Manuel Afonso Costa: “Uma parte da minha alma é oriental”

“Memórias da Casa da China e de Outras Visitas” é o mais recente livro de poesia de Manuel Afonso Costa, lançado ontem pela editora portuguesa Assírio e Alvim. A obra não representa apenas um regresso do poeta às publicações, ao fim de dez anos. É também uma forma de assumir que o Oriente, a China, lhe entrou em casa, que é como quem diz, pela alma adentro

[dropcap]Q[/dropcap]uando é que começou a pensar este livro, a escrevê-lo?
Esse livro surge numa linha de continuidade, de uma poética que lhe é anterior. Não há um momento inaugural em que tenha decidido escrever poemas que obedecem a um determinado critério ou objectivo. Não há um thelos, no sentido de finalidade, de algo que esteja definido à priori. Isso acontece, talvez, no romance, em que a pessoa se senta para contar uma história.

Para começar algo do zero.
Sim. Com a poesia, a pessoa desde que começa a escrever, a determinada altura da vida, não deixa de o fazer e acaba por ir reunindo poemas suficientes para publicar. Não tem de existir uma ruptura, um ponto final e depois o começar de outra coisa. Dentro dessa linha de continuidade, tem de haver o aparecimento progressivo de alguma coisa diferente e nova. Mas deixe-me referir que vai haver um encontro de literatura e filosofia, em Macau e em Lisboa, promovido pelo Instituto Internacional de Macau, onde vão falar da minha poesia, com o tema “O aparecer da China na poesia de Manuel Afonso Costa”. Portanto há uma realidade que aparece, que é a China, sendo que não poderia aparecer apenas a partir dos livros.

Aparece também a partir da sua vivência com a sociedade.
Exacto. Já conhecia a China, teoricamente, já tinha visto gravuras, já tinha lido livros. Já tinha tido acesso à poesia chinesa, há muitos anos, mas nada tem que ver com o choque com a realidade. Este livro fala das memórias da casa na China. Claro que não é a casa onde eu vivi, é uma casa simbólica, é o lugar China, no sentido lato, onde vivi e tive o meu espaço próprio.

A descrição do seu livro fala precisamente da casa enquanto símbolo. Metaforicamente falando, que tipo de casa é esta? É uma casa que alberga a sociedade chinesa?
Em concreto, não. Diria que a minha poesia é muito fenomenológica, está sempre muito ligada às vivências. Foi muito importante vir para o Oriente e entrar em contacto com uma realidade. Esta desafia-nos. Existe a intencionalidade da nossa consciência, mas existe também a intencionalidade quase provocatória da realidade sobre nós. A realidade estimula-nos a reagir. Viver aqui, numa sociedade com um grafismo e arquitectura diferentes… Mas não me refiro só a Macau, embora seja o elemento predominante, porque foi o sítio onde passei os meus últimos anos de Oriente. Fui muitas vezes a Hong Kong nos anos 90 e vivi quase um ano em Zhuhai. Então é todo o conjunto que me estimula. Quando me refiro à casa, é uma casa simbólica. Não é essa casa, com a sua arquitectura própria. Ela é concreta porque está plantada num lugar diferente, um lugar cuja entourage [o que está à volta] é diferente. Refiro-me a uma parte do mundo onde vivi grande parte da minha vida, e a nossa vida é toda feita de casa em casa.

De vivência em vivência.
Vamos deixando nessas casas um bocado de nós enquanto lá vivemos. Ficam ligadas a elas todas as memórias. É em casa que escrevemos (eu pelo menos), amamos, cozinhamos, dormimos. A casa desempenha um papel extraordinariamente rico nas nossas memórias. A casa é opaca, está de alguma maneira fechada, uns afectos abrem-se, outros nem tanto. Ao mesmo tempo, a realidade exterior entra pelas paredes da casa. Se não, viveria aqui como se estivesse a viver em Lisboa ou em Paris. Estamos permanentemente em contacto com uma língua diferente e um grafismo diferente. Uma das coisas que mais me impressionou foi andar meio perdido por certas zonas de Macau, onde são ostensivos e quase histéricos os painéis publicitários mostrados ao exterior. Isso dá uma certa geometria estética, colorida, de luz e caracteres, algo extraordinariamente intenso. É essa realidade que entra em contacto com a casa, que entra dentro de nós. E quando escrevemos ou pintamos, enquanto artistas, damos conta dessa transmigração das realidades.

Disse que este livro é o resultado do que tem vindo a publicar até aqui. A última obra intitula-se “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos”. Passou de uma referência à caligrafia, um elemento muito característico da cultura chinesa, para essa vivência da China. De que forma é que estas obras se interligam?
Têm um ponto em comum. O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” tem cerca de 17 poemas que publiquei numa revista de cultura, sendo uma réplica literária minha do quadro dos tributários que está no museu em Taipé, uma obra de um imperador chinês do século XVIII. É uma obra chinesa, megalómana, e sensibilizou-me muito, tal como a Cidade Proibida e as Muralhas da China. Depois dou-lhe o nome de caligrafia [ao livro] porque um dos elementos do quadro dos tributários é a caligrafia: há uma gravura e há um texto. Com isso o imperador captou toda a realidade, que não conseguiu captar com os sentidos. Foi uma das primeiras formas de ligação à cultura e sociedade chinesa, e à grandeza da poesia e cultura chinesas. Há uma continuidade porque os primeiros poemas deste livro [Memórias da Casa da China e de Outras Visitas] também foram publicados na revista de cultura, na minha segunda passagem pela China. Estes novos poemas não abordam o quadro dos tributários, mas fazem referência a alguns poetas chineses e à literatura chinesa. O modo de dizer da poesia chinesa é sempre mais sentencioso do que o nosso e esse é um aspecto que me sempre atraiu. É uma poesia despojada, onde as coisas aparecem como se fossem sentenças, mas depois não são para ler à letra. Contém outra realidade e sou sensível a essa ironia muito bem disfarçada e austera da poesia chinesa. Chamei-lhe casa pela simples razão de que agora tenho o direito de me referir a uma casa na China.

Ao fim de tantos anos…
Já tenho uma parte da minha alma que é oriental. Eu já tenho uma casa na China. Acharia pretensioso se dissesse isso em 1994, tendo acabado de chegar a Macau. Passou muito tempo, com tantas experiências, e tendo uma parte da minha vida que ver com esta realidade, posso dizer que tenho uma morada no Oriente.

O livro “Caligrafia Imperial e Dias Duvidosos” foi publicado em 2007, há exactamente dez anos. Porquê esse interregno?
Muitas pessoas me perguntam isso. Creio até que este livro é melhor do que o anterior, e acredito que o próximo venha a ser melhor que este. Houve uma continuidade de escrita, fui apurando, em termos de savoir-faire, que é muito importante. Há uma maneira de fazer, com prática, experiência e continuidade. Não vou ser hipócrita: nunca deixei de ler e escrever. A escrita e a poesia são as maiores paixões da minha vida. Acontece que não paro muito em lado nenhum. Estive em Macau de 1993 a 2000, depois fui-me embora, estive em França, nos Estados Unidos, e desde 2011 vivo em Macau. Perco os contactos, as rotinas. Depois tive duas filhas, fiz o doutoramento, algo megalómano, e não tendo nunca deixado de escrever, fui pondo um pouco de lado as questões mais burocráticas. Isso porque é mais fácil escrever do que publicar. Os livros deveriam aparecer publicados por milagre. Gosto infinitamente mais de escrever e ainda mais de ler.

É também crítico literário. É algo que falta em Macau?
Sim, mas não é só em Macau. Temos de ser justos. Em Portugal a crise nesse domínio é avassaladora. E a poesia está, em larga medida, a desaparecer das livrarias por esse mundo fora. Em França escreve-se e publica-se muito pouca poesia.

Como explica isso?
Há uma tendência clara de uma crise das humanidades, está tudo interligado.  O fim do latim e do grego para mim é catastrófico, e basta ler o George Stein [crítico literário] para se perceber porque é que é catastrófico. Há um desinvestimento nas áreas literárias, e os jornais são um espelho da sociedade. Fala-se da crise, dos números, das taxas. Houve um tempo em que todos os jornais, na sua maioria, tinham suplementos literários. Eu, que era uma pessoa com poucas posses, comprava sempre esses suplementos, que eram autênticos dossiers que tinha em casa. Os críticos eram verdadeiros profissionais, criticavam o que gostavam e o que não gostavam.

10 Fev 2017

Actos de fé & Fumo negro

03/02/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira vez que aterrei em Maputo, em 1995, encontrei à entrada do Hospital Central um amputado, de ambos os pés, que vendia sapatos só de pé esquerdo. Impecavelmente engraxados. Cem meticais por sapato. E o par, perguntava o traunseunte curioso. Há-de chegar… – jurava com aquele brilho fanático nos olhos que encontramos nos aficionados da agricultura biológica – o mister passa cá pra semana… e lhe garanto o par.

O eventual comprador era convidado a um acto de fé. Ai de quem pusesse em dúvida a convicção de que o vendedor completaria a entrega da metade que faltava.

Tão insubornável fé só a reencontrei num vendedor de cautelas em Cacilhas, no outro lado do Tejo. Ia apanhar o cacilheiro e apanhei-o a limpar com papel de jornal as lentes de casco de garrafa dos seus óculos, de haste presa à armação por um arame, enquanto a sua boca de um verdete desdentado, proferia para um tipo de fato Boss, sapatos italianos e pingente de ouro na gravata: Eu há vinte anos que jogo no mesmo número!

Apanhei a frase no ar e desviei-me para um balcão, no fito de beber um café e de ruminar três minutos no absurdo de um maltrapilho tomar a miséria por oráculo.

Gente que acredita cegamente em «factos alternativos», tal como Kellyanne Conway, a assessora de Trump, que, para justificar um decreto idiota, inventou um alegado atentado que nunca se verificou, o massacre do Bowling Green.

Simultaneamente, e não é acaso se na moldura da comédia humana tais actos coincidem com a institucionalização dos «factos alternativos», foi destaque da semana a ímpia permissão que esteve quase a ser sancionada pelo parlamento romeno, o qual queria legitimar o desvio de fundos públicos, por abuso de poder, desde que não se ultrapassasse a irrisória quantia de duzentos mil euros. Esta piedosa imoralidade ganhou o seu primeiro argumento em plena Europa.

Porque foi com certeza uma primeira tentativa e este novo guião para uma futura regulação política dos bens e dos erários públicos irá repetir-se e vingará, dado que cai como ginjas no estado pantanoso em que se locomovem inúmeros Estados. Lembremos o caso do Brasil.

Há-de pois espantar-me o que li hoje nos jornais moçambicanos, sobre o ex-genro do ex-presidente Guebuza, o mesmo que assassinou a filha deste, há dois meses atrás? Relatava-se assim no novo «facto alternativo»: «Zofino Armando Muiane, segundo consta da acusação particular da família Guebuza, é um espião sul-africano que usava o nome de Washington Dube». Hesitamos, se rimos se choramos.

A seguir, na grande maioria dos estados africanos, virá impor-se a nova lei, imitada da desenvolvida Europa.

04/02/2017

É uma coisa maravilhosa a força com que as mulheres sobressaem no actual momento da literatura portuguesa. Tanto na poesia – e bastam-me cinco nomes: Raquel Nobre Guerra, Joana Emídio Marques, Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos e Maria João Cantinho – como na prosa, aonde, dentro do que pude ler (e mais não refiro por não terem chegado a Maputo), dois nomes se destacam com livros recentes que são a todos os títulos excepcionais: Ana Margarida Carvalho, com Não se pode morar nos olhos de um gato, e Alexandra Lucas Coelho, com Deus Dará. A literatura no feminino dá cartas, aparenta ser um feixe de enorme energia que veio para ficar, o que não significará apenas uma afirmação individual como um insofismável avanço na paridade social, cunhada nos patamares simbólicos,

E interrogo-me no mal-estar que estas mulheres emancipadas, inteligentes, maduras, poderão sentir perante a notícia de que a lei russa despenalizou a violência doméstica, mormente se o homem a não pratica mais do que uma vez por ano. É que tudo o que é mau, tende a repetir-se em todas as latitudes.

Uma vez por ano, argumenta-se, não faz um agressor, é um mero problema de comunicação no casal, que muito carinho posterior pode atenuar. Bom, há casos em que a violência no casal pode ser mútua. Mas são minoritários. O que interessa é o pano para mangas que o retrocesso desta lei dá ao álibi, esquecendo que as relações assimétricas são claramente maioritárias. E ficando o agressor sem cadastro isso não dará azo a novas investidas? Ao fim de quantas vezes se considerará ser a primeira vez?

O que me faz lembrar certas tradições rurais moçambicanas pelas quais se ensina a seviciar a mulher sem deixar marcas (consulte-se sobre estas e outras matérias o portal da Wlsa. Talvez por isso tenhamos assistido a esta aberração: a independência de Moçambique, durante 35 anos, não produziu uma única poeta à altura das duas que o colonialismo fez brotar: Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna.

07/02/2017

O que é um ateu? Agrada-me esta definição: alguém que é imune à idiolatria e que livre, até de si mesmo, não teme contradizer-se.

O que autorizará o caso de ateus-que-são-intermitentes, como eu, no sentido em que têm fé, na graça epicurista do vestido amarelo que esculpiu o corpo da macua que passou agora à minha frente na esplanada, espalhando no ar uma intensidade que contamina, por exemplo, como num género de inteligência-não-circunscrita – sem que para isso necessitem de acrescentar um nome à origem dessa energia transpessoal. O Budismo, neste sentido, alheia-se da necessidade de nomear Deus.

Vem isto a propósito de uma das palavras que mais tem inundado o imaginário popular dos últimos tempos e que está de facto a ter um peso terrorista: a apostasia e o seu praticante, o apóstata. Palavra que julgava banida. Considero insultuoso que metade da humanidade me considere um apóstata.

O ateísmo e o laicismo tem sido vilipendiados, nestes últimos anos, e considero que um dos combates do século passará por recuperar o direito e o bom nome de uma espiritualidade sem Deus.

8 Fev 2017

Hélder Beja, director de programação do Rota das Letras: “É a maior edição do festival”

Já mexe a sexta edição do Festival Literário de Macau. Entre os principais convidados do Rota das Letras contam-se os finalistas de 2016 do Man Booker Prize Madeleine Thien e Graeme Burnet, assim como o escritor chinês Yu Hua. Sérgio Godinho apresenta o seu primeiro romance. Falámos com Hélder Beja, fundador e director de programação do festival.

[dropcap]O[/dropcap] que podemos esperar desta edição do Rota das Letras?
Esta é, de longe, mais uma vez, a maior edição de sempre do festival. Volta a crescer em relação ao ano passado, o que achávamos que não seria possível, mas que acabou por acontecer. Houve uma série de sinergias que levaram a que o festival pudesse crescer, assim como convidados que queríamos e que conseguimos trazer. Na literatura, que é o ‘core’ do festival, diria que o grande destaque de todos é a vinda de Yu Hua a Macau. Para mim, é um dos maiores autores chineses vivos. Do ponto de vista pessoal, é o que mais admiro dos autores da literatura chinesa contemporânea. É um excelente romancista, tem romances como “To Live” e “Brothers”, mas é também um grande ensaísta. O livro que mais gosto chama-se “China in Ten Words” e, ao que parece, vai ser editado em português brevemente. É, para mim, o grande destaque deste ano da programação, pelo menos em língua chinesa.

E em português?
Na língua portuguesa, conseguimos trazer, finalmente, o Pedro Mexia, que já estava para visitar o festival no ano passado. Não pôde, mas vem este ano. É um dos grandes intelectuais do seu tempo, um bom poeta e muito bom crítico literário. Será um prazer tê-lo por aqui, porque é um homem da renascença, pode falar um pouco de todas as coisas.

Que outros autores salienta no cartaz deste ano?
Na programação internacional, estamos muito contentes por termos assegurado a vinda de dois finalistas do Booker, são dois autores bastante interessantes. A Madeleine Thien tem um background relevante com relações familiares à Ásia. O seu último livro, que foi nomeado para o Booker – “Don’t Say We Have Nothing” – é a história de uma família chinesa que atravessa a Revolução Cultural. O livro é muito musical. É a história de um músico que, como outros artistas durante a Revolução Cultural, foi completamente desacreditado, perdeu um bocado o chão e foi tido como burguês. É uma narrativa muito interessante que atravessa três gerações. Depois temos Graeme Burnet, num estilo completamente diferente. O romance que o levou à final do Booker passa-se no século XIX, tem uma linguagem um bocadinho arcaica, mas uma voz narrativa incrível porque é a voz de um miúdo de 17 anos que cometeu um triplo homicídio. O que lemos são as memórias que ele teria escrito enquanto aguardava julgamento. São dois autores que saltaram para a ribalta este ano com as nomeações para a short-list de cinco livros do Booker e que, acho, nos próximos anos vão afirmar-se no panorama internacional. Estavam ambos a fazer festivais aqui na região e conseguimos trazê-los cá.

O festival caminha para a profissionalização a passos largos.
Acho que está à porta da rota dos grandes festivais literários, e este ano vamos dar vários passos nessa direcção. Em primeiro lugar, porque começámos a trabalhar numa rede de contactos com outros festivais. Por exemplo, este festival de Adelaide, onde conseguimos estes dois convidados para Macau, assim como a parceria que estabelecemos com o novo festival de Cabo Verde, o Morabeza, que está a nascer agora. Algo que também queremos fazer é desenvolver o festival dentro do espaço lusófono. O número de nacionalidades no festival também sobe, este ano temos autores de 20 países e regiões. Outro dos aspectos no caminho para a profissionalização é termos mais visitas de jornalistas de vários países como, por exemplo, os meios de comunicação dos países de origem dos convidados, não só aqui a imprensa da região. Acho que este ano estamos a conseguir que o festival se afirme, nos próximos dois/três anos o festival estará, seguramente, num roteiro de festivais que têm os principais nomes de literatura contemporânea. Por aí passará, obviamente, ter prémios Booker com regularidade, Pulitzers e, eventualmente, ter aqui um prémio Nobel. Não é o desígnio do festival mas gostaríamos de ter, pela qualidade dos autores e pela projecção.

Este ano o festival aposta também na banda desenhada.
Temos pensado para os próximos anos temas como humor e a ficção científica. O grafic novel e a BD faziam parte desse grupo e este ano, de repente, havia um grupo de dois ou três autores e a ideia começou a fazer sentido. O Filipe Melo vem cá, o que é para nós muito bom. Vem também o Philippe Graton, filho de Jean Graton, que tem a série Michel Vaillant. Neste caso tudo começou com a relação que ele tinha com Macau. Percebemos que o Philippe estaria disponível para vir e que poderia mostrar os originais do álbum “Rendez-vous à Macao”. Achámos maravilhoso poder fazer isso aqui. Depois começámos a montar um pequeno programa à volta disso. O Dick Ng vem de Shenzhen, mas vive em Hangzhou, conheci-o num pequeno festival em Cantão onde fui há uns meses. Fiquei muito impressionado com ele porque é um jovem chinês que fala muito bem inglês e que se dedica a fazer tiras de comics, acima de tudo, online, onde tem mais de 50 mil seguidores. A BD nunca tinha feito parte do festival de uma forma consistente, é uma novidade este ano.

Tem sido mais fácil conseguir convidados de renome?
Sim, é muito mais fácil porque quando fazes o convite a um autor, por exemplo, da dimensão do Yu Hua, ou da Madeleine Thien, o lastro do festival conta muito. O facto de termos tido no ano passado o Adam Johnson foi muito importante para conseguirmos este ano estes autores. Não estou a dizer que não viriam, mas claro que as pessoas informam-se, querem perceber que festival é este, e cada vez será mais fácil ter convidados com maior notoriedade.

Uma das estrelas do cartaz será Sérgio Godinho.
É uma coisa maravilhosa ter cá o Sérgio Godinho, que vem com o seu primeiro romance, editado pela Quetzal, uma editora amiga do festival. A vinda do Sérgio Godinho foi uma coincidência de timings, ele vai lançar o romance agora em Fevereiro, estará a apresentá-lo em Portugal, a dar entrevistas e depois segue logo para cá. Enfim, ele é um dos grandes cantautores da nossa língua. Obviamente, um bom poeta, não só nas letras, mas também no que tem publicado de poesia. Já tinha arriscado no conto e agora, já com a idade que tem, decide ainda arriscar no romance. Acho que é a prova de que é um artista tremendo.

Vem apenas apresentar um livro?
Não, vamos ter, também, um concerto dele. Temos dois actos musicais, ambos no Teatro do Venetian, um a 15 e outro a 16 de Março. O Sérgio Godinho com um companheiro de palco ao piano, num concerto mais intimista. Ele esteve cá há pouco tempo e houve a preocupação de fazer um concerto diferente. Depois a Christine Hsu, que é uma cantautora de Taiwan, com um repertório mais virado para as baladas, muito do agrado do público chinês. Este ano temos estes dois concertos, já houve edições em que tivemos mais música do que este ano, mas estamos muito contentes com os dois nomes que temos para esta edição.

Como vê a evolução do festival desde a fundação?
É um projecto difícil de qualificar, do ponto de vista pessoal porque, basicamente, abalroou os últimos seis anos da minha vida. Isso tem coisas muito positivas, e outras menos. Sempre acreditámos que o festival poderia crescer, mas talvez nunca tenhamos pensado que pudesse crescer tanto, em tão pouco tempo. Quando olho para o festival, não só em termos de dimensão, mas do impacto, projecção e qualidade, e vemos o que está à nossa zona em termos de festivais literários, acho que este trabalho é muito especial e muito bom. Começou muito pequenino, no Instituto Politécnico de Macau, com muito pouco know-how, a cometer erros naturais e evidentes quando se quer fazer uma coisa arriscada. No segundo e terceiro anos houve dores de crescimento e, a partir do quarto ano, a coisa começou a correr mesmo bem. O terceiro ano foi o da explosão em termos de impacto, porque o cartaz era incrível. De Portugal tivemos Ricardo Araújo Pereira, Valter Hugo Mãe, Dulce Maria Cardoso, José Eduardo Agualusa, etc. Um programa que nunca mais acabava. Mas para nós, organizadores, é no quarto ano que sentimos que o festival amadurece. No ano passado, o quinto, muito bem, e agora estamos na sexta edição. Diria que o balanço é muito positivo. Em 2016 dizíamos que não queríamos crescer muito mais, e não queremos. Em termos de sessões não cresce de certeza, no ano passado foram 104 sessões ao todo.

Então, quais os desafios que o festival tem pela frente?
O que queremos a partir de agora, e que já fazemos este ano, é alargar o festival com outros pequenos projectos. Estabelecer parcerias, uma delas com o festival Morabeza, em que a partir deste ano teremos um escritor de Cabo Verde a visitar o festival de Macau, e vice-versa. Acho que será importante para a literatura de Macau mostrar-se noutros países do espaço da lusofonia. Temos também uma parceria com a Universidade de Macau, que começa este ano, para uma residência literária, que arrancará com uma autora de Singapura. Desta vez a residência é curta, serão apenas duas semanas antes de a autora começar a participar no festival, mas queremos que seja mais longa e que desagúe no festival. Outra coisa que gostaríamos de fazer é criar no futuro, em parcerias com instituições de ensino, uma bolsa de tradução literária para um aluno interessado em desenvolver as suas capacidades na tradução português-chinês, chinês-português, de literatura, algo que não há. Há muitas opções em termos de cursos de tradução mas são todas elas, praticamente, só técnicas. Gostávamos de dar esse contributo. Outra coisa que começou no ano passado, e que queremos fazer mais em 2017, é que o festival tenha episodicamente pequenos eventos ao longo do ano.

Haverá também lugar à actualidade.
Sim, darem um pouco de atenção aos assuntos actuais, o festival também quer posicionar-se aí e discutir temas mais prementes, criar uma zona em que um tema da actualidade esteja presente. Isto começou com certos convidados que conseguimos confirmar e, depois, começámos a construir um programa à volta deles. A Clara Law, nascida cá, tem um documentário – “Letters to Ali” – sobre os refugiados afegãos na Austrália. Foi talvez o ponto de partida. De repente percebemos que havia a possibilidade de trazer o Henrique Raposo e o José Manuel Rosendo para falarem sobre o Médio Oriente, o terrorismo e as migrações. Depois temos também a Sanaz Fotouhi, que foi produtora de um documentário de mulheres afegãs refugiadas. Tudo isto começou a compor-se e a fazer sentido. Não digo que há seis meses este tema estivesse na nossa cabeça, mas acabou por aparecer e faz todo o sentido discutir isto neste momento.

7 Fev 2017

Da indignatite contagiosa

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á umas semanas, um amigo partilhou um excerto do meu romance Autismo no Facebook. Uma pequena passagem do primeiro capítulo no qual uma das personagens expõe, atabalhoadamente, a sua visão amarga da vida e do amor. Um rapaz da internet leu o dito excerto e desancou-o copiosamente. Estou certo de que lhe poderá ter ocorrido a possibilidade de o formato e a linguagem escolhidos serem os dispositivos narrativos mais adequados para caracterizar aquela personagem. A confusão e a grosseria não são um erro por si. A desadequação entre a natureza da criação literária e o formato pela qual se opta expô-la pode ser um erro. Ou pode ser um gesto técnico propositado. E pode resultar.

Estou igualmente seguro de que o rapaz da internet sabe que o ponto de vista do autor não tem de coincidir com o ponto de vista das personagens, embora, em certos casos, possa. Mas fazer um retrato robot das motivações do autor por um livro parece-me tão excessivo quanto redutor. Fazê-lo tendo como ponto arquimédico um parágrafo de meia dúzia de linhas é um exercício tão profícuo e certeiro como ler o destino alheio nas borras do café. No entanto, o rapaz da internet não se coibiu de demolir o excerto em causa e, en passant, o livro. Daí até chegar ao autor foi uma penada. Um gajo que escreve uma coisa destas, uma espécie de ruído triturado, não pode ser um bom escritor. E um gajo que acredite nas teses expostas não pode ser boa pessoa. Case dismissed. Podemos fechar a internet por hoje.

Moral da história: dados sermos ambos ilustres desconhecidos, tanto eu como rapaz da internet, nada de mal veio ao mundo. O Valter Hugo Mãe escreveu um livro – O nosso reino – que uma comissão designada para o efeito incluiu no plano nacional de leitura para o oitavo ano de escolaridade. O livro tem uma passagem que fala de sexo anal, algo que parece ter chocado com a moral e as intenções pedagógicas de alguns pais dos alunos da escola que seleccionou o livro para ser lido e comentado nas férias de Natal. Alguns jornais noticiariam o assunto. Daí à crítica demolidora do livro bastaram três partilhas no Facebook. Doze partilhas depois, já era a obra toda do Valter que estava a ser posta em causa. Da obra ao carácter do Valter foi questão de meia centena de partilhas. Bastaram três linhas descontextualizadas para entupir o feed de insultos. O Valter, enquanto autor, já há muito tinha sido desconvidado a participar da conversa que se seguiu, na qual o tom incidia, sobretudo, em dois pontos de vista, por vezes coincidentes: como é que alguém responsável pelas escolhas do PNL pode ter incluído aquele livro no catálogo de obras aconselhadas a alunos do oitavo ano e, por outra parte, como é que o Valter tinha coragem de escrever uma coisa daquelas para miúdos daquela idade?

Relativamente ao primeiro argumento, concedo que a sensibilidade de cada um possa reagir de forma distinta a estímulos semelhantes. Um pai pode não querer que o seu filho seja exposto a uma realidade que considere desadequada à idade. Discordo dessa posição. Numa época em que mais ou menos qualquer assunto está disponível à distância de um ecrã táctil, a educação como sistema de filtros a serem retirados à medida que as crianças vão crescendo parece-me pouco proveitosa e, na maior parte das vezes, votada ao fracasso. Não existe forma de impermeabilizar a criança relativamente ao mundo. Nunca existiu. A curiosidade tem braços mais longos que o cuidado, e a curiosidade encontra sempre uma forma de se satisfazer. O que está nas nossas mãos, enquanto pais e mães, é o poder de contextualizar e de dar sentido a essa cascata permanente de experiências a que chamamos mundo e à qual os nossos filhos, a não ser que habitem uma versão da cave de Fritzl, estão e estarão continuamente expostos.

O Valter, como é óbvio, não escreveu “aquelas coisas” para miúdos de oitavo ano, assim como não há qualquer obrigatoriedade de os miúdos as lerem. As escolhas do PNL são recomendações e são facultativas. E, pelo que foi posteriormente comunicado pelos responsáveis do PNL, terá havido um erro na atribuição daquele livro a miúdos daquela faixa etária. Mas nem por isso a indignação baixou de tom. A internet parece ter o estranho efeito de catalisar emoção e pensamento a velocidades radicalmente desproporcionais. De repente, ser apodado de escritor medíocre era a coisa mais benigna que se podia ler sobre o Valter. Confundindo a recomendação do PNL com uma deliberação intencional do autor, a indignatite grassava no pasto confuso onde se misturam obra e autor, estética e ética. De um lado, Valter, o porco. Do outro, as crianças do oitavo ano, carmelitas em excursão pelo mundo.

Há, na verdade, um rol infinito de coisas nos escritores, e nas suas obras, passíveis de crítica. O facto de recomendarem os seus livros para inclusão no plano de leitura e o facto de eles escreverem cenas de sexo ou sobre sexo não me parece ser motivo para tanto barulho. Quer dizer, tendo em conta a qualidade das cenas de sexo escritas em português, talvez não fosse mau trocarmos umas ideias sobre o assunto.

6 Fev 2017

Luís Brito: “Escrevo tanto o que vivo como o que penso”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar de ainda só teres 30 anos, tens três livros publicados: Alcatrão (Abysmo, 2013), que é um livro de viagens, Arigato, eu (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016), que relata a tua experiência no Japão, e Jejum (Tea For One), que é um livro de poesia. Julgo que os teus livros deveriam ir para Macau, pois além de serem bons (escrevi uma pequena resenha sobre Alcatrão, para uma revista brasileira), inscrevem-se num universo muito caro às pessoas que ali vivem. Viajaste desde o Chile à Índia, passando por África e, mais tarde, passas uma longa temporada no Japão. Acerca de Alcatrão escrevi: “O viajante tem, em suma, de transformar-se em um sem-abrigo. Só nesta condição todo e qualquer metro quadrado do planeta se transforma em sua morada e esta em sua possibilidade de ver o mundo. A dúvida acerca da proximidade e distância entre viajante e sem-abrigo, é, aliás, exposta em algumas passagens do livro.” O que te leva a viajar é o mesmo que te leva a escrever? São da mesma ordem, esses movimentos, para fora e para dentro?
A verdade é que gosto de viajar como um zarolho. Um olho aberto e outro fechado, sabendo que o primeiro vê o que vai lá fora, e o segundo espreita para dentro. A meu ver, as viagens devem ser simbioticamente exteriores e interiores, pois é nos espelhos do mundo, e na autoconsciência do que eles reflectem em nós, que está o verdadeiro crescimento. E isso aparece-me na escrita. Escrevo tanto o que vivo como o que penso, sabendo que pensar é viver. E viver sem pensar é-me impossível. O que me leva a viajar talvez seja o mesmo que me leva aos livros: a curiosidade, virada para o mundo e virada para mim, e ainda o encontro com o homem nas situações mais exíguas, sem quaisquer luxos ou distracções, onde a sua natureza mais crua se revela.

Recentemente numa entrevista disseste, e passo a citar-te: “O lançamento do livro é um desporto com cada vez mais popularidade. Em Lisboa, em Portugal, no Mundo, e eu também aderi à modalidade.” Achas que deixámos de ler, para ir aos lançamentos dos livros? A literatura e a poesia passaram a ser fait divers?
É difícil que os livros tenham a importância que merecem, quando há cada vez mais informação, eventos, actividades e ideias. Eu próprio sou um mau leitor, por isso essa frase, em tom de brincadeira, é antes de mais uma auto-crítica, mas sempre é melhor as pessoas irem aos lançamentos do que não irem de todo, assim lá se aumenta a probabilidade de lerem, e pelo menos o autor tem o prazer de ver caras queridas. Se os lançamentos e as obras modernos são fait divers? Talvez seja verdade, mas pelo menos não são dos piores. Sempre se aprende qualquer coisa e, salvo as árvores que se decapitam para dar lugar às folhas de papel, na arte normalmente ninguém sai prejudicado.

Além de viajares por países em modo pouco turista, vives também de um modo pouco turista, apesar de dependeres deles. Trabalhavas numa agência de publicidade e despediste-te para passares a tocar hang drum (ou cataplana, como eu lhe chamo) para os turistas. Esse teu modo de viver continuamente sem rede é fascinante. Não consegues mesmo viver como os outros?
Tanto no que toca às viagens, como a esta nova carreira de músico de rua, as pessoas costumam dizer-me que sou um tipo de coragem. Eu respondo-lhes que corajoso seria se me mantivesse muito tempo no mesmo sítio, por exemplo, fechado num escritório. Há, sem dúvida um contra senso: sou anti-turista e agora vivo do turismo. Pode-se dizer que faço haiki-dô, usando a meu favor a força do inimigo. No entanto, este trabalho permite-me viajar sem sair do sítio, pois contacto com gente de muitos lugares, acabando até por conhecer também alguns viajantes pouco turistas. E da fissura entre essa ideologia e a prática concreta, pode nascer um caso de estudo, aliás, ando a escrever sobre essa experiência. Se não consigo viver como os outros? Cada um é a vida como ele a vê. E a verdade é que estas opções que tomo não são assim tão radicais, se as compararmos a um nível global e aos verdadeiros loucos, os que fazem coisas verdadeiramente audazes, arriscando a vida e até a vida dos que lhes são próximos, ou viver uma vida longe deles.

Concordas com esta frase: “viajar é um exercício de tentar perder-se de si, um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos”?
Não só concordo como subscrevo, e atrevo-me a corrigir. É o mais rápido e o melhor, pelo menos tal como eu concebo a vida. Para nos tornarmos em quem somos, precisamos de nos soltar do mais possível do que nos ensinaram, do que aprendemos, do que vivemos dia a dia sem perguntar, a famosa zona de conforto, a acumulação de ideias que temos sobre nós mesmos. No vazio, no anonimato e na errância encontramos mais e mais camadas de força e inteligência, além da tão necessária capacidade de fazer contacto humano. Quanto mais diferente de nós for o outro, mais intensa pode ser a catarse. É um lugar comum, mas a verdade é que só nos perdendo nos podemos encontrar.

3 Fev 2017

Respiração das coisas

Bedeteca da Amadora, 19 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma caneta de tinta permanente, não a primeira, mas a mais viajada. Um rato de computador, antigo quanto baste, também não o inicial, mas com ele andei horas sem conta de mão dada na solidão da pradaria fluorescente. Um velho fio-de-prumo, gasto e sujo de cimento, este herança de pai que se gastou no moldar das pedras e no erguer das casas. Espero que seja suficiente para colocar a dúvida na meia dúzia de almas que passará os olhos por estes três objectos nas vitrinas, lado a lado com recortes de jornal com tiras impressas, notas rasuradas e esquemas coloridos. Um argumentista trabalha nas obras? Ao cabo de muitas dezenas de exposições sobre o trabalho dos outros, ser posto na qualidade de objecto deste «Banda Escrita: uma exposição em torno do trabalho do argumentista» perturbou-me. Mexer no passado põe-me a fazer contas de cabeça. Sem exageros, que é coisa modesta, como convém, em curva entalada entre o elevador e as lombadas. Amostra será, mas capaz de me fazer olhar, por primeira vez, para este somatório como corpo. Gosto de ver corpos, mas terá este as partes essenciais para se erguer do esquecimento, autor ou Frankenstein? Depois, basta folha velha para iluminar momento em que o caminho bifurcou. (Foram tantas as vezes, que duvido até do caminho.) Estava sublinhada a palavra importante? Ou urgente? Havia ali a possibilidade de outra vida? O passado continua promissor. Não nos levemos a sério. Só o puro gozo me empurrou para o terreno baldio das bandas desenhadas, algumas delas aqui e agora evocadas, por força do esforço desamparado (politicamente) do Pedro Moura. Duram um relâmpago mais, se alguma vez contiveram luz. O trabalho do argumentista resume-se ao despertar no desenhador o desejo de imagens, disse Benoît Peeters, o das frias cidades mentais. Mantenhamos o assunto atado à âncora volátil do desejo.

RTP 3 | Facebook, 20 Janeiro

Devo um obrigadinho a Trump, o despenteado mental. Para comentar a sua tomada de posse, António José Teixeira, velho amigo agora na RTP 3, encomendou 30 segundos aos Spam Cartoon, projecto de cartoon animado que partilho há anos com o André Carrilho, a Cristina Fazenda e o João Fazenda. A Cristina fez da criatura um boxeur desastrado que, em dança macabra, castiga tudo e todos até que a própria força o derruba. Visão esperançosa, bem entendido, mas pouco nos resta além disso: revolta, pensamento e… esperança. Não o podemos reduzir à caricatura que incarnou neste filme de série B com que nos atormenta, mas o riso e a raiva são o nosso trabalho, reclamando, pelo menos, a mesma liberdade que ele afirma para cuspir barbaridades. O mundo não pode limitar-se a ser saco de pancada. No momento em que escrevo, na métrica da contemporaneidade, i.e., no Facebook vai em 40 mil e tal partilhas, 5600 gostos e mais de milhão e meio de visionamentos. Curiosamente ou não, a maioria dos comentários defende-o com a energia do insulto.

Santa Bárbara, Lisboa, 20 Janeiro

A nossa casa cresceu. Primeira consequência de quando um gato toma posse. Chão é apenas começo e a descoberta da novidade não se fica pelas traseiras do sofá. O olhar felino define nas ombreiras e nas portas, nos interruptores e nos puxadores, nas estantes e gavetas, nas bancadas e mesas, até no tecto, sinais ocultos de respiração das coisas. Inúmeros lugares saltam à vista: bons de dormir, ideais para desaparecer, perfeitos para a provocação. O bicho tigrado preferia que lhe fosse roubar a bola com que se entretém desdobrando-se em múltiplos, o que atira e o que apanha, o que salta e o que rebola. Juro que os vejo em simultâneo. Onde antes havia tédio nasce enigma. Começámos por lhe chamar Pires, invocando a alma peluda de Rafael Bordalo Pinheiro, mas o puto insiste em comportar-se como Ivan. O frenético.

Livraria Miguel Carvalho, Coimbra, 21 Janeiro

Estava um frio de rachar convenções e até as hirsutas máscaras africanas me surgiram arrepiadas, quietas na paragem entre a ironia e o desdém. Impressão minha, elas não encarnam doutores. Pedro Serra partilhava leituras para «Beleza Tocada», uma bíblia roxa de tão negra na qual se conserva a voz singular de José Emílio-Nelson. Prometendo desenvolvimentos para breve, em começo de conversa propôs dois eixos, o da merda e o do ar, que cruzou depois com interpretações de obras de Manzoni, para afirmar a extrema materialidade em que assenta esta poesia: a alma esfuma-se com a morte, mas o corpo mantém-se como cadáver. José Emílio acendeu a verve e apresentou o seu programa: «escrever as últimas palavras possíveis antes de ser queimado em auto de fé». Exige que o pecado seja inscrito na normalidade e filia-se na danação. Em contínuo diálogo com a pintura, a música e o cinema, condenados a ecoar no luxuriante labirinto do catolicismo, os seus versos parecem desenhados a escopro em fragas ora de granito ora de mármore: «A Língua, beleza tocada, sopra em órgão, no escarlate martírio amortalhado / em frenético espasmo. ». Diz o poeta que o detalhe é a fissura, pelo que tenta a emenda até ao último suspiro, tendo quase enlouquecido Luiz Pires dos Reys, que desenhou com sublimes minúcias o volume de 726 páginas. Em volume antigo, «Pénis Pénis», composto ainda em chumbo, acrescentou à boca da máquina a palavra excremento para indignação do compositor. No volume impresso, saiu escremento. Confrontado, respondeu o velho tipógrafo: «deixe lá, sempre disfarça».

25 Jan 2017

Tâmaras

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]âmaras (Douda Correria, 2016) é um livro que, logo pelo título, nos remete para outras geografias, para outras latitudes, outras paisagens, outras referências culturais a que não estamos habituados: Tel Aviv, Jerusalém, desertos, Talmud… O próprio fruto, Tâmaras, quer dizer em árabe “dedo de luz”. E embora o poema que dá título ao livro pareça estender-nos um tapete de leitura muito mais prosaico do que o significado da palavra em árabe, que também é língua oficial em Israel, país de onde vêm as tâmaras que o poeta come no seu poema, a verdade é que este dedo de luz está intrinsecamente ligado à poesia de João Paulo Esteves da Silva ou, pelo menos, a este seu livro. Escreve o poeta no final do terceiro poema do livro: “seguramos nestas ferramentas / que quase não existem / e fazemos coisas do outro mundo.” As coisas de outro mundo sugere uma separação, um corte entre um mundo e outro mundo, ou entre o humano e a natureza ou entre a arte e a vida. Esta separação existe para o poeta, como se pode ler em “Profecia mínima”, a separação entre um prelúdio em si bemol menor e a vida de um pardal:

Quando menos se espera, começa
a chover sobre a erva seca.
O pardal pousa na soleira,
sacode as penas,
fica uns segundos a ouvir:
– o prelúdio em si bemol menor
do segundo caderno.
Aparentemente, aquilo
Não lhe prende a alma.
Voa por entre as gotas
grossas
de Maio.

Ainda que esta separação exista, ainda que ela aconteça, o advérbio “aparentemente”, no início da penúltima estrofe, ilumina a possibilidade de haver uma misteriosa e desconhecida ligação entre a alma do pardal e o prelúdio que se escuta. Tâmaras é um livro misteriosamente metafísico e anti-metafísico. Metafísico, porque mergulhado profundamente no mistério e na aceitação de que viver é um contínuo não se saber o que está a acontecer; anti-metafísico porque entende o “para além” como inexistente e absurdo. Leia-se o poema “O filósofo”: “Hoje, / mudei as fraldas / ao meu mestre de filosofia. / Pairava no quarto um cheiro / levemente azedo / que não me incomodou. / Continuou a dar-me lições. / O eterno retorno existe; / é esta a opção; / se não quiseres, há outras, / por exemplo: / Confia no que não existe. Tenta não olhar para trás.” Aquele “confia no que não existe” atinge-nos como uma autêntica pedra. Podemos ler essa frase literalmente, metafisicamente, ou ironicamente, anti-metafisicamente. Por outro lado, confiar no que não existe não é somente confiar em Deus ou em teorias improváveis ou inexplicáveis. Confiar no que não existe é também confiar na vida que temos, isto é, no tempo que somos. Nós vemo-nos no futuro, ainda que o futuro seja um dia depois ou as próximas férias ou o próximo ano, embora esse dia não exista, embora esse cada um de nós lá, nesse dia, não exista, tal como o próprio poeta escreve, num poema quase no fim do livro, “Ainda outro fim”: “Sabes, acredito no futuro, / confio muito no que não existe”. O que faz deste livro uma enorme clareira de paradoxo. De um modo talvez melhor: este livro ilumina o paradoxo que somos, de um modo muito particular, não só pelas referências e um olhar quase estrangeiro, mas também pela aceitação em guerra, que se tem com a nossa situação, a deriva constante entre metafísica e anti-metafísica. Se se lê “confia no que não existe”, como ironia ou até sarcasmo, também se pode ler literalmente, como por exemplo no “Prólogo”, primeiro poema do livro, “Dentro dos sons / ouve-se sempre um chapinhar” ou ainda o verso já aqui lido, “fazemos coisas do outro mundo.” Que são mesmo de outro mundo, literalmente, pois a arte, a palavra, no fundo, a expressão humana é outro mundo em relação à natureza. Mais: a arte é outro mundo em relação a nós mesmos.

O livro vive também da irreconciliação entre os tempos que somos. E nestes tempos que somos, ainda a soma dos lugares aonde vamos sendo, muitas vezes nem sequer por ordem cronológica, ou sentidos sem cronologia, como no belíssimo “Tel Aviv”:

Não se explica o amor
nem se é amor o amor
Aqui sinto-me bem
no sentido mais estúpido do termo
talvez eu seja daqui
ou então tenha sido feito para chegar aqui
a estes pátios floridos
e ao barulho do mar junto à janela
Mas, se calhar, nem uma coisa nem outra
e o sítio sem argumentos
é o meu lugar fora do tempo
lugar de todos os tempos
Talvez o pó de estrelas mortas
de que sou feito seja o mesmo pó do deserto
que me irrita a garganta
agora
no oásis
com amor

Contas feitas há só uma coisa que sabemos, ainda que não se saiba bem, como tudo ou quase tudo do humano: o amor é um oásis. E uma vez mais o paradoxo ilumina-nos, pois o amor não se explica, nem sequer se é amor, mas ele é um oásis, e isso é identificável; isso sabe-se, na garganta que não fica irritada com o deserto e com o deserto da vida. Não se explica o amor e nem se reduz o mesmo ao que quer que seja. O amor aparece como aquilo que faz sentido, o que confere sentido à existência, foi o que nos fez chegar aqui e o que nos mantém aqui. O tempo é um estado de consciência, ilumina-nos o poema “Estados Alterados de Consciência”: “A furgoneta deitada sobre o lado esquerdo, / rodopios, som de metal raspando o asfalto, / chispas, e o tempo pára. / Os segundos do acidente duram anos / (…)”. Já o sabíamos antes, com outros poemas lidos anteriormente, mas aqui a iluminação fica mais intensa, e o tempo vê-se melhor, como se ele fosse agora espaço, como se fosse, por exemplo, o gesto em que morre a infância: “Já o amigo a trair-me em plena batalha, / naquela última guerra de fisgas / com abrunhos, / aí sim, doeu que se fartou. / E a infância morreu.” (Início da última estrofe do poema anterior)

No poema “Na colina” vemos a silhueta definida de como o poeta vê a vida, algo que podia ter sido ali, (…) mas não era ali. Aquilo que mais interessa ao poeta, tal como escreve num poema quase no início do livro, “Rua Barros Queirós”, “também eu, prefiro a vida”, parece a cada poema, a cada página ser um lugar fora do mundo à vista. A estrofe final do poema “Ainda outro fim” parece resumir as linhas de força deste livro, que temos tentado fazer ver: “Isto não vai durar muito / os dias acabam repetidamente / e quando nascem vêem cheios de noite. / Sempre gostei das tuas luzes escuras.” Podíamos usar para a vida o mesmo verso que o poeta brasileiro usou para o amor: a vida, isto, não dura muito, mas enquanto dura é infinita; para o bem e para o mal. Perpassa ao longo do livro uma ambiência ligeiramente estranha, como a própria vida de cada um para si mesmo. Deixo-vos agora com um último poema de João Paulo Esteves da Silva:

Ano novo
Voltamos ao princípio,
com uvas, escolas, diospiros.
O ano parte daqui, e recomeça.
Deita-se mais o sol, o dia do perdão ressoa
e paira sobre os outros dias.
Algumas árvores vão ficar sem folhas.
Não leves muito a sério as nossas falhas;
inscreve-nos na vida.

24 Jan 2017

Raquel Serejo Martins: “Os meus poemas são frutos para comer crus”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Aves de Incêndio, escrevi neste jornal esta semana), e escritora. Aliás, tens mais obra de prosa editada do que de poesia, dois romances na Editorial Estampa, A Solidão dos Inconstantes (2009) e Pretérito Perfeito (2013). Assinas ainda uma crónica semanal na revista “Sábado”, onde na realidade escreves pequenos contos. Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal, e não me refiro ao teu trabalho diário, que nada tem a ver com as letras?
Nunca pensei nisso e não consigo dizer qual a principal, aviso já que sou óptima a não conseguir explicar as coisas, todavia consigo dizer que o romance me exige mais fôlego, sufoca-me, tenho medo que me falte o ar, o pé, de não me encontrar, é um burilar longo e penoso, processualmente duro. No romance sou escafandrista, enquanto na crónica ou no conto respiro. Muitas vezes chego ao papel já com uma história, com princípio, meio e fim, três linhas de história não mais, depois, aranha competente, vou tecendo a teia, acrescentando pontos ao conto e não são raros os momentos em que consigo divertir-me a escrever, a escolher as palavras, a limar as arestas, a polir e a puxar o lustro aos parágrafos. Já a poesia é um mistério, é um caso sério, é garimpo à procura de minério, de palavras pepitas, palavras que brilham e que juntas fazem luz, mesmo se dolorosas e escuras, a poesia acontece, é um relâmpago e, em consequência, os meus poemas são frutos para comer crus e muitas vezes com casca. E apesar de serem três registos diferentes, parece-me, dizem-me, que a poesia contamina tudo o que escrevo.

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?
Uma vez escrevi sob o petulante título Brevíssimo Manual

Desconfia do poema se:
Não te corta a respiração
Não te sufoca
Não te acelera o bater do coração
Não te faz sorrir.

E, de facto, é mais ou menos isto que eu procuro e quero da poesia, que me encante, que me deixe boquiaberta, que me roube à rotina dos dias. Sendo que, provavelmente, quase de certeza, escrevo por esse mesmo motivo, para roubar-me à rotina dos meus dias, porque são demasiados os dias em que nada disto tem sentido.

E como vês a poesia actualmente em Portugal? Achas que se atravessa um período pujante ou antes pelo contrário?
Eu tenho um amigo poeta, João Bosco da Silva, que diz que só os poetas compram livros de poesia e é quase verdade. Por outro lado, com base no volume de poesia que vejo circular pelas redes sociais, também me parece que nunca se fez e leu tanta poesia como hoje, assim como, em Lisboa e pelo que sei também no Porto, voltou a ler-se poesia em cafés e bares, e são várias as editoras especialmente vocacionadas para a poesia, o que indicia que a poesia está na moda. E, em estando na moda, há muita gente a escrever má poesia, há um excesso de péssima poesia que fere e prejudica o género, mas também há gente boa a encantar. É que dizer que Portugal é um país de poetas, não quer dizer que todos somos poetas, mas que temos excelentes poetas. Sendo que, obviamente, também me coloco a questão, será que posso chamar poesia ao que escrevo.

Sentes que pertences a alguma geração de poetas? Que há essa geração?
Sinto que andamos todos muito sozinhos, ou eu ando muito sozinha, é tão fácil fazer generalizações sem fundamento, pelo que não me reconheço nesse sentimento de pertença, mas dito isto, ultimamente tenho tido a boa ventura de conhecer uns quantos poetas e são pessoas que gosto de abraçar, pelo que melhor adiar a resposta a esta pergunta por uns tempos.

E para quando o teu segundo livro de poesia?
O meu próximo livro de poesia está na gaveta, tem dentro 100 poemas de amor, e um dia, não sei dizer quando, vai sair da gaveta. Neste momento não tenho pressa em editar, assim como me parece que o Aves de Incêndio ainda precisa de espaço para voar.

13 Jan 2017

Paisagens que não existem

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ei bem como fui deixando que acontecesse, as festas são apenas sinónimo de mais afazeres. Faltou-me tempo para lamber mais uma cria: Poesia I – Odes Modernas e Primaveras Românticas, o primeiro volume de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental muito laboriosamente preparada pelo Luiz Fagundes Duarte. A todas as suas outras qualidades, devo acrescentar o entusiasmo com que foi recebendo as propostas gráficas do Miguel Macedo. Sem desrespeitar o lado científico, a opção foi colocar algum aparato ao serviço do poema. Sabendo dos cuidados de ex-tipógrafo que punha nas suas edições, agrada-me sobremaneira a elegância da mancha, usando pela primeira vez a Gazeta, a fonte de Ricardo Santos, bem como o papel diferente nas páginas do aparato crítico. O alto-relevo no Antero da capa dá-lhe carácter, com o fundo azul a fazer regressar as primeiras edições. Tudo somado, as mãos não querem largar o objecto e os olhos lêem nele paisagem. E depois há o logótipo. Não sei se sabem, a abysmo não se fixou num logótipo, antes convidando cada designer ou ilustrador a interpretar a palavra. A brincadeira virou um caso e temos agora dezenas de identidades. Nos estudos preparatórios, o Miguel descobriu-a nos manuscritos de Antero. Deixou-lhe ficar uma vírgula, a pausa que se torna a sua marca de autor, e eis-me impante por ter para lá do tempo o poeta a dizer a editora.

CCB, Lisboa, 20 Dezembro (2016)

Ziguezague, os passos em volta estendem-se assim mesmo. Não se estranhe, não pedirei desculpa pelos saltos no tempo. Ao fim de mais de um ano de intenso trabalho e de uma mão-cheia de concertos, os No Precipício Era o Verbo subiram ao palco do pequeno auditório. O frio ficou fora e confirmou-se, para mim, o essencial: temos espectáculo. Encontro espessa coerência no alinhamento, na subtil encenação, feita sobretudo de luz, de chegadas à boca de cena e recuos para a escuridão, com o diferente grão das vozes e a melodia dos modos de dizer calibrados. Bom trabalho de grupo, sob respiração ansiosa do José Anjos. Escusado será dizer que o contrabaixo de Carlos Barretto se faz o eixo sobre qual tudo gira. Aqui, faz-se furacão e arrasta em remoinho palavras, corpos, gestos. Ali, faz-se farol atraindo olhares, desviando atenções. Não deixa nunca de ser feixe luminoso dirigido ao coração da palavra suspensa do corpo que a diz. Não há nada de novo nisto do espectáculo de poesia. Há qualquer coisa de novo neste. Não acho espectáculo a palavra exacta. Não sei ainda o que trazem de radicalmente novo os NPEV. Houve muita alegria, humor, densidade. Houve memória nos dias seguintes. Estão para as curvas.

Enquanto não chega o livro, cujo esboço da dupla André da Loba e Dulce Cruz anuncia ser entusiasmante, circula já o disco, embrulhado em cartaz onde quatro corpos dançam rodando sobre si nas coloridas cinzas de um vulcão por extinguir. Da Loba tem recolhido um conjunto de figurações que se alinham como letras de alfabeto criativo, seres dispostos a falar dos seus lugares no mundo. Estes quatro estão agora nessa paisagem que inclui jornais, paredes, impressões do mais variado tipo. A Dulce dobrou um origami que aconchega uma «bolacha» onde os corpos parecem peças de «puzzle», restos de branco boiando em negro com transparência. Sem os terem visto ao vivo adivinharam que muito disto resulta do namoro entre a luz e a obscuridade.

Horta Seca, Lisboa, 4 de Janeiro

A Associação para a Promoção Cultural da Criança pontua a sua programação anual com a edição, por esta altura, de um par de pequenos álbuns. Este ano o desafio foi uma visita ao seminal «Utopia», de Moore. A Inês Fonseca Santos juntou-se ao Nicolau para contar «Vincos», história na qual as marcas no corpo fazem anunciar possibilidades, onde os corpos podem até tornar-se mapas e as personagens caminham sobre as nuvens do sonho. Vi o pequeno álbum em tons laranja ir se desdobrando perante os meus olhos. E soube-me a tangerina. Naturalmente, pois está uma delícia.

O segundo coube-me a mim, que há muito não escrevia para os putos, independentemente da idade. O desgraçado que teve que absorver os meus atrasos de vida foi o Rui Rasquinho, que se desenrascou de modo notável, com ligeireza e elegância. Fomos ver do avesso das cidades, tocando-as com as mãos, até descobrirmos um velho marinheiro que fala de palavras e do modo como se tornam navalhas de rasgar impossibilidades. Este velho marinheiro, que prefere as paisagens que não existem, trouxe-me de volta o velho amigo Júlio Pinto. Saudades.

Passevite, Lisboa, 9 Janeiro

Dois anos depois do atentado ao Charlie Hebdo, e a pretexto do lançamento do fanzine Uppercut (stolen books), que reúne cartoons do André Carrilho, juntámo-nos coma Cristina Sampaio e o António Jorge Gonçalves, no atelier galeria do Rui Lourenço e cúmplices, para discutir se «somos todos charlie». Duas ou três conclusões breves de uma conversa rasgada. O humor é o lugar da absoluta irresponsabilidade. Somos melhor sociedade, mais oxigenada, se nos dermos esta liberdade. O humor gráfico nacional nunca foi punk e tempera a raiva com o apuramento estético. Estas conversas, em torno do ofício do desenho de opinião, deviam prolongar-se indefinidamente, talvez mesmo passarem a papel, em busca de mais olhos e ouvidos. Sugiro aqui fazermos nova edição do fanzine desenhando a conversa.

Os 300 exemplares (assinados e numerados) de Uppercut foram impressos em riso, essa nova técnica, barata, portátil, artesanal, algo primária, que reintroduz o erro humano na impressão. Quando os ecrãs brilham a ponto de esconderem o original, a maneira de o multiplicar faz de cada objecto caso único. Isto do regresso do erro diverte-me.

11 Jan 2017

A morte dos deuses é a morte da humanidade

17 DE DEZEMBRO DE 2016, LISBOA

[dropcap]O[/dropcap] céu de chuva dos dias anteriores afastou-se e o dia chega com sol e no mar ondas vigorosas, alguém, em redacção de jornal prepara notas laudatórias para cronologias de morte anunciadas. A cidade vive nesta tarde uma morte profunda, inevitável como todas, por isso absolutamente inaceitável, marcada com o ferro de cronos, irremovível, doentia, miseravelmente fútil. Acresce que ao incontornável aperto do tempo, a companhia viu-se sujeita a contornos orçamentais que, no seu entendimento, não permitem a continuidade do seu projecto, “a intenção de construir um teatro de reflexão com uma função activa na realidade cultural portuguesa”. Ainda talvez incerto, torna-se provável que a Companhia Cornucópia tenha terminado nesta tarde a sua longa, única, brilhante, e inestimável carreira. Em actividade desde 1973, levou a cena, 126 criações, cerca de 5. 100 representações, algumas estreias mundiais, encenadores convidados, co-produções, dezenas de actores em palco. Entre outros escritores dramaturgos, William Shakespeare, Tchekov, Moliére, Genet, Pasolini, Strindberg, Holderlin, Brecht, Garcia Lorca, Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, António José da Silva, Botho Strauss, Samuel Beckett, Heiner Müller, Raul Brandão, Edward Bond, Rui Belo, Rainer Werner Fassbinder, Arthur Schnitzler, Johann Wolfgang von Goethe, Aristófanes, Diderot, Voltaire, Marquês de Sade.

Luís Miguel Cintra, visivelmente cansado e doente, é um gigante da cultura portuguesa do último quarto do século XX e deste início de do XXI. Actor com presença magnética, de profunda sensibilidade e investigador da alma humana, foi e é presença referencial na cinematografia de Manuel de Oliveira, e marco na investigação estética do teatro contemporâneo.

A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro, ou mesmo aqueles que conhecendo, ou pensando conhecer, estão contra este teatro que nunca quis ser de efeito comercial fácil e alegria tautológica à construção da imbecilidade humana.

“A cidade empobrece, ficamos todos mais pobres, os que se revêem no projecto de criação e no talento do “Teatro do bairro alto” , e aqueles outros, e são muitos, demasiados talvez, que nada conhecem do homem nem da companhia de teatro.”

São várias as vozes que pululam nos comentários nas redes sociais à notícia do fim da companhia, com afirmações tão esclarecidas como certamente quem as produz, de que se a companhia não consegue viver com o subsídio que lhe foi atribuído e com as receitas de bilheteira, deve fechar a porta, também ficam a perder a possibilidade de mais facilmente vir alguma a perceber qual a dimensão deste projecto na elevação do pensamento arcaico ao civilizacional, a relevância da cultura nas sociedades e nas relações entre povos e países.

Entretanto, há outras vozes, sem dúvida mais sábias, e igualmente neste sábado 17 de Dezembro, surge a possibilidade de, talvez, a companhia poder resistir algum tempo mais, a possibilidade de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis ( que há dezenas de anos assina o espaço cénico das sucessivas criações) se mantenham em actividade.

Uma conversa em palco, improvisada, sem prévio ensaio, inesperada, e talvez auspiciosa. O Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rabelo de Sousa decidiu ir a palco, o ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, também o faz, é um texto em cada um é autor próprio. Luís Miguel Cintra tem esta conversa talvez anteriormente imaginada, mas não programada. Prova-o o cancelamento da visita agendada a Castelo Branco do Ministro da Cultura.

Talvez que o problema do financiamento possa ser ultrapassada favoravelmente à continuação do teatro do Bairro Alto em função criativa, dando continuidade ao que tão brilhantemente tem feito; interrogar o homem sobre os seus anseios, medos, sonhos, fragilidades, grandezas. Ajudar-nos a perceber o que é a final estar vivo em sociedade, o que somos e o que podemos ser.

Talvez Lisboa não tenha cado irremediavelmente mais pobre neste dia, ainda que seja breve e efémero, também o tempo dos mestres, todos ganhávamos com o esforço empenha- do e consistente da tutela no anular, ou avançar no tempo, a perda.

21 Dez 2016

Língua suja

FACEBOOK, LISBOA, 13 DEZEMBRO

[dropcap]N[/dropcap]os terrenos da minha infância cresciam unas ervas esguias com tons de primavera e sabores invernosos. Depois das corridas e outras ocupações suadas, espremíamos o seu suco entre dentes. A sabedoria científica do bairro chamava-lhe azedas, mas a palavra não contém o arco-íris de sabores agridoces. Este poema-raio da Rita Taborda Duarte, que espremi, entre afazeres, soube-me a azeda. E fez chorar um gajo que nunca será mãe, e dificilmente será mulher, também pela razão simples de que tem saudades de filhos que não chegou a parir.

«QUANDO A MULHER SE TRANSFORMOU MÃE // As mães,/ azedas,/ transformam em leite/ tudo aquilo em que tocaram e/ aflitas / escavam uma cova funda no coração do útero.// Todos os meses têm mênstruos férteis/ e povoam o mundo com as saudades / dos lhos/ que não chegaram/ a parir// Só depois/ puxam como Arianes loucas/ o cordão dos lhos entrançado/ na meada da infância/ – dobam-no até à raiz do tempo –/ e guardam no ventre desabitado/ o novelo de uma imensa solidão»

EL CORTE INGLÉS, LISBOA, 13 DEZEMBRO

Mais uma sala cheia para ouvir Helder Macedo lançar preciosas pistas de navegação no alteroso oceano que é a obra de Shakespeare. Outro espectáculo subtil da inteligência, não apenas na análise das quatro obras, centrada em um conceito (culpa, em Hamlet; nada, para Rei Lear; traição, em Otelo; bond, i.e., vínculo, título de dívida, e mais…, para O Mercador de Veneza), mas nas múltiplas articulações com os nossos dias.

Interessa-me, aqui e para já, cometer a inconfidência da conversa ajantarada e avantajada. O Helder foi Secretário de Estado da Cultura de uma breve e exaltante experiência de governação, capitaneada pela carismática e saudosa Maria de Lurdes Pintasilgo, nos finais de 1970. Isso, de par com a sua posterior candidatura à Presidência da República, marcou o fim da minha infância, de complexa e azeda maneira. Tê-lo, à mesa, a testemunhar de um tempo que fez um nó no tempo, derrubou as paredes da sala e colocou-nos, também ao José Anjos e à Susana Santos, no meio de um filme, misto de Buñuel com Pasolini e pitada de Fellini. Muito do que agora se dá por adquirido na cultura de Estado, apesar das ameaças constantes, teve então gestos primordiais, que valia a pena revisitar. Como esse estranho episódio de interrupção da democracia por razões técnicas à maneira do canal único de televisão, cometido pelo governo que se lhe seguiu, liderado por Sá Carneiro, com Vasco Pulido Valente no lugar de SEC e onde surge – nas Finanças, claro! – a sombria figura de Cavaco: cada uma das medidas tomadas pelo governo Pintassilgo foram suspensas, nalguns casos até ao nível do despacho. Um deles autorizava a resolução de problema eléctrico no Museu de Arte Popular, que acabou por estar na origem do célebre incêndio que destruiu preciosa obra colectiva (Vieira da Silva, Pomar, João Vieira, entre muitos outros), na qual se celebrava o primeiro aniversário da revolução. Shakespeare, sempre tão próximo.

PASSEVITE, LISBOA, 17 DEZEMBRO

A polémica que por aqui lavra confirma o peso das palavras. O Ricardo Araújo Pereira disse que hoje seria difícil hoje fazer uma velha rábula com «anões, coxos e mariconços», que incluía também vesgos, fanhosos e atrasados mentais. A provar que tinha razão, explodiu uma troca de argumentos muito interessante. Ou quase. Eduardo Pitta, no seu blogue armou que «Ricardo Araújo Pereira lamenta não poder achincalhar os mariconços. Eu não sei o que é um mariconço.» Paulo Corte-Real, da Ilga, fez o curto-circuito aos crimes de ódio. “Conhecendo a dinâmica dos crimes de ódio como conheço, também conheço a sua ligação aos insultos.” Hoje, no Expresso, a deputada Isabel Moreira acrescenta uma aula de ciência política. «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?». A liberdade, diz ela, embora com nuances, é valor de direita. A esquerda é mais igualdade.

Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

A pele das palavras muda e é divertido imaginar que as conseguiremos limpar até ficarem brilhantes de tão puras. Velho tornou-se depreciativo? Chamemos-lhe sénior. Demos-lhe mais anos de vida? Anão passou a magoar? Tratemo-lo por indivíduo desproporcional ou de baixíssima estatura. Com isso cresceu?

Uma amiga contou-me da dificuldade que teve, ao longo de meses, em passar a tratar por clientes os deficientes com quem trabalha. A bem do rigor, foi banido o uso de utente, paciente, etc. Hesitei na palavra deficiente, mas melhora se a substituir por pessoa portadora de deficiência? Não creio que o combate vital à descriminação se resolva assim. E perigosa me parece esta deriva, em gente tão atenta aos detalhes da língua, que lê insulto no humor. Obviamente, o humorista não está livre de crítica e pode ignorá-la, mas também desaparecer por falta de graça. Ora uma das grandes conquistas da civilização, a duras expensas, foi a liberdade de expressão e do grito, por exemplo, no espaço polémico do desenho de humor, da caricatura. Como em inumeráveis atitudes e leis censórias, o argumento de defesa dos assassinos dos desenhadores do Charlie Hebdo foi a defesa da honra perante terrível ofensa, no caso, religiosa. Defendo, como absolutamente basilar, o direito até à ofensa no contexto do humor, do jornalismo e da literatura. Tanto faz que candidata a guru de seita me exclua. Ainda tenho a fraternidade.

André Carrilho, que inaugurou ex- posição de brutais serigrafias (Uppercut, na Passevite, até 5 de Janeiro) feitas a partir dos seus cartoons (o que ilustra a crónica foi capa do DN na sequência do Charlie Hebdo), que se acautele: vai ter que emagrecer muito gordo, revestir muita careca e corrigir narinas. Ele tem histórias para contar.

HORTA SECA, LISBOA, 18 DEZEMBRO

Acabo de saber que, segundo um colega editor, as edições da abysmo são «apanascadas». Deu-me uma alegria redentora que nem vos conto.

21 Dez 2016

A vida fechada a tijolos

[dropcap]I[/dropcap]maginai uma casa ou um edifício sem portas, sem janelas, apenas com espaço interior fecha- do em si mesmo, como se alguém tivesse posto tijolos a fechar as janelas e as portas, para que ninguém mais possa entrar! Como aqueles edifícios que encontramos nas partes antigas da cidade, que já foram espaços com alegria e hoje são vazios, como unhas ocas. Uma casa totalmente fechada no seu interior, como um humano sem portas e sem janelas para outro. E agora imaginai que isso é um livro de poesia: A Habitação de Jonas, de Inês Fonseca Santos; que o edifício é uma baleia e que no espaço, lá dentro, há um homem. Jonas habita a baleia, a solidão, o isolamento eterno a que está votado; foi condenado a ser só como todos nós. “Jonas caminhava por procurar outro. / Talvez ele existisse: / o homem dos sinos. / Talvez ele fosse um homem infinito.” (p.13) Neste início de poema, o VI da parte “Primeiro Dia Primeira Noite” dá-nos a confirmação de que habitação se fala aqui neste livro. Uma habitação fechada para a rua e onde se caminha por procurar outro. Procurar outro não é um m. Jonas não caminha “para” outro ou para procurar outro, Jonas caminha “por” procurar outro, Jonas caminha como quem vai ser só para sempre. Jonas é um infinito de só, uma casa completamente fechada, sem portas, sem janelas, uma casa para nada.

No poema II (p. 9) lê-se: “Apenas uma sílaba com som: dor. // Jonas soube: não existia / na cidade outro homem.” Esta condição de Jonas, esta imagem do humano enquanto Jonas, que está só, completamente só na cidade, caminhando por procurar outro é uma imagética profunda do que é o ser humano, uma parábola à dimensão do paradoxo da existência. Devemos repeti-la, porque a cada esquina nos é repetida. Devemos repetir, porque a cada página nos é repetida, a cada verso. E não há parábola sem a febre da imagem e um horizonte de sentido, ainda que longínquo, ou que possa parecer longínquo. Leia-se o segundo poema do livro (p. 8):

“Jonas chegou a casa:
no lugar da porta, a boca do peixe.
Empurrou um dente, entrou. Sentou-se

na enorme afta daquela língua
desconhecida que habitava.
Olhou em volta: um lugar em ruínas, não
uma casa em ruínas; uma boca
tentando ser uma cidade inabitada.

Na primeira cidade com hálito, os sinos
soavam de quarto em quarto
de hora.”

E é aqui que estamos, no livro como na vida: num lugar em ruínas, não numa casa, mas num lugar.

“Jonas levantou-se. / Queria arrumar o coração no lugar / certo, descer por ele até mais do que uma sílaba: / até uma palavra.” (p. 10) Em todas as páginas, em todos os versos ao longo deste precioso livro escutamos as nossas próprias vidas, mais próximas do que se fosse dela mesma, a nossa, que a poeta escrevesse, tão mais próximo como só a imaginação que transfigura o sentimento o pode fazer. A demanda de Jonas é a nossa demanda. E o outro é o próprio, que busca outro como a si mesmo. Uma palavra basta, uma palavra. Mas onde escutar essa palavra? Onde há essa palavra, que se houver nos basta? O que seguir, que caminho seguir para encontrá-la? Não será essa palavra uma boca, um beijo, um coração puro a palpitar nas mãos de todos os nossos sonhos, eternamente sonhos? Os dias, aquilo que deram a Ruy Belo, ao invés da vida – Eu vinha para a vida e dão-me dias (Ruy Belo in Homem de Palavra[s]) – é o que nos dão a todos, o que dão a Jonas, nesta boca, nesta cidade, neste livro. Quem ao andar na rua não sente agora as paredes altas do céu da boca da baleia, o tecto opaco da vida, o badalo do sino antes da descida vertiginosa para o estômago do animal? A cada esquina que viramos ouvimos os sinos, a anunciação de nenhuma palavra, a lembrança do silêncio que nos veste como uma farda. “Era uma voz / de abismo, de fundo de copo, / E repetiu: dor.” (p. 11) Lisboa, a baleia por onde ando, por onde a poeta escreve, a cidade onde não há outro homem. Em nenhuma cidade há outro homem, mas esta é a minha baleia. Esta é a minha baleia, grita por um livro inteiro a poeta Inês Fonseca Santos. Lisboa, a minha baleia; eu, Jonas, a caminhar por procurar outro. “As paredes, ao se afastarem os móveis, / erguem-se, despidas, coradas até à raiz dos rodapés, / como paredes sem móveis: demasiado brancas (…)” (p. 5) A loucura não é a vertigem do álcool, o voo das drogas, a euforia dos corpos, um armazém chinês com tudo o que não nos faz falta. A loucura é a casa vazia, sem janelas, sem porta, as paredes brancas de nada, os móveis velhos e gastos, afastados dos rodapés, mostrando os anos que passaram, os anos que passaram para nada, pois nada se viu, nada vimos, nada aprendemos, nada cresceu dentro de nós, como cresce no interior de uma grávida. Só engravidando não somos sós. Só engravidando não somos um vazio puro, uma ruína. E depois? E depois da gravidez? De novo um ruína de nós mesmos, uma ruína da infância. Uma ruína do que poderia ter sido, sem que na realidade alguma vez pudesse ter sido, pudesse ser.

“VIII
Jonas só compreendeu a palavra
‘ferida’ ao alcançar o topo da língua.
Assistiu, do monte, à invasão da cidade:
coágulos de sangue cobrindo a grande boca.
Jonas sufocou. Pôs sobre os olhos
as mãos. E desejou nos ouvidos o toque
dos sinos.”
(p. 15)

Desejamos. Desejar é uma pele, uma segunda farda, a farda dos dias de festa, a farda com que vamos aos dias de gala, para além da farda do silêncio do dia a dia. Esta é a nossa vida, grita Jonas, pôr as mãos sobre os olhos e desejar o toque dos sinos. Que sabemos de nós? Como caminhar por procurar outro e não sabermos quem somos? Como não desejar a música dos sinos, as palavras silenciosas da música, que nos tocam, literalmente nos tocam, que nos fazem vibrar como o tempo vibra numa ruína. “Paredes, estais hoje mais velhas do que nós”, escreve num verso, a poeta. Nós estamos mais velhos do que nós, escrevo eu. As ruínas, as paredes, o tempo a descascar a vida, a descascar a vida e a deixar marcas nos dedos sujos, desta nossa consciência a assistir a tudo. “A nossa vida, disse ela, / aqui de cima.” (p. 22) A nossa vida, diz a consciência, aqui de cima. E o que a consciência se dá mal com os dias! E o que a consciência se dá mal com as ruínas! E o que a consciência se dá mal com a sua própria ruína! Jonas, sou eu agora que te peço, eu o teu leitor, eu aquele que te traz aqui à beira de seres outro, à beira da estrada de seres outro, não me mostres mais o que é a vida, não me escrevas mais estes versos: “eram pedaços de intestino, / onde também dói / quando tudo o que resta / é uma porta fechada // sobre a memória, / sobre ela / sobre mim.” (p. 28) A vida fechada como uma casa onde puseram tijolos no lugar de portas, onde puseram tijolos no lugar de janelas, onde puseram tempo no lugar de braços, onde puseram dor no lugar de um horizonte.

Este é um livro de descida ao mais íntimo dos me- dos, à mais íntima das solidões, como só quem escreve sentimentos sobre a lâmina da imaginação o sabe. Se esta minha leitura vos parece um enorme “só”, é porque este livro é isso mesmo. Imaginai Jonas no interior da baleia! Imaginai-vos, cada um de vós, no interior da existência!

O livro, que é um objecto de arte, traz ainda um conjunto de ilustrações de Ana Ventura, cuja beleza não mitiga o terror da escrita. Termino com um poema da poeta Inês Fonseca Santos, último da segunda parte do livro “Segundo Dia Segunda Noite”:

“XI
As minhas dúvidas,
como poderei saber se são as mesmas,
se são as minhas? Perguntou-lhe
ele, erguendo-se
uma última vez.

Sentada diante dele, ela
agarrou a certeza como ele
agarrou as pedras:
na boca e nos ouvidos, o toque
dos sinos e só então a voz.

Eu sei, como tu sabes, quem é esse que habita as paredes da casa.

Eu sei, como tu sabes, que única mão é essa que folheia os livros, que apanha as pedras.

E eu sei, como tu sabes, que ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos assim tão pequenas.

Mas eu olho, como tu olhas, essa mão minúscula
cosendo um corredor de almofadas, aguardando
que sobre elas durma.

E eu sei, como tu sabes, que essa mão translúcida comanda os versos, abusando de pensamentos e palavras, actos e omissões.

Sabes?

Antes de mim,
antes de ti,
já existia este jardim.”
(p. 30)

20 Dez 2016

Os filhos dos outros

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha vida civil trabalho em informática, e não raras vezes tenho de ir a Barcelona, ora para resolver problemas específicos da empresa em Portugal, com ajuda dos meus colegas espanhóis, ora para assistir aos infindáveis monólogos motivacionais a que as pessoas, por inexplicável obstinação semântica, continuam a chamar “reuniões”.

A frequência das idas e vindas faz com que acabemos por acompanhar, em jeito de folhetim, a vida uns dos outros: quem casou, quem se separou, quem finalmente se apercebeu de que pagar o dízimo do ginásio sem lá pôr os coutos uma única vez não era suficiente para levar a bom porto o projecto biquíni, que tanto sentido fazia enquanto resolução de ano novo.

O Raul era o mais caladinho dos meus colegas, uma espécie de contraponto ao típico espanhol, normalmente tão efusivo e entusiasmado como ruidoso. O Raul não, caladinho, no seu canto, dedos ágeis sobre o teclado, olhos postos na pantalla onde desfila aquele sânscrito digital que faz com que as coisas que têm que funcionar funcionem. Interrompia-o amiúde, para saber de um procedimento ou para pedir acesso a uma base de dados que ele administrava. Eu associava a sua cordialidade à sua introversão: o Raul não discutia com os colegas, não levantava a voz e, ao contrário dos restantes elementos do departamento, aceitava as reprimendas ocasionais do chefe num silêncio de eremita. Eu sabia da vida dele o que me iam dizendo: que era casado, malgrado ninguém conhecer a sua mulher, por ele nunca a ter levado aos jantares para os quais ambos eram convidados ou ao Family Day, que morava na periferia de Barcelona, como quase toda a gente que trabalhava na empresa e que estava à espera de um filho há cerca de catorze meses. Como, perguntava-se, entre risotas, catorze meses, insistiam os colegas do Raul, sem conterem a galhofa, se espera un elefante, rematavam, para gargalhada geral.

Eu acompanhara a história do filho desde o início. A tímida alegria quando anunciara a novidade no escritório e a reacção dos colegas, adubando-o generosamente com palmadões nas costas, genial, coño, vincavam, o seu sorriso envergonhado perante aquela inédita demonstração de efusividade, ele que estava habituado a que o interpelassem somente quando alguma coisa corria mal e as felicitações do chefe, habitualmente reservado, até soavam bem, naturais, humanizando-o inesperadamente, mas como nem um nem outro estavam habituados aquele trato sem farda o chefe rematava, seco, em jeito de pai: ahora hay que trabajar aún más, Raul.

Os meses passaram tão depressa como o tempo pode passar num escritório. O entusiasmo dos colegas, sobretudo quando se acercava a data na qual se esperava que o pequeno Raul nascesse, deu lugar a um silêncio consternado e árido de perguntas, porque o pequeno Raul, desafiando todos os prazos conhecidos para o desenlace da concepção humana, não havia meio de nascer. Ora era uma complicação clínica que impedia o parto, oram era dois obstetras que se desentendiam sobre a forma mais adequada de entregar aquela criança ao mundo, ora era porque se aproximava o Natal e aquela altura, tão confusa como exasperante, não dava jeito nenhum. Não dava jeito nenhum, chegou mesmo a dizer.

Aquele silêncio de sepulcro, tão inesperado como contranatura – sobretudo para um espanhol – deu rapidamente lugar à zombaria e o filho do Raul tornou-se de repente uma metáfora para tudo quanto tardava demasiado tempo naquele escritório. Mas esta impressora, não imprime, reclamava a directora financeira, para logo alguém por detrás do anonimato de um monitor replicar: deve ser filha do Raul. E o café, quando é que pediram o café, nunca mais chega esse café? Filho do Raul. Ainda não pagaram o subsídio de férias? Filho do Raul. Esse relatório, como vai? Filho do Raul.

A piada durou até o director de recursos humanos, eventualmente necessitado de mostrar algum serviço, decidir convocar o Raul e o chefe do Raul para uma reunião cuja agenda era de ponto único. Raul, esta empresa, principiou o director de recursos humanos, não tem por hábito imiscuir-se na vida pessoal dos seus funcionários, mas há-de convir que esta situação, tendo em conta o seu carácter inusitado, pede de certa forma um esclarecimento, e acredito que o seu chefe estará de acordo comigo neste ponto, ao que o director de informática anuía, silenciosamente, com um acenar de cabeça. Raul, finalizava, podemos saber o que se passa com o seu filho?

Saindo da reunião, Raul passou pela secretária e meteu na mochila os poucos objectos pessoais que lá tinha: uma caneta de tinta permanente, dois livros de poesia, uma miniatura articulada do Wall-e. Despediu-se educadamente dos colegas, como sempre. Nunca mais o vimos.

Há duas semanas fui a Barcelona e lembrei-me de o procurar, de o rever. Mas não tinha a sua morada, não tinha o seu telefone. Não sabia nada dele. Na verdade, nunca soube. Só podia ser uma personagem.

19 Dez 2016

Pedro Gonzaga: “Meu temor é perdermos a capacidade de dizer”

[dropcap]É[/dropcap]s poeta, cronista do Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e professor de literatura. Como vês o estado da língua portuguesa no Brasil? E da literatura? E quais achas que são hoje os piores inimigos da língua e da literatura?
A literatura, me parece, sofre o mal da simplificação e do maniqueísmo que tomaram as ideias e a expressão das ideias (a linguagem) em nossos tempos. A internet de potente forma de divulgação, converteu-se em leitura rápida e leviana, práticas inimigas da poesia. O português aqui em terras brasileiras ganhara, na mãos dos grandes poetas de 1930, uma encantadora fluidez e um impactante poder de expressão para os dramas sociais e individuais da nação. Meu temor é perdermos a capacidade de dizer. Mas acho que esse é o temor de todos os poetas.

O Brasil é um continente e tu vives na capital de um dos estados fronteiriços, Rio Grande do Sul. Há em Porto Alegre conhecimento da poesia que se faz na totalidade do Brasil, ou fica-se pelo chamado eixo Rio – São Paulo? E neste eixo, a poesia do Rio Grande do Sul chega lá?
O Rio Grande do Sul é uma ilha, em certo sentido autônoma, mas, sem dúvida, bastante isolada. Nosso norte máximo é São Paulo, Rio de Janeiro se pensamos no Brasil tropical. A poesia encontra grandes dificuldades de divulgação num país continental como este, e com tantas diferenças regionais. Para muitos, entre os quais me incluo, o nosso eixo cultural está muito mais voltado para a Bacia do Plata, ou seja, Montevideu e Buenos Aires. Também capitais isoladas em países ainda bastante rurais.

As relações culturais entre Porto Alegre e Buenos Aires são mesmo reais, ou isso não passa de um mito, ou talvez de um desejo?
Há um desejo muito grande da cultura dita gaúcha de estabelecer um vínculo com o mundo platino, Uruguai e Argentina. Me parece que há uma ideia difusa, mas talvez verdadeira, de uma sensação das coisas ao sul do mundo.

E por falar ao sul do mundo e em Uruguai e relações fronteiriças, não podia deixar de te perguntar por esse grande romance, que é Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee, passado na Jaguarão de finais do século XIX, e os últimos seis meses de vida de Frutuoso Rivera, o primeiro presidente do Uruguai. Que dizes desse romance? Sei que o Brasil ainda não o descobriu, mas ele já se torna incontornável no Rio Grande do Sul?
Aqui no Brasil, mas creio que no mundo todo, há certas injustiças literárias inexplicáveis. É o caso desse livro magistral chamado Don Frutos, que tem aquele aspecto de narrativa infinita que só os grandes romances podem ter. Seu conteúdo e sua linguagem local me parecem superáveis como acontece com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, de Guimarães Rosa. Para a cultura sulista, como tu bem disseste, é incontornável. O que só torna mais grave o silêncio que aqui se faz. Era livro para estar em todas as escolas do Rio Grande do Sul.

Neste momento, no Rio Grande do Sul, parece-te mais pujante a poesia ou a prosa? E no resto do Brasil, és capaz de responder, apesar do continente gigantesco, que é o teu país?
É um momento bastante complicado para a produção artística no Brasil. Com as grandes conturbações sociais, os escritores parecem estar perplexos, incapazes de sínteses e mesmo de depoimentos pessoais consistentes que ultrapassem a mera ideologia partidária. O romance, com seu poder totalizante, e também mercadológico, ainda não viu surgir um panorama da Era FHC, ou da Era Lula. A poesia, num país continental como este, não consegue espaço para divulgação e acaba fenecendo. No entanto, é geralmente nessas horas que se erguem novas vozes criativas. Quem sabe o conto pudesse voltar a explodir, como nos anos 60. Mas nesta arte, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda são para mim as vozes mais interessantes dos últimos cinquenta anos. Quanto ao romance, há um belo romance de Paulo Scott, chamado O Habitante Irreal, que trata da questão indígena no Brasil, com uma visão social contundente e uma forma bem arrojada.

Quanto à poesia no Brasil, ela carece de um ressurgimento. Desde o esgotamento da geração dos poetas marginais, da morte de Ana Cristina César, depois do Leminski, cuja obra me parece supervalorizada, o que há é uma espécie de poesia preguiçosa que lhes é herdeira, feita de trocadilhos e linguagem midiática, ou então um outro caminho também frouxo, de temática social, nada inovativa, seja em forma ou conteúdo. Há um tipo também de poesia desencantada, de cotidiano, que me desagrada bastante, marcada por um prosaísmo que não tem luz ou revelação. Claro que há belas exceções, os consagrados Antônio Cícero, Eucanaã Ferraz e Paulo Henriques Britto, e pelo menos dois nomes da nova geração: a anteriormente mencionada Mariana Ianelli e também um conterrâneo aqui do sul, um poeta chamado Diego Grando.

Esta semana escrevi aqui para o jornal sobre um livro que me impressionou muito, em dez anos de Brasil, Página Órfã (2007), de Regis Bonvicino.
Uma bela lembrança. Bonvicino tem a força, a contundência que me parece tantas vezes faltar em nossos tempos. A verdade é que há muita gente boa espalhada nesse país com tamanho de continente. Impossível não cometer injustiças e esquecimentos.

Tens dois livros de poesia publicados, Última Temporada (2011) – que foi abordado aqui no Hoje Macau – e Falso Começo (2013). Para quando o teu terceiro livro?
Deve sair aqui no Brasil no início de Maio do ano que vem e haverá de se chamar Em Outros Tantos Quartos da Terra. Terá apresentação da Mariana Ianelli.

16 Dez 2016

Literatura | Carlos Morais José convidado para o Correntes d’Escritas

É inédito: em 2017, o mais importante festival literário de Portugal vai contar com um autor do território. “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja” é o bilhete que leva Carlos Morais José até à Póvoa do Varzim. O escritor quer que, com ele, sigam todos os outros que não são devidamente reconhecidos

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi com surpresa que Carlos Morais José recebeu o convite: o autor vai participar na edição de 2017 do festival literário Correntes d’Escritas, um evento que se realiza na Póvoa do Varzim e que conta, ano após ano, com os principais nomes da literatura em português.

“Estou surpreendido porque não é habitual Macau ser considerado como ponto literário da lusofonia. Por outro lado, sinto-me muito honrado com o convite, na medida em que este é o mais importante festival literário de Portugal, com extensões ao Brasil e aos países de língua castelhana”, explica. Pela importância do evento, Morais José espera poder “representar bem a RAEM, mostrando que por aqui existe um forte movimento cultural lusófono, cujas raízes mergulham numa relação secular entre duas grandes civilizações: a chinesa e a portuguesa”.

Porque vive em Macau há 26 anos, o autor fala numa “escrita de exílio”, que é agora reconhecida, o que o deixa “muito satisfeito”. “Mais por Macau do que por mim”, diz. “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.”

Quanto à importância que poderá ter a participação no festival da Póvoa do Varzim, Carlos Morais José confessa-se “algo eufórico” com o facto de, pela primeira vez, um autor de Macau ser convidado a participar.

“Espero levar comigo a literatura lusófona de Macau e farei um esforço no sentido do seu reconhecimento. Escritores como Alberto Estima de Oliveira, Henrique de Senna Fernandes, Luís Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição, Fernando Sales Lopes, Manuel Afonso Costa, Fernanda Dias, António Conceição Júnior, Yao Feng, entre outros, sem nunca esquecer Camilo Pessanha, precisam de ser referenciados e divulgados no espaço lusófono, impondo a RAEM como um lugar extremo da lusofonia onde vivificam de forma singular as letras em português”, explica.

O escritor não deixa de salientar que “é espantoso que em Macau subsista uma tradição muito própria de escrita que, fugindo ao mero exotismo, tenha um lugar na universalidade da nossa língua”. Por isso, pretende que a participação no Correntes d’Escritas consiga contribuir para a divulgação do território “como um espaço longínquo onde o português acaba e o nada começa”.

“Se Pequim pretende fazer desta terra uma ponte para a lusofonia, será sobretudo através da cultura que a nossa comunidade poderá desempenhar um papel útil a esta região”, defende. “A minha escrita, apesar de compulsiva e individual, gostaria de ser uma chave para abrir portas até hoje fechadas, e espero que o foco sobre o meu trabalho seja suficiente para iluminar as obras de outros autores locais que escrevem em português e mesmo a de alguns autores chineses locais, cuja obra se encontra imbuída de características únicas, no contexto da Grande China”. É que, entende, “Macau precisa de ser conhecido no mundo lusófono, além dos casinos e do exotismo bacoco”.

O encanto da ficção

O convite para a participação no Correntes d’Escritas surge depois de ter sido lançado em Lisboa o livro “O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja”, uma obra que foi apresentada esta semana em Macau. É um texto que foge ao que têm sido as incursões literárias de Carlos Morais José.

“Estou surpreendido pela aceitação que o livro está a ter, mas o facto de ser uma novela ajuda muito, pelos vistos, à sua divulgação e aceitação – muito mais do que a poesia ou outras formas literárias, geralmente consideradas mais elitistas e destinadas a um público muito específico”, observa.

“A minha obra é diversificada mas, até agora, não incluía este tipo de ficção. Por isso, de certo modo, não me espanta que a prosa ficcionada tenha mais aceitação do que o resto. As pessoas adoram ouvir histórias porque as fazem sair do seu próprio mundo e entrar num outro reino.” Mas não é só isto: “Parece-me que a minha novela também interroga o leitor de uma forma extrema, na medida em que apresenta um personagem cheio de defeitos e malícias, ou seja, como todos nós. Só uma estrutura moral muito forte nos afasta do Mal e, mesmo assim, crescem dúvidas. Assumem a forma de ervas daninhas na nossa mente mas, ao mesmo tempo e pelo contrário, são essas mesmas dúvidas que instituem a riqueza dos indivíduos e a sua capacidade questionadora e criativa”.

Carlos Morais José é licenciado em Antropologia e vive em Macau desde 1990. É director do Hoje Macau e proprietário da editora Livros do Meio. A 18.a edição do Correntes d’Escritas acontece entre 21 e 25 de Fevereiro de 2017.

15 Dez 2016

Para que serve um exército

29/11/2016

[dropcap]T[/dropcap]itula-se, no matutino O País, de Maputo: «Nakume (o Ministro da Defesa) ameaça de demissão comandantes que falharem metas», e lê-se no seguimento: «Ministro da Defesa quer que todos os ramos e unidades militares produzam comida para fazer face à crise que o país atravessa. Os comandantes que falharem estas metas devem colocar o seu lugar à disposição». Vejo por uma vez que os militares podem ser realmente úteis, num país esfacelado por uma guerra civil estúpida e cretina.

Raras vezes percebi a utilidade e a necessidade absoluta dos exércitos.

Quando Xerxes invadiu a Grécia com um exército tão grande que secava os rios à passagem (e é indubitavelmente uma coisa que assombra: um exército tão grande que sorva os rios por inteiro), Esparta mandou contra ele um primeiro (pequeno) contingente de 300 homens, que travaram os persas em Termópilas – aí percebe-se a absoluta necessidade de um exército. O mundo de hoje seria muito pior e mais triste se Xerxes tivesse vencido; os déspotas demoram sempre mais tempo a morrer que os liberais, é uma verdade dramática.

A existência de Hitler tornou evidentemente obrigatória a existência de exércitos, ou nacionais ou em coligação, que degolassem o perigo do fascismo.

Portanto, há causas e causas. Mas em setenta por cento dos casos não é assim.

Agora, para que quer Portugal um exército, com aquele “volume”? Para se defender de quê? Que proveito tem um país tão pequeno e dependente em ter um exército que lhe devora uma fatia substancial do bolo que devia ser gasto em cultura, em bibliotecas, em educação, numa melhor distribuição social? Claro que há compromissos internacionais a respeitar, mas à tal Europa cínica e estritamente económica não deviam os pequenos países entregar a factura pela obrigação de estarem envolvidos em compromissos que lhes exigem um dispêndio desproporcional em relação às suas pequenas economias?

E a questão é:

Quantas consultas em oncologia custa uma bazuca?

Quantos ginásios custa um submarino?

Quantas bolsas de estudo se pagavam com um tanque?

Quantos carros de bombeiros se pagavam com um avião de combate?

Quantas peças de teatro custa um simples Tatoo Militar?

Não quero ser mal interpretado, mas constato que ou as mulheres portuguesas e moçambicanas não sabem onde têm a cabeça, ou não têm lido muito. Pelo menos não têm lido a Lisístrata, do Aristófanes.

É uma simples história de mobilização das mulheres contra o prolongamento da guerra do Peloponeso, que, face à teimosia dos homens em mantê-la, impulsionadas pela lucidez de Lisístrata, fazem uma letal greve de sexo. A guerra não durou muito mais!

Aí está uma forma clara de atenuar as dívidas portuguesa e moçambicana: enquanto Portugal e Moçambique mantiverem um exército desproporcionado para as suas reais necessidades, as mulheres deviam vestir as calças quando fossem para a cama. Convictamente: calças sem fecho-éclair.

Ao fim de três meses julgo que teríamos os militares de gatas, voluntariamente, a pedir demissão.

Isto também vale para a posse das armas. PISTOLA EM CASA: PERNAS CRUZADAS!

Se a boa metade da humanidade, tomando o exemplo de Lisístrata, fizesse o seu trabalho e não caísse na ladainha de um mundo congeminado pelo imaginário masculino haveria menos escolas ameaçadas por fanáticos.

Eia as palavras de ordem que escolheria para uma campanhia anti-bélica: « Minha amiga: acorde a Lisístrata que há em si! Time out: pernas cruzadas, mulheres do meu país. É o futuro que está em jogo, não o engravide!». Mas nunca me perguntam a opinião! E as mulheres, de facto, não têm feito o seu trabalho.

As mulheres na Líbia eram mais voluntárias. Só que em sentido contrário. Ao Kadhafi, sempre invejei os penteados e a guarda-pessoal de moçoilas. E elas disputavam a primazia de fazerem parte da Guarda de Honra de Kadhafi.

Depois do Kadhafi ter sido despachado como foi, acidentalmente (nunca soube como se produziu esta maravilha), recebi este mail:

«Saheera Mohamed Jamila, de 26 anos, virgem, 1,85 m, versada nas técnicas de tortura suava e mandarim, cinturão negro quarto dan em karaté-suc, especialista em estrangulamentos com arame, c/ nano pistola-metralhadora hk mp5 dissimulada nas axilas, carta para pesados e para merkava 3, patton M47, m-60, Leopard, domínio de quatro línguas europeias, para além do árabe, do swaali e do chinês, expert em amaciar detractores com uma culinária alucinogénica, ex-membro do body guard de Kadhafi, a quem partia as nozes; com carta de recomendação de Berlusconi, amiga de Mugabe, procura emprego compatível, de preferência a sul do Sahara, em país laico e firme em aplicar as leis e a sua defesa e dá desconto nos primeiros três meses de serviço».

Virgem? Hum. Mas, confesso que fiquei agitado. E por quê a mim, confessado pacifista? Com um remorso antecipado reencaminhei o mail para o Ministério da Defesa, espero que tenham dado provimento, é sempre triste ver alguém tão competente de mãos a abanar.

Porém ficam as perguntas: Quanto custa manter um exército? Desmantelar um exército sai mais caro que mantê-lo? É prioritário para Portugal, neste momento, manter um exército? Não é possível reconverter a indústria do armamento? De que dívidas se fala se não se tem a força moral de se abater nas balas para se injectar no crédito às pequenas e médias empresas? E em nome de quê as tão judicativas instâncias do mercado internacional, quando avaliam em recessão a economia de um país, não preconizam de imediato: querem crédito, abatam primeiro o exército?

Está para além do meu entendimento que depois de escolher a entropia um país peça emprestado para pagar o diligente serviço das carpideiras.

Todos os anos, pelo ano novo, cresce-me nas costas um bocado de asa e tenho de a meter para dentro, deve ser disso.

15 Dez 2016

Um Canto de mim mesmo

Oh Captain, my captain,
Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

121216p16t1
Walt Whitman

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s noites que antecedem o Solstício de Inverno são longas e frias, muito escuras quando a Lua-Nova incide ainda mais na grande muralha do tempo que, desde os cultos de Mitra, forjaram o pavor primitivo dos Homens, que nas fundas grutas pensavam na chegada de uma noite eterna e nas Altamiras oravam ao Sol para que não os abandonasse naquela noite profunda. Tão em silêncio e reclusão estavam, que no meio deste labirinto já nem viam o grande Minotauro, mas foram descobrindo, como a primeira das revelações, que quando chegados ao ponto vernal, ela, a estrela que pediam que voltasse, aos poucos ressurgia no escuro dos dias, timidamente e gloriosa – o Sol – o invictus Sol!

Mais tarde as Saturnais Romanas, o Purim judaico, o Natal católico (faltando o Islão que se anunciou como um crescente lunar) as Civilizações foram as do Sol, e as culturas dos Homens lhe renderam homenagem.

E foi nestas noites trazidas e enlaçadas nas veias que, numa plataforma singular, me recordo dos Poetas Mortos, de todos aqueles que trazem o facho de luz da esperança e da incandescência para a Humanidade, que contacto com o corpo do poema no éter puro: recordo-me de – My Captain – “meu capitão jaz morto e frio” na madrugada exacta da morte daquele que para uns é ígneo de ferocidade, para outros a luz que faltava, para muitos um resquício do «Crepúsculo dos Deuses» e para outros um rico, muito rico, disfarçado Comandante: seja quem for, ele vive no tecido do Poema e não fazer muitos juízos de valor quando encontramos o que faltava saber nas formas não reveladas. Tenhamos apenas o humilde reflexo de as ter sabido interpretar, sem resquício de idolatria, mas relembrando o quão terríveis podem ser, muito embora solares e generosos, aqueles que os destino inventa para representar os mitos – os deuses não nos querem de joelhos, e se inábeis lhes erguemos um altar, ficam parados e tomam a decisão de se calar.

«Um Canto a mim mesmo», redundantemente sinónimo do cantor, pode ser agora «Um Canto a Galiza», um « Canto do Cisne», um Cantar de Juan de La cruz na «La noche escura del alma», tudo o que um profético Ulisses desembarcado na sua ilha tendo como amante a sua Calipso como um sonho a conquistar. Não lhe vamos oferecer flores, a longa fila de outros mortos sugá-las-iam de dor, esses seres vegetais para coroar as fadas, mas as oferendas aos mortos e dos mortos são coisas tão irreveladas, que nos interpelam como os segredos. Concomitantemente ao aniversário de William Blake, ele traz-me Urizen, aquele deus da afirmação auto-suficiente que se afasta do mundo indiviso da eternidade para ver consumado o perpétuo isolamento do seu mundo e fixados lhes foram os caracteres antropomórficos pela via metalúrgica e um novo mundo começa. Como um raio suado de coincidências alerta-se para o estado gasoso da matéria do poema, que se une em factos nas passagens de plano, e desta matéria dos mitos se faz o dedutivo momento de que somos visitados pelo organismo intacto que sobrou da vasta matéria onírica…

Uma Lua-Nova na constelação do Centauro talvez encete longe a sua força e nos deixe naquele espaço que a visão já não alcança e só pelos olhos do assombro podemos visitá-la. Como nota acrescente-se que Blake se situa exactamente na transição da cultura inglesa para o século XIX, entrando em conflito com a civilização igualitária do liberalismo moderno e que Whitman no ano em que nasce Pessoa é atacado de paralisia e publica «November Boughs», os seus últimos sessenta e dois poemas, ajudado por um amigo que angariara fundos para a sua publicação. Novembro das noites altas como catedrais, sim, que hoje mesmo neste trinta de Novembro nos levaram Pessoa e Wilde, e na noite sem estrelas, avança a maravilha do contacto como nos refrões vindos da gruta mágica, emblemas tão vivos que quase se faz luz em todo o interior e a premonição é um estado de alerta e de comunicação tão férteis que devem estar unidas ao imenso grau de empatia dos estratos humanos.

E, em jeito de Barcarola, que as barcas são dos Argos e das ilhas, vamos construindo a viagem e sabendo que ela é a vida que no términus se despede, e se anuncia assim:

Ó Capitão! Meu Capitão, terminou a terrível viagem.
O navio resistiu a todas as tormentas o prémio que buscávamos está ganho.
O porto está próximo, ouço os sinos, toda a gente está exultante.
Caminho agora no convés onde está o meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

A viagem de Ulisses terminou. As Ilhas são locais de amor e de alguma sede de reclusão. Sabemos de como a insularidade nos toca, e, de quando em vez, temos vontade de ir para uma só nossa, onde possamos prosseguir o sonho da Utopia. Os continentes não produzem sonhos, nem neles achamos a vasta memória de toda a fonte poética que, podendo ser deleitosa, será em si a terrível face do universo que não quisemos indiviso. Afinal, o pacto foi também que todos os gases nobres não se misturassem, tal como todos os elementos também nobres que tendem a estabilizar. Sem esta fixidez seríamos náufragos baloiçando nos mares ao sabor das coisas indistintas, e, os Velos de Ouro estão guardados para os que, com a persistência das missões quase olímpicas, o resgatem e encontrem.

Nós, no torvelinho de tempos móveis como areias muito movediças não sabemos captar a fantástica função do mito nem dele tirarmos a devida lição da beleza escondida. Daqueles que para o pior e o melhor forjaram os metais de Vulcano não desejando mais que a sua altivez face à banalidade do ouro dos bárbaros, nós, já não sabemos ver para além da moral dos tempos nem ter o espaço para os encantamentos, por isso os Argonautas morreram, e as barcas são essas coisas informes boiando nos mares para velhos ricos que procuram a sua ilha. Ela não está em lado nenhum, nós somos um hiper-Continente, uma cadeia de mercados onde nos abastecemos para lidar com o mundo como se ele fosse linear e igualitariamente programado.

E, porque a noite é longa e os tempos um plasma indistinto, oiço dizer aqui em meu ouvido a frase de Whitman: – se à primeira não me encontrares, não desanimes, se não estiver num lugar, procura-me noutro, algures estarei à tua espera -.

É bom saber desta verdade.

12 Dez 2016

Literatura | Rota das Letras acontece entre 4 e 19 de Março

Só lá para meados do próximo mês é que o programa completo é divulgado, mas a organização do evento decidiu já deixar algumas pistas do que vai ser a sexta edição. O Rota das Letras vem aí, com vontade de trazer mais autores internacionais a Macau

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]runo Vieira do Amaral é um autor português. Clara Law é uma realizadora nascida em Macau a viver na Austrália. Philippe Graton é fotógrafo, escritor e autor de banda-desenhada, herdeiro de uma obra que colocou Macau no mundo da BD. Graeme Burnet é escocês e esteve quase a ganhar o Booker deste ano. Nas duas primeiras semanas de Março, vão passar por cá – fazem parte da lista de convidados do Rota das Letras, o festival literário de Macau.

À sexta edição, o formato é para manter, explica ao HM Hélder Beja, director de programação do evento. O festival continua a ter várias dimensões: em torno da literatura, elemento principal, concentram-se outras manifestações artísticas. Vai haver cinema, artes plásticas e música.

“Haverá com certeza uma aposta forte num dos segmentos que é revelado aqui nesta pequena breve apresentação do festival: a banda desenhada, os comics”, explica Hélder Beja. “Pela primeira vez, o festival vai explorar esse campo e anunciará, nos próximos tempos, mais alguns convidados nessa área.” O nome revelado por ora é Philippe Graton.

O fotógrafo e escritor belga é filho de Jean Graton, criador da série de BD Michel Vaillant, da qual faz parte o icónico álbum “Rendez-vous à Macao”. Há quatro anos, Philippe Graton decidiu ressuscitar Michel Vaillant, retomar as aventuras deste piloto de automóveis inventado pelo pai e continuar a série. Vaillant celebra 60 anos em 2017 – na presença em Macau, Graton vai falar do seu trabalho e inaugurar uma exposição. Quem por lá passar vai poder ver as provas originais do álbum “Rendez-vous à Macao”, um trabalho de 1963.

O melhor dos primeiros

De Portugal chega Bruno Vieira do Amaral, um autor que é, para o director de programação do Rota das Letras, aquele que tem o melhor primeiro romance de todos os escritores que se estrearam na literatura portuguesa nos últimos sete ou oito anos.

“‘As Primeiras Coisas’ é um livro especial porque não é uma narrativa de grande fôlego, são curtas narrativas que, todas juntas, criam um todo. É como se fossem contos que fazem parte todos da mesma história. Passa-se na margem sul de Lisboa, de onde ele é natural. É um livro escrito de uma forma muito peculiar”, explica Hélder Beja.

Sobre Bruno Vieira do Amaral, o responsável pelas escolhas do Rota das Letras diz que “é um escritor imensamente bem-humorado na melhor tradição de alguns dos nossos melhores escritores, como Eça de Queirós, que sabem olhar para a realidade e subvertê-la de uma forma muito rara, com uma linguagem muito contemporânea e com histórias dos nossos dias”.

Todos os caminhos foram dar, de certa maneira, a Bruno Vieira do Amaral, um autor com as características que o Rota das Letras procurava. “Publicou este livro pela Quetzal com Francisco José Viegas, que já foi convidado do festival, também por isso não nos é de todo estranho. Trabalha há muitos anos na revista Ler, com Francisco José Viegas”, prossegue Hélder Beja.

Com o romance “As Primeiras Coisas”, o escritor de 38 anos venceu, no ano passado, o Prémio Literário José Saramago. A obra valeu-lhe também o Prémio Fernando Namora 2013 e o Prémio PEN Narrativa do mesmo ano. “Recebeu tudo o que podia receber, ao ponto de ter deixado de trabalhar numa editora para se dedicar a tempo inteiro à escrita”, assinala o director de programação do festival de Macau.

Vieira do Amaral foi ainda uma das dez novas vozes da literatura europeia pela Literature Across Frontiers. “Curiosamente, é uma instituição cuja directora também já esteve em Macau, no ano passado. Todas estas ligações faziam sentido”, afirma. “Provavelmente até pode ser que tentemos trazer mais alguém que seja seleccionado para este programa das novas vozes da literatura europeia através da Literature Across Frontiers, com quem gostaríamos de continuar a trabalhar, já que o fizemos no ano passado para trazer um autor do País de Gales e um autor espanhol, e há a possibilidade de voltarmos a tentar fazer isso.”

Da Escócia e do passado

Ainda em relação a escritores, o Rota das Letras de 2017 vai contar com a presença do autor escocês Graeme Burnet, que chega ao festival através de uma parceria com a Universidade de Macau. Burnet foi um dos finalistas do Prémio Man Booker 2016, com o livro “His Bloody Project: Documents relating to the case of Roderick Macrae”. A obra, que conta a história de um jovem de 17 anos que comete um triplo homicídio, foi a mais vendida de entre todas as finalistas do Booker, nota a organização. Antes, com “The Disappearance of Adèle Bedeau”, o escritor venceu o Scottish Book Trust New Writer Award em 2013.

Hélder Beja adianta que, na componente literária do festival, o evento vai trazer a Macau escritores de países lusófonos e da China Continental, e cada vez mais autores internacionais. “É uma aposta clara, estamos também a trabalhar para tentar ter alguns autores do Sudeste Asiático. Tive oportunidade de ir agora à conferência em Cantão da Asia Pacific Writers & Translators, onde conheci muitos escritores também dessa região do mundo, porque trabalham muito não só com os escritores australianos e neozelandeses, mas também com escritores do Sudeste Asiático. Haverá novidades nesse campo e também será um novo passo do festival em relação ao passado”, explica.

“Depois, teremos autores de língua espanhola, de língua inglesa, de língua francesa. Estamos agora a trabalhar muito arduamente para tentar fechar o programa o mais rapidamente. É sempre complexo, mas o conceito será semelhante.”

Em 2017 há ainda um regresso a Camilo Pessanha. “Provavelmente no início de Janeiro anunciaremos mais algumas novidades sobre o que pensamos fazer. Não será à escala do ano passado, porque entretanto não faria sentido, mas achamos importante voltar a assinalar e também porque houve coisas que quisemos fazer no ano passado e não pudemos, pessoas que quisemos trazer, pelo que vamos aproveitar e trazê-las agora”, conta Hélder Beja.

As outras telas

Quanto ao cinema, está já anunciada a participação da cineasta Clara Law. “Não será a única atracção ao nível do cinema no festival. Estamos também a trabalhar noutras direcções e algumas delas já bastante avançadas.”

“Nascida em Macau e radicada desde os anos 1990 na Austrália, Clara Law regressa ao território para mostrar algumas das suas obras. Autora de filmes como ‘Autumn Moon’, vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Cinema de Locarno em 1992; e de ‘Temptations of a Monk’ (1993), ‘Floating Life’ (1996) e ‘The Goddess of 1967’ (2000), igualmente aplaudidos e premiados no circuito internacional, Clara Law fez também uma incursão pelo documentário com ‘Letters To Ali’ (2004), história de um jovem refugiado afegão que procura asilo na Austrália”, resume a organização.

Quase 50 anos depois deixar Macau, Clara Law esteve recentemente no território a filmar parte do seu novo filme, “Drifting Petals”, parcialmente passado na cidade.

“Também teremos artes plásticas neste festival. Quanto aos concertos, a música continuará a fazer parte. Estamos também a tentar perceber em que moldes. No ano passado, não fizemos os concertos de grande dimensão no Venetian, mas fizemos concertos também com uma grande dimensão no Centro Cultural de Macau. Estamos agora a tentar tomar uma decisão até ao final do ano e perceber qual será a escala da presença musical no festival”, explica o director de programação.

O público que falta

Para Hélder Beja, o Rota das Letras deverá manter a dimensão que atingiu na última edição – “uma edição comemorativa, especial”, a dos cinco anos de existência. “Fizemos o festival crescer para os 15 dias e este ano não vamos sair daí. A escala será exactamente a mesma. Acho que o festival não precisa de crescer mais do que já cresceu”, defende.

Quanto ao público que se quer chamar para o evento, o responsável assume que, “claramente, é preciso continuar a apostar muito junto das comunidades locais chinesas”, mas também diz que “não é esse o público que falta captar”. “Já conseguimos esse público, mas queremos muito mais do que aquilo que já temos. Isso passa muito por fazer mais parcerias com entidades locais, por estar mais presente nos meios de comunicação de língua chinesa, o que não é nada fácil, mas é preciso continuar esse caminho.”

Hélder Beja assinala, no entanto, que há um segmento da população local que ainda tem uma participação tímida no festival: a comunidade anglófona. “Tivemos algumas pessoas no ano passado mas, para a escala que sabemos que a comunidade tem aqui, não foi relevante. Estamos a tentar perceber porquê: se é porque a informação não chega ou se é porque, de facto, é uma comunidade muito especial, porque sabemos que é muito ligada ao ramo da hotelaria, que poderá não ter, à partida, grande interesse por este tipo de actividade cultural. Mas não podemos ter esse preconceito, não queremos tê-lo e vamos fazer um esforço para tentar captar essa franja da sociedade de Macau”, vinca.

O Festival Literário de Macau voltará a ter por base o edifício do Antigo Tribunal.

9 Dez 2016

Irmãos esquecidos

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Novembro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste exercício de andar à gandaia de sobras dos dias para compor em colagem nem sei bem o quê tem algo de perturbador. Se me pede avaliações, aqui e ali penosas, também me obriga a ser capaz de suspender toneladas de afazeres em atraso. A mão que escreve arrasta esse peso. E quando acontecer que nada tenha vivido ou visto ou lido que interesse, que nos interesse? E quando o cansaço me vencer? Este que rima com as marés.

Biblioteca Camões, 29 Novembro

Foi por mensagem que chegou o aviso da chegada do Carlos Quiroga, com quem tenho assuntos pendentes, que o mesmo é dizer livro no prelo. «Uma cerveja no inferno ainda presta.» Soou-me logo o sotaque, onde noto, vá-se lá saber porquê, nevoeiro e ternura. Descia da Finisterra para atirar de varanda de biblioteca A Imagem de Portugal na Galiza, em espelho com essoutra, de Carlos Pazos-Justo, A Imagem da Galiza em Portugal. Li de um fôlego o pequeno volume e dei-me conta de quão longe morava deste assunto. Sabia vagamente das causas, sobretudo em torno da língua que, apesar dos afastamentos, teima em dizer-se a mesma. Não tinha tomado consciência de que, como o Carlos logo explica a abrir, o seu assunto pedia que o outro fosse estrangeiro, o que não é o caso de Portugal para os galegos. Mesmo resolvida, com porosidades, a questão das fronteiras, «os laços de família por via da emigração e troca continuada», sobretudo mais a norte, fazem com que não haja a distância essencial para o retrato. Que irmão esquecemos no sótão? Que sabemos dele, mais do que nos foi dizendo Fernando Assis Pacheco? Desconfio bem que muito pouco. Solidamente sustentado em numerosas e variadas fontes, começa por tornar claro o óbvio: não nos podemos pensar sem eles, pedaço esquecido de uma mesma entidade, que a língua tanto ajuda a coser como a desatar. «Portugal para a Galiza ou é indiferente ou é uma espécie de Paraíso perdido. A Galiza, sendo Portugal, é o espaço-cabeça de um corpo crescido para o mar e sobre o mar que tem esquizofrenicamente saudades desse corpo, hoje separado. Uma parte da consciência da Galiza, pequena, teima em reverter as consequências de circunstâncias históricas concretas que a separaram de Portugal, que por outra parte e desde há séculos, criou novas cabeças, e acha ainda nessa ligação um ponto de apoio fundamental para construir a sua identidade.» De tão próxima, esta solidão afigura-se-me bastante ingrata. Alguém que nos lê, cultura e língua, com extremosa atenção e disso faz lugar de resistência merece mais, muito mais. Lá vociferava o Assis: «Indignar-me é o meu signo diário. / Abrir janelas. Caminhar sobre espadas. / Parar a meio de uma página, / erguer-me da cadeira, indignar-me / é o meu signo diário.»

Costa da Caparica, 30 Novembro

Acompanho Artur Henriques e a sua pequena tribo a um daqueles não-lugares, ao Centro Comercial O Pescador, para mais uma sessão em torno de livros organizado pela associação Gandaia, que é animada, entre outros, pelo meu velho amigo, de costela macaense, Ricardo Salomão. Goa, Ida e Volta, ao contrário do que o título parece sugerir, não reúne apenas memórias do serviço militar ali passado no final dos anos 1950 e de um regresso ansiado duas décadas depois. Em pinceladas impressivas e grande sentido da pequena história, também o meio publicitário e artístico e a própria cidade de Lisboa vão surgindo no retrato. Fascinante, o seu modo nonchalant de viver, continuamente de bem na própria pele, tomando o mundo por casa, como em canção de Françoise Hardy, mesmo quando o entorno se esboroava. Ele há gente assim, capaz de fumar um cigarro enquanto a polícia política lhe vasculha o atelier. E de, quando um agente lhe pede cigarro, responder “não posso, só tenho 19”. Na plateia, contudo, o interesse ia direitinho e por completo para Goa: como se vivia no quotidiano, como eram vistos os soldados ou tão só Portugal, e mais longuíssimo etecetera. Não me anima, por me parecer aquecido pelos lumes do politicamente correcto, esta tendência outono-inverno do pós-colonialismo, mas as questões da identidade continuam mais vivas que cardamomo em sarapatel. A Gandaia é um daqueles projectos que vivifica os não-lugares, gestos brutos de cidadania que nos vão empurrando para fora da mais salazarenta das heranças: a dependência absurda e claustrofóbica do estado. Sem alarde, estou em crer que esta federação de vontades vai ajudando a perceber o mais óbvio dos esquecimentos de Lisboa. Quantas capitais, no mundo inteiro, estão tão próximas da praia? Do oceano?

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

António Variações nasceu num destes dias (frios) no campo e a norte. Era excêntrico, que o mesmo é dizer, ousou-se. Hoje, até os concêntricos vestem extravagâncias, mas perderam o interesse. Que os move, se Nova Iorque se cruza com Braga? «A vida é sempre uma curiosidade / que me desperta com idade / interessa-me o que está para vir / a vida, em mim é sempre uma certeza / que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir.» Ouvi-lo a cantar Amália (Povo que lavas no rio) e depois ouvir Camané a cantá-lo a ele (Quero é viver) pode bem tornar-se início de conversa sobre identidades.

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

Fidel Castro morreu. A sua importância histórica, se preciso fosse, pode medir-se nas enormidades ditas nestes dias, onde se deve incluir o gosto pelo vinho do Porto e ascendência galega. Edel Rodriguez, ilustrador cubano que lhe desenhou muitas vezes o rosto, escreveu, por dentro do assunto, uma perturbadora metáfora: «Tentei descobrir uma maneira de explicar a situação a alguém que a não viveu. Comparei, então, Castro a um pai abusivo, um monstro, que bate brutalmente nos filhos em casa e depois os leva a jantar ou brinca com eles em público. Toda a gente vê as boas acções, mas não percebe o que, de facto, se passa em casa. A não ser as crianças, que, por terem vivido assim o tempo todo, acham que é a única realidade. Até podem ir ao seu funeral e derramar algumas lágrimas, porque ele foi o único pai que eles conheceram.»

7 Dez 2016

Albertine, o Continente Celeste, de Gonçalo Waddington

61216p12t1[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]onçalo Waddington acaba de editar uma nova peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, na Abysmo, mas no início de 2015 saía na mesma editora Albertine, O Continente Celeste, livro que iremos ver aqui hoje. Esta peça de Gonçalo Waddington, composta em três actos, cruza a mecânica quântica e a teoria da relatividade com a obra de Marcel Proust, Em Busca Do Tempo Perdido, ou, como escreve o escritor Valério Romão no posfácio que acompanha esta edição da Abysmo: “(…) uma fatia do tempo perdido, [e não o todo da obra] através da qual se faz a arqueologia da narrativa de Proust (…)”.

Mas para além das relações cruzadas entre o tempo de Proust e o tempo das ciências do micro e do macro cosmos, aquilo que primeiro salta à vista é a ligação deste texto com os da tragédia grega. Em que sentido? No sentido da tradição, no sentido da mitologia, isto é, no sentido em  que Gonçalo Wadddington toma a obra de Marcel Proust do modo que os tragediógrafos tomavam a tradição mitológica. Através da obra de Proust, Waddigton cria uma peça de teatro; através da mitologia da Hélada, os tragediógrafos criavam as suas tragédias. A fala de Marcel a Albertine, no segundo acto, abre a possibilidade de a “tradição” de Proust ser revisitada, de se escreverem outras peças, outras tragédias acerca deste corpo de mitos que é, agora, o a obra de Proust: “Mas não é para isso que serve esta soirée, minha querida. Se quiseres podemos combinar uma outra noite com essa temática.” (p. 53)

Não é, contudo, somente esta relação transversal com a tragédia grega que encontramos como diálogo estabelecido com a tradição teatral. Há também, e aqui sem dúvida incontestavelmente consciente por parte do autor, uma apropriação, em alguns momentos da peça, dos artifícios técnicos usados por Pirandello em algumas das suas mais conhecidas peças, como sejam o caso de Esta Noite Improvisa-se e Seis Personagens Em Busca De Um Autor. Principalmente na primeira das obras citadas, que começa com o encenador no palco falando aos espectadores, antes do início da peça (aqui, em Waddington, o efeito aparece através do Anfitrião, que se dirige a nós leitores antes de entrarmos na peça propriamente dita); e, depois da fala do Anfitrião, a espera dos autores no palco pela entrada do público. Mas ao longo da peça, encontramos nos diálogos entre Marcel e Albertine um desacordo em relação ao que cada um deveria dizer, em relação ao que estaria ou não escrito pelo autor, mas que os actores deturpam ou improvisam, deixando isso inteiramente a claro. Veja-se à página 40, a fala de Marcel para Albertine: “Mas não é isso que está escrito.”, Ao que responde Albertine com: “É sim.” Ou à página 48, também em uma fala de Marcel: “Eu não escrevi nada disso.” Ao que Albertine replica, na página seguinte, com: “Pois não. Não assim. Mas as memóórias enganam.” O que nos leva a ver que, se por um lado o artifício técnico é o do grande escritor siciliano, por outro serve aqui propósitos diferentes. Não se trata propriamente do autor da peça, a que as personagens se referem, como em Pirandello, mas ao inventado autor personagem Marcel (Proust). E se em Pirandello o jogo de sombras e luz, através da verdade e da mentira, são o grande leitmotiv da pergunta pela realidade, aqui nesta peça de Gonçalo Waddington é a memória e a sua natureza de criação e recriação da realidade passada, do acontecido, que está em causa, que arde na noite.

Por outro lado, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade, a teoria das cordas, os buracos negros, os buracos de minhoca, a anti-matéria acabam por aparecer para nós um universo tão paralelo como o universo de Proust, na sua obra, fazendo com que a memória, aquilo que constrói e desconstrói o acontecido, seja um instrumento quântico de alcance de nós e dos nossos actos; um instrumento quântico que, à imagem do princípio de incerteza de Heisenberg, não nos permite certeza nenhuma acerca do acontecido, daquilo que acontece. Não há certeza acerca de nada do que se fez ou fizemos, colocando a obra de Proust numa dimensão ainda mais problemática do que a que ela já tinha antes do início desta peça. A posição de Waddigton face à obra de Proust, ao invés de lhe dar uma mão de coerência, de linearidade, aumenta-lhe a entropia, termo fundamental para a leitura desta peça. “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem) Assim, também toda e qualquer interpretação da obra de Proust, naturalmente exposta à entropia, ao passar do tempo, aumenta-lhe a desorganização, abre brechas nas paredes das páginas, socalcos nos parágrafos; aumentam também os resíduos, o lixo, que cada vez mais nos impede de ver o quarto limpo que Proust escreveu. A chave com que se abre esta peça, que nos permite entrar no mundo de Gonçalo Waddigton, encontra-se nesta surpreendente e bela passagem, à página 29, na cena 5 do primeiro acto, em um monólogo de Marcel: “(…) warmholes (…) um túnel, ou atalho, que junta dois pontos distantes no espaço-tempo. O equivalente às madalenas embebidas em chá, no meu universo.” A existirem, os buracos de minhoca, permitir-nos-ia viajar no tempo e encurtar espaços, por conseguinte, viajar a paragens do universo às quais jamais poderíamos ir, sem esse artifício. Também é assim a memória. Ela faz-nos não só viajar no tempo, como também nos faz viajar no espaço, no sentido em que nos projectamos aos lugares que de algum modo carregamos na memória. Mas aquilo que parece interessar mais, a Gonçalo Waddigton, acerca da memória é o efeito de criação que ela mesma tem. A memória não é apenas um artifício de recolha de informação, de nos lembrarmos do que aconteceu ou do que aprendemos, ela em si mesma, nesse seu modus operandi de retorno, recria a realidade do acontecido. Como textualmente se pode ler na fala de Albertine, à página 49: “(…) Mas as memórias enganam. Fundem-se como buracos negros e tornam-se uma só. Não respeitam as regras espácio-temporais. Cada memória que fabricamos, mais uma memória que engavetamos, mais uma peça para o puzzle-eu, maior a entropia da nossa singularidade [e não esquecer a passagem já aqui citada, acima, “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem)]. O destaque anterior é de minha responsabilidade. É nesta capacidade de fabricarmos memória, que reside a nossa identidade. A identidade de cada um de nós vai sendo fabricada à medida que também fabricamos as memórias. Nem todas as memórias são fabricadas, evidentemente, mas só essas importam à identidade, só essas importam àquilo que vamos fazendo de nós mesmos. Assim, contrariamente à canção antiga, que dizia que recordar é viver, em Albertine, O Continente Celeste, criar é viver. Vive-se criando o nosso presente, no passado que fomos. Por outro lado, e nas relações estabelecidas na obra entre memória e mecânica quântica, tudo o que se cria, pelo passado que fomos, passa também a existir. Aquilo que alteramos no presente, e em relação ao passado, passa realmente a existir, mesmo que antes não tivesse existido. Veja-se a passagem, já no acto final, à página 61: “Em todos os mundos, ao invés de acontecer um colapso, como na interpretação de Copenhagen, no momento em que levanto a mão direita, há um split, uma divisão. E dois mundos-universos passam a coexistir, como linhas paralelas que nunca se tocam.” O acontecido e o fabricado em relação ao acontecido coexistem em todos os tempos, como aparece no poema final do livro, à página 63:

“Em todos os mundos
Albertine continua a tocar
As minhas sonatas preferidas
Na pianola do meu quarto.

E a acariciar-me,
Como eu quero,
Às horas que eu quero.
Albertine fica trancada no seu quarto,
Quando eu quero, sempre que eu quero.
Albertine, Albertine,
De split, em split, em split”

Mas há também nesta peça, e como não poderia deixar de ser, já que dentro do universo de Proust, o problema das relações humanas, em particular a da relação entre Marcel e Albertine (no segundo acto, apenas), mas que pode ser extensa às relações entre qualquer um de nós, em uma relação amorosa ou, melhor dito, nesse lugar peculiar que é o “depois do fim de uma relação amorosa”, como à página 52: “Porque é que nunca te casaste comigo? Porque é que não respondeste aos meus telegramas?” Ou à página 58: “Porque é que não me salvaste?” Ou ainda o tão conhecido “Achas que nós poderíamos ter ficado juntos?” (Ibidem) Albertine, O Continente Celeste mostra-nos um autor com um mundo próprio, reflexivo e que estabelece um diálogo com várias tradições, sem deixar de expor a fragilidade humana, que levanta voo com o desejo e a criação do amor.

6 Dez 2016

A bizarria como fonte

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cada vez que vou ao Porto, acontecem-me coisas estranhas. Na verdade, acontecem-me coisas estranhas em todo o lado. Para a maior parte das pessoas, a ingerência cíclica da bizarria nas suas vidas é, no mínimo, um indesejado impedimento de que se livram tão depressa quanto lhes é possível: é aquele maluco no autocarro que afiança transportar material radioactivo nos bolsos e ser perseguido por todas as agências de espionagem mundiais; é a velhota no talho a pedir repetidamente ao incrédulo mas cada vez mais divertido talhante para lhe assegurar que na carne moída não usam gato; são todas conversas com que as pessoas esbarram dia-a-dia e que estão a montante ou a jusante das suas zonas de habitualidade e conforto. Viram costas. Despedem o assunto com um sorriso anémico e um encolher de ombros. Fingem perceber. A criança temente às coisas estranhas do mundo que há em cada um de nós estanca subitamente e, ao longe, o medo criando raízes até passa por uma apreciável e salutar dose de educação.

Para um escritor, no entanto, o absurdo não interrompe a vida. Pelo contrário. O absurdo e as suas diversas tonalidades de bizarria são o combustível que alimenta a linha de montagem da maior parte das produções literárias. Combustível tanto mais valioso como de achamento imprevisível: pode andar-se tempos infindos, nas zonas onde a bizarria mais prolifera, numa procura atenta do melhor e mais refinado absurdo, sem lograr topá-lo sequer de longe. Por isso me é particularmente difícil, mesmo que a intuição me alerte para a possível enxurrada de um tédio interminável, afastar-me das conversas com alguns sujeitos que, a pretexto de me cravarem um cigarro, se entregam imediatamente a uma espécie de confissão diarística temperada com LSD.

Regressava da apresentação do meu livro de contos “da Família”, no Porto, quando, à entrada do hotel, um rapaz aproximadamente da minha idade e cujo ganha-pão é encaixar os carros no tetris confuso do estacionamento urbano disponível, se acerca de mim, numa educação inversamente proporcional ao seu aspecto andrajoso, e me pede o habitual cigarro com que conto aforrar karma suficiente para, na minha velhice, ser agraciado com a bondade alheia de um cigarro ocasional. Acabadas de cumprir as formalidades referentes ao lume e demais agradecimentos, o rapaz, olhando-me fixamente, pergunta-me: não achas que a esquizofrenia pode ser um acto de deus? Não sendo as intervenções divinas a minha especialidade, malgrado ou talvez por causa dos quatro anos num colégio de freiras de onde até da catequese consegui ser dispensado derivado a motivos de fazer “demasiadas questões”, achei precavido esperar pela sequência de pensamentos subjacentes à interrogação, até porque tinha a certeza de quem formula semelhante pergunta deve ter muitas mais coisas a dizer. Deus, como percebi de imediato – e como sempre – foi sol de pouca dura. A esquizofrenia, essa, foi ficando.

A conversa, custosa não tanto pelo tema mas sobretudo pelo frio – uns típicos três graus numa noite de Dezembro, no Porto – assemelhava-se ao percurso confuso de um atirador furtivo incerto do seu alvo: era o pai, os maus-tratos recebidos na infância, a “filha da puta da droga”, expressão repetida ao ponto de se tornar mais uma forma de pontuar a conversa, a mãe, omnipresente pela total ausência dela no discurso, a vida e as suas minudências esclavagistas, a vida de pobre, a vida de quem é abandonado por deus, a vida da rua.

Mais de meia hora decorrida sobre o início da conversa, o Vítor – vamos assumir que se chamava, Vítor, dada a minha impossibilidade crónica de me lembrar de nomes próprios – confessa-me, aliviado como não o vira ainda, que “tinha um problema”. A única coisa que não esperava e que me fez confusão na frase foi, na verdade, o tempo verbal. No entanto, pela primeira vez na conversa, o Vítor não muda de assunto, não tergiversa, não entra e sai dos temas sem qualquer tipo de ordem ou sequência. Pela primeira vez na conversa, o Vítor está absolutamente focado.

Sabes, principia, eu ouvia – para logo corrigir – e ainda ouço, um escaravelho que está sempre num raio de oito milhas à minha volta (escusado será dizer que a custo consegui suprimir a natural tentação de lhe perguntar se se tratavam de milhas marítimas ou terrestres). Não me deixava descansar, dormir, comer uma bucha em tranquilidade. É daqueles barulhos, sabes, tipo frigorífico ou água a pingar, à noite, sabes, e eu abanava a cabeça em sinal de assentimento, cada vez mais curioso, e quando me aproximava dele, estás a ver, prosseguia, o gajo calava-se, mas era só o tempo de eu voltar para onde estava e o gajo começar a fazer barulho outra vez. Ia dando em maluco, afirmava, com aquele olhar de quem procura no interlocutor o conforto da empatia. E como resolveste o assunto, perguntei. O Vítor, não se fazendo de rogado, até porque estava à espera da pergunta desde que começara a falar no escaravelho, começa a despir as múltiplas camisolas com que se protegia da noite invernosa do Porto. Chegado à pele, aponta, orgulhoso, para uma das inúmeras garatujas que tatuara no corpo. Vês, afirma, orgulhoso, ele continua a fazer barulho, mas agora sei sempre onde está.

Queres mais um cigarro, Vítor?

Quero.

5 Dez 2016

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Jane Camens | Macau pode vir a acolher encontro internacional de escritores e tradutores

A escritora australiana Jane Camens esteve em Macau numa sessão na Livraria Portuguesa que assinalou o final do encontro anual da associação que dirige. Ao HM falou dos desafios da escrita e da tradução, e do desejo de que a iniciativa venha a acontecer no território

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau pode vir a acolher o encontro anual promovido pela Asia Pacific Writers & Translators Inc (APWT). A iniciativa, que tem como objectivo promover o contacto entre profissionais do meio literário, nomeadamente escritores e tradutores da região asiática, vê o território como especialmente atractivo para o efeito.

O desejo foi manifestado por Jane Camens, directora da entidade, que vê na possível realização da iniciativa em Macau uma forma de ter presentes mais autores portugueses, ao mesmo tempo que considera que é um lugar especial no que respeita às competências da tradução.

Para Jane Camens, Macau é um lugar isolado no que respeita à internacionalização literária. O facto não se deve à falta de autores ou de tradutores, mas porque as obras dos escritores locais, na sua maioria, não estão traduzidas. “Em Macau vejo muito poucos trabalhos a serem traduzidos para inglês, quer escritos em língua portuguesa, quer em língua chinesa”. A falta de acesso a trabalhos em inglês faz com que se sinta “bloqueada”. “Parece que Macau é um mundo privado e essa também é uma das características que me fascina aqui.”

Mas é também em Macau que Jane Camens vê a profissão do tradutor como uma das mais bem desenvolvidas. A autora e ex-residente do território considera que, dada esta característica de “excelência na tradução”, a cidade reúne condições para receber o encontro internacional da associação que dirige. “Estivemos aqui e conversámos com representantes da Universidade de Macau acerca da possibilidade de organizar o encontro no território. Pode ser uma oportunidade de trazer mais escritores portugueses e, francamente, penso que, aqui, existem profissionais com capacidades de tradução incríveis”, explica ao HM.

A coexistência de duas línguas e as consequências profissionais que isso traz podem ter benefícios para aprendizagem da própria APWT: “Penso que, a esse nível, também podemos aprender muito do que é feito aqui em Macau ao nível da tradução”.

A tradução não é preguiçosa

O trabalho de tradutor não é o de um transcritor numa outra língua. Jane Camens salvaguarda que esta não é a sua área mas, enquanto autora, vê o tema da tradução profundamente debatido nos encontros que organiza e fala do seu passado. “Tive uma experiência com profissionais que traduziram textos meus para espanhol e o conselho dado por um poeta italiano presente foi de que os tradutores não se devem sentir obrigados a ficar presos ao texto. Também são criadores e o texto final é de alguma forma deles, pelo que é necessário que se sintam livres para trabalhar isso mesmo”, ilustra Jane Camens.

No entanto, a missão não é simples, especialmente no que respeita a traduções literárias. A função exige um trabalho árduo e merecedor de mais reconhecimento. Jane Camens refere que “a escolha e o leque de vocabulário são os elementos mais importantes quando se fala de tradução literária. Um tradutor não pode ser preguiçoso no seu trabalho nem com as palavras que utiliza e a correspondência entre palavras tem de ser muito clara”.

Já Sanaz Fotouhi, assistente executiva da APWT, diz ao HM que um dos maiores desafios enfrentados pelos tradutores, até há pouco tempo, foi a falta de reconhecimento. “Muitas vezes as pessoas, ao lerem um trabalho traduzido, fazem-no como se estivessem a ler o original e não têm noção de que existe um tradutor que transpôs e recriou aquela obra para que pudesse ser lida por outras pessoas, noutras línguas”, explica.

Para Sanaz Fotouhi, “quando um livro é traduzido, é transformado numa outra obra e é por isso que agora os grandes prémios literários consideram a tradução”.

Da China para a China

No final do encontro anual que teve lugar em Cantão, Janes Camens não podia estar mais satisfeita. “Este encontro foi surpreendentemente gratificante. Teve a presença de muitos escritores internacionais e foi um sucesso tremendo. Tivemos participações da Islândia, de Itália e mesmo de Portugal. Mas o que mais surpreendeu foi a adesão de escritores chineses”, referiu ao HM.

Relativamente à presença de literatura feita na China Continental e dos seus autores nas iniciativas promovidas pela APWT, a participação ainda não é muita, mas já se começa a fazer sentir. A iniciativa de Cantão “proporcionou um espaço para que os autores chineses comunicassem com outros de outras origens porque achamos que isso não acontece com frequência”, apontou Jane Camens. A autora considera ainda que não existem muitas plataformas internacionais de encontro de autores do Continente porque “já existe um mercado interno massivo na China e, por isso, os autores podem tender a dizer que não precisam de sair do país. No entanto, qualquer escritor gosta de ser lido o mais alargadamente possível”.

1 Dez 2016

Como tornarmo-nos bestas, Capítulo I

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22/11/2016

a-mae-do-dumbo-1[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á nem os animais são o que são. Aliás nunca foram o que pareciam: as sereias, por exemplo, pelo menos as originais, as gregas, nunca tiveram rabo de pescada. São mais harpias, com toscos troncos de ave e garras. Nunca consegui contar a verdade às minhas filhas.

Em Moçambique, em 2010, uma cabra passou a ser mulher. Na Beira, um camponês encontrou dois matulões a violar-lhe a cabra. Levou-os à polícia, na ponta da espingarda. Aí perguntaram-lhe, Que quer o senhor como compensação? E ele, sisudo, respondeu, Quero que me dêem o lobolo (o dote). A coisa seguiu para tribunal, onde foi objecto de uma encarniçada discussão sobre se seria legítimo conceder-se um lobolo a uma cabra. Estrebucharam as associações ligadas à questão do género, mas o que se pode fazer: é cultura!

Houve outro caso espantoso em 2012, mais para o norte. Um régulo (o chefe da aldeia), falecido há pouco tempo, reencarnou num hipopótamo. Foi um sururu. O hipopótamo passou a ser agraciado com o petisco favorito do régulo: picapau ( um prego trinchado) e uma garrafinha de vinho carrascão. Parece que o bichano levantava uma orelha quando o chamavam pelo nome do régulo. Era encantador. A um tal ponto que o governador da província lhe fez uma visita e um tributo: levou-lhe umas caixas de vinho de boa cepa portuguesa e cem quilos de carne já cortada, para um ano de mantimentos. Respeito é respeito. As crianças descalças da aldeia aplaudiram e o professor, que lhes dá aulas sob uma árvore e sem carteiras, fez uma quadra alusiva. É o que se chama desenvolvimento humano. Eu escrevi no Savana:

«(…) literalmente acredito em tudo. Que a alminha do régulo transborde para o quadrúpede é-me pacifico. Mas o facto de acreditar em tudo, e esta é a diferença, não quer dizer que dê o mesmo valor a tudo. Uma coisa ser plausível não quer dizer que seja necessária. This is the question.

E acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível voltar como físico nuclear, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico.»

Os filósofos falam disto – desta convivência entre o animal e o homem e o que deles há em nós e vice-versa. Derrida dedicou um livro ao assunto. O italiano Agamben não lhe quis ficar atrás. E já antes o Deleuze falava do devir-animal.

(Não sei o que os filósofos escreveriam sobre este assombro, ainda maior: em 2007, a STV – o segundo canal de televisão em Moçambique – fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.

A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, por quê ficar por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro paririam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam. Mas voltemos aos animais.)

Uma prova de que o devir-animal não funciona univocamente, mas sim para os dois lados, encontrei-a em Cabora Bassa, onde encontrei a fotografia que ilustra esta crónica. Ela demonstra que a Natureza via o Disney e que adora o Dumbo. Se me tivessem contado não acreditava, mas parece que Deus brinca mesmo connosco, às paródias.

Paródia e das boas foi o que aconteceu a semana passada, no sul da Líbia. Transcrevo:

“Um incidente envolvendo um macaco foi a causa inicial de um confronto tribal de 4 dias, que deixou pelo menos 16 mortes e 54 pessoas feridas na Líbia, informou no domingo um funcionário da área de saúde local.

De acordo com os moradores e relatos locais de Sabha, no sul do país, o surto de violência começou de modo inusitado, depois de um macaco, pertence a um comerciante da tribo Gaddadfa atacar um grupo de garotas estudantes que passavam pelo local.

O macaco teria puxado o véu islâmico de uma das garotas, fazendo com que os integrantes da tribo Awlad Suleiman matassem, em retaliação, três homens da tribo Gaddadfa, além do macaco – de acordo com um morador local que falou com a Reuters. “Houve um aumento da violência no segundo e no terceiro dias, com uso de tanques, morteiros, e outras armas pesadas”, disse o morador à Reuters, pelo telefone, falando na condição de anonimato por temer pela sua própria integridade física.

Na região de Sabha, uma espécie de ponto de entrada de emigrantes e de armas contrabandeadas no sul da Líbia, geralmente negligenciadas pelo Governo Central, os abusos de grupos de milícias e a deterioração nas condições de vida têm sido especialmente alarmantes.

Gaddadfa e Awla Suleimand representam as maiores e mais poderosas facções armadas da região… etc., etc.”

Pobre do véu, era o único inocente nesta história. Porque a rapariga, tenho a certeza, quando se viu sem véu, nua, gozou![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

1 Dez 2016