Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO lugar de todos nós [dropcap]E[/dropcap]stive há pouco tempo no Alentejo, perto de uma semana, na casa de uma amiga. Tirando a quase completa ausência de elevações, o cenário e ambiente são-me muito familiares; como já tive oportunidade de escrever em diversas crónicas, para enfado ou desespero dos meus três leitores, os meus pais são do Algarve profundo, aquele que volta costas ao mar com o desprezo de um toureiro ante um touro anoréctico. Esse Algarve é em tudo semelhante ao Alentejo. Diz aliás o ditado que um algarvio é apenas um alentejano sem travões. O sossego que se sente naquelas planícies borbotando de calor é apenas interrompido pela inoportuna consciência das obrigações ancoradas em Lisboa e subitamente desprovidas de qualquer sentido. Parte da perfeição – ou imperfeição – do Alentejo é a anisotropia geográfica na distribuição de internet (perdoem-me, mas sempre quis escrever isto). Na mesma localidade há zonas apetrechadas com rede móvel de dados suficiente para três dias de Pornhub, ao passo que, apenas dois metros para a direita de onde se está, o sinal é tão fraco que um indivíduo se vê obrigado a mover o aparelho em todas as direcções na busca de um pauzinho de rede. Para mitigar essa dificuldade há as vendas e os cafés, museus vivos dessa forma de estar do Alentejo onde agora, entre uma prateleira de garrafas empoeiradas e um calendário do talho Gomes, se exibe com desarmante naturalidade e algum orgulho a password do wifi. À cata de sinal aportei no café Botas, no qual se servia um café muito aceitável e se navegava a cerca de 20 Mbps. Cumpridas as formalidades dos mails, fui descendo de degrau em degrau para a cave da procrastinação até dar por mim a fingir interesse na compra de tubagens galvanizadas para escoamento de águas residuais em climas frios. Quando tomei consciência da ausência neuronal – que se instala de forma tão insidiosa como subtil – resolvi arrumar a trouxa, contar os trocos para pagar os dois cafés consumidos e fumar o cigarro abaladiço. Lá fora sob o toldo absolutamente necessário, um sujeito não parava de fazer chamadas no telemóvel. Era para – suponho – um oficial de justiça, com o qual falava sobre a mulher e o filho de ambos que esta tentara matar, era para alguém a quem se queixava de estar a ser alvo de extorsão monetária, era para um rapaz que prometia perfilhar e a quem dizia estar a beber uísques desde as oito e meia da manhã e era, acto final, cai o pano, para a ASAE, queixando-se de no Botas não lhe terem facultado o livro de reclamações. Estava obviamente bêbedo. Há muito, no entanto, que não via um bêbedo tão hiperactivo e capaz de diversificação no investimento, como soi agora dizer-se nos corredores da banca. Movido pela curiosidade das crianças e/ou dos idiotas, resolvi ficar mais algum tempo. Lá dentro, uma senhora acercando-se da ribanceira da idade e muito versada em vinho branco confessava a um casal de amigos espanhóis a frustração por ver no marido tanta coisa – amigo, pai, irmão, filho – menos o marido com o qual ela se casara e que misteriosamente desaparecera, um dia qualquer, como a geada matinal num dia de Verão. De repente, já não estava no Alentejo mas numa secção do Correio da Manhã. Em potência, pelo menos. Aquela na qual levantada a saia do crime horrendo transparecem as tão humanas frustrações que nos levam a limites mais ou menos concretizados de violência e arrependimento. Aquele Alentejo, aquele café, aquele rapaz dramaticamente conversador e aquela mulher em psicoterapia artesanal já os vi em todo o lado. Já os vi no rosto dos meus amigos. Já os vi ao espelho.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDos hábitos [dropcap]O[/dropcap] meu avô materno morreu com cerca de noventa anos. Gabou-se durante largas décadas de nunca ter ido ao médico e de nunca ter tomado um comprimido. Quando lhe apareceram cataratas nos olhos, não deu grande atenção à coisa, até ficar cego de um deles. Deixou-se relutantemente operar ao outro olho para logo se lamentar de não ter operado ambos. Quando o ia visitar, vendo ele já muito mal, acenava-lhe de longe e gritava-lhe vende-me um desses borregos, o mais gordinho? para ele responder, irritado com o despeito dos citadinos não estão para venda! Detestava médicos, hospitais e tudo quanto na cidade por motivos vários o afastasse do campo e dos seus afazeres. Tinha outra característica peculiar: fazer sexo todos os dias; coisa que, a determinada altura da sua provecta idade, a minha avó deixou de achar piada. Criando a necessidade o engenho, o meu avô passou a dizer à minha avó, sempre que iam para o quarto, à noite Maria, é a última… E, durante quase vinte anos, todos as noites foi a última. Numa dessas noites, a minha avó, tentando de algum modo fugir ao prazer que para ela se tornara um suplício, caiu da cama. Fracturou o fémur. Escusado será dizer que a minha avó tinha tanto apreço por hospitais e cidades quanto o meu avô. Nisso, coincidiam em uníssono. Magríssima e picuinhas com a comida, enquanto esteve no hospital comeu apenas as bolachas Maria que a minha mãe lhe levava. Era para ter estado três meses mas ao fim de mês e meio estava pronta para ir para casa. Ao que parece, não tinha sinal da osteoporose que costuma afligir as mulheres a partir de uma certa idade. A minha mãe ofereceu-se para a ir buscar ao hospital e levá-la para casa. Ao contrário da satisfação que esperava ver na sua cara com a ideia de ir para casa, a minha avó, cochichando, perguntou-lhe não posso ficar uma semaninha ou duas mais? A minha mãe, estupefacta mas mãe, porquê? E a minha avó ai filha, nunca estive tão descansada… A minha avó, que nunca tirou férias (o campo não tira férias, filha, respondia, quando a minha mãe lhe perguntava porque não tiravam uns dias para passear), descobrira na inesperada hospitalização um sossego que nunca conhecera ou de que não se lembrava. Provavelmente, o mais parecido que teve a vida toda com férias. Não pôde ficar essa semana adicional. Não disse uma palavra durante a viagem. O meu avô, sempre todo emoção, recebeu-a em lágrimas. Ainda hoje penso no que ele terá feito enquanto a minha avó esteve fora.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCircular [dropcap]C[/dropcap]aro munícipe, os vários departamentos da Câmara Municipal de Lisboa e as diferentes empresas municipais têm estado a colaborar activamente para proporcionar a melhor experiência possível aos turistas que elegem a cidade de Lisboa como destino de férias. Nesse sentido, submetemos as inúmeras e generosas sugestões que recebemos dos nossos colaboradores e dos munícipes que as remeteram para o email criado para o efeito a um rigoroso processo de triagem posto em prática por uma equipa multidisciplinar liderada pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Dr. Fernando Medina. É com indisfarçável orgulho que apresentamos a seguinte lista de recomendações, por ora não vinculativas, dado carecerem de uma escrupulosa análise do nosso departamento legal para averiguar a possibilidade de passarem a disposições com força de lei. Este período, de que não podemos por ora antecipar a duração, servirá para testarmos a adequação das nossas propostas à disponibilidade dos nossos munícipes e às necessidades dos turistas. Queremos ser a curto prazo a cidade número 1 da Europa a nível turístico e para isso contamos com todos para proporcionar àqueles que nos visitam uma experiência ainda mais inesquecível de Lisboa. Os edifícios deverão afixar na porta de entrada o conjunto identificação de rede/palavra-passe de pelo menos um dos acessos internet por wifi dos moradores do prédio. Ainda que os custos do roaming na União Europeia sejam uma coisa do passado, a verdade é que nem todos os profissionais do Airbnb respeitam com o necessário escrúpulo o horário de recebimento dos turistas, pelo que o usufruto de um serviço de internet sem fios pode contribuir decisivamente para proporcionar, logo à chegada, a imagem de uma Lisboa tão moderna quanto acolhedora. Serão abertos concursos para providenciar os bairros emblemáticos da cidade cujo número de autóctones não seja suficiente para proporcionar a Experiência de Imersão Total em Lisboa que definimos como prioritária para o programa O Turismo é uma Festa com figurantes cuja admissão dependerá de critérios definidos pelo Grupo de Verificação e Controlo do departamento de Turismo de Lisboa e da eventual possibilidade de caracterização dos candidatos. Dar-se-á naturalmente preferência aos candidatos cuja aparência e fisionomia melhor se adeque às expectativas imaginadas da generalidade dos turistas. NOTA: a não ser em casos muitos excepcionais (candidatos com semelhanças muito vincadas a figuras públicas portuguesas internacionalmente reconhecidas) a função não implica qualquer vínculo contratual. Abrir-se-ão diversos cursos em regime pós-laboral de Competências Práticas Turísticas como Línguas (Alemão, Francês, Mandarim, etc.), Olissipografia Museológica e Tuk-Tuk para Iniciantes, entre outros. A frequência completa de cada um dos cursos implica creditação de competências e maior probabilidade de ser seleccionado para uma das muitas funções do programa de reconhecido sucesso Um Dia, Muitos Sorrisos. Encorajamos de igual modo os munícipes a darem quando possível os seus lugares nas muitas filas que se geram no quotidiano de Lisboa como, por exemplo, no supermercado, nos transportes públicos – muito especialmente aqueles que contemplam percursos eminentemente turísticos – e nos restaurantes. É sabido que as demoras no atendimento em ambiente de estadia longe de casa causam um stress desnecessário e impedem que se usufrua adequadamente do Tempo Turístico, por regra mais dispendioso do que o Tempo do Trabalhador. Esperamos que esta pequena lista contribua para aprimorar a experiência já muito positiva que os turistas reportam ter da cidade de Lisboa e aproveitamos para reforçar a nossa inteira disponibilidade para dissipar eventuais dúvidas. Mãos à obra!
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO cheiro a estevas [dropcap]A[/dropcap]s férias são muita coisa ao longo do tempo de uma vida. Na minha infância – passada em França – significavam o regresso a Portugal, bagageira atulhada de brinquedos, parafernália electrónica e queijos brie do tamanho de uma pizza familiar, dois dias de estrada aborrecidamente atrás de camiões ou perigosamente a ultrapassá-los, dois dias a ver o meu pai a fumar cigarros e a beber café em quantidades suficientes para causar um ataque de asma e de ansiedade a um elefante adolescente, dois dias a ouvir a minha mãe, num tom entre o desesperado e o resignado, reclamar a medo com o meu pai: “cuidado, Zé”, “mais devagar, Zé”, “não temos pressa, Zé”, e o meu pai a chutar a bola para canto apontando para o que se via da estrada: um laranjal, uma bomba de gasolina, um moinho de vento, para desconsolo exausto da minha mãe: “olha para a estrada, Zé!” Quando finalmente chegávamos e após as duas horas do ritual beijos-prendas-que-saudades-de-vos-ver-estás-tão-grande, a minha esperança era a de irmos logo nesse dia para a praia, nem que fossem oito da noite, para que eu pudesse dar aquele mergulho com que tinha sonhado o ano todo e assim ficar surdo de um ouvido, até que a meio da noite escorresse de lá um pingo de mar e daí adviesse aquele estranho prazer da normalidade retomada. O meu pai não era grande fã da praia: “tem muita areia”, “faz demasiado calor”, “cheio de gente”, e eu não percebia o que é que dessa equação podia ser menos que perfeito. Quando finalmente conseguia que alguém me levasse à praia – normalmente os meus cunhados ou as minhas irmãs, desejosos de transferir o barulho que eu e o meu sobrinho (praticamente da minha idade) fazíamos dentro de casa para um sítio mais amplo – entrava na água para de lá sair apenas quando me perguntavam “não achas que já estás aí há demasiado tempo? Não tens frio?”, e eu, arroxeado e tiritando, metro e meio de gente aquém dos quarenta quilos, respondia “n-n-n-ão, est-t-t-ou b-b-bem”. O meu pai preferia o campo à praia. Não o campo-campo que se nos ocorre à imaginação, aquele dos arbustos verdejantes, dos laguinhos coaxando entardeceres, das ovelhas roendo um pasto viçoso. O campo árido do interior algarvio, a terra amarela e seca, polvilhada de lamelas de xisto, o campo das veredas ladeadas de estevas pegajosas, arriba acima e abaixo, serpenteando entre courelas minúsculas nas quais, na proximidade de um poço ou de um furo artesiano, pontificavam umas linhas de vinha ou uma sementeira de batatas. Para além do meu pai sentir por tudo aquilo a exacta proporção inversa daquilo que eu sentia, havia ainda a questão da caça; a única questão, aliás, onde coincidíamos rigorosamente no gosto. Foi com ele que aprendi o que era uma perdiz, foi com ele que aprendi a distinguir coelho de lebre (pré-caçarola, evidentemente), foi com ele que vi os cães mais obedientes e felizes do mundo. Apesar do meu amor pela praia – entretanto oscilando entre indiferença e repulsa – as minhas melhores memórias das férias em Portugal são da caça. Não tanto pelo que se – ou pelo que não se – caçava, mas sobretudo pelo prazer que via no rosto do meu pai quando me explicava as tocas e os ninhos como o pai dele lhe tinha explicado, décadas atrás. As férias nunca mais foram o mesmo desde a infância – nada nunca mais o é, poderá contrapor-se. O meu pai, entretanto, morreu, tinha eu dezasseis anos. Eu sei que o céu dele está cheio de codornizes e de coelhos e que cheira a esteva e que faz sempre calor no ponto certo.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda a vacinação, parte segunda e última [dropcap]U[/dropcap]m estudo em 2017 com dados de 2011 a 2013 revelou que a incidência de autismo na comunidade somali era de 1 em 32 crianças, enquanto que na comunidade caucasiana era de 1 em 36. Estatisticamente, a diferença é residual. Ainda assim, a comunidade somali, provavelmente sofrendo do defeito de óptica que consiste em ver o infortúnio próprio de forma hipertrofiada, não é convencida pelos números apresentados. Michel Osterholm, ex-epidemiologista do estado de Minnesota, assegura que o medo incutido pelos anti-vaxxers é o grande responsável pela resistência da comunidade à vacinação. O argumento? “Lembrem-se, o sarampo é uma doença que dura entre cinco a dez dias. O Autismo é para sempre.” Embora a taxa de mortalidade do sarampo seja efectivamente muito diminuta, diria que o “para sempre” da morte de uma criança intencionalmente não vacinada é bastante mais cruel do que o “para sempre” do autismo. O grande problema que ocorre quando a comunidade médica diz em uníssono – e com amplos estudos a sustentarem a afirmação – que “as vacinas não causam autismo” é a sua incapacidade, por outra parte, de determinar com suficiente grau de certeza o que de facto causa o autismo. E é nesse limbo, propício ao crescimento do bolor da desconfiança, que laboram todas as teorias da conspiração. Em 2008 Charlie Sheen foi para tribunal para impedir que a ex-mulher, Denise Richards, vacinasse os dois filhos de ambos. O actor acredita que as vacinas são “um veneno”. Em 2015, Jim Carrey tuitou contra o timerosal e o alumínio presente em algumas vacinas, acusando o Estado da Califórnia de fascismo corporativo e de envenenar crianças. Billy Corgan, dos Smashing Pumpkings, diz não acreditar naqueles que fazem as vacinas ou no medo que inculcam nas pessoas para os “obrigarem a tomá-las”. Jenny McCharty é provavelmente a grande porta-voz mediática do movimento anti-vacinação americano. Em 2005 anunciou que o seu filho Evan tinha sido diagnosticado com autismo. A condição manifestou inicialmente com ataques epilépticos. Quando estes foram debelados com tratamento apropriado, o estado geral de Evan melhorou substancialmente. Jenny continua a afirmar, com maior ou menor frequência de patacoadas pseudo-científicas, que foram as vacinas que causaram o autismo de Evan e aconselha os pais “a pesarem os prós e contras da vacinação de modo informado” (leia-se nas não tão subtis entrelinhas: vacine por sua conta e risco, porque as consequências da não-vacinação são despiciendas – a imunidade de grupo protege até os não vacinados (a chamada protecção indirecta) – e as da vacinação podem ser uma indesejada sorte grande na tômbola do autismo). Resta dizer que Jenny McCarthy foi namorada de Jim Carrey durante cinco anos. É interessante verificar que o movimento anti-vacinação aparece irmanado a outros movimentos de teor conspirativo. Muitos dos que defendem a terra plana também têm uma posição crítica acerca das vacinas e dos seus supostos malefícios. A verdade é que as muitas teorias da conspiração compõem uma espécie de rizoma entrelaçado com múltiplos pontos de contacto e de tangente. E a natureza primordial desse núcleo rizomático é a suspeita de estarmos a ser controlados/enganados/amestrados por forças dissimuladas cujo propósito é destruir-nos/escravizar-nos/roubar-nos (riscar em cada caso o que não interessa). E esta criatura de múltiplas cabeças alimenta-se da ignorância que transforma muito rapidamente em desconfiança. Alimenta-se das sombras.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda a vacinação, parte primeira [dropcap]D[/dropcap]o início do ano a 3 de Julho de 2019, 1.109 casos de sarampo foram diagnosticados em 28 estados dos EUA. Este é o valor mais alto de casos registados no país desde 1992. A doença foi considerada erradicada no ano 2000. Como é que uma doença de incidência basicamente residual se transforma num problema de saúde pública? Poderíamos recuar aos primórdios do movimento anti-vacinação que, não surpreendentemente, coincide com os primórdios da vacinação, neste caso na França do séc. XVIII. As primeiras vacinações eram, na verdade, inoculações com amostras “vivas” do vírus. Faziam-se incisões superficiais na pele do paciente nas quais era introduzido fluído de uma pústula de um doente infectado na esperança de que o receptor desenvolvesse uma versão moderada da doença e, ulteriormente, imunidade. O método ficou conhecido como “variolização” e tinha uma taxa de mortalidade reduzida: de 0,5% a 2% dos pacientes submetidos ao procedimento morriam, consideravelmente menos do que os 20%-30% que faleciam em cada surto de varíola, uma percentagem que, nas crianças, era muito superior. Voltaire, que viveu em Inglaterra de 1726 a 1729, era um acérrimo defensor da variolização. O seu contacto com a realidade inglesa e com as vantagens da inoculação levava-o a pensar na questão de um ponto de vista matemático, uma equação cujos benefícios ultrapassavam largamente os custos. Perante a resistência dos franceses ao processo, Voltaire escreve, na Carta XI, “mas não gostam os franceses da vida?” O problema de fundo, argumentou com acuidade o médico italiano Angelo Gatti num livro da sua autoria, de 1767, assentava na perspectiva subjectiva do risco. Uma possibilidade de morte na profilaxia de uma doença, mesmo que residual, era inadmissível para a maior parte dos franceses, que preferiam arriscar a sorte na lotaria do contágio. A variolização encontrou resistência em França até a implementação da vacina propriamente dita, preparada a partir da versão bovina do vírus da varíola, uma descoberta de Edward Jenner, médico inglês, em 1796, cujas observações o levaram a concluir que as mulheres encarregadas de ordenar as vacas não contraíam varíola por terem sido expostas à varíola bovina (daí o nome “vacina”, de “vaccinia”, cujo radical é o étimo latino para vaca, “vacca”). O último caso mortal de varíola remonta a 1978, quando um cientista foi infectado com o vírus num laboratório. O movimento anti-vacinação contemporâneo está umbilicalmente ligado à taxa de incidência de autismo e muito especialmente a um artigo de Andrew Wakefield, médico inglês que em 1998 publicou um estudo no qual afirmava provar uma correlação entre a inoculação da vacina tríplice e o número de casos de autismo. Desmentido por dezenas de estudos posteriores, Wakefield vê a sua licença médica cassada e emigra para os Estados Unidos, onde continua a sua cruzada anti-vacinação. Apesar de ter sido formalmente acusado de fraude na elaboração do estudo referente à possível ligação entre vacinas e autismo e de terem sido publicados dezenas de estudos amplamente consensuais a refutá-lo, Wakefield continua a predar comunidades vulneráveis e a difundir a sua mensagem. No Minesota, circa 2007, a comunidade Somali, convencida de que apresenta uma taxa de autismo superior ao dos restantes grupos, vê-se de repente invadida por activistas anti-vacinas entre os quais, não surpreendentemente, se encontra o ex-doutor Wakefield. A taxa de vacinação, que rondava os 92% em 2004 baixa para 42% em 2014. A incidência de sarampo sobe na proporção inversa. Os números do autismo, malgrado os esforços anti-vacinação, mantém-se inalterados. A continuar.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUm elogio ao chinês [dropcap]A[/dropcap] minha suposta profissão é a de escritor. Digo suposta porque encarar a escrita seriamente corresponde, em última análise, a não alimentar qualquer importância quanto as consequências pragmáticas que dela advêm, nomeadamente (mas não só), a indispensável componente financeira. Escrever não dá dinheiro. Reformulo: é muito improvável que se consiga viver de royalties, especialmente se nos restringirmos ao anémico mercado português e se considerarmos unicamente a escrita literária – que é sempre mais fácil de definir pelos exemplos daquilo que não o é. Haverá quem o consiga, mas contam-se certamente pelos dedos da mão. Preferia que assim não o fosse e que pudéssemos quase todos quantos escolhemos escrever viver da escrita. Mais a mais, a escrita exige tempo, respiração, leitura, muita leitura. Não se coaduna facilmente – embora quase sempre tenha de o fazer – com a exigência de uma profissão ocupando oito horas diárias. Por tudo quanto ouvi e vi desde sempre, nunca achei que me seria possível viver da escrita. Escrevo porque quero. A cada um o seu veneno. Uma das parcas vantagens da escrita é ser-se traduzido e com isso poder ir a sítios a que de outro modo só se iria em documentários. E uma coisa que tenho verificado um pouco por toda a parte nas cidades da Europa onde me tem calhado estar (sobretudo França e Alemanha), logo no aeroporto, é a omnipresença da língua chinesa. Não só nas sinaléticas onde antes pontuava somente o inglês, mas em anúncios de todo o tipo, de ofertas disto e daquilo a incentivos vários ao tax refund e restantes modalidades de captação da divisa turística. É assim em Paris, em Frankfurt ou em Lisboa. Presumo que também o seja na maior parte das cidades em que o chinês-versão-turista vem largar uns cobres. Há coisa de vinte anos apenas – talvez menos – a quase totalidade dos turistas do extremo oriente a visitar a europa eram os Japoneses, afamados por comprarem artigos por prateleira e pela obsessão praticamente patológica que nutriam de documentarem fotograficamente a sua presença. As suas férias, dir-se-ia, começavam de facto quando, regressados ao Japão, abriam o álbum de fotos pela primeira vez para os seus convidados. Por motivos felizmente alheios ao turismo, ando a (tentar) aprender chinês. Do ponto de vista gramatical e sintáctico, não é uma língua difícil. Infelizmente, tudo o resto o é. É uma língua tonal, coisa com a qual não estamos habituados a ter contacto (o mandarim tem quarto tons, o cantonês tem seis, fazendo com o primeiro contacto com o cantonês lembre uma multidão de pessoas a tentarem cantar dentro de um autocarro circulando numa estrada pejada de lombas). A escrita é ideográfica, pelo que a dificuldade não é ser-se incapaz de perceber o que se lê – como, por exemplo, para mim, o dinamarquês – mas o próprio acto de ler. Há de facto uma razão para a nossa expressão idiomática “isso para mim é chinês”. Mas é uma língua fascinante. Para começar, não tem nem existe “sim” ou “não” em chinês. A concordância ou discordância faz-se verbalmente – afirmando ou negando o verbo da frase na qual vem expressa a pergunta, regra geral. Os verbos não flexionam em tempo, pessoa, número, etc. Parece-me, eu que tenho o chinês ainda apenas pelos tornozelos, uma língua de legos: as palavras encaixam umas nas outras sem deformação, quadradinhas, prontas a serem usadas de formas inteiramente diferentes e com outros sentidos noutras frases. Legos talvez não seja a melhor imagem. Tetris, que aos legos não se perde. Tivesse eu nascido a tempo de começar agora a aprender uma língua estrangeira na escola, ia aprender chinês (isto partindo do princípio de que os nossos governantes dão alguma importância à língua da (brevemente) maior economia do mundo, falada por mil milhões de pessoas, e a instituem, nem que facultativamente, nos currículos escolares). Porque o inglês se aprende por contágio, na internet, e as restantes línguas europeias por paixão ou no erasmus – e estes, por vezes, coincidem em tempo e espaço.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasPouca esperança [dropcap]A[/dropcap]o contrário da maior parte dos meus amigos, não fui votar nestas eleições europeias. Muitos deles não perderam a oportunidade de me relembrar a importância do voto numa sociedade democrática. Na teoria, a democracia enquanto sistema de governação política é o melhor dos sistemas conhecidos: permite, para além de escolhermos quem nos representa, uma saudável alternância regular de eleitos e respectivas ideias. Mas a democracia é uma ideia que envolve dois momentos constituintes distintos e necessariamente complementares: a forma, pela qual se anuncia a estrutura subjacente ao sistema democrático e o fundo, ou seja, as pessoas que preenchem os lugares constantes da estrutura do sistema. E é precisamente com esse ponto me tenho encanitado desde sempre. A nossa jovem democracia foi-se consolidando e profissionalizando, nestes últimos quarenta e qualquer coisa anos. Sendo o processo de consolidação inerentemente bom e necessário, já o mesmo não pode ser dito daquilo que se entende por profissionalização da carreira política, que se tem pautado por ser mais semelhante a um regime mafioso, com as obrigatórias juras de lealdade, de silêncio e de fidelidade canina que lhe inerem do que propriamente com um processo fundamental para o desempenho da actividade política. A isto acresce ainda uma não módica quota de endogamia e nepotismo; no caso do Dr. Carlos César, um dos rostos mais visíveis deste PS em funções e deputado à assembleia nacional, difícil será encontrar-lhe um familiar que não esteja alapado a um qualquer organismo público. Nesse aspecto, os partidos do denominado centrão não se distinguem uns dos outros: são essencialmente redes de manutenção e ampliação de poder e de distribuição das prebendas que deste decorrem. Descontando o facto de se ter de deixar a coluna vertebral à porta para neles ter lugar, são de longe as melhores agências de emprego em Portugal. À parte o desagradável facto de estarmos literalmente nas mãos de uma casta de meliantes profissionais, a maior parte das vezes sem qualquer currículo fora da esfera política, temos ainda de levar em linha de conta o nível de corrupção de que nos vamos dando conta quase diariamente pela comunicação social. Do governo central às autarquias, são raros os dias nos quais não sai uma notícia sobre mais um caso em que o visado, prontamente entrevistado, é lesto a declarar-se inocente e, não raras vezes, vítima de uma cabala política. Tudo bons rapazes. Lembram-se de Sócrates? Ainda hoje estamos a tentar perceber a real dimensão da teia de influências e pressão montada à altura para capturar os mais importantes sectores de um país. O que tem vindo a lume nas audições da comissão de inquérito parlamentar à recapitalização da caixa é estarrecedor em dois sentidos: toda a gente parece de algum modo implicada na gigantesca marosca e, simultaneamente, temos a sensação de que aquela enorme montanha não produzira nada senão um desinteressante bode expiatório para satisfazer um nível infra-atómico de decência. Há de facto outros partidos que, por razão de escala e de crónica distância ao centro de poder, têm currículos mais simpáticos, a nível de corrupção. Mas por um lado são partidos que normalmente propõem ou não se opõem à ideia de mais estado, de mais controlo estatal e, consequentemente, de mais impostos para financiar o paquiderme. Exactamente o contrário daquilo que gostaria de ver. Por mim, o estado não era dono de uma única empresa. Muito menos de um banco. Os dias de votação têm sido para mim muito sossegados. Aborrecidamente iguais aos outros. Acabo por fingir algum interesse nos resultados, para me sentir integrado no desígnio nacional em curso, mas é sol de pouca dura. Os meus amigos muito activistas desfiam longuíssimas explicações sobre o sucesso ou fracasso de determinado partido de esquerda (sendo que alguns vêem sucesso e outros fracasso no mesmíssimo resultado). Eu há muito que deixei de achar isto interessante.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasLisboa, capital do barulho [dropcap]N[/dropcap]a ínfima possibilidade de Lisboa um dia se tornar uma cidade minimamente civilizada, este tempo em que vivemos será lembrado com um travo de repugnância ao falar-se dele e sem pinga de saudade. Embora a massificação do turismo tenha tido o condão de estimular a reabilitação de muitos edifícios devolutos em Lisboa (e com isso os sectores muito específicos da construção e hotelaria), diria que foi das pouquíssimas coisas boas que o turismo trouxe. Não lhe subjaz no entanto qualquer intenção benemérita: uma cidade com tanta afluência turística vê-se obrigada a aproveitar todo o espaço disponível se quer incrementar as vendas dos típicos patos de borracha ou dos milenares pastéis de bacalhau com queijo da serra. No fundo, a reabilitação imobiliária é apenas uma externalidade positiva, um efeito colateral do turismo, algo que as empresas do sector dispensariam de bom grado se outra forma de garantir o mesmo lucro houvesse. De resto, a albufeirização em curso tem sido pródiga a produzir efeitos negativos: escassos transportes públicos sobrelotados (os nativos ainda levaram algum tempo a aceitar o confisco turístico do eléctrico 28), subida olímpica dos valores das rendas, multiplicação descontrolada dos alojamentos locais, descaracterização progressiva da cidade, dos seus bairros, extinção lenta mas inexorável de um modo de vida incapaz de sobreviver sem aqueles que nele participavam, implosão gradual do comércio de proximidade, substituído por lojas de bugigangas inúteis e botecos gourmet nos quais se comercializa uma banalidade sobreadjectivada a preço de estrela Michelin, lixo, confusão e barulho. Muito barulho. Lisboa nunca foi generosa para com os seus no que diz respeito à permissividade com que lida com o ruído produzido, nomeadamente o nocturno. Quando não o estimula directamente, mediante a organização ou promoção de eventos, autoriza-o com a emissão de licenças. Em Junho, então, é freestyle. São os santos, as barraquinhas de farturas com colunas do tamanho de barris de cerveja a debitarem um medley dos peitos da cabritinha e da garagem da vizinha em loop, os gritos ébrios na rua às tantas da manhã e os múltiplos transportes que levam esta gente dos sítios onde se embebedam para os sítios onde dormem. Quem se pode legitimamente queixar quando em doze meses de sono possível só um lhe é perturbado? Há pouco tempo foi criado um grupo público de discussão no Facebook, chamado Menos barulho em Lisboa, no qual os seus participantes escrevem sobre a poluição sonora que, muito por via do crescimento exponencial do turismo, tem retirado tranquilidade às suas vidas. São relatos de ruído caucionado ou estimulado pelas autoridades que deviam proteger aqueles cuja ecologia vital se encontra ameaçada das mais diversas formas. Percebe-se a natureza displicente do fenómeno: a Câmara, como uma loja da Bershka, quer dar a impressão de que a cidade está sempre em festa, e quando não é ela própria a promover as mais diversas aberrações sonoras – a última delas um barco junto à Ribeira das Naus a debitar um tecno de after de má memória a tarde toda de um domingo – faz vista grossa a quem ultrapassa os limites em vigor. The show must go on. E é disso que se trata, de limites. E é nisso que esta gestão municipal tem sido péssima. Em entrando dinheiro, tudo o resto sofre de um efeito de desfoco ou de desvalorização de importância. A vida das pessoas, de Lisboa e dos seus habitantes, está indexada a uma dimensão apenas: a forma como podem não perturbar a ordenha da vaca leiteira em que a cidade se converteu.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasEliete e o Facebook [dropcap]O[/dropcap] Facebook é cada vez mais – a par do Google – um dos motores do Zeitgeist em que vivemos. Podemos ser contra – por diversas razões – ou a favor – por outras tantas e, às vezes, até por razões coincidentes com as que outros são contra –, mas não lhe podemos ser indiferentes. Escrevo isto a propósito do último romance da Dulce Maria Cardoso, o fantástico Eliete, um entretecido de múltiplas camadas de sentido que vão, com enorme subtileza e um ritmo magistralmente gerido, compondo aquilo que Virginia Woolf não desdenharia chamar “o grande rosto da vida”, declinação central do conceito de “moments of being” que funciona como ponto arquimédico de toda a sua obra. Muito do romance vai ao osso da dicotomia fundamental da nossa época: a identidade real e a identidade digital. E Dulce insiste, e bem, na radical mudança que as redes sociais em sentido lato – nomeadamente o Facebook e o Tinder – têm vindo a operar na nossa vida. Mas não é um romance-diagnóstico. Está demasiado perto da realidade que procura dirimir e está sobretudo na charneira de uma mudança muito mais vasta do que a que lhe é possível abraçar. Eliete vê bocados da criatura movendo-se, percebe-lhe as pegadas, os efeitos nos sítios por onde passa, aquilo que arrasta consigo e aquilo que deixa para trás. E não se lhe pode pedir mais: a criatura está longe de ter chegado ao destino. Mas estas mudanças na organização da identidade e das suas hierarquias Eliete expõe-nas magistralmente, sobretudo quando incide sobre a decisiva inversão da hierarquia de importância das identidades reais e virtuais. O que doravante importa (apresentar aos outros) é uma cuidada construção da identidade virtual, sendo essa construção muito mais simples de fazer e de manter porque a estrutura própria do virtual é a do enquadramento fotográfico: ao contrário da realidade, cuja estrutura de fluxo impede obviamente a captação fragmentária, o virtual funciona – pelo menos por ora – mediante instantes meticulosamente escolhidos pelo portador dessa identidade. Às múltiplas perspectivas alheias incidindo impiedosamente sobre o sujeito, próprias do real, contrapõe-se uma generosa curadoria mono-ocular: é o sujeito que dita a sequência de perspectivas pela qual os outros acedem à sua vida. Enquadra, filtra, contextualiza, reconfigura. E Eliete é o retrato deste processo em curso, preocupada com os likes ou os comentários de desconhecidas às fotos do marido, Jorge, zangada com os laços inautênticos que marido e filha exibem numa fotografia de conjunto, inquieta com a quantidade de likes e outros emojis recebidos numa foto na qual tem o cuidado de aprimorar digitalmente as pernas. E ao Facebook segue-se o Tinder e a neutralização progressiva da angústia a que corresponde a dissociação cada vez maior entre a identidade real e a identidade virtual. Vistas as coisas de uma perspectiva aérea, parece não estarmos a falar de muito: uma mulher na meia-idade, a consciência clara desse processo, o desinteresse sexual do marido, o desinteresse total das filhas, a demência da avó, as múltiplas formas de perda e as poucas redenções possíveis. Mas Eliete tem a rara virtude de transformar o quotidiano áspero e o sonho comezinho, passíveis em mãos menos seguras de provocar unicamente um longo e monótono bocejo, numa cartografia precisa de um modo de vida cuja disposição naturalmente caótica era refractária à sua compreensão – como todos os modos de vida. E às vezes é só isso que os grandes romancistas fazem: aclaram, organizam, mapeiam.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasMiúdos especiais [dropcap]O[/dropcap] meu filho Guilherme é autista. Autistas e autismos há muitos. É provavelmente a primeira coisa que me ocorre e digo quando falo com alguém acerca de autismo. Embora a compreensão social da condição seja francamente melhor do que há 20 anos, ainda estamos algo reféns do modelo Rain man caricatural do autismo. Mesmo os profissionais de saúde têm pontos de vista muito pouco esclarecidos sobre o que é o autismo e como este se manifesta, partilhando não raras vezes a opinião infundada de que a carência de certas capacidades deve corresponder, numa proporção inversa, uma espécie de maximização das restantes competências ou mesmo a existência de competências tão metafísicas como indetectáveis. Na realidade, o autismo é muito menos romântico do que aquilo que aparenta ser no imaginário social. Quase tudo se faz de modo diferente no autismo. No caso do Guilherme, diria que tudo, desde ter a preocupação de deixar um copo limpo perto da torneira da cozinha para que ele não beba de um copo sujo como tirar um dente. E é pelo dente que chegamos ao assunto desta crónica. O Guilherme tem um dente do siso ocluso com tendência para inflamar e infectar. Tem de ser extraído. O que implica uma anestesia geral (não há como persuadir um autista não verbal de que a dor pela qual está a passar é na verdade inevitável e o melhor para ele; aliás, esqueçam: não há como convencê-lo a estar de boca aberta uma hora ou mais enquanto desconhecidos de bata lhe escarafuncham os dentes). Tivemos portanto uma consulta de anestesiologia pré-operatória na semana passada – com duas horas de atraso sobre a hora marcada, o que não deixa de confirmar aquilo que penso sobre o SNS: bom para urgências de vida ou morte e doenças muito graves, mau para quase tudo o resto – na qual a médica, para além de passar aborrecidamente os olhos pelas análises ao sangue do Guilherme – “excelente nível de plaquetas, por aqui não vamos ter problemas” – não se coibiu de tecer alguns comentários acerca do quanto desconhecemos do autismo, não se refreando no entanto de ter imensas certezas acerca do quão especiais os autistas são. A modorra de parte a parte foi apenas interrompida pelo esgar de surpresa da médica ao olhar para a radiografia torácica do Guilherme: “você sabia que o seu filho tem dextrocardia?” Uma pessoa nunca sabe muito bem responder a uma pergunta de que desconhece os termos enunciados. Que não, respondi, que nem sequer sabia a que corresponde o termo dextrocardia. A senhora lá me explicou numa vagareza de quem se dirige a pessoas com algum atraso que o coração do Guilherme estava ao contrário, e eu tão surpreso como admirado perguntei-lhe se tal era comum, se causava alguma complicação, ou se pelo contrário era apenas uma anomalia anatómica sem grande relevância. Que era assaz raro, garantiu-me, que na carreira dela de trinta anos só tinha visto dois casos, sendo o meu filho o segundo, e que em princípio nada de preocupante adviria da situação, mas que tínhamos de fazer exames suplementares, sublinhava, até para termos a certeza de que não se tratava de um erro do técnico de radiologia. Eu fui para casa a pensar na dextrocardia, e consultando o Google percebi tratar-se de uma condição não tão inócua quanto me tinha sido descrita pela médica. Falei com a mãe do Guilherme, que entre reuniões recebeu a notícia como se de uma notificação de multa de estacionamento se tratasse. Mais tarde, quando conseguimos quinze minutos para falar com calma, ela entre perguntas e planos de usar o seguro de saúde dele para apressar exames e consultas, desfaz-se numa risada: “ele estava de frente quando tiraram a radiografia quando devia estar de costas, devia ter tirado de costas mas como ficava com a cara esborrachada contra a parede não aguentou e tiveram de tirar de frente…” Eu acompanhei-a na risada, claro, não sem me perguntar como era possível não existir uma anotação no exame em que se referisse esse facto. O meu filho, esse, mesmo sem dextrocardia continua a ser muito especial.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasComédia com bolinha [dropcap]O[/dropcap] comediante Louis CK vem a Portugal no final de Maio para fazer quatro espectáculos no Maxime Comedy Club. Os bilhetes, apesar de custarem quarenta e cinco euros, esgotaram num ápice. As reacções, essas, não se fizeram esperar. Para os poucos que não se recordam, em 2017 o New York Times publicou uma reportagem na qual cinco mulheres acusam o comediante de “conduta sexual inapropriada”, a saber e pelo que foi revelado, Louis CK tinha por hábito masturbar-se à frente de mulheres, mas “não sem lhes pedir licença primeiro”, como terá dito o próprio depois de se ver confrontado com as notícias sobre o seu comportamento. Este é apenas mais um comportamento abusivo recorrente na indústria de entretenimento americana (e julgo que será igualmente assim, em graus variáveis, um pouco por todo o lado). Durante décadas os menos poderosos (actores e actrizes aspirantes, sobretudo) foram as grandes vítimas destas condutas que resultam, como o próprio CK admite, de um abuso da posição de poder de quem está mais perto do topo ou mais longe do fundo da hierarquia. É um comportamento típico de filho da puta, e estes, infelizmente, não existem somente na indústria de entretenimento. Embora – e felizmente – nem toda a gente tenha sido sexualmente assediada no trabalho, muitos – e atrevo-me a dizer que uma maioria significativa – tiveram chefes ou responsáveis directos que por serem ou se terem tornado filhos da puta profissionais tornaram a vida dos seus subordinados pequenos infernos a troco de nada senão o gozo do (pequeno) poder. Aqueles que tiveram a sorte de por motivos sobrenaturais nunca se terem cruzado com um filho da puta podem ler o Discurso sobre o filho da puta, do Alberto Pimenta, e ficam a saber de que se trata, está lá tudo. Os escândalos Harvey Weinstein e Kevin Spacey – bem como o movimento Me Too – vieram expor de forma assustadoramente clara o quão sistémicos são o abuso e assédio sexuais. O fenómeno, que nunca foi novo, não merecia a censura social de que é alvo hoje em dia. Como tantos outros: durante décadas era tido como normal um marido “disciplinar” a sua mulher. Louis CK foi basicamente riscado do mapa da indústria. Foram-lhe cancelados contratos, distribuição de filmes, participações em séries. Confessou-se arrependido, como seria de esperar, e fez uma pequena travessia no deserto, tendo regressado aos palcos em Agosto de 2018. Os quatro espectáculos que prevê realizar em Portugal encontram-se esgotados. Como em quase tudo na vida, a doutrina acerca de Louis CK e do seu regresso à comédia divide-se. Há quem considere que ele está no direito de voltar, quem ache que o seu regresso é prematuro e quem considere que ele nunca mais devia fazer nada. Estas posições resultam em grande parte de Louis CK não ter feito (aparentemente) nada de ilegal. Não foi acusado, julgado e condenado. O seu comportamento é moralmente condenável mas não legalmente sancionável. E a única forma que a sociedade tem de punir um comportamento sobre o qual os tribunais não podem opinar é a censura a que pode submeter o trabalho do autor. E esta diferirá naturalmente, em termos de intensidade e duração, de pessoa para pessoa. Não acho que ninguém merece uma proscrição vitalícia pelos actos cometidos. Mas o regresso de Louis CK ao business as usual tem o seu quê de precipitado. Como de facto estamos no domínio da subjectividade na apreciação e sancionamento dos actos do comediante, parece-me que a presença nos espectáculos de 24 e 25 de Maio diz mais de quem lá vai do que do próprio Louis CK.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasBrasil em auto-ficção [dropcap]E[/dropcap]steve há poucos dias em Portugal um amigo meu, o Eric Nepomuceno, para um encontro no âmbito das comemorações do 25 de Abril de 1974, chamado “Resistências pacíficas: o valor da liberdade”, no Auditório Municipal Fernando Lopes-Graça, em Almada. O Eric, com setenta anos, conheceu de perto da ditadura brasileira e os seus efeitos. Os seus artigos contra o regime militar valeram-lhe um exílio em Buenos Aires. No que concerne ditaduras e ausência de liberdade de expressão, Eric sabe do que fala. Perguntei-lhe pela situação no Brasil e o Eric respondeu-me “você não faz ideia”. Disse-lhe que temos acompanhado a situação pelas notícias que nos vão chegando e que de facto a coisa parece ainda pior do que antecipáramos. “Sim”, contrapôs, “as notícias são importantes, mas só revelam uma camada das muitas mudanças que todos os dias vão ocorrendo, e as mais brutais por vezes são as mais subtis, que ficam de fora da agenda jornalística”. Contou-me que há dias estava numa tabacaria para comprar um maço de cigarros, na “fila dos velhinhos”, como a apelidou, e que teve de sair para trocar dinheiro ali perto, “pois a menina não tinha troco”. Quando regressou, o tipo que antes estava atrás dele na fila pagava uma conta qualquer – a tabacaria, além de vender cigarros, também serve para comprar jornais e pagar contas da luz, do telefone, da água, etc – atirou-lhe “Você foi rápido”. “Sim, fui perto, e estava vazio”, respondeu Eric. “Pensei que tinha ido buscar dinheiro no Lula”, foi a resposta do tipo. Assim, do nada. Sem que Eric fizesse qualquer declaração de intenções ou esboçasse qualquer provocação. O Eric, versado por razões biográficas em conflitos de toda a espécie, respondeu “Não, fui na sua mãe, ela não pagou por ontem à noite”. A coisa felizmente acabou bem. Os insultos não passaram do modo caixinha de comentários. Mas a sucessão de bravatas podia ter tido um desfecho distinto. De facto não temos qualquer experiência da realidade quotidiana dos brasileiros que se opõem ao regime de Bolsonaro. As notícias que nos chegam são sobre as decisões mais ou menos incompreensíveis tomadas pelo governo actual. De fora ficam a o dia-a-dia e os seus conflitos. E são esses que na verdade mais interessam a um escritor. Num futuro mais ou menos próximo alguém escreverá sobre o quotidiano deste período sombrio da história do Brasil. Este período que está muito mais perto de se tornar uma ditadura de cariz teológico semelhante à narrada no Handsmaid’s Tale do que num regime fascista comparável aos do século XX. A história das nações é uma sucessão de factos e das relações nem sempre claras que os unem. Mas a história das pessoas de todos os dias, dos seus conflitos, das suas pequenas vitórias e derrotas é a literatura que em grande parte a tece, e é através desta que acedemos a uma compreensão mais vasta de um determinado período histórico. Quando alguém pergunta para que serve a literatura (que, em boa verdade, deve estar primeiramente ausente de qualquer propósito ou função), podemos sempre dizer que a literatura se pode constituir como ponto de vista privilegiado sobre a memória. Mesmo que não servisse para mais nada, já teria a utilidade funcional que a nossa época tão preocupada com a produtividade reclama. Entretanto, e enquanto estamos imersos no processo de transformação do Brasil que conhecemos noutra-coisa-qualquer, o Eric confidenciou-me a sua vontade e disponibilidade para escrever crónicas sobre o dia-a-dia deste Brasil em mudança. E disse-me que o faria “bem baratinho”. Se estivesse num lugar de chefia de um periódico português, escrevia-lhe já um mail. Além de saber do que fala, o Eric é um escritor do caraças.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasCéu nublado [dropcap]A[/dropcap]inda estamos muito aquém de perceber exactamente o que mudou no modo como nos relacionamos com os outros desde o surgimento das redes sociais. É normal, estamos «entre»; entre estados-de-coisas que carecem de definição e de distância para as conseguirmos apreender com clareza. Não sabemos ainda se o fenómeno Facebook é apenas transitório. O que sabemos é que este ganha utilizadores a nível horizontal de expansão geográfica e que os perde a nível vertical e demográfico junto dos mais novos. Os mais novos estão a preterir o Facebook em prol do Instagram e do Snapchat, entre outros. Não parece haver uma plataforma – ou um formato – capaz de estabelecer um standard equivalente à rádio ou a televisão no séc. XX. É interessante estarmos entre estados-de-coisas. Nunca na história da humanidade a geografia contou tão pouco. A distância da informação eclipsou-se. E mais do que a distância, o epicentro. Somos todos difusores de informação enquanto participantes activos na rede. A própria noção de informação está a mudar. Mais do que uma via de sentido único do emissor ao receptor num meio canónico, a informação é neste momento um emaranhado atómico de perspectivas cuja análise requer uma capacidade computacional disponível apenas a nível estatal. As famigeradas fake news não são o aspecto mais assustador ou perigoso desta equação. Enquanto formos capazes de desmontar o fenómeno, os danos à credibilidade dos meios de comunicação podem ser contidos (os perigos neste momento são outros e não cabem aqui). O problema decorrente da multiplicação de pontos de vista é o da absoluta relativização da informação. O problema é deixarmos pura e simplesmente de ter critério para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Na verdade já tivemos mais longe. Nos Estados Unidos, onde parte da realidade assume contornos de caricatura, um homem foi detido em Dezembro de 2016 por entrar com uma metralhadora AR15 numa pizzaria de Washington chamada Comet Ping Pong em busca de tirar a limpo uma história que circulava na Internet, sobretudo nos meios conservadores e em sites que navegam entre a indignatite e a teoria da conspiração tout court, que defendia que a dita pizzaria era na verdade um albergue para uma rede de pedofilia dirigida pela candidata democrática às eleições presidenciais desse ano, Hillary Clinton. Apesar de o homem ter disparado uns tiros, o balanço foi francamente positivo: a única coisa que morreu nesse dia foi a noção, e esta já entrara comatosa no restaurante. No caso em apreço, não é que a notícia não tenha sido evidentemente desmentida uma série de vezes por entidades competentes (como a polícia metropolitana do distrito de Columbia). O problema é que há cada vez mais pessoas a acreditarem que os meios de comunicação (e uma boa parte das entidades ligadas de algum modo ao governo) lhes mentem, mesmo quando se tratam de histórias em relação às quais o único critério de averiguação deveria ser o bom senso. Se a coisa não descambar num desastre global nos próximos vinte, trinta anos, escrever-se-ão milhares de teses de doutoramento sobre esta época de “entres”: entre a solidão e a omnipresença, entre a verdade e a mentira, entre a ficção e a realidade. Talvez uma delas seja a chave para compreender um mundo cada vez mais estranho, até para aqueles que acabaram de entrar nele.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda o turismo [dropcap]A[/dropcap]ndar por Lisboa nestes dias é assistir a aparentemente imparável depredação de tudo quanto Lisboa tinha de típico, para utilizar uma palavra cara aos marketeers turísticos, em prol da sua destituição por lojas de smoothies, espaços entre o rustico e o industrial que vendem cafés caros e saladas de abacate com granola entre o intragável e o comer para sobreviver e todo o tipo de falcatruas exóticas que se esforçam para adoptar com urgência a última moda do rebanho da hipsteraliada em que cada um dos seus membros vive na ilusão de não pertencer a rebanho algum – ou, pelo menos, nega-lo tão veementemente como um vegan o consumo de carne. Assim nascem as padarias típicas alsacianas que já nem na Alsácia existem, as lojas de patos de borracha amarelos cujo propósito se situará sempre além das fronteiras do que pode ser, para mim, uma «inteligibilidade da volição do consumidor» e todos o tipo de concept stores que transformam Lisboa numa espécie de site de pornografia gourmet no qual a minúcia da subcategorização é levado ao paroxismo. A par disso, o miradouro do Adamastor continua vedado, existe algures «plano» para que o vulgo possa novamente usufruir dele – antevejo as cláusulas draconianas do «plano», não vá o vulgo decidir comportar-se de forma minimamente natural perante os clientes do Hotel Verride que entretanto transformaram o largo do Adamastor num estacionamento privativo para automóveis de vidros fumados custando o equivalente a um T1 nas Olaias. Ninguém sabe – publicamente – o que será do miradouro mas não é difícil desconfiar de que a clientela do Hotel terá sempre direito de preferência sobre o uso a dar ao espaço – de preferência continuaria fechado, já que dos quartos do hotel se tem uma vista pelo menos equivalente do Tejo e da ponte 25 de Abril, símbolo cada vez mais deprimente do bordel financeiro que sob a máscara do dinheiro e do progresso tomou conta de Lisboa, dos seus habitantes e ruas. Culpados havê-lo-ás em abundância, da esquerda à direita; mas o maior deles partilha sem dúvida da cupidez associada ao deslumbramento de se descobrir que das ruinas se podia fazer ouro. A tacanhez do pensamento político português – perdoe-se o oximoro – é precisamente a de querer transformar tudo num produto passível de ser agitado como uma bandeirola destinada a servir de isco para os impacientes euros nas carteiras dos turistas. Não lhes passa pela cabeça, à classe política em geral, que a inutilidade turística de determinadas lojas e espaços é precisamente o factor que faz a diferença entre um turista se sentir fascinado e defraudado, entre se sentir num sítio que continua a ter uma parte que não lhe é dedicada, uma parte misteriosa, a espaços incompreensível, mas que atesta um modo de vida corrente ou quase desaparecido, um modo precioso precisamente por ser inútil do ponto de vista turístico e resistir à imposição de um exotismo artificial. A classe política continua a achar que participou decisivamente na escolha de Lisboa como destino turístico internacional, quando na verdade apenas colheu os frutos de um quase completo desconhecimento de Portugal enquanto território de múltiplas possibilidades e de uma tempestade perfeita do ponto de vista do turismo mundial. Mas como qualquer tacanho que se preze, o político acha-se na obrigação de seguir e impor o mantra da produtividade, eliminando todo e qualquer espaço que não insista ou se revele incapaz de produzir a maior quantidade de lucro (e de impostos) possível. Lisboa transforma-se paulatinamente num parque de diversões votado a ser cada vez menos habitado pelos cada vez menos lisboetas e segue alegremente o caminho de Albufeira e de boa parte do Algarve: tudo quanto existe é pensado em função daqueles que se despreza cupidamente. Um dia existiremos para o turista, em modo de função permanente. Se a isso se pode chamar existir.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDiário imprevisto de viagem [dropcap]N[/dropcap]ão tenho normalmente grande contacto com miúdos de quinze anos – calma, não é nada disso. Embora o meu filho tenha de facto quinze anos, é um miúdo – como diremos – assaz atípico. Não sei o que se passa na cabeça dos adolescentes agora, na verdade não sei o que se passa na cabeça das pessoas em geral e tenho por hábito desconfiar das personas judicativas que as pessoas assumem facilmente diante de um teclado e de um ecrã. Quase ninguém é tão mau, tão bom, tão engraçado ou tão feliz como o avatar virtual que o representa. Além disso, vivo – como quase toda a gente – numa bolha constituída pelas amizades que de certo modo reforçam o ponto de vista segundo o qual esta atmosfera pode ser, a espaços, respirável. Dito isto, um adolescente de quinze anos não é mais misterioso para mim do que os participantes num programa da manhã: equivalem-se. A diferença é que ainda assim é mais fácil – embora porventura menos tolerável – ter acesso a um programa da manhã. Fui convidado em 2018 para estar duas semanas em Bordéus com outro escritor – um marroquino, desta feita; o negócio é ter duas perspectivas, uma de dentro e outra de fora, da europa e da união europeia – ao abrigo de um programa local de cidadania europeia. A ideia é que os putos contactem com escritores – vivos, porque para a maior parte deles ser escritor equivale a estar morto – que lhes coloquem desafios às preconcepções que naturalmente decorrem da falta de contacto efectivo com outros pontos de vista além daqueles que os rodeiam e que tendem a reforçar aquilo que pensam. A ideia era portanto pô-los a pensar ao lado daquilo que pensam. Duas escolas por dia, duas horas em cada escola, uma vintena de criaturas em ebulição hormonal e com uma paciência tendencialmente diminuta para tudo quanto não seja imagem. Uma maratona. Eu que não tenho especial vocação para a troca de experiências a nível intergeracional – ou mesmo horizontalmente geracional – achei que podia valer a pena nem que fosse para parasitar a experiência alheia com a qual são feitos todos ou quase todos os romances. A minha grande surpresa foi encontrar miúdos em cada turma muito diferentes dos restantes, bastante mais isolados e circunspectos no início das sessões, mais silenciosos, também, mas surpreendentemente curiosos acerca da pequena fatia de mundo que lhes conseguíamos entregar entre as perguntas orquestradas e as risotas. Não me percebam mal, como quase toda a gente que olha para baixo na hierarquia geracional, estava convencido do absoluto desproposito da juventude. Achava que não queriam ler, que não queriam aprender, que não queriam saber de quase nada senão do que se passa no enquadramento de um ecrã de telemóvel ou de computador. É quase mas não inteiramente verdade. Lêem menos, de facto (multiplicada de tal modo a oferta de distrações, seria estatisticamente improvável que a escolha deles recaísse tantas vezes sobre o livro como quando este competia apenas com a televisão). A principal diferença, parece-me, é o facto de estarem muito mais preocupados com o futuro do que eu e os da minha idade estávamos. Preocupam-se com o desemprego, com as alterações climáticas, com os direitos das minorias, das mulheres, com o racismo e restantes discriminações. Não quer dizer com isso que o plano social coincida com o plano prático. Mas pensam nas coisas com uma seriedade incompatível com a manutenção de uma fachada social de aceitação. Infelizmente – não há bela sem senão – parecem-me muito adultos. Demasiado adultos. Com quinze anos eu estava essencialmente preocupado em captar a atenção da Fatinha que parecia só ter olhos para um latagão com um cabelo loiro e encaracolado a lembrar as piores fotos do antigamente e incapaz de alinhar duas ideias que não gravitassem em redor do seu umbigo. O meu pai coitado bem me tentava ajudar: “pelo menos não deixes que a tua mãe te escolha a roupa”.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasMenos, por favor [dropcap]A[/dropcap]s redes sociais são pródigas na não tão subtil arte da indignação colectiva. São uma espécie de curso de água por onde passam boiando as revoltas do dia. O seu percurso à superfície é normalmente assaz reduzido: vêm de um subterrâneo oculto e anónimo, flutuam no máximo dois ou três dias à vista e na boca de todos, sob o escrutínio atento dos indignados, e regressam rapidamente ao buraco do esquecimento geral. Pelo que tenho lido nas redes sociais – onde os gatos têm injustamente de dividir o espaço que lhes pertence por direito com toda a espécie de minudências – nestes últimos dias tem-se falado de dois programas televisivos que visam encontrar mulher casadoira para homem medianamente incapaz. Não vi os programas em causa, o que no entanto não me impede de todo de comentá-los – com a vantagem acrescida de evitar uma exposição à mediocridade a que já estamos involuntariamente votados uma grande parte do tempo. Parece que num deles uma das personagens é a mãe dos indivíduos em causa, repetidamente insatisfeita com a parca qualidade doméstica das mulheres de hoje. De facto, o mundo no qual definhamos em relativa simultaneidade tornou-se cada vez menos complacente com a polivalência. Se há quarenta anos se esperava das mulheres, para além das competências que lhe eram naturalmente impostas, do arrumar a casa ao lavar e passar a roupa, sem esquecer cuidar das crianças e amiúde dos sogros acamados, ter ainda um emprego – que de preferência não exigisse muito daquelas cabecinhas já tão gastas pelo excel incessante de compras e contas que lhes cabiam naturalmente em tarefa –, a verdade é que os dias de hoje, crescentemente propensos à especialização, obrigam as mulheres a revelarem as suas infelizes limitações, nomeadamente em termos de ubiquidade e de tolerância ao sofrimento. Cada vez mais embrenhadas nas tarefas profissionais que lhes garantem uma módica quota de independência, as mulheres infelizmente dotadas de apenas dois braços e de uma aborrecida precisão de sono, já não conseguem – ou não querem – ser o pau-para-toda-a-obra voluntarioso a que uma geração não muito distante de homens – e de mulheres – se habituou. No outro programa o foco são os agricultores do rectângulo, homens bons e sadios como pêros de Monchique que, por vicissitudes da vida no campo (onde é verdade que as mulheres – e já agora, porque não, os homens – são cada vez em menor número), não logram chegar à idade de ver os frutos das suas sementes crescerem vicejantes porque as suas sementes, infelizmente, não caem nunca em chão fértil. É uma espécie de glosa da imagem do rancheiro letrado, apetecível e rico mas na versão minifúndio, escolaridade básica e remediado suficientemente para ter quase os dentes todos. Sempre achei que existe uma correlação rígida e simples entre a vergonha da exposição neste tipo de baderna televisiva e os ganhos decorrentes da mesma. Tendo em conta de que o Tinder permite um raio de “descoberta de sujeitos passíveis de interesse” de cento e sessenta quilómetros e de que não estamos propriamente nas desabitadas e infindas estepes russas, parece-me que existem ainda demasiadas pessoas a não perceberem a simplicidade da correlação ou a desconhecerem o Tinder. Qualquer dos casos me parece, em todo o caso, lamentável. A crescente estupidificação em curso só pode na verdade ocorrer porque aparece aos olhos do estupidificado em curso – todos nós, com algumas notáveis mas insuficientes excepções – como outra coisa ou mesmo o seu contrário. A vergonha aparece como fama; a quantidade confusa de informação aparece como esclarecimento; a saloiice aparece como genuinidade, e podíamos continuar maçando página fora.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma diferença de escalas [dropcap]A[/dropcap] velocidade da luz é de 299.792.458 metros por segundo. Comummente arredondada para 300.000 km/s, a velocidade da luz – no vácuo – parece corresponder ao limite de velocidade do universo. Para se ter uma ideia da magnitude deste número – e simultaneamente da sua incrível insuficiência perante as distâncias cósmicas – veja-se o seguinte: a distância entre a terra e a lua é de aproximadamente 384.400 km (dependendo da posição orbital do nosso satélite), à velocidade da luz levaríamos apenas 1,255 segundos a lá chegar e uma ida e volta tardaria menos de 3 segundos (um desfasamento que aliás podemos verificar nas comunicações com os astronautas que foram à lua, todas elas apresentando desfasamento entre emissão e recepção). Já a distância média entre a terra e o sol é de uns consideráveis 149.597.871 km – o correspondente a uma Unidade Astronómica, outra unidade de grandeza para distâncias cósmicas. À velocidade da luz, levaríamos 8 minutos e 20 segundos para percorrer essa distância. A estrela mais próxima do nosso sistema solar é Alfa Centauri, um sistema de três estrelas gravitacionalmente unidas. Fica a 4,37 anos-luz de distância, cerca de 4.1343392 x 1013 quilómetros. Um ano-luz equivale – como o nome indica – à distância percorrida pela luz em vácuo num ano (9.4607 x 1012 km). À velocidade da luz – velocidade que não conseguimos atingir nem de muito longe, levaríamos 4 anos e qualquer coisa a percorrer a distância da terra ao sistema Alfa Centauri. A velocidade da luz, absolutamente avassaladora na escala da terra e mesmo no sistema solar, é ridiculamente lenta quando consideramos distâncias cósmicas. Na verdade, a nível cósmico tudo parece-me mover-se com extraordinária lentidão, mesmo que à nossa escala não o pareça. Mesmo a uns nada despiciendos 230 km/s (quase um milhão de quilómetros por hora), o sol leva cerca de 255 milhões de anos para completar uma órbita à volta do centro da Via Láctea. Na verdade, no nosso tempo medido em anos e não em milhões de anos, as coisas parecem estar em câmara lenta ou mesmo paradas. Quando penso na piada cósmica que é a nossa métrica humana – fadada a perguntar o que não pode saber e a postular abstractos que é incapaz de compreender vivencialmente – sinto-me esmagado pelo tanto e tão inacessível que temos em nosso redor. Postula-se existirem cerca de um septilião de estrelas no universo (é um 1 seguido de 24 zeros). Todas elas a distâncias a que humanamente não temos acesso. Todas elas orbitando centros de galáxias a velocidades tão elevadas do nosso ponto de vista e tão irrisórias de um ponto de vista cósmico. Algumas destas estrelas são tão grandes por comparação com o nosso sol e queimam tão rapidamente o seu combustível que durarão um ínfimo do tempo que este tem previsto durar (uns modestos dez mil milhões de anos). À infinidade horizontal pode corresponder peculiar infinidade vertical. Como no filme Animal House de 1978 se diz: “então o nosso sistema solar pode ser apenas um átomo na unha de um gigante?”. Podemos ser apenas uma instância que aos olhos de um observador noutra escala se mexe muito rapidamente – tal como os átomos parecem fazê-lo à nossa escala. Podemos ser apenas um átomo numa molécula de dióxido de silício num copo de vidro que se está a estilhaçar por ter caído ao chão. Podemos ser ainda mais ridiculamente pequenos do que pensamos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA grande beleza [dropcap]T[/dropcap]enho amigos e amigas detestáveis pelos quais o tempo parece não passar. Normalmente são pessoas cujo estilo de vida privilegia a conservação de um estado de funcionamento razoável do corpo, seja pela alimentação, pela prática de desporto, pela recusa do álcool e do tabaco ou, mais geralmente, pela combinação de uma multiplicidade de hábitos saudáveis. Na verdade, a mera descontinuação de um hábito negativo e a adopção de um contraponto positivo parece ser suficiente para operar um deslocamento do centro de gravidade dos preceitos de vida; o sujeito que deixa de fumar descobre-se passado pouco tempo no ioga e apreciando torções de coluna que, em tempos idos, o deixariam num estado pré-paraplégico. Não parece possível – ou de todo o modo provável – ser saudável às fatias. Somos tendencialmente atraídos por polos ao redor dos quais gravitam uma constelação de elementos com graus distintos de afinidade. É assim, por exemplo, com as pessoas com as quais nos relacionamos a diferentes níveis. Por terem uma determinada profissão, por exemplo, esperamos deles um certo gosto musical, uma certa orientação política, um certo estilo de roupa. Os intervalos nos quais a diversidade de manifestações de cada característica acaba por não nos surpreender não são alvo de racionalização ou de inspeção prévia. A surpresa acontece sempre a montante da conceptualização. Na surpresa descobrimo-nos sempre no momento imediatamente posterior a derrocada de uma pré-concepção. “Mas como é que podes ser de direita sendo actor?”; a nossa compreensão do mundo é, como Nietzsche não se cansava de dizer, preguiçosa. Funcionamos por anotações gerais e vagas. O ponto de vista é essencialmente mandrião. E não se cansa, por isso mesmo, de ser apanhado em contrapé. Nunca tive particular fascínio por me ver ao espelho. Nunca tive, aliás, razões para isso. Mas houve uma altura, até há dez anos, na qual a coisa era modicamente suportável. Lembro-me muitas vezes de Charles “o outro lado da lua” Bukowski e do seu repúdio por espelhos. As pernas eram a sua única medalha estética. Não se cansava de repetir a Jane, o seu grande amor, “look at my legs, baby, I’ve got great legs”. Cada um se ocupa de promover e gabar o si-próprio na montra como pode e sabe. Li há uns dias uma peça entre a sociologia e a curiosidade, como soi escrever-se nestes dias, uma coisa com aparente validade científica e ainda assim leve, o fast-food servido no porão da ciência que sempre desbloqueia uma conversa num jantar de colegas em que ninguém quer lá estar. A peça era sobre pessoas consensualmente bonitas – era esta a ideia que passava – e as suas experiências em entrevistas de emprego. Enquanto que o comum mortal com rosto de anonimato se tenta escapar como pode ao pisoteamento em que se transformaram a maioria das entrevistas de emprego, às iterações de Adónis ou de Helenas pergunta-se-lhes apenas quando podem começar. A impressão decorrente da beleza, sobretudo da beleza que parece engrandecer e simultaneamente esmagar tudo em seu redor, deixa-nos numa posição de extrema vulnerabilidade: a pessoa diante de nós, por um motivo que não racionalizamos mas que intuímos imediatamente, é muito maior do que somos. A beleza é uma espécie de passaporte diplomático: o seu portador pertence a uma elite de acesso privilegiado nas mais diversas situações sociais. O único revés da beleza – o seu fardo, se assim o quisermos colocar – é o facto de esta ser muitas vezes um factor de intimidação alheia. E quando não o é, é fonte de desconfiança: aquele que é belo vê a beleza como uma coisa entre outras na constelação de atributos através dos quais se pensa. Por isso nunca tem a certeza de que os outros – aqueles pelos quais este se interessa – se interessam por ele pela expressão de uma afinidade que ultrapassa os limites da pele ou apenas para serem co-portadores, ainda que que a fingir, da luz herdada na lotaria genética.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDo trabalho [dropcap]P[/dropcap]ermitam-me dizer que ao fim de vinte e tal anos de trabalho percebi finalmente que as coisas não têm qualquer tendência para melhorar. Eu nunca gostei da ideia de trabalho, isto é, de posto-com-horário-para-ser-cumprido-ao-modo-de-um-castigo, até porque sempre achei que a vida era demasiado curta para que aceitássemos a ideia de lhe amputar um terço sob mando alheio apenas para não morrer de fome. A maior parte das chefias que conheci estava inebriada com o poder – mesmo que pouquíssimo – de que dispunha sobre os outros. Muitos dos colegas que tive davam infinitamente mais importância ao aspecto formal do trabalho (pontualidade, absoluto respeito pela hierarquia e aspecto) do que ao conteúdo do mesmo (produtividade, inovação e competência). O trabalho é um local e um modo de vida odioso onde prolifera e se premeia sobretudo a incompetência e irrelevância. Um chefe cretino e inseguro fará de tudo para proteger a sua posição periclitante e não hesitará em rodear-se de cretinos e de bajuladores. Um chefe competente dificilmente será levado a sério pelas restantes chefias, até porque imprime uma marca e um ritmo pouco condizentes com a mediocridade geral e põe a nu, por contraste, a incompetência alheia. No trabalho quase tudo é mau, ou não derivasse o nome de um antigo instrumento de tortura do tempo dos romanos, o tripalium. Um tridente de madeira usado primeiramente na agricultura e logo convertido em acessório sado-maso com tónica exclusiva no sado. Percebo a utilidade social do trabalho. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam de encontrar um sentido para a vida ou pelo menos buscá-lo com um resíduo que fosse de avidez. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam de ficar com os putos o dia todo – pelo menos nas férias escolares –, ou deixariam de ter desculpa para faltar à festa de final de ano, à quermesse da páscoa ou ao teatrinho do sexto ano. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam tempo para fazer todas aquelas coisas que dizem querer fazer – e que, na verdade, não querem – e cujo tempo escasseia para as fazerem. O trabalho, em certo sentido salva. Ou pelo menos ajuda a manter um estado-de-coisas, sejam estas uma paternidade sem acidentes domésticos ou uma relação que sempre ajudar a pagar a casa e a compor o frigorífico. Mas no mesmo período de tempo em que estamos a trabalhar podíamos estar a fazer coisas muito mais interessantes. Ou menos, mas ainda assim a escolha seria nossa. Nos países maximamente capitalistas a cultura do trabalho atinge proporções religiosas. Lembro-me de ler uma entrevista a um daqueles magnatas do petróleo que por cupidez ou tédio resolvem se candidatar a um lugar de congressista ou de senador, na qual o entrevistador perguntava ao bilionário o que pensava este das consequências da automação e da inteligência artificial na vida dos seus trabalhadores num futuro não muito distante. O entrevistado, pelos vistos, não só nunca pensara seriamente no assunto (bilionário old school, pré Silicon Valley) como não conseguia sequer conceber a possibilidade de um mundo no qual as pessoas não tivessem que trabalhar. Acabou por atirar, tão enojada como contrariadamente, qualquer coisa como “it would be a godless world”. Não só o trabalho ocupa as mãos que, como se sabe, são o recreio do demo quando desocupadas, como escalona o tecido social: quem ganha mais tem uma posição moralmente relevante e quem ganha menos tem de se ater à sua própria insignificância. No limite, os pobres são-no porque estão pejados de vícios morais. O seu sofrimento na terra é já ele um o primeiro prato de um castigo divino de que não se antecipa o fim. Sem a bússola do trabalho, como destrinçaríamos o bem do mal, a excelência da mediocridade, o necessário do supérfluo? Mais a mais, que faríamos com todo esse tempo recuperado das nossas vidas? Em relação à abundância de tempo e de dinheiro sempre tive como certa a frase de um reclame da saudosa Vox: “dá Deus vozes a quem não tem implantes”.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDeixem-me vos levar pelas mãos até ao sítio das perguntas [dropcap]T[/dropcap]omo Venlafaxina LP 150mg há cerca de 20 anos. À altura, antes dos genéricos, o nome comercial era Effexor XR e uma embalagem de 30 comprimidos custava mais ou menos 50 euros. Uma pequena fortuna mensal, sobretudo para um estudante cronicamente desprovido de cheta. Antes da Venlafaxina tomei outros medicamentos antidepressivos – moléculas mais rudimentares – e até um pertencente à famigerada classe dos inibidores da monoamina oxidase, ou IMAO, responsáveis por tantos efeitos secundários e interacções medicamentosas e alimentares que tomá-los comportava um risco quase tão elevado como não o fazer, sobretudo nos primeiros dias. Não tendo nunca feito alarido do meu regime químico, nunca fiz questão de o esconder. Não tenho vergonha de depender de comprimidos para ter uma vida minimamente normal. Às vezes algumas pessoas que se tornam mais próximas perguntam-me: “já experimentaste parar de tomar?”, ao que eu respondo afirmativamente. “E o que é que acontece?” Acontece a merda inominável de cada posição do plano existencial valer exactamente o mesmo que qualquer outra. É uma coisa pela qual a maior parte da população nunca passou, felizmente. No reverso dessa bênção reside a desfortuna de sermos portadores de uma experiência incomunicável, mediante a qual os outros nos olham com o desdém de nos acharem, no mínimo, frágeis e, no limite, mimados. Como vos fazer perceber a todos que uma depressão não é (apenas) uma tristeza tão profunda como a fossa das Marianas mas também (e sobretudo) um estado no qual todas as possibilidades dispostas no xadrez da existência têm valor residual e equivalente? Comer é igual ao litro. Sair à noite é igual ao litro. Trabalhar é igual ao litro. Amar é igual ao litro. A escolha entre infinitos zeros é ilógica. E perdemos a capacidade de escolher, de facto – fazemos quase tudo por obrigação – mas não perdemos a lucidez de nos vermos a nós próprios acantonados num deserto de sombras. Acresce a este inferno o peso de verificar que para os outros, nada mudou. E isto consigo exemplificar-vos. É o que acontece num luto: o mundo, que devia parar em solidariedade para com o enlutado, continua como se nada fosse. Talvez o luto seja a melhor imagem de que disponho para conceber o que pode ser uma depressão, embora no luto exista o conforto – que não é de somenos – de existir um motivo para o baixio sem fim. E a depressão é só uma pequena fatia do bolo da saúde mental. Temos ainda todas as esquizofrenias, todos os distúrbios obsessivo-compulsivos, todos os desvios da personalidade, os distúrbios alimentares, as manias, o autismo e o seu guarda-chuva generoso de manifestações, as deficiências cognitivas e o resto do DSM-V que me baldo de sintetizar. São muitas pessoas, demasiadas pessoas que, além de se encontrarem numa situação de carência e desfavorecimento, ainda têm de se justificar perante os outros como se os seus comportamentos fossem resultado de caprichos evitáveis e como se os medicamentos acabassem por ser uma espécie de placebos para a criança impossível de que escolheram não se ver livres. A maior parte de nós, doentes mentais, deixaria agora mesmo de tomar os antidepressivos, os antipsicóticos, os ansiolíticos e tudo mais. Não somente porque significaria que melhoráramos como assim evitaríamos os efeitos secundários que decorrem da sua toma continuada e os efeitos sobre os quais não temos ainda dados de longo prazo. Deixem de perguntar às pessoas que conhecem se já experimentaram deixar a medicação. Deixem de lhes aconselhar desporto, meditação, passeios a pé, mascotes e sexo (de preferência não em conjunto). Já demos com os burrinhos nessas águas todas e se acabámos num consultório ou numa urgência não foi – a maior parte das vezes – por não termos imaginação suficiente para contemplar a panóplia de banalidades que se oferece como escolha ao deprimido quando o problema da depressão é, ele mesmo, um problema de escolha. Querem ajudar um doente mental? Não sejam paternalistas. Não sejam – infundadamente – assertivos. Mesmo que acabem por perceber que o auxílio é um processo complicado e longo do qual não querem tomar parte – e isso não tem mal nenhum, a vida é só uma e o seu tempo é contado –, pelo menos despem-se do preconceito sobre o qual radicam todas as asneiras que vos ouvimos dizer.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAté já, Joana [dropcap]A[/dropcap] minha Joana tinha cerca de quinze anos quando morreu. A Joana era uma gata. Minto. Era “a” gata. Um bicho único. Porventura, e chegado apenas à segunda linha desta crónica, exagero. A minha mãe, que não se cansa de repetir alguns ditados capazes de sintetizar a vida e as suas experiências num conjunto bem medido de palavras, seria lesta a dizer “não há zorra a quem lhe pareça os filhos feios”. Para quem não sabe, zorra é uma raposa velha e matreira. Ao contrário de nós, citadinos, a malta do campo aquilatava a beleza dos animais pelo préstimo. A raposa, típica assaltante de galinheiros, não granjeava a simpatia – estética ou outra – dos donos das galinhas. A verdade é que, embora goste muito dos dois gatos que neste momento me permitem morar com eles, a Joana era especial. O Rim e o Croquete são fantásticos. Tão diferentes um do outro como dois irmãos e capazes de em conjunto exprimir inteiramente a paleta dos comportamentos felinos. Mas a comparação é injusta, Rim e Croquete são dois magníficos exemplares da espécie Felis catus. A Joana era algo mais, estava mais próxima do humano do que dos gatos. Como diria a minha mãe, do alto da sua proverbial sapiência, “só lhe faltava falar.” A Joana teve uma única ninhada de gatos. Gata de apartamento, não saía de casa. O que não impediu um gato Cardinali de entrar pela janela da cozinha (ainda não sabemos como) e de nos trocar a visita de médico por três gatinhos. Há vinte anos, eu tinha o sono muito mais pesado do que agora. A Joana (ainda não sabemos porquê) decidiu parir em cima de mim. Eu estava a dormir e só acordei na terceira e última prenda. E quando acordei, encharcado de líquido amniótico, imaginei por momentos que com 24 anos tinha feito o meu primeiro xixi na cama. Passadas as formalidades de lamber copiosamente os filhotes e de comer a placenta (a Joana, note-se), decidi instalar mãe e filhos numa caixa de cartão ao lado da cama. A Joana, despeitada, passava o dia a levar os gatos pelo cachaço da caixa para a cama. Eu passava o dia a fazer o movimento inverso. Ela, que sempre dormira comigo, não percebia: renegas os miúdos? Quando o Guilherme nasceu (este sim, meu) tive algum receio. É comum falar-se da ciumeira dos animais de estimação em geral e dos gatos em particular. A Joana não ia para nova. “You can’t teach an old dog new tricks”, pensava. Para minha surpresa, a Joana adoptou o Gui. Velava-lhe o sono e avisava-me quando ele acordava. Zangava-se comigo quando eu me zangava com ele. Mordia-me se lhe falava mais alto (também me mordia se cantava, mas isso compreendo muito melhor). A Joana ainda passou por três mastectomias (as vantagens e desvantagens de ter oito mamas). São muitos meses com uma espécie de copo de Dry Martini à volta do pescoço. Felizmente para ela, o óbice de ver mais longe do que o presente estava do meu lado. Para a Joana, o incómodo da situação resumia-se às visitas ao veterinário. Não tinha – exceptuando os derradeiros dias – dores. Apesar de muito humana, não lograva compreender a inelutabilidade do futuro. Os dias da Joana eram os dias de qualquer gato: dezoito horas de sono, repartidas entre o sofá e um vaso desabitado na varanda e meia dúzia de refeições diárias. O papa Francisco esclareceu-nos: um céu sem cães não é propriamente um céu desejável. Ainda não se pronunciou acerca dos gatos. A despeito disso, estou confiante de que, em havendo um quintal supra-terreno, a Joana lá esteja a desperdiçar tempo. Espero que ainda me conheça à chegada. Até já, Joana.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasRecomeçar, sempre [dropcap]T[/dropcap]odos os dias a vida recomeça. Dormir marca o reinício do nosso sistema operativo. No sono e no sonho, embora sentados na cadeira de comando, não somos nós que pilotamos. Melhor: é outra instância da identidade, uma à qual só temos acesso abdicando da lucidez e do controlo. O sonho tem a consistência da vida. Tudo quanto nos acontece no sonho nos parece tão real como aquilo que, de facto, tomamos como o sendo. Na verdade, não podemos afirmar com certeza não estar a viver um sonho. Não há nenhuma prova de que estamos acordados que não possa ser produzida num sonho. Esta é a premissa de muitos filmes de ficção científica, nomeadamente do Matrix. Outro dos problemas filosóficos equacionados no filme é o da relação entre a lucidez e a felicidade. Tendo em conta que passamos mais de um terço da nossa vida a dormir, se pudéssemos controlar os nossos sonhos, e tendo em conta o absoluto valor de verdade que lhes emprestamos quando os vivemos, que seria preferível? Estar acordado e sofrer ou sermos felizes a sonhar? Os sonhos não são normalmente sequenciais, como a vida o é. O adormecer e o acordar estão ligados por uma continuidade de sentido a que damos o nome de vida. Cada sonho, por sua vez, é um acontecimento fechado. E se não o fosse? Ao contrário do que acontece agora, os sonhos podiam ter o formato narrativo da vida. Poderia dar-se o caso de nos vermos confrontados com a escolha de Cypher, do filme supracitado? “Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o ponho na boca, a Matrix está a dizer ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Após nove anos, sabe o que é que percebi? A ignorância é uma bênção.” A maior parte de nós passa por tormentas na vida cuja resolução é improvável ou difícil. “Quem me dera dormir e acordar com tudo bem”. Já dissemos e/ou já ouvimos isso mais que uma vez. Alguns de nós não descartariam inclusive passar uma boa parte da vida numa simulação na qual pudéssemos ser tudo o que não fomos ou, pelo menos, felizes. Entre um estado de lucidez e um sonho, a diferença é unicamente o estatuto. No entanto, temos dificuldade em aceitar a possibilidade de estarmos equivocados quanto ao estatuto da nossa experiência. Até podemos escolher viver na mentira, desde que tal corresponda a uma decisão nossa e saibamos onde começa um estado e acaba outro. O que não conseguimos aparentemente tolerar é a possibilidade de estarmos na ilusão sem saber a que corresponde a realidade. O nosso ponto de vista está calibrado, nas palavras de um professor de ontologia que tive, na “precisão indespedível da verdade”. O estatuto da experiência vital não nos é acessório. Pelo contrário, este apego transcendental à verdade ocupa uma posição mais central e decisiva do que felicidade. Sucede é que na maior parte do tempo pensamos estar na posse de uma compreensão adequada do que se está a passar. Por isso nos parece que a felicidade é o ponto arquimédico sobre o qual assenta o edifício da existência. Querem uma prova? Experimentem acordar num quarto fechado, sem se lembrarem de como lá foram parar. Qual é a primeira pergunta que se imaginam fazer? A realidade é demasiado perseverante, demasiado ubíqua. Está por todo o lado. Há dias em que gostaríamos de lhe fechar a porta e a ela voltar remendados, refeitos, curados. Mas quando fechamos a porta, seja ela qual for, o que fica do lado de dentro não difere em nada daquilo que fica lá fora. Mesmo que diminuta, a realidade restante ainda nos consegue esmagar. Deveríamos saber como dormir mais e melhor. Como encadear os sonhos ao jeito de contas num fio. Ou como tornar cada recomeço “o dia inicial e limpo” da Sophia.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasEterna aprendizagem [dropcap]A[/dropcap] minha mãe tinha um hábito que eu, em criança, detestava. Quando me levava a uma consulta médica ou a um bailarico de imigrantes – ocasiões nas quais nos era exigido um aprumo suplementar – humedecia a ponta dos dedos com a língua e alinhava-me as grossas – e perpetuamente desarrumadas – sobrancelhas. Era tanto um gesto de cuidado como um tique incontrolável. Anos mais tarde, ao levar o meu filho à escola – ele que herdou de ambos lados da família umas sobrancelhas de nível florestal – dou por mim a mimetizar o gesto materno: antes de ele entrar na aula, componho-lhe as calças, ajeito-lhe o cabelo e alinho-lhe as sobrancelhas com um dedo húmido de saliva. Como numa das mais belas canções da Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Como os nossos pais…” Não foi só esse gesto que herdei da minha mãe; devo-lhe igualmente a teimosia, uma boa porção de sarcasmo, a capacidade de me rir de mim próprio e, tentando futilmente pôr de parte a inevitável lamechice que vem à tona sempre que falo da minha mãe, provavelmente as melhores partes de mim. Do meu pai recebi a propensão a não saber quando estar calado, o gosto pela caça, pelo tabaco e pelo álcool e uma tendência a não acabar algumas das tarefas que me disponho a fazer, sobretudo se implicarem construir ou arranjar qualquer coisa. Só percebi verdadeiramente os meus pais quando eu próprio fui pai. Sobretudo de todas as vezes em que falho ser pai, em que sou demasiado pequeno ou demasiado fraco para a tarefa incessante de educar e de cuidar de alguém. Nessas alturas lembro-me dos rostos fechados deles, tolhidos pela vergonha de não estarem à altura e pelo medo de nunca o conseguir estar. Conheço agora por dentro esses rostos. Essa declinação visual da impotência que todos os pais e mães desde sempre conheceram e exprimiram. A vivência da paternidade reperspectiva a condição de filho; de repente estamos do outro lado da fronteira, mal preparados, como quase em tudo na vida, e vivemos finalmente o interior dos gestos e das decisões de que víamos apenas, e mal, a casca. De repente percebemos as limitações, a angústia, o cansaço e, sobretudo e de uma forma completa e vertiginosa, o amor e a sua urgência complexa. A minha mãe nunca percebeu porque é que eu quis tirar filosofia ou escrever. Não aprovou muitas das minhas escolhas na vida, nomeadamente as que implicavam uma relação de custo-benefício no mínimo duvidosa. Mas nunca fez mais do que opor-se-lhes verbalmente. Nunca fez por me condicionar a escolha do caminho ou por me cercear a liberdade. Essa é a majestade suprema do amor materno: amar aquilo que não compreendemos, amar mesmo aquilo que exprime o que não gostamos. Enquanto pai, sei que nunca vou estar à altura da tarefa que me coube. Nunca ninguém está. Como escreve Philip Larkin, no poema This Be The Verse: “They fuck you up, your mum and dad / They may not mean to, but they do.” A minha módica esperança é a de nunca achar-me na posse da ilusão do conhecimento suficiente para ser pai. De achar-me sempre aquém, em falta e em dívida – sem que estas me esmaguem – para querer ser sempre melhor pai do que o sou hoje. Porque esse é o tributo maior que posso prestar ao meu pai e à minha mãe. Esse é talvez o único tributo possível.