha limitada geografia existencial para suprir as necessidades que uma relação colmata. Mas nem precisamos de chegar ao limite supra-enunciado: o próprio balancete a que estão sujeitas todas as relações – e que lhes determina o futuro – é afectado pela aparente amplitude de possibilidades que o virtual dispõe sobre o tecido do tempo. A paciência para solucionar as fricções que necessariamente advêm do contacto continuado entre duas pessoas é menor; a disposição para fazer as mudanças que permitem aumentar o grau geral de tolerância numa relação diminuem. Tudo o que é difícil parece ou fica mais difícil. Desde logo, encetar ou terminar uma relação parecem ser os únicos momentos em que as coisas são mais fáceis que dantes. Ghosting é a palavra escolhida para o fenómeno que consiste em determinado sujeito eclipsar-se numa relação. É o equivalente contemporâneo a “ir comprar tabaco” e a forma mais eficiente de alguém se ver livre de um compromisso sem as consequências que advêm de verbalizá-lo. Sem conversas, sem justificações, sem lágrimas. A forma como já tínhamos higienizado da morte da vida contemporânea estendeu-se agora aos finais de relação. Para quê perder tempo e apanhar uma camada de nervos quando dispomos do silêncio para anunciar a nossa saída de cena? No máximo um “não sei o que te dizer” ou “deixo-te as chaves” e o outro que resolva as ambiguidades de sentido. É fácil. É tudo fácil.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO Verão há muito tempo [dropcap style=’circle’] N [/dropcap] a minha infância, o Verão anunciava um horizonte inteiramente diferente daquele que vigorava no resto do ano. Era uma espécie de intervalo que redimia os meses de frio e de solidão em Clermont-Ferrand, França. O inverno em Clermont-Ferrand era sinónimo de frio e de neve. Ao contrário da imagem romântica que temos da neve – e num país como Portugal, só se pode ter uma imagem romântica – a época da neve não corresponde a parzinhos românticos dançando no gelo, felizes, em pleno Central Park, ou a bonecos alvos salpicados de vegetais fingindo narizes e olhos. Na maior parte do tempo em que neva, a vida quotidiana e a poluição encarregam-se de transformar as ruas num lamaçal castanho que toda a gente gostaria de evitar e não o consegue. Eu tenho demasiados genes portugueses para a vida naquelas condições climatéricas. Para além de uma asma que acordava em Outubro para adormecer apenas em Maio, tinha amigdalites constantes no Inverno, período no qual a minha dieta se resumia a leite quente e antibióticos. O próprio acto de sair à rua, com temperaturas negativas e vestindo malhas sobre malhas, era um acontecimento para o qual tinha de me preparar psicologicamente. Os dias em que não tínhamos aulas eram, para mim, os mais felizes (e eu gostava de ter aulas). Em Agosto, como a maior parte dos emigrantes, regressávamos a Portugal. Com o carro carregado de parafernália electrónica, queijo Brie e brinquedos, empreendíamos a viagem de carro que durava dois dias e duas noites de Clermont-Ferrand a Tavira. Em Tavira, os miúdos da minha idade ficavam a olhar para o nosso carro, um Renault 18 GTL que, não sendo de todo um modelo de topo, fazia ainda assim um brilharete. Lembro-me dos olhares de espanto das crianças quando eu lhes mostrava os vidros eléctricos. Aquela banalidade ao nível de ligar e desligar a luz, em França, era em Tavira pouco menos que magia. As famílias das minhas irmãs recebiam-nos como reis magos temporãos. Da goela do porta-bagagens do Renault saíam objectivas e máquinas fotográficas para um cunhado fotógrafo, acessórios de caça para um cunhado de clique mais barulhento, brinquedos para os meus sobrinhos, roupa para as minhas irmãs, iguarias francesas para todos. Sentia-me feliz com aquela distribuição de prendas, sentia que bastava pouco para fazer os outros felizes. A família era como o Verão: tinha uma época e era simples. Na praia eu era invariavelmente a criatura mais branca sobre a areia. Acabava o Verão com inveja do meu sobrinho, apenas um ano mais novo e consideravelmente mais escuro que eu. Eu começava a temporada num tom azul-claro e, passando de leve pelo branco, ia directamente para o vermelho. Não tinha jeito para aquela forma de ser português, descontraído e alheio à necessidade de protector solar. A minha pele absorvera demasiada frança, demasiada neve. Quando acabava o Verão, a pouca cor que adquirira naquele mês de praia dissipava-se no regresso a França e, já na escola, quando me perguntavam pelo que tinha feito nas férias e eu respondia “praia”, orgulhoso, o resto da turma ria-se. Para aquela medalha de veraneante, os meus genes portugueses nunca chegaram.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO peso do braço [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente ouvirmos louvores acerca do trabalho e dos méritos de quem sobe a pulso na vida com pouco mais do que o suor do rosto. Nem o Cristiano Ronaldo escapa às loas que se tecem sobre o esforço e as suas recompensas. Como o português de César Monteiro, Cristiano Ronaldo não nasceu Cristiano Ronaldo, tornou-se Cristiano Ronaldo. E isso fá-lo ainda mais extraordinário. Melhor que o Messi. Este louvor do trabalho e do sucesso que lhe corresponde ou deve corresponder é uma das pedras basilares da sociedade capitalista. Sem ele e sem a promessa de mobilidade social que lhe está associada, seria difícil manter um sistema de cariz democrático a funcionar sem sobressaltos de maior. As pessoas continuam a ir a jogo porque existe – nem que seja apenas em teoria – a possibilidade de lhes sair a sorte grande. Mas para tal, e para começar, têm de se esforçar. Arduamente. Nos primeiros anos da longa carreira contributiva a que estamos votados, não nos poupamos a esforços. Entusiasmados com a ilusão do caminho glorioso que se abre à nossa frente, cumprimos diligentemente aquilo que é esperado de nós e mais, muito mais. O credo diz que o esforço há-de ser recompensado. Reparamos nalgumas inconsistências a que damos pouca importância: um tipo que entra para um lugar para o qual não tem currículo adequado ou suficiente, mas que mostra ter uma relação inesperadamente afável com aquele director de departamento que não passa cartucho a ninguém; um aumento concedido àquele sujeito cuja única característica de monta é dizer que sim entusiasticamente a qualquer ideia, por mais trôpega que seja, que os seus superiores atirem para a mesa. Com o tempo, vamos percebendo as minudências pelas quais se rege o jogo empresarial, todo ele muito menos limpo e transparente do que o publicitado. As inconsistências deixam de ser excepções à regra e passam a ser, elas próprias, as normas sub-reptícias que regem o jogo. A competência, o profissionalismo e, sobretudo, o trabalho árduo, ou não são suficientes para assegurar a progressão de carreira antecipada ou são mesmo obstáculos a que tal aconteça. Enquanto isso, vicejam os bajuladores, os atrevidos e, muito especialmente, os chicos-espertos. Damos conta, muitas vezes assaz tarde, de estarmos a viver num mundo ao contrário, um mundo que se descreve a si próprio como um paradigma de justiça e equidade mas que, na verdade, se vive exactamente ao contrário, e damos por nós a pensar em como é que este mundo se aguenta e se tem aguentado durante tanto tempo, como é que não só se parece aguentar, com um crescimento económico apenas interrompido por correcções de mercado ou pela inevitável ganância financeira a fazer os seus estragos, como parece florescer malgrado o substrato malsão de que é composto. E damos conta, inevitavelmente, de que esta coisa da meritocracia é uma espécie de Disney – com os seus príncipes e as suas princesas – para adultos. Nesse momento, a juventude e a energia ficaram pelo caminho. E é com isso que o sistema conta: com a nossa ilusão e o nosso vigor de jovens e com a nossa resignação e placidez de velhos. É assim que a máquina funciona e continua a funcionar. Li algures que numa daquelas conferências sobre o futuro da economia mundial e acerca da inteligência artificial e das suas consequências um dos assistentes, um empresário de renome com fábricas um pouco por todo o mundo, interrompeu o orador quando este discursava, empolgado, sobre um futuro livre do baraço do trabalho, um futuro em que cada um estivesse livre de labutar a vida toda a troco de umas migalhas de pão: “e que farão as pessoas sem os seus empregos?”, perguntou, indignado. “Outras coisas”, respondeu o orador, “tudo o que quiserem e que nunca puderam fazer”. “Isso nunca vai acontecer”, contrapôs o empresário. Não, por eles isso nunca vai acontecer.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAgora, o regresso [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me de quando ganhámos o Euro. Vi o jogo com uns amigos nos kebabs do largo do Conde Barão. Os paquistaneses tinham instalado uma televisão na esplanada e asseguravam um fluxo ininterrupto de cerveja do balcão para as mesas. Quando Fernando Santos fez entrar Éder, aqueles de entre nós que percebiam de bola um bocadinho mais de bola do que o adepto instantâneo que surge em todos os europeus e mundial jogaram as mãos à cabeça. O Éder? O Éder era aquele tipo alto e mal jeitoso que tinha uma relação mais complicada com o golo do que um neurótico com a mãe. O Éder estava lá porque tínhamos vergonha de apresentar uma convocatória desprovida de pontas-de-lança. Se calhar era um gajo que animava o balneário. Se calhar era o talismã ou a mascote. Mas não era certamente pelo talento para o jogo que tinha sido convocado. Quando o Éder marcou, o mundo (pelo menos em Portugal) veio compreensivelmente abaixo. Era como se de repente todo o karma e todas as coisas maravilhosas passíveis de terem acontecido e de nos virem a acontecer tivessem confluído naquele ponto específico de espaço-tempo para nos redimirem de todas as vitórias morais, de todos os quase, da eterna maldição de sermos uma das melhores selecções do mundo sem baliza. Os deuses, por uma vez na vida, tinham engraçado connosco. Celebrámos com abraços prováveis e improváveis. Lembro-me do empregado de mesa gritar “Portugal” como se tivesse sido possuído pelo espírito de um tenor num ataque de fúria doméstica. Quando soou o apito final, os donos dos kebabs deixaram de receber pela cerveja. Estiveram abertos até às seis da manhã a servir copos à pala. Afinal, não se é campeão europeu todos os dias e eles, portugueses por opção, festejaram como se tivessem no ADN um Afonso Henriques pronto a despertar. Passados alguns dias, a euforia deu lugar a um contentamento envergonhado. Afinal, a presença na final tinha sido uma surpresa, tendo em conta o desempenho dos recém-empossados campeões europeus nas fases de grupo e nas eliminatórias. Ao contrário daquilo que estávamos habituados há uns dez anos, Portugal jogava mal e aborrecidamente e ganhava. Ou melhor, empatava no tempo regulamentar e decidia a coisa nos penalties ou através de um golo fortuito no tempo complementar. Era uma espécie de Itália sem a vocação ultradefensiva mas com muito mais sorte. No fundo, e não queríamos olhar a coisa por esse ângulo, mas havia uma parte de nós que sabia não que não merecíamos aquela vitória inusitada. Por outra parte, tínhamos o Ronaldo, e quem tem o Ronaldo arrisca-se a ganhar sem ter que justificar nada. Este mundial, penoso de assistir, veio confirmar o que já sabíamos: a selecção dos anos noventa, a melhor do mundo sem balizas, já foi. Portugal é uma equipa regular, pragmática sem ser cínica, voluntariosa mas atabalhoada e solidária com a ideia de que Ronaldo tem a obrigação de resolver. É uma espécie de funcionário mais ou menos zeloso, mais ou menos competente, à espera da sorte de um deslize alheio para lhe calhar a promoção. Faz-me lembrar uma reportagem da saudosa liga dos últimos na qual um jogador de uma equipa da terceira divisão repetia, sem fim à vista, “somos todos humanos, onze contra onze, vamos danificar a camisola do clube”. Ao contrário desse jogador, já não temos a ideia de que vamos deixar tudo em campo no processo. Portugal já não é um país de românticos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA infância ao longo da vida [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] infância é o território pluripotencial do sonho. Tudo é possível. Podemos ser astronautas, veterinários, bailarinos. Nascemos ilimitados para o mundo, mesmo quando este se revela um lugar inóspito onde só parece vicejar a miséria, e a idade é um funil poroso através do qual vamos actualizando ou perdendo as possibilidades com que todos nascemos. Como se levássemos um grupo de miúdos pela mão a passear e nos déssemos conta, a certa altura, de termos deixado mais de metade pelo caminho. Quando era criança, queria ser astronauta. O grande mistério – e o grande interesse – era o que estava longe. Longe estava igualmente de perceber que a proximidade não era de todo sinónimo de clareza e que as motivações dos homens podiam ser tão insondáveis como a mais distante estrela. Com sete ou oito anos, pedi ao meu pai para me comprar um livro especial: “Astronomia para amadores”. Se queria ser astronauta, era importante preparar-me teoricamente. Tudo me fascinava. Os tipos de estrelas; as suas dimensões e temperaturas incompreensíveis; a velocidade da luz no vácuo; a distância entre os corpos celestes. Estava convencido de que havia uma organização inteligente por detrás da composição de um espectáculo aparentemente tão perfeito. E estava convencido de que tornar-me astronauta era ter a possibilidade de chegar mais perto do mistério. Como é óbvio, e embora a paixão pela astronomia não se tenha dissipado com a idade, não me tornei astronauta. Como muito de vocês não se tornaram veterinários, actores ou bombeiros. Deixámos isso na infância e pelo caminho alimentámos outros sonhos, outras possibilidades. Ser adulto é também – e sobretudo – isso: conformar-nos com a realidade. Como aquelas ementas deliciosas das quais afinal só sobram meia dúzia de pratos que eram as nossas terceiras escolhas. Quando olho para trás, percebo que não foram as estrelas ou as constelações que me fizeram apaixonar pelo espaço. Foi o mistério, essa intangibilidade de muitos nomes. O mistério que atrai tanto os poetas como os filósofos e teólogos. O mistério que de algum modo justifica e dá sentido a esta existência infinitesimal que fingimos, logo de manhã ao acordar, ter espessura. Escrever tornou-se para mim uma forma de tentar acercar-me do mistério. É o meu espaço possível. É onde encontro a infância, o outro, o exótico e o familiar, os meus mortos e os mortos alheios, aquilo que deixei pelo caminho e aquilo com que fui substituindo o que deixei. Dir-se-á que é um fraco paliativo para a contemplação da terra na órbita da mesma. Verdade. Mas há quem não tenha encontrado um paliativo. E há esteja tão distraído com a seriedade que impõe ao dia-a-dia que já não dá conta de que este é apenas um aspecto ínfimo de uma coisa muito mais vasta e permanente.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasNão dá mais [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez foi o Bourdain. Sem que nada o previsse, decidiu fazer check out. Para nós, que assistimos à morte alheia do conforto do sofá, é incompreensível. Quase todos trocaríamos os nossos empregos das nove às seis para fazer o que ele fazia: viajar pelo mundo, conhecer pessoas e comidas diferentes e falar sobre essas experiências. Aparentemente, ele tinha concretizado – pelo menos profissionalmente – o sonho que move a maior parte de nós e ao qual muito raramente logramos chegar. Não sei da história clínica do Bourdain. Não interessa. Um tipo para pôr fim à vida não precisa de história clínica. Esta só serve para prover uma explicação mais convincente – havendo antecedentes – para algo que em si já comporta a sua própria explicação: não dá mais. A morte voluntária é a derradeira das saídas. O caminho que se toma quando nenhum outro parece fazer sentido. E quanto a isto, o mundo divide-se em dois. Há aqueles que percebem ou tentam perceber este acto tão radical e esses, de algum modo, já sentiram o peso dessa sombra, mesmo que de muito longe. E há os outros, que munidos de uma camada extra de resistência ou de certa forma imunes ao canto desta sereia, não encontram justificação para a escolha de Bourdain. A diferença entre uns e outros é que os primeiros não podem regressar ao estado de perplexidade dos segundos, enquanto que estes, a qualquer momento, podem vir a compreender os primeiros. A nossa peculiar constituição assenta num pilar inequívoco: desde que nos conhecemos que estamos destinados a tomar conta de nós. Como se cada um se levasse a si próprio ao colo em direcção ao futuro. Este tomar conta de si próprio não implica que se façam sempre as melhores escolhas, implica apenas que a vida tem uma estrutura temporal e que o sujeito navega dentro dessa estrutura por via das decisões que toma. Das mais simples – como refugiar-se do sol em dias de calor – até às mais sofisticadas – escolher uma profissão e traçar planos para que essa escolha se cumpra. A desistência é, ela própria, uma escolha. Por muitas escolhas que façamos e por muito acertadas que estas pareçam ser, podemos ficar sempre aquém do sentido mínimo exigível para continuarmos por cá. Por muito que façamos e por muito escudados que nos encontremos pelos nossos sucessos e pelas nossas conquistas, podemos encontrar-nos expostos a uma dor de tal magnitude que nenhuma carapaça lhe é impermeável. Essa dor, tenhamo-la perfilhado ou descoberto, faz ninho no coração e fala-nos ao ouvido. Exige de nós uma atenção que não estamos em condições de lhe recusar. Como o cavalheiro de que Eça fala algures, interpela-nos travando-nos pelo braço. É essa dor que podemos carregar vida fora como um segredo ou como uma medalha. Podemos fazer tudo para minorar os seus efeitos ou podemos entregar-nos a ela. Ou, como humanos que somos, uns dias uma coisa, uns dias outra. Mas um dia, depois de muito lutar, depois de muito fingir que nada se passa, encontramo-nos frente a frente com ela e, nesse dia, decidimos que não lhe daremos um segundo mais de vitória. Levamo-la pela mão, sorrimos o sorriso dos resolutos e atiramo-nos ribanceira abaixo. Para os que ficam, para os que nos amam e não compreendem esta decisão, percebam que mais não era possível, que fizemos o que estava ao nosso alcance, que a nossa maior tristeza é abandonar a festa muito mais cedo do que gostaríamos. Mas não dava mais.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO ar do tempo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei o que aconteceu à minha geração e às gerações que lhe sucederam. Provavelmente fizemos más escolhas; não devíamos ter cursado filosofia, literatura ou belas-artes. Deveríamos ter optado por percursos convencionais e seguros. Direito, porventura; gestão, economia, ciências exactas. Merecemos decerto este pântano desconfortável do desemprego e da precariedade que nos obriga a cobiçar as migalhas alheias. Merecemos ter escolhido morar no centro de Lisboa ou do Porto – quando estes eram inseguros e insalubres – para agora sermos acossados pelos senhorios que nos receberam com as mesmas mãos untadas de ganância com que agora acenam à nossa saída forçada. Merecemos conduzir um tuk tuk para pagar parte da renda, servir copos à noite para pagar parte da comida, vender galos de Barcelo em cortiça para pagar parte do arranjo do carro. É a crise, diz-se. É a nossa inaptidão para sermos assertivos e empreendedores. O mundo é dos audazes. O mundo não tem carinho pelos que abrigam debaixo do cocuruto algum tipo de consciência moral. O mundo precisa de predadores. E se calhar também precisa de nós, os incautos, os mal-jeitosos, os sensíveis; pelo menos do nosso sangue para olear as engrenagens desta máquina insaciável. Para onde quer que olhe, vejo a derrota. As espinhas quebradas, os “joelhos vergados à condição de cera”, como diz o Vasco Gato. A tristeza perene que vestimos como um uniforme pela manhã para a remover apenas na companhia daqueles que amamos. Daqueles a quem nos podemos apresentar na nossa magnífica fragilidade. E assim andam quase todos aqueles que mais admiro. Sabemos que a arte, quase toda ela, não dá dinheiro. Que é muito difícil viver de direitos de autor ou da música, tirando fenómenos de popularidade – o que na poesia, convenhamos, é quase um oximoro. Sabemos que andamos cá a fazer o que gostamos, como nos dizem, e que quem corre por gosto não cansa. Mas deixem-me dizer-vos que já não temos forças para correr. Estamos subnutridos, cansados, desapontados. Estamos sem paciência para o vosso paternalismo de quem nos trata como dispositivos de distracção descartáveis. Estamos sem cu para a forma como encaram o nosso trabalho e o nosso talento, pelo modo desavergonhado como nos pedem uma borla para entreter aqueles a quem ordenham a carteira. Estamos pejados de cicatrizes. Não temos lombo para tanta vergastada. O que vocês não compreendem, por mais que jurem praticar o desporto de sofá da moda que é apoiar a cultura, é que há um preço a pagar pelo verso, pelo quadro, pela canção. E que pagamos esse preço desde que nos lembramos. E que esse preço passa muitas vezes por uma instabilidade vital de tal ordem que muito do conforto que vocês dão por garantido nas vossas vidas é apenas uma miragem a que nunca logramos chegar nas nossas. Porque não sabemos o que é isso da velocidade de cruzeiro, da moderação, da paciência do andar seguro. Somos instáveis, incertos, desesperados. Perdemos trabalhos, namoradas e namorados, dinheiro, oportunidades, anos de vida. Pagamos esse preço desde sempre, e pagamo-lo porque é o que o verso, o quadro ou a canção no-los exige. Mas dispensamos a dupla tributação que nos querem impor, essa míngua descarada com que avaliam o nosso suor, essa troça que fazem da nossa incapacidade de nos fazermos valer. Quero que se fodam os audazes, os empreendedores, os tubarões. A malta que dá emprego e “faz isto mexer”. Queremos ser os travões da vossa carruagem, os contrapesos da vossa ganância, aqueles que um dia vos farão descarrilar. Porque já há muito tempo que a velocidade disto tudo devia ser outra.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma crónica (quase) sobre bola [dropcap style=’circle’] N [/dropcap] ão costumo escrever sobre futebol. Nem com os meus amigos falo muito de bola. Gosto de ver um bom jogo, gosto quando o Benfica ganha, gosto sobretudo de ver a alegria que invade as ruas quando os adeptos de um clube que ganha campeonato ou taça saem para festejar. Não gosto do que gravita em redor do campo e que de certo modo serve de lume brando entre o apito final de um jogo e o inicial do próximo. Os programas sobre futebol são demasiados e demasiado longos. Os formatos são previsíveis e desinteressantes: um painel de “peritos” – vulgo caceteiros profissionais e caras-de-pau encartados – insultam-se hora ou hora e meia perante a anuência complacente de um “moderador” – pago para evitar que cada programa desemboque numa batalha campal. É mais edificante e muito mais interessante assistir a um documentário sobre sexo entre insectos exóticos. Esta semana, no entanto, acabou por ser de uma invulgar violência, mesmo para os níveis a que nos habituámos. Meia centena de encapuzados invadiram o centro de treinos do Sporting para “exprimirem o seu descontentamento”, como me foi dado a ler em entrevistas com a rapaziada que lida mal com o insucesso. Como com tudo quanto é bola, foi dada uma ampla cobertura noticiaria à coisa. Todo e qualquer bicho-careta que tivesse relevância mediática foi ouvido exaustivamente. Até o presidente da Assembleia da República disse umas banalidades sobre o assunto. O país ficou reduzido a uma tasca a céu aberto onde todos se acotovelam para vociferam as suas opiniões. Portugal, quando toca a bola e doenças, é um país de especialistas. As televisões, reféns das audiências, ofereceram-se para apresentar em directo o mais pobre espectáculo de pirotécnica possível; vídeos de telemóvel em loop horas a fio, comentadores de todas as especialidades imagináveis, rodapés pejados de erros ortográfico-estagiários e a denunciarem o caos instalado no país. Um chorrilho pastoso de trivialidades desfiadas como se estivéssemos a assistir a um 9/11 em solo luso. Cada país tem o terrorismo possível. O rapaz Bruno de Carvalho, dotado de uma demasiado óbvia instabilidade mental para o cargo que ocupa, falou, falou, falou. Surpreendeu apenas aqueles que esperavam dele alguma contenção verbal e um módico savoir-faire na altura de apaziguar os ânimos. Como qualquer narcisista profissional, a gravidade do assunto não o melindrou um instante que fosse; a doçura do holofote apazigua qualquer tragédia. Tudo é forma, imagem, prestação, eu. Nada é conteúdo. Dir-se-ia do rapaz Bruno de Carvalho que seria possível vê-lo feliz da vida num velório desde que estivesse a ser filmado. Os psicopatas narcisistas pululam um pouco por todo o lado, mas são particularmente felizes em posições de topo nas quais podem exercer poder e crueldade sem perder um minuto de sono à noite. Uma grande empresa não dispensa um punhado de psicopatas para posições de chefia. Dão-se particularmente bem como CEOs e gestores de recursos humanos. Entretanto, o mundo lá fora continua a girar. Na sexta-feira passada, mais um tiroteio numa escola dos Estados Unidos, país onde há tantas armas como pessoas. Os republicanos sacaram previsivelmente da cartada “thoughts and prayers”, resposta pronta para qualquer tragédia evitável. Um utilizador do twiter meteu uma foto com dois gatos: “I named my cats ‘thoughs’ and ‘prayers’, because they are useseless”. Felizmente há pelo menos duas Americas: a dos que querem mais armas e a dos que querem menos violência. Cada país devia ser muitos. Por aqui, não é que esta e outras notícias não tenham sido vistas ou comentadas. Mas não logram sobreviver à asfixia que se abate sobre o rectângulo quando o assunto é bola. A cura do cancro não teria força para competir com uma final da taça de Portugal. A descoberta de vida alienígena não é nada comparada com a lesão de Jonas. O apocalipse zombie, perto de um confronto entre claques, parece coisa de meninos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA serra [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus avós maternos moravam numa localidade com uma dúzia de casas, no algarve profundo, um sítio chamado Vale de Ebros (que sempre achei que se escrevia Vale de Zebros – porque era assim que o pronunciavam – até erguerem uma tabuleta à entrada). Não tinham electricidade, não tinham água canalizada, não tinham carro. De cada vez que lá ia, era como se regressasse a um passado de que só ouvira falar em livros de história. O meu avô, um homem muito magro, tremelico de mãos, tomou um comprimido pela primeira vez aos 73 anos. A minha avó, também ela magríssima, movia-se com uma velocidade surpreendente para a idade. Nunca conhecera ninguém tão duro e frio. A minha família mais próxima é toda ela muito emotiva, muito italiana. A minha avó, pelo contrário, era um rochedo. Quando a minha mãe, depois de uma série de mortes na família, lhe perguntou: “mas como é que mãe aguenta?”, ela respondeu: “filha, alguém tem de tomar conta desta gente”. Alguém tinha de tomar conta daquela gente. O algarve profundo é a antítese do litoral. Em paisagem e em costumes. O litoral é dos pescadores, a serra é dos agricultores e dos criadores cabras, ovelhas e galinhas. São, no fundo, dois algarves. O algarve do peixe e da pesca, das procissões da Senhora da Orada, do turismo em massa espelhando vidros e euros noite fora; e o algarve das viúvas perenemente de negro, das mulheres transportando pesados cântaros de água sobre a cabeça, o algarve das vendas – as tascas à beira da estrada onde se compra desde minis geladas a gel de duche. A minha avó ia comigo ao quarto e fazia-me a cama, amontando colchas sobre colchas para fazer face ao frio que até em Agosto se instalava assim que o sol se punha. Antes de apagar a lamparina, dizia “drome, filho”. E eu corrigia, invariavelmente: “dorme, avó, dorme”. “Sim, filho, a avó também vai dromir”. O meu avô perdeu a visão de um olho por causa das cataratas. Recusava ser operado. Quando lhe surgiram cataratas no olho que restava, decidiu-se pela operação. Passou o resto da vida a lamentar não ter feito a primeira. Quando o via regressar do pastoreio, gritava-lhe, à distância: “venda-me um borrego desses para o Natal”. Ele, que via muito mal, não me reconhecia. “Não estão para venda”, atirava. Quando percebia que era eu e que os tinha ido visitar, chorava. O meu avô chorava por tudo e por nada. A minha avó não chorava nunca. O campo de que me recordo era um lugar muito duro. As pessoas levantavam-se quando o sol raiava, todos os dias. Tratavam dos animais – bestas, como chamavam às mulas e cavalos; porcos, que engordavam para a matança e ovelhas e cabras; uma vaca ou outra, para leite; galinhas que acorriam à primeira pessoa que saia de casa de manhã, à espera da ração. Muitos homens e mulheres eram alcoólicos. Durante o dia, bebiam o péssimo vinho que eles próprios faziam. À noite, iam para a venda jogar cartas e beber minis. Um dos meus primos bebia uma grade e meia de minis todas as noites. Tinha os olhos mais azuis que já vi. Em bebé, diziam nunca ter visto uma criança tão linda. Teve poliomielite e ficou entrevado do lado direito do corpo. Pastoreava umas cabras que conduzia graças a uma funda. Tinha uma pontaria exímia. Morreu com trinta e seis anos, de cirrose hepática. As pessoas enlouqueciam facilmente. Acumulavam raiva de anos e anos de mal-entendidos e de zangas e, num dia pior, com uma enxada ou uma caçadeira, matavam o vizinho de sempre por um palmo de terra. Depois, entregavam-se. “Leve-me, seu guarda, dei cabo da vida desta família, leve-me.” O mal irrompia e submergia com a mesma facilidade. As pessoas desconfiavam umas das outras. Desconfiavam de quem chegava de fora com carros grandes com vidros eléctricos. Não acreditavam que o homem tivesse ido à lua. “Fazer o quê, filho?”, replicava o meu avô às minhas aspirações a ser astronauta. Passei muito tempo zangado com aquele sítio para onde os meus pais insistiam em levar-me no fim-de-semana, impedindo-me assim de andar de bicicleta ou de jogar à bola com amigos. Não queria ir, fazia birra, era sempre um drama. Percebo agora, muito mais tarde, que levo comigo esta serra para onde quer que vá. A sua aspereza, a sua aridez, a sua pouca paciência para com os fracos. Mas também a sua surpreendente generosidade, o cheiro a esteva e os nomes de algumas árvores. Nenhum dos meus avós está vivo. É a eles que dedico este pequeno texto.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDas matizes da paixão [dropcap style=’circle’] U [/dropcap] ma das razões pelas quais o amor continua a merecer a atenção dos poetas é a sua inesgotável capacidade de nos desassossegar. De repente, um tipo tem uma rotina que não detesta, amigos com quem partilhar banalidades e filosofia de bolso, uma ocupação dominical com puzzles ou outro hobby solitário, a convicção de que a vida em mono tem a inequívoca vantagem de permitir a livre expressão da vontade unipessoal. No entanto, um contacto inesperado com uma criatura que surge da bruma num misto de estranheza e familiaridade muda tudo. A coisa nunca é uma surpresa, pelo menos na forma como se dá. São afinidades importantes (nunca as mesmas), visões de vida com pontos de confluência, uma salutar discordância em coisas de somenos e uma cumplicidade imediata que parece ter sido herdada de outra vida. Um tipo, por contraste, percebe que a vida de ontem, tão equilibrada quanto confortável, estava para a realidade como a simulação informática do Matrix. Apesar de jogar com as mesmas categorias, tem a consistência espúria de um sonho. É no seu todo muito menos do que uma pequena parte da vida de agora. Parece mentira. Esta sensação de despertar subitamente para a textura plena das coisas sabe a vida. O sujeito passa da condição de espectador interessado para o de actor de pleno direito. É tão raro como inebriante. O apaixonamento tem a característica de radicalizar o ponto de vista. Não voltamos a contentar-nos com as coisas pela metade, com uma faceta apenas dos fenómenos. A gula própria de quem quer abocanhar a vida até à raiz faz-nos querer nunca menos de tudo. E sentimo-nos, como nos diversos discursos do simpósio platónico, em posse da “metade em falta”. Essa maximização das sensações e o empoderamento que dela decorre faz com que um sujeito tenha de reconfigurar de algum modo a vida. Criam-se hábitos novos, rotinas de casal, alguns laços enfraquecem, nomeadamente por falta de tempo e vontade para continuar a cuidar deles com a diligência do passado, outros, parte integrante do mundo que a outra pessoa traz como bagagem, surgem naturalmente. A vida, que nos parecia confortavelmente definida, sofre uma reconfiguração de monta. Mas vale a pena o esforço, porque a vida antes era apenas uma coisa pela metade que vivíamos na ilusão de tê-la por completo. Agora não, agora têmo-la toda pelo cachaço Se a coisa corre bem, o mundo e o sentido novo que o preside não deixam nunca de ter um rumo e coloração unívocos. Os obstáculos que decorrem naturalmente de uma relação em que duas vontades têm de encontrar espaço para a cedência ultrapassam-se com a serenidade de quem está imbuído de uma força e resolução superiores. A dois tudo é mais fácil. Quando um dos elementos do tandem começa a perder interesse naquela rota a pares, a coisa complica-se. A construção começa a mostrar sinais de desgaste e, enquanto um se apressa a dar conta das fissuras na parede, o outro só pensa na forma menos dolorosa de abrir a porta de saída. Aquele sinal na cara, mesmo no queixo, que antes era adorável, é agora insuportável. Um sujeito dá finalmente conta de que a outra pessoa não bebe a água de forma correcta, de que não pronuncia bem os erres, de que tem um objectivo de vida incompatível e incomportável. Tudo o que parecia justo e adequado afigura-se agora estranho e inorgânico. Não se quer estar ali, não se quer alimentar esta estranha criatura feita de retalhos alheios. E, quando finalmente as coisas acabam, um tipo volta a arrumar tudo nos sítios como um adolescente à espera do regresso dos pais depois da festa em casa. Voltamos ao passatempo solitário de domingo, aos amigos que nos recebem sem rancor, a quotidianidade em mono. Com o tempo, tudo passa a fazer novamente sentido. Até alguém aparecer para desarrumar tudo outra vez.
Valério Romão PolíticaDas consequências da tecnologia [dropcap]V[/dropcap]ivemos numa época em que a tecnologia impera. Até os mais analógicos – por militância ou desconhecimento – têm presença em uma ou mais redes sociais. Aqueles que prescindem de imprimir uma marca online são uma excepção. Mas muitos daqueles que abraçaram a internet na sua tentacularidade social não nasceram nela. Fazem parte de uma ou mais gerações de transição que, com maior ou menor dificuldade, embarcaram com o comboio em andamento. E, por vezes, nota-se. Há dias, no Facebook, alguém partilhara uma publicação na qual se dizia que caso o utilizador escrevesse “BFF” nos comentários, ficaria a saber se os dados tinham sido partilhados pelo Facebook. Se a cor do texto do comentário mudasse de preto para verde era sinal de que os dados do utilizador em causa tinham sido partilhados de forma abusiva. O código do Facebook é constantemente actualizado; corrigem-se bugs, retiram-se e adicionam funcionalidades e implementam-se mudanças mais ou menos perceptíveis. Uma das coisas que recentemente mudou é a resposta do algoritmo a um comentário que o Facebook consegue “ler”. Por exemplo, quando escrevemos “parabéns”, o Facebook interpreta a palavra, esta fica com uma cor alaranjada e pipocam no ecrã uma série de animações que sugerem festividade. “Bff”, por outra parte, fica verde. A cor que significaria “positivo” para a partilha indevida de dados pessoais, de acordo com o exemplo supra-citado. Uma pequena modificação no código explorada para o humor. Podia ter sido pior. Uma amiga minha, livreira, confessava-me no outro dia ter apanhado um susto tão desnecessário como embaraçoso. Pesquisando pela livraria na qual trabalha, no Google, deu conta de que este dizia que a loja “encerrava brevemente”. Assustada, ligou para o chefe e dono do espaço: “mas nós vamos fechar? Passa-se algo que não me tenhas contado? Devo procurar trabalho?” O chefe, ainda mais iletrado nas coisas da informática, mostrou-se surpreendido e assegurou ter as contas em dia. “Não tenho planos de fechar isto, vê lá o que consegues saber junto desses tipos.” Essa minha amiga passou algumas horas só para encontrar o endereço electrónico para o qual devem ser encaminhadas as reclamações. Escreveu uma missiva entre o indignado e o violento e remeteu-a nervosa, esperando que o Google foste lesto a desfazer o equívoco. Os clientes e potenciais clientes podiam ser induzidos em erro, o que seria fatal para o negócio. Passados cerca de dois dias e alguma ansiedade, alguém lhe perguntou, num almoço com amigos, a que horas ela tinha feito a pesquisa. “Pelas 18:30”, respondeu. “Então é normal que o motor de busca tenha dado a informação de que encerravam brevemente. Fecham às 19, não é?” Fez-se subitamente luz e, verdade seja dita, uma dose considerável de vergonha. O Google, afinal, não fazia parte de uma conspiração de uma qualquer livraria vizinha para desacreditar a dela. Um dia, já ninguém terá tido uma infância analógica. Até lá, a nossa ignorância informática confere-nos um certo charme e municia-nos de histórias interessantes para jantares com amigos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasSó dez por cento é verdade [dropcap style=’circle’] “O [/dropcap] lha, estava a pensar propor-te uma coisa: tenho visto os teus vídeos no Facebook, curto imenso da forma como tocas guitarra, acho que estás a ter a atenção que mereces e vais chegar muito longe. O meu primo tem um bar aqui onde vivo, é sensivelmente a uma hora de Lisboa, poderias vir cá um dia destes tocar, ficavas em minha casa, eu fazia-te o jantar e o pequeno-almoço, só tinhas de pagar as passagens, ia ser super divertido e era bom para te promoveres, o bar não é grande mas conseguimos ter lá na boa 30 pessoas se anunciarmos o teu nome com antecedência, e podes beber à pala.” “Gosto muito de te ver em palco. Tens presença, uma dicção irrepreensível, és seguro e, ainda assim, vulnerável. Parabéns. Vou dar um jantar cá em casa para a semana e pensei que poderias animar a noite – antes ou depois do jantar, logo veríamos – com um pequeno monólogo ou um improviso (desde que não fossem aquelas coisas incompreensíveis que alguns de vocês gostam de fazer, nisso, devo confessar, sou algo conservador, acho que o teatro tem que manter um certo nível de inteligibilidade e de seriedade para continuar a ser uma arte completa). Se quiseres ficas cá a dormir depois, garanto-te que faço um excelente pad thai, podes comer connosco à mesa, acho que os convidados vão achar piada e tenho imensa cerveja chinesa estupidamente gelada que vai maravilhosamente com as especiarias da comida tailandesa.” “Acho fantástico aquele edifício que desenhaste na Pascoal de Melo, conseguiste respeitar a paisagem e a identidade da rua sem comprometeres nada da tua estética, que é muito mais arrojada e contemporânea. Estou a pensar fazer obras em casa e queria dar ao empreiteiro uma planta em condições e uns 3D para que ele seguir e evitar confusões, que eu não falo a mesma língua que ele, mas tu sim. Podíamos combinar uma tarde aqui em casa, eu explicava-te o que pretendo e tu ias desenhando. Tenho uma garrafa de Lagavulin por abrir, quando acabássemos bebíamos um copo e fumávamos um daqueles charutos que trouxe de Cuba no ano passado.” “Eu não sabia que a casa era assim tão grande. E que precisava de tantas obras. Ou nunca teria arriscado marcar aquele jantar de que te falei, com o meu chefe e o chefe dele, lembras-te? É daqui a um mês. Gastei tudo quanto tinha a mobilar esta merda, agora tenho um canto na sala praticamente a ruir e não tenho como mandar arranjar aquilo, não queres passar por cá e vês se consegues pelo menos disfarçar a coisa? Eu sei que não és pedreiro ou estucador, mas já te vi no atelier de volta da pedra e do gesso e, para escultor, desenrascas-te muito bem com os materiais. Não precisas de trazer nada, tenho cá muitas sobras das obras da outra casa. No máximo traz as tuas ferramentas, deves estar mais habituado. Depois, se quiseres, podes aparecer no jantar com o meu chefe, desde que te vistas apropriadamente. Vamos ter ostras para entrada. Há quanto tempo não comes ostras?” “Fantástica aquela tua curta que ganhou em Berlim. Gostei imenso, já a mostrei aqui em casa, apesar de a qualidade do vídeo que meteste no Vimeo não ser perfeita. Vocês não filmam em 1080p? Aquilo tem um nadinha de grão a mais, mas isto sou eu que sou muito esquisitinho. Precisava de saber se terias uma tarde livre para editar um vídeo que fiz com a minha D600 para dar à Rita no dia de anos dela. Eu até me ajeito no Movie Maker, mas queria dar um ar mais pro, e tenho a certeza de que tu, com a minha orientação, eras a pessoa perfeita para conferir um toque de classe ao projecto. É por que o diabo está nos detalhes, sabes? É o que digo a todos os meus clientes. Comprei uma erva bestial quando fui a Amesterdão o mês passado. Se a coisa ficasse porreira, fumávamos uns a seguir e depois chamava-te um Uber para ires para casa. Que dizes?” “Gosto muito do que escreves. Gostava de te convidar para ler aqui no meu bar, todas as quintas. Pago-te uns copos antes – poucos, para a coisa não descambar – e outros depois da leitura. Tens namorada? Podes trazer a namorada. Ela também bebe à pala, desde que não sejam aqueles gins caríssimos ou whiskey velho. Só precisas de confirmar quanto tempo é de leitura. Menos de 45 minutos não vale a pena. Se forem duas horas, fazemos intervalo. Assim até dá para beberes mais.”