Shee Va, autor de “Espíritos”: “As comunidades não interagem”

É apresentado hoje ao final da tarde o primeiro romance de Shee Va. Depois de um livro em que assumia a ideia de fazer a ponte entre Ocidente e Oriente, o médico recorre agora a outro género literário para descodificar, em português, uma realidade chinesa que não se vê

[dropcap]C[/dropcap]omo é que surgiu a ideia de escrever um livro de ficção?
É uma ideia que vem de há muito tempo. Os espíritos acompanham-nos e estes, à moda chinesa, acompanham-me desde criança, porque ouvi falar deles pela primeira vez – ainda por cima, a povoar Macau – por um amigo de infância. Nessa altura eu vivia em Moçambique, esse rapaz chegou de Macau e contava as histórias todas sobre os espíritos e fantasmas que habitavam as casas antigas de Macau, de modo que isso fez o meu imaginário. Entretanto, quando aqui cheguei, em 2012, conheci um médium, que me contava histórias. Foi a partir do imaginário de infância e das histórias do mestre que resolvi escrever este livro. São crenças e superstições do povo chinês. Vem na linha daquilo que pretendo transmitir com os livros: dar a conhecer ao mundo lusófono – porque escrevo em português – a cultura chinesa. No meu primeiro livro, “Uma Ponte para a China”, tinha mesmo essa intenção.

Neste caso, optou por um romance para fazer passar a mensagem.
Sim, e há ainda a minha faceta de médico. O espírito deste livro é o de uma criança que morreu com uma doença genética. Cinco anos depois, os pais decidem refazer a vida e terem outro filho. Procuram ajuda junto da medicina ocidental e dos espíritos, porque a mãe da criança sentiu um espectro na altura em que o filho faleceu. Guardou o segredo durante cinco anos, nunca contou nada ao marido, mas quando decidem refazer a vida revelou que viu esse espírito, pelo que quer descobrir quem é.

Macau tem uma sociedade extremamente pragmática, consumista. É uma cidade que não pára. A vivência espiritual encontra espaço aqui?
Sempre. Os espíritos fazem parte da cultura chinesa, tanto que existem duas festividades chinesas relacionadas com os antepassados: uma no quarto mês lunar e outra no nono. O culto dos mortos é muito importante para os chineses. Uma das coisas que este mestre que conheci me disse – e que está também na base do livro – foi que se eu quisesse conhecer o futuro dos meus filhos poderia consultar um médium, que através da condução dos antepassados se pode prever a vida futura. Ou seja, há uma ideia na cultura chinesa de que os entes falecidos, que moram no firmamento, são espíritos bons que conduzem a nossa vida. Por isso é que, na cultura chinesa, é prestado culto a esses antepassados, para que nos protejam. Isto existe muito mesmo nesta população que é citadina e não tem que ver com o facto de haver muitos imigrantes que vêm de zonas rurais. Faz parte da educação, faz parte da cultura chinesa.

Tendo vivido grande parte da vida no Ocidente – primeiro em Moçambique, depois em Portugal, com algumas passagens por Macau –, mas tendo um contexto familiar chinês, sente que está numa posição privilegiada para desdobrar este tipo de códigos culturais?
Julgo que sim. Por poder fazer essa ponte é que pretendo fazer isso, mesmo que seja através de um romance. Consigo interpretar aquilo que os chineses sentem e transmitir ao mundo ocidental. Na apresentação que Beatriz [Basto da Silva] fez em Lisboa deste livro, achou interessante ter, pela primeira vez, uma pessoa chinesa a falar destes aspectos, porque normalmente os chineses são muito fechados, não se revelam muito. Eu, provavelmente sendo um aculturado, consigo revelar algumas coisas que os outros eventualmente não revelariam. Acho que posso ser essa ponte que liga o mundo ocidental ao mundo oriental.

Como é que lida com o facto de ter influência de tantas culturas diferentes?
A minha cultura é ocidental e a forma de pensar será ocidental. Mas não posso deixar de ter as raízes chinesas e elas chamam. Esta forma de revelar as coisas é talvez um chamamento. Tenho a necessidade de aprender – porque para mim também é uma aprendizagem – com a cultura chinesa e verificar que tem aspectos interessantes, mesmo que sejam no oculto. Por exemplo, há aspectos da medicina tradicional chinesa que são interessantes. Enquanto médico, devo compreendê-los. Outros, provavelmente, nunca chegarei a compreender, porque são conceitos fora do parâmetro ocidental. Quando se pergunta se a medicina ocidental se poderá ligar à oriental, penso que há aspectos em que sim. Em relação à cultura, penso o mesmo. Vivendo eu com um sentir ocidental, também sinto algumas coisas da cultura chinesa. Este sentir poderá ser raiz ou é genético? Isso não sei explicar. Este livro é também a procura da vida além da morte – podemos ir buscar as explicações conforme as religiões ou conforme as culturas. Talvez esta seja a minha pesquisa para o lado oriental. Acho que tem muito interesse quando se lida com uma cultura diferente poder compreendê-la. Talvez seja isso que quero transmitir. Portugal, neste momento, tem muitos chineses, o mundo inteiro tem muitos chineses. As populações não podem viver fechadas. Uma coisa que sinto em Macau é que foi durante muito tempo – e hoje em dia também – um sítio multicultural, mas em que as comunidades não interagem. Para mim, isso é mau – podia ganhar-se muito mais com a comunicação.

É médico, é amante de música clássica e faz estas incursões pelo mundo das letras. Como é que funciona o exercício da escrita?
É um hobby, tenho um prazer enorme em escrever. O trabalho é enorme, o trabalho de médico é stressante, talvez isto seja uma maneira de fugir ao stress. Para mim, o acto de escrever é muito individual, preciso de estar muito isolado para poder escrever e reflectir. É uma necessidade – é como se formasse um jardim meu e, quando estou a escrever, estou sozinho. Normalmente aproveito para escrever de madrugada, porque já descansei o suficiente: quando acordo tenho a cabeça e as ideias arrumadas. Poder-se-á dizer que o exercício da escrita é um escape, mas também é um prazer.


Depois de Lisboa, Macau

O livro de Shee Va, “Espíritos”, é apresentado hoje, às 18h30, na Fundação Rui Cunha, depois de ter sido lançado em Lisboa, no Fórum do Livro de Macau. À semelhança do que aconteceu na capital portuguesa, a sessão de hoje conta com a apresentação da historiadora Beatriz Basto da Silva. A obra é editada pela Livros do Oriente. As receitas da venda revertem integralmente para a Associação Amigos do Livro em Macau.


Uma semana, dois livros

“Espíritos” não é o único livro da autoria de Shee Va a ser apresentado esta semana em Macau. Amanhã, ao final da tarde, também na Fundação Rui Cunha, o médico lança uma obra sobre ópera: trata-se do primeiro tomo de dois acerca das óperas que fizeram parte dos cartazes do Festival Internacional de Música ao longo dos seus 30 anos de existência. O primeiro volume aborda as óperas até 1999. O lançamento do livro encerra a última sessão do ciclo “Conversas ilustradas com música”, sob o tema “Os sete pecados mortais na ópera”. O último pecado abordado é a ira, com a “Elektra” de Richard Strauss. A sessão começa às 18h30.

30 Nov 2016

O leitor cheira a tinta

El Corte Inglés, Lisboa, 21 Novembro

301116p16t1[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]omentos há em que temos de suspender a incredulidade, que o mesmo é dizer, acreditar. Parece ficção, uma sala de cinema com 242 pessoas em fim de tarde chuvoso para ouvir António Mega Ferreira em belíssima dissertação, de quase duas horas, em torno de Cervantes e do seu Quixote, apenas interrompida por tosse esparsa e as fulgurantes leituras de Pedro Lamares. Acredite-se, então, que os ouvintes serão leitores. Aqueles que Mega coloca no centro do jogo. «O texto é de uma generosa abertura ao mundo e ao leitor, e, por isso, preserva uma margem de indeterminação (o não-dito, o indizível, o possível, o imaginável), que é o traço inaugural da narrativa moderna. Veja-se, por exemplo, o capítulo 20 da primeira parte, em que, através de um engenhoso diálogo entre D. Quixote e Sancho, se levantam questões de técnica narrativa (a suspensão e continuidade da narração, a descrição exaustiva e o poder da elipse narrativa) que hão de estar no centro da estética romanesca ocidental nos séculos seguintes. Mais: ao abrir essa margem de indefinição, Dom Quixote não dispensa a participação de quem lê para fazer valer a sua verdade, que é feita de todas as verdades que lá queiramos encontrar. Ao mesmo tempo que se inventa como romancista, Miguel de Cervantes inventa um novo tipo de leitor, o que assume o papel de cúmplice do autor, destinatário e avalista da narrativa improvável.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

A chegada de um livro abafa o resto. As urgências malditas, a inadiável pressão, o absurdo imediato, nada importa quando o cheiro a tinta nos exige febrilmente o objecto entre os olhos e as mãos. «A Minha Casa Não Tem Dentro», do António Jorge Gonçalves, veio para parar o tempo. Duas ou três linhas a abrir, negro tipográfico sobre branco, anunciam que o autor morreu e regressou à vida, em «acontecimento que atravessou espaço e tempo separando e unindo em simultâneo». Queria colocar a banda desenhada, que pela primeira vez edito, na Arranha-céus, chancela que vejo também como casa de imagens, onde está já a fotografia. Em decisão de última hora, optei pela abysmo, tal o enigma que «A Minha Casa …» contém. Mais do que narrativa, parece-me um poema gráfico, no lugar dos versos imagens fortíssimas, duras, mas sobretudo oníricas, de sonho e pesadelo, que mergulham raízes no grande oceano do imaginário, dos mitos fundadores, das representações da morte, da infância, do desenho e da música, enfim, da criação. Vejo uma mão, a do cuidado e da ameaça, a que se ergue da ruína e a que faz sombra, a mão do lápis. E vejo uma menina, uma Alice que descobre, por detrás de uma cortina de sangue, o peso da mão, uma cidade que se monta e o grande circo do espectáculo. Há anjos caídos no tecto. O trabalho sobre a cor faz dela outro protagonista. O desconcertante conjunto vai explodir ou, muito provavelmente, ser ignorado, como as nuvens no céu e na contracapa. Desafios assim têm a sua exigência e os dias não estão para isso, para que nos deixemos ficar comovidos a olhar para as nuvens. A capa, sem mais que um miúdo desenhando, não é macia, dá-se sem verniz nem plastificação, mas o miolo, tal a quantidade de tinta, ganhou um acetinado, uma segunda pele. Gosto de pensar os livros como segunda pele.

Bar Irreal, Lisboa, 23 Novembro

Nesta altura em que tanto sumo-sacerdote incensa nuns e vigia noutros uma suposta pureza poético-moral, ouvir o Helder Macedo pedir como quem exige, a meio de caóticas leituras da poesia de José Manuel Simões, um dos do Café Gelo, que os lessem sem os entronizarem, sem os sacralizarem, sem os imitar a destempo, aos da sua geração e a ele, que se «limitaram» a incarnar uma ética a partir do acto de recusa, de múltiplas recusas, caiu que nem tromba-d’água. E chovia mesmo. Na noite que Simões traduzia assim: «Do chão onde ontem enterrei / a noite irrompe como um garfo, / noite de hoje que eu não conheço / e todavia já / noite velha que sei de cor.»

Caldas da Rainha, 25 Novembro

Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida. Venha daí outra dose de lingueirão da «Casa Antero», em Caldas da Rainha, capital do meu oeste, para molhar o extraordinário pão com a Luísa, a Graça e o João. Ou de polvo à lagareiro com batatas a murro do «Cruzeiro», regado com Meandro, para saborear com o Carlos e o Jacinto. Nasceram ideias, talvez tenham morrido outras. Tenho por certo que uma refeição nos dá mais do que vida. E por aqui, onde desfearam paisagem e arquitectura, sabem prová-lo com a beleza do humor ao servirem-nos, à laia de ponto final, um pequeno falo de chocolate.

Bar Irreal, Lisboa, 25 Novembro

A cidade estava toda iluminada, mas de concertos num evento musical com nome de marca e mediatizado à náusea. Na exacta lonjura do centro, os «Não Simão» concertavam «reflexos de aventura». A ausência de palco permitiu estar em intimidades lado a lado com a bateria e a sentir na nuca cada nota dos sopros. A inteligência das composições, com a sinuosa variação de ritmos desfez a noite em puro gozo. E não teve nada a ver com a inclusão de um abat-jour no percurso da precursão.

30 Nov 2016

Fera Oculta, de Vasco Gato

[vc_row][vc_column][vc_column_text]feraoculta1[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]era Oculta, de Vasco Gato, editado pela Douda Correria em 2014, é um livro peculiar por várias razões, mas duas delas saltam de imediato à vista: livro pequeníssimo, de 13 páginas escritas, divididas em cinco poemas, e dedicado ao filho que estava para nascer. O nascimento de um filho, embora não salve o mundo, nem produza nenhuma ruptura ontológica, desata nos pais uma vontade de que as coisas sejam diferentes do que têm sido. Não uma diferença na vida pessoal, embora aqui e ali também a vida pessoal pudesse estar mais afinada – “(…) Gostaria no entanto de te receber / num outro lugar / não neste boi tombado / que dá pelo nome de vinte e um / peso morto arrastado pelos cornos / apenas para que não o devassem / as moscas / (…)” –, mas uma diferença universal, ou, para não sermos tão absolutistas, uma diferença nacional – “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / (…)” – isto é, a consciência do mal do mundo não aumenta, mas agudiza-se. Agudiza-se através daquele ser prestes a nascer, como se fosse uma parte do poeta (e da sua mulher) onde o mundo se faz sentir mais, onde o mundo mais dói ou passa a doer mais. É sabido, um filho é o calcanhar de Aquiles dos pais em relação ao mundo.

E, do centro desta vulnerabilidade, desta dor, Vasco Gato escreve meia dúzia de poemas onde mais do que a vontade de mudar o mundo, ou de que o mundo seja diferente, como por exemplo no poema de Jorge de Sena “Carta A Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos De Goya”, se desenha o absurdo do mundo, a geografia do absurdo do mundo. Logo no primeiro poema:

“(…)
Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm
habitado – garanto-te –
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum
Para tudo isto terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
(…)”

Apesar do cenário não ser brilhante, apesar de trazer o filho a estas ruas não muito famosas de amor, de todos os amores que as palavras inventaram e aos quais também escondem, apesar de saber que inventa um filho para “o fruto magro que hás-de roer noite dentro / nalgum bairro de pormenor / quando o escasso amor que te deram / for o alimento oportuno / de um amor mais desenvolto”, ainda assim o poeta reconhece que não perdeu tempo em dar ao mundo esta sua invenção, uma invenção conjunta com a mãe do filho, tal como singularmente está inscrito no início do livro: “Com a Inês / para o Rodrigo”.

Há assim neste pequeno livro duas defesas: a da paternidade e a da linguagem. A defesa da paternidade não implica necessariamente a obrigação da paternidade, mas a de alguém que reconhece, pessoalmente e não universalmente, à laia de teoria, ser melhor ser pai do que não ser, como podemos ler no verso citado anteriormente “(…) eu próprio lamento o tempo que esperei (…)” ou “(…) a mulher que transpôs comigo / o limiar do cinismo (…)”. Assim, a paternidade não produz uma ruptura ontológica, mas pode produzir uma ruptura ética, como a que se descreve neste livro: a transposição do limiar do cinismo. E é nesta corda ética, esticada entre o que agora se passa e o que o poeta espera para o filho, embora não espere nada que não exista agora, apenas que não piore a um ponto irrespirável – “Os momentos em que a claridade / é um capricho dos eléctricos / e os corpos se demoram nas praças / como se de facto houvesse alma / e devêssemos salvá-la / da crueldade e do tédio / são esses os momentos que te desejo / nalguma cidade futura / nalguma encruzilhada de gente (…)” –, é aqui que os poemas se estendem do princípio ao fim.

A linguagem, e apesar dos versos do poema V – “(…) / como se fosse possível / ir de verbo / ao segredo de uma boca // Não guardes por isso destes poemas / o que certamente está aquém / das águas que / te trazem / (…)” –, tem uma luz própria: a misteriosa luz que leva o poeta a registar esta passagem em livro. Apesar de um poema como este – “(…) não receies por isso deus nenhum / nem eternidade nenhuma / a tua carne é o único tesouro / (…)” –, onde parece exaltar a transitoriedade, a carne, o poeta não esquece que tudo é mistério, que tudo é inexplicável, que tudo é estar à deriva.

“(…)
Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
a pilhar esse instantes de fraternidade
com o espanto de existir
(…)”

Este livro, talvez mais do que qualquer outro livro, faz vir à consciência o problema da escrita em geral e da poesia em particular. A realidade é uma página por escrever num mundo sem escrita. Uma vontade que vem não se sabe de onde. E mesmo que alguém soubesse o que é um poema, ainda assim não deixaria de escrevê-lo, se fosse pela sua mão. E mesmo que alguém soubesse o que é um homem, ainda assim não deixaria de recebê-lo, se fosse seu filho. Esta estranha ligação que alguns de nós, humanos, temos com o desconhecido, quer seja o poema quer seja o nascimento de um homem, fica bem expresso na metáfora certeira que Vasco Gato usa para dizê-lo: nadar. “(…) Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago (…)”. Nadar não é existir, nada-se, enquanto se espera por vir à existência. Nada-se enquanto não se alcança esta terra perdida, indecifrável, que é o mundo, a vida, a existência, o estarmos aqui de mãos fechadas uns para os outros, desconfiados que a comida não chegue, desconfiados que o amor não chegue, desconfiados que a vida não chegue. Por isso, este pequeno livro torna-se o tesouro mais bem guardado que alguém pode deixar a quem chega à vida. De desconhecido para desconhecido, de poema para uma existência a vir, de agora para o futuro. Nunca um livro foi uma tão perfeita imagem de um vir à existência, como este de Vasco Gato. Eis o último poema do livro, VI, onde tudo é dito de modo perfeito:

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento
Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação de tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar
Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
nas fotografias da época
Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-me o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

29 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 14 Novembro

[dropcap]M[/dropcap]ão amiga traz-me de S. Tomé e Príncipe umas barras de chocolate assinadas por Claudio Corallo. Não acho mesmo graça nenhuma à cada vez mais totalitária gourmetização das nossas vidas, mas o rolo compressor deixa despontar aqui e ali uma erva daninha. Como esta atenção aos produtos da terra e ao modo como dela os extraímos. Um chocolate extremamente amargo, que não esconde o sabor a chão, contém uma saborosa contradição. Rima com tanto destes meus dias…

Mymosa, Lisboa, 15 Novembro

Circula por aí o catálogo Ilustração Portuguesa 2016, que reúne, em cerca de 400 páginas, trabalhos de quase uma centena de ilustradores, um deles o Rui Rasquinho, que sentou um pensativo Pessanha em descansativo cemitério. O regresso desta montra aconteceu a pretexto da Festa da Ilustração, de Setúbal, em cuja equipa, agora mesmo e depois de hesitações várias, acabo de manter-me. Continuo espantado com o luxuriante jardim de criatividade que esta linguagem cultiva e rega e apara entre nós. Apesar da seca criada pelos mercados e seus feiticeiros de algibeira. Tem sabor de enigma, o modo como continuam a desmultiplicar-se em projectos, a alimentar cursos, a ganhar prémios internacionais, a reinventar suportes como ecrãs ou paredes, a mastigar livros. Curiosamente, ou nem por isso, várias foram as imagens que tomaram o livro por tema, que tiveram origem em capas, que dançaram com o texto. O João Fazenda (autor da ilustração ao lado), parceiro de tantos riscos e querido amigo, foi um dos que mais converteu o bicho em metáfora: fez dele fruto e casa, rosto e partitura, mesa de cozinha e mais, muito mais. Que gosto dá flanar nesta cidade, feita de lombadas e guardas, de lombos e cortantes, de baixos-relevos e vernizes mate! Sempre em mate, que o brilho fere os olhos.

Horta Seca, Lisboa, 17 Novembro

Orson Welles morreu sem o acabar. Ainda se consegue vislumbrar o que poderia ter sido. Terry Gillian há décadas que o persegue, e um documentário, que devia dizer dos bastidores, dá-nos perfume do impossível. Nenhum deles me parece capaz de se deixar amedrontar pelo suposto gigantismo da empresa, pela comprovada complexidade da personagem, menos ainda por tola maldição colada à pele de papel. Onde procurar, então, as razões para que soçobrem os filmes sobre o sempiterno D. Quixote? Tremo ao ler a notícia de que a Disney se vai atirar à bruta figura. O mais cruel aplainador de rugosidades da história da ficção cuspirá, estou em crer, um cavaleiro de desmedida sensaboria.

Horta Seca, Lisboa, 18 Novembro

O Oxford Dictionary escolheu para palavra do ano post-truth, pós-verdade. Não era nova, mas a campanha presidencial norte-americana colocou-a nas nossas bocas. Pior, nas nossas vidas. Como se vivêssemos no universo Disney, «os factos objectivos influenciam menos a formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças individuais.» Ouviremos cada vez mais gente aparentemente sã de espírito afirmar que Obama criou o ISIS, Hillary Clinton desdobrava-se em duas. Melhor: que em democracia, cada um pode escolher a sua verdade. A democracia está cada vez mais fantasiosa, apesar de narrativa.

Rua Nova da Trindade, Lisboa, 19 Novembro

Já apagaram os carris do eléctrico? Bem sei que não os arrancam, afogam-nos em alcatrão, atirando para o futuro a leitura daquelas linhas. Houve tempos em que couberam dois sentidos ali e gosto de imaginar o chá nas canecas a fazer-se pequeno mar durante uma passagem simultânea. Dói-me não termos partilhado uma última refeição, que também as gostavas longas, mas talvez tivesse mesmo que ser assim, sem lugar para despedidas. A tua morte apanhou-me no torpor a que chamei, por fraqueza de vocabulário, férias. E agravou a crença de que talvez ainda possamos trocar umas ideias sobre o assunto, um qualquer: aguardente, pão, uma capa, a derradeira versão. A nossa última conversa foi ao telefone, quando resolveste saudar o aparecimento da abysmo da mais inusitada maneira: não queres comprar a Cotovia? Tinhas as contas feitas e os argumentos alinhados. Anos depois, percebo melhor que me querias poupar agruras. O preço era uma pequena fortuna, muito longe do que devia valer uma chancela admirável como a tua. Cuidei que brincavas, mas não. Era um preço de amigo. Demorei a perceber o gesto e só podes ter ficado sentido com a indiferença com que o recebi. Não foi por mal, foi por miséria. Quando a conversa acontecer, não voltaremos ao assunto, não vamos achatar o reencontro com conversa triste de ofício, sonharemos antes um empreendimento qualquer. Folgo em saber, pela Fernanda ainda agora, que as dores não te toldaram o sentido de humor. Chegaste com recorte de um jornal do Bombarral na mão. «Não quero a Servilusa. Detesto pequenos impérios. Já escolhi a funerária que vou querer.» No papel, anunciava-se, em corpo 12, a competência de 20 anos do gato-pingado, Carlos Nogueira: «Incontrolável em mim». Depois, em menor: «Decididamente fazer funerais é aquilo que eu mais gosto de fazer.»

Horta Seca, Lisboa, 20 Novembro

Somos excessivamente narrativos. Por exemplo, o ter passado a usar óculos, horas depois de fazer 50 anos, parece indicar o sentido óbvio do inexorável desgaste dos materiais. Mudaria alguma coisa se tivesse sido antes da data? Não, mas assim ganhou a intensidade de um sinal. O objecto acomodou-se ao corpo, quase faz parte dele. Não sem resistência, que o primeiro par logo se desfez. Os dias ganharam novas rotinas, que a limpeza tem que ser constante. Tanto pó, tanta gordura vem do que vou vendo? A escrita destas linhas faz-me viver os assuntos de outra maneira. Mas tiro pó ou acrescento gordura?

23 Nov 2016

O poema não fala – Matilde Campilho

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[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m livro de poesia com mais de cento e vinte páginas e primeiro livro de um autor, torna-se difícil de abordar, se formos honestos connosco mesmos. Assim, e como tenho feito, percorrerei apenas as linhas fenomenológicas dos poemas. Matilde Campilho publicou o seu primeiro livro, Jóquei, em 2014, pela Tinta da China. Viveu algum tempo no Rio de Janeiro, e algum outro tempo dividida entre Lisboa e a chamada cidade maravilhosa. Esta vivência além mar é visível no português híbrido com que os poemas foram escritos. Matilde Campilho é também a primeira poeta, das poetas e poetas acerca de quem tenho escrito aqui no Hoje Macau, a ter estado presente no importante Festival Literário de Macau – The Script Road –, e na sua última edição, em 2016.

Em “O Príncipe no Roseiral”, segundo poema do livro, páginas 9-10, somos levados pela nossa imaginação kantiana à Grécia Antiga, a Parménides e à sua inversão de identidade entre pensar e ser. O poema começa assim: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor / não fala de cachecóis / azuis sobre os ombros (…)”. Por um lado “isto é um poema”, e por outro “não fala de”. Todo o poema enuncia aquilo de que não fala – do rolex, da bandeirola da federação uruguaia de esgrima, do lago drenado da floresta americana, de comoções na missa das sete, de tractores quebrados na floresta americana, da ideia de norte na cidade dos revolucionários, de choro, de virgens confusas, de publicitários de cotovelos gastos, de manadas de cervos, de amor, de santos, de Deus – mostrando assim duas coisas: o poema é para além do que diz e o poema  não tem de saber nada de nada; por isso, pensar e ser faz curto-circuito entre ser e pensar, ao afirmar poder-se pensar o que não é, isto é, o poema pode trazer à flor da página e ao nossa consciência aquilo que ele mesmo não é, aquilo de que ele mesmo não fala, mas enunciando-o.

Este curto-circuito da poesia, tal como é enunciado no poema de Campilho, fora já enunciado por Platão, no livro X de A República, isto é, o ponto de vista da falência do conhecimento que grassa a poesia. Escreve o ateniense: “Assentemos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade; (…) o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente [tudo aquilo a que se refere] cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las (…)” (600e-601a).

Matilde Campilho com este seu poema resolve de uma penada o problema da poesia em relação a Platão e a uma grande parte da filosofia tradicional. O poema não tem de saber nada, ele é um poema. E se o poema não tem de saber nada, assim também aquele que o faz, o poeta, não tem obrigação de mostrar conhecimento no seu poema. O poema não imita, nem bem nem mal, aquilo que não sabe; o poema é um poema, não fala de. Pôr um poema a falar de, seria o mesmo que fazer de alguém uma cidade. Escreve Campilho no início do poema “Mão Dupla”, às páginas 37-9: “Meu filho / tente não fazer de ninguém / uma cidade”. Poderíamos imitar Campilho e dizer: meu filho, tente não fazer do poema uma cidade. Evidentemente a resposta dada pela poeta, na sua forma negativa, como se a positiva fosse comum, é muito mais interessante do que o que aqui possamos escrever. Devemos sempre tentar fazer com que um poema não seja uma cidade, com que um poema não seja uma pessoa, com que o poema não seja uma aula de geometria, de gramática ou de arte. E também é evidente que o poema “Mão Dupla” não está a responder ao poema “O Príncipe no Roseiral”. E também parece ser evidente que Matilde Campilho não pensou ou sequer imaginou tal relação entre os seus dois poemas ou entre os seus poemas e Parménides ou Platão (embora aqui possa ser mais fácil de imaginar que o tenha feito). Mas é isso que a poeta nos diz, antes de mais, quando escreve o seu poema, enunciando o que ele não tem de falar. O poema não fala, ele é. E neste ser do poema, que curto-circuita ser e pensar em Parménides, e de lavada o problema da imitação da arte em Platão, abre todas as possibilidades. Talvez nunca tenha sido dito tão claramente como neste poema de Matilde Campilho, que a poesia não tem complemento directo, nem determinativo, nem circunstancial, nem temporal. O poema é. Vemos agora que não se trata de uma inversão do ser em Parménides, talvez somente de um passar por cima,  ou ao largo, porque o poema é o que pensa e o que não pensa. O poema, vimo-lo anteriormente, enuncia aquilo que não é, não enunciando nunca aquilo que é. O ser não pode não ser, diria o eleata, e o não-ser não pode ser.

Já perto do fim do livro, em “Pedra Explodida Na Mão Do Monge”, Campilho começa assim o poema: “Penso em astronautas / não penso em árvores chinesas / penso na contagem dos cabelos, / não penso em punhais (…)” Que quer dizer pensar aqui? Pode-se pensar em algo sem pensar. E é este o domínio do poema, o do pensar sem pensar, o do ser não sendo. Como se diz no Brasil, Campilho mata a cobra e o mostra o pau. Mas voltemos ao poema que começamos a ler inicialmente: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor”. Este poema torna-se assim o motor de toda a poesia de Campilho, que nos surge verso a verso, página a página como se não lhe interessasse a reflexão, como se não lhe interessasse a tradição metafísica de olhar o poema. A reflexão na poesia de Matilde Campilho não chega chegando, feito carioca, aqui a reflexão é feito mineiro, come pelas beiradas, isto é, faz sem que ninguém perceba, faz pela calada, dir-se-ia em Portugal. Escreve Campilho, em “Conversa de Fim de Tarde Depois de Três Anos no Exílio” (pp. 51-2): “(…) é terrível a existência de duas retas / paralelas porque elas se cruzam no infinito / a verdade é que nunca nos interessou / a questão do infinito mas o resto (…)” A poesia de Campilho diz, se desdizendo, como aquilo que a poeta ou quem nas suas páginas faz de poeta relata, ainda no mesmo poema: “(…) eu na verdade prefiro mais de mil vezes / sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa / enquanto você fala sobre raízes quadradas / enquanto você fala sobre ladrões de figos / enquanto você fala sobre o tropeço da baleia / enquanto você fala (…)” Mais importante que a fala, mais importante que a reflexão é a beleza do mundo, a beleza das coisas, a descoberta das coisas, que passam longe da reflexão, elas são, acontecem. Viver a vida é estar disponível para as migalhas do pão sobre a mesa, disponível para a chávena de chá a arrefecer sobre a mesa, disponível para o silêncio das pessoas e a fala das coisas. E, por isso mesmo, ainda quando um poema parece terminar reflectindo, parece terminar como se nos quisesse fazer pensar alguma coisa, como no final do poema que temos vindo a citar – “porque você e eu a gente é feito de matéria / escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia / e espanto.” – ele só quer dizer o quanto é absurdo mostrar o que se pensa num poema, como alguém aos cinquenta anos aparecer vestido com a roupa de quando tinha vinte. Não deixa de poder ser verdade, o que estes últimos versos dizem, mas aquele “i.e.”, escrito assim à laia de artigo para professor de universidade ver, não deixa dúvidas quanto à ironia da poeta neste final de poema, e eu imagino-a até a escrevê-lo sorrindo e com um copo de caipirinha na mão, no Lucas, junto ao posto 6 de Copacabana, ainda que ela provavelmente o tenha escrito de manhã, bebendo uma xícara de café e de mau humor.

Por tudo isto, quando à pagina 70 e seguintes, nos aparece o poema “Principado Extinto”, num claro contraponto ao segundo poema do livro, “Príncipe no Roseiral”, dizendo “Isto é um poema / fala de amor (… ) Isto é que é poema / fala dos cheiros das flores / e da injustiça da existência / das flores na cidade (…)” este poema não tem a mesma força que até aqui foi propalada e ninguém o pode levar a sério, nem a poeta. É um poema como para ver se estávamos com atenção. Um poema que tem a sua resposta dada por Campilho, umas 13 páginas antes, na última estrofe do poema “Rua do Alecrim”: “Assisto a toda esta cena e penso que esta visão / real ou inventada, / é muito pior do que a verdade a bofetadas.” Porque o poema, ficámo-lo a saber por Matilde Campilho, não fala de; um poema que fala de é pior do que a verdade a bofetadas. O poema à página 70 é uma pegadinha. Pois se atentarmos bem, se lermos com a atenção que os dois poemas merecem, entendemos que, falar de ou não falar de, dá no mesmo. O poema enuncia, abre clareiras, faz ver, não necessariamente através da reflexão, que vem pela beirada, mas pela atenção, por iluminar uma frase, como por exemplo “fala da permanência inútil”, ou iluminar um acontecimento no mundo “fala da aparição do inverno / fala da fuga dos albatrozes”. O poema, adivinha-se, é uma máquina de inverter as coisas, como escreve Campilho à página 100, no início do poema “Rugove”: “Levantei-me para o contrário disto (…)” ou ainda à página 73: “acho que, quando a gente telefona / fora de época, é porque está dando / uma ligadinha para o passado. não / para a pessoa realmente.” Nesta inversão das coisas, que a poesia é, pelo menos para Matilde Campilho, o que fica sempre a claro é aquilo que não se sabe. O poema acrescenta não saber ao que já não se sabe. Depois da leitura de um poema, dizemos: “olha, mais uma coisa que eu não sei!” Ou, com versos da poeta: “(…) e – como disse Adams – bom mesmo é chegar / ao fim da estação sem nenhuma resposta.”

TWO-LANE BLACKTOP
Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contem em si a possibilidade
de fazer gente.
(p. 106)

Antes de terminar, digo que gostaria mais que este livro fosse dois, um mais vertical e outro mais horizontal. Mas aprender a ler, essa tarefa diária do leitor, é também aprender que as coisas não são como queremos. Feche-se hoje o bar com um poema de Matilde Campilho.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

22 Nov 2016

Des-fotar: contra o vórtice das imagens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]conteceu em Maputo. Dois casais. Um deles tinha uma teleobjectiva e entretinham-se a tirar fotos em grupo. Estranho, faziam tudo para tapar a cara. Intrigava-me esse gesto de antepor um punho, três dedos abertos, a mão cerrada entre o clic e o rosto. Punham-se em pose para, afinal, ocultar a cara. Às duas por três, uma transpôs o murete que separa a esplanada do passeio e pediu à amiga, tira-me uma foto. E um segundo antes da outra carregar no botão ela disparou o braço para a frente com os dedos em vê a tapar o rosto e nomeou a coisa: Des-foto. Era um gesto pensado e por desconcertante que pareça tem atrás de si um conceito.

A Des-foto é o oposto da Selfie ou a sua simétrica paródia?

Não imagino se a Des-foto é invenção deles ou a imitação de uma vaga que pela primeira vez vi aflorar em solo moçambicano. A Des-foto organiza uma tensão na imagem: o sujeito aderiu à representação mas suspendendo-a, antepondo à sua imagem algo que a trunca. É uma espécie de burka da fotografia?

Por outro lado, se isto for uma moda, corresponderá este novo rito a uma reacção epidérmica, contra-fóbica, à saturação de imagens em que naufraga o mundo – ainda que usando o pêlo do cão agressor para curar a mordidela?

Gosto da foto que encima esta crónica. É de um fotógrafo moçambicano e chama-se….. O visado reage, como se avisasse: “eh, sou pobre mas resta-me o direito à minha imagem!”. E contra a imagem da sua pobreza contrapõe a dignidade de manter isso em reserva, exige o recato do silêncio.

Uma vez viajei pelo Yémen com um realizador que para disfarçar o seu mal-estar, naquele mundo distintíssimo do nosso, se armava com duzentas máquinas a tiracolo. Por milhares de livros que tenhamos lido, por fotos que tenhamos visto, por volumosa que tenha sido a informação digerida, quando estamos no terreno é o corpo quem reage e não a nossa armação racional. Ele defendia-se com a brutalidade do seu aparato tecnológico. E só conseguia lidar com a fobia que o tomava através da mediação da imagem, do antídoto da distância.

Atravessávamos Hadramouth, um longo oásis ligado às antigas rotas das especiarias, e vimos um grupo de pedreiros a amassar tijolos com a mesma técnica dos tempos bíblicos. Eu dispunha-me a fazer uma reportagem e parámos o carro. Ele correu, para despachar o serviço, e antes de qualquer conversa, do mínimo protocolo, rondou os pedreiros como um urubu e clic, clic, zás, catrapás, colheu duas dúzias de imagens em cima dos atónitos iemanitas. Instalou-se um clima de hostilidade que impediu qualquer conversa útil: os pedreiros dispensavam ser souvenires, e como tínhamos agido sem consentimento saímos dali de mãos vazias e, por sorte, vivos.

Sem consentimento: é assim que mais de metade das imagens percorrem o mundo, através das redes sociais, das revistas, dos canais televisivos, formatando opiniões a partir de simulacros destituídos de contexto. É o modo mais perigoso de sobrepormos à realidade “um banco de irreais” que deformam a nossa percepção e a embaraçam em estereótipos e lugares-comuns que nos coarctam o raciocínio. Temos de reaprender a pensar para-além das imagens, a desnaturalizá-las, mais ainda quando com o advento das imagens digitais se torna suspeita a velha máxima de que “uma imagem vale mil palavras”.

Pior, não apenas proliferam as imagens em que não há nada que ver, como assistimos, como insinuou Braudillard, a uma escalada do politeísmo que tem agora nos objectos e nas suas imagens o seu avatar: «Hoje, todas as coisas querem manifestar-se. Os objectos técnicos, industriais, mediáticos, os artefactos de toda a classe, querem significar ser vistos, ser lidos, ser gravados, ser fotografados. Cremos fotografar tal ou qual coisa por prazer e em realidade é ela que quer ser fotografada nada mais somos que a figura que os põe em cena, secretamente movidos pela perversão auto-publicitária de todo o mundo circundante. (…) Já não é o sujeito quem representa o mundo (i will be your mirror!): é o objecto quem refracta o sujeito e, subtilmente, por meio de todas as nossas tecnologias, e lhe impõe a sua presença e a sua forma aleatória.»

Dir-se-ia, estamos possessos.

Será por isso que uma democracia apoiada sobretudo na retórica das imagens é uma democracia enlanguescida, que já não reflecte no significado das suas emoções colectivas e se limita a traduzi-las em espectáculo? Eis o triste ensinamento que nos trazem os “talk-shows”, cujo formato impede o raciocínio de desenvolver-se e obriga à lógica redutora do slogan, os “reality shows”, os últimos episódios da democracia-capturada-pelos-media, no Brasil, e a deprimente campanha para as eleições nos EUA.

Temo que Des-fotar não passe de mais uma moda idiota, mas se trouxer a alguns a necessidade de reflectir sobre o que é uma imagem, o que é uma representação, e se os levar em conformidade a proceder a uma espécie de “economia das imagens”, constituirá, afinal, um acto ecológico. E talvez ajude aqui um dito de Blanchot, que podemos usar como lema: “todos os dias há uma coisa para não ver”.

17 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 12 Novembro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre em dúvida, sempre em dívida. Podia tatuá-lo no braço só para me poupar ao trabalho de responder à quotidiana pergunta: como vais? Ou nos cada vez mais frequentes debates sobre edição: defina lá o trabalho do editor independente, se faz favor. Independente tornou-se a minha segunda pele – ainda que não perceba de quê, tantas são as dependências –, do mesmo modo que abysmo passou a primeiro nome: abysmo de joão paulo cotrim.

Estaremos sempre em dívida para com os autores. Cabe-nos ajudá-los a apurar o veneno do texto, a desenvolver o invólucro certo capaz de inocular a potencial multidão dispersa. Não basta um qualquer, tem que ser o leitor: inteligente e conhecedor ou emocional e dedicado, se possível uma hábil mistura de ambos. Capaz de admirar a vanguarda, sem esquecer as tradições, esforçado para reconhecer a explosão das estruturas narrativas, ainda que aceitando dançar com a frase fulgurante, enfim, prazer e esforço algures no cruzamento de físico teórico com groupie ou de bailarina clássica com adepto de futebol. Além dos direitos, claro, no confronto da prática que dá corpo ao livro, esperam ainda que os ajudemos no despertar da vocação: levá-los à frase, ao género, ao tema em que se cumpram.

Duvidaremos sempre do caminho. Isto não é tanto um negócio, mas uma maneira de ver o mundo, de estar no centro das ideias, da criação, da discussão, das coisas. Duvidamos da estratégia, dos tempos, das parcerias. Se corremos contra o tempo, se não devíamos olhar para trás na vez de procurar o futuro. Duvidaremos se não haveria ainda mais uma volta a dar, se não deixámos escapar uma gralha (e deixámos, pois). Se o recusado não era merecedor de segunda alternativa. Se o editado não era merecedor de recusa. Duvidaremos sempre de que tenhamos feito tudo, de que os argumentos oferecidos eram exactos, se estavam afiados como x-acto.

Servirá isto para alguma coisa? Azar. Se estamos, como Wile E. Coyote, no meio do precipício, o melhor é seguir em frente na vez de olhar para baixo. E cair.

A Tout Livre, Paris, 23 Setembro

As rentrées tendem a ser infernais. O ano passa a correr e parece que uns bons dez meses se espatifam contra a montra do Natal. O ano dos livros há anos que dança a mesma dança. Dos pleonasmos, portanto, uma das mais graves maleitas do mundo editorial. Esta reentrada foi quente como bólide celeste rasgando a atmosfera. Contudo, não poderíamos ter tido melhor maneira de comemorar cinco anos de abysmo do que a edição da Chandeigne, por via do empenho da Anne Lima, da bela tradução de Autismo, do Valério, assinada por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Foi muito bem recebido pela crítica, nomeado para o Prix Femina, que só não venceu, confirmado por várias fontes, devido às movimentações politicamente correctas que o entregaram a um jordano. Os prémios vivem bastante de correntes de ar, e constipam-se. Saltemos.

Este contacto com o sistema editorial francês, que lançou por esta altura quatrocentos e tal romances e mais de uma centena de romances, sublinhou-me mais as fragilidades do português. Descontemos por ora a diferença estrondosa de um país que gosta de livros, campeonato que Portugal perdeu há anos. Ali, veja-se, os distribuidores e os livreiros lêem os livros. Em Maio, em encontro dos editores com as principais distribuidoras, todas ao barulho, grandes, médias ou pequenas, foram apresentadas as novidades, algumas delas já impressas. Autisme circulou em pdf, mas foi o suficiente para tocar a parte fria da cadeia antes de chegar aos entusiastas: os livreiros. A eles se deve, estou em crer, a fortuna que o romance está a ter [a entrar em segunda edição, por estes dias]. Fui testemunha de um exemplo desse entusiasmo, logo no dia do lançamento, em conjunto com novos títulos do Gonçalo M. Tavares e do Valter Hugo Mãe, mas basta percorrer, no mural das Editions Chandeigne as inúmeras fotos de montras e dos coup-de-coeur, um pouco por todo o país, para perceber que não foi caso único. As apresentações de Quentin Shoëvaërt-Brossault foram de uma profunda simplicidade. Era apenas um leitor, em modo partilha. Fazem-nos tanta falta os leitores.

Centre Pompidou, Paris, 24 Setembro

As filas já eram grandes, mas agora são enormes para garantir que não levamos kalashnikovs para os museus, enfim, além das que já lá moram. Pensei que a exposição pop, Beat Generation – New York, San Francisco, Paris, acrescentaria ainda mais culpas do que Magritte, a sua parceira no andar mais rente ao céu, na mais bela panorâmica da cidade. Pisamos os telhados antes de entrar nos subterrâneos da arte, parece-me programa. Estava errado. As multidões abarrotavam as salas do Magritte, afinal pop. Paris reconciliou-se com o ignorado de há umas décadas? Que poder de atracção possui este óbvio inimigo do óbvio? As imagens dizem muito mais do que mostram e inteligência pode bem ser espectacular e lúdica. Que prazer ler primeiro os títulos e procurar a copa a partir desta raiz! Ou vice-versa.

A Beat apresentava-se com um eixo em torno do qual orbitava tudo o resto, que foi muito e variado: On the road, de Jack Kerouac, feito estrada sobre uma mesa. Ao longo de dezenas de salas podíamos atender telefones e ouvir Giorno, ver filmes com Dylan, gastar horas nas legendas das fotografias de Ginsberg, ler e ouvir Burroughs, Ferlinghetti, Corso, passear por instalações, pinturas, documentários, cartazes, fanzines, colagens, cut ups, perder o olhar nas fotos de Robert Frank, até à Dreamachine, de Brion Gysin, que nos põe a sonhar acordados. Desde o dadaísmo, mais coisa, menos coisa, se pensarmos em movimento literário temos que contar com as outras linguagens. E que cada uma conte as outras.

S. Luiz, Lisboa, 13 Novembro

Arnaldo Antunes em concerto. A energia é arrebatadora e o tom metálico estica os sentidos da língua tuga até altos penhascos. De súbito, uma declaração de amor ao leitor: «Se sou voraz, me sacie./Se for demais, atenue./Se fico atrás, assobie./Se estou em paz, tumultue.//Você é que me continua.»

16 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

De Dylan aos golpes da espionagem

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é a cerimónia de entrega do Prémio Nobel de Literatura.

A nomeação de Bob Dylan, indubitavelmente um grande artista, como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra.

Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores,  identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.

Na educação clássica e na formação musical não se apurava apenas a educação do gosto e do ouvido, os alunos afeiçoavam-se a uma intensificação da concentração e dos seus vários níveis de escuta. Uma das razões porque o público da pop não ouve Mahler, prende-se – mais do que à complexidade estrutural das sinfonias do músico vienense -, com a sua duração, que excede as pautas de atenção em que foi adestrado. Depois de décadas só a ouvir canções de três minutos, o que equivale a uma corrida de cem metros no atletismo, uma peça musical de uma hora corresponderá a uma maratona.

Acresça-se que a este carácter redutor, a cultura pop institucionalizou a diversão: o mais das vezes uma escapatória para a preguiça intelectual.

Premiar um ícone da cultura de massas é um sinal de cedência a este regime balizado por dois limites: a ideia de diversão como único combustível das intensidades sensoriais  (esquecendo que a aventura intelectual também oferece diversão e até felicidade); a ideia de que o que é difícil e exige mais atenção deve ser reconvertido para se tornar mensurável e acessível.

Esta atribuição também parte do equívoco de considerar-se que a literatura carece de público e de que há que achá-lo onde o público está. Ora, este raciocínio enferma do mesmo erro que cometia a velhinha que, à noite, perdera uma moeda no princípio da rua mas a procurava adiante, debaixo do halo de luz do candeeiro público.

Se as pessoas hoje lêem menos Proust ou Joyce não é porque esses livros não contenham ingredientes que possam interessar os jovens de hoje, mas porque o mundo se trivializou e a atenção se tornou uma habilidade só para especialistas.

1/11/2016

Sinopse para uma comédia, escrita na minha aula de Guionismo, onde desenvolvemos um breve apontamento de Billy Wilder, infelizmente nunca elaborado:

Ano, 2020. Instalou-se no mundo uma Nova Guerra Fria que separa Povos Com Zika de Povos Sem Zika.

Num congresso de cientistas da saúde africanos, realizado em Kingshasa, destaca-se o trabalho de Ónus, um académico moçambicano – um homem íntegro e que só tem por fraqueza gostar de uma pinguinha.

É a ele que os observadores americanos, enviados por Hillary, escolhem para ser o inconsciente portador da fórmula secreta de uma “bomba” cujo poder curativo mudará a face do continente, que será posteriormente resgatada por agentes sul-africanos (- os americanos não se arriscam a passar-lhes directamente a fórmula para não serem acusados de favoritismo na ONU).

Para tal, convidam-no para uma festa, embriagam-no, raptam-no e depois tatuam-lhe no pénis a fórmula. Que só pode ser lida em erecção. O cientista acorda azamboado e de ressaca no hotel, a uma hora do seu embarque de regresso, e, com a pressa, não dá por nada.

Chega a casa, em Maputo, desfaz as malas e toma um duche, antegozando a noite maravilhosa que terá com Bárbara, a sua mulher. É aí que dá conta: tem algo tatuado no sexo. Ónus entra em pânico: não há desculpas que justifiquem aquela inscrição (que não consegue ler) e a sua estranha amnésia. Ainda por cima, acontecer-lhe a ele, fidelíssimo à mulher!

À noite, a culpa inibe-lhe a erecção. Como acontece pela primeira vez, entre eles, a mulher graceja e adormecem após uma boa galhofa. Ou antes, ela. Ele não, está à rasca. E ao longo da semana repete-se a nega. A esposa começa a desconfiar que ele tem outra. E o sentimento de culpa dele adensa-se.

Os outros países africanos começam a enviar-lhe mulheres cientistas de grande aparato físico, para o atraírem a uma cilada sexual.

A lasca zimbaweniana – uma enóloga – embriaga-o ao falar-lhe sobre uma enzima que dá às uvas o tamanho de melões, sem o conseguir levar para o quarto.

A enviada etíope atrai-o ao quarto sob promessa de lhe mostrar um besouro em cuja carapaça a natureza desenhou o Rato Mickey. Mas um copo a mais de Mateus Rosé fá-lo sucumbir no sono, no sofá, antes dela regressar da casa-de-banho, nua e em oferenda.

A África do Sul envia uma Mata-Hari capaz de derreter um iceberg quando expõe o mamilo esquerdo, o menos abrasivo. A ingenuidade de Ónus é mais uma vez enrolada pelo parlapié duma colega cientista e sobe ao quarto dela, num intuito académico. Martini puxa Martini, e eis Ónus enfiado na cama dela, atarantado mas nu.

Contudo, como é homem de uma obstinada fidelidade, a erecção não tem lugar.

A sul-africana – uma cientista de renome – não está com meias medidas e tira da mala um x-acto para decepar o membro murcho. Debruça-se sobre a cama, o olhar amortecido de Ónus nem se apercebe do brilho da lâmina…

É então que Bárbara, que o seguia sorrateira há uma semana, abre a porta num pontapé. Com dois golpes de Karaté despacha a espia boer e amarra-a ao cadeirão.

Ónus, a quem a entrada de rompante da mulher pusera sóbrio, observa deliciado a limpeza com que a sua mulher o salva – sim, é sua, a mais felina das mulheres! E o entusiasmo proporciona-lhe a maior erecção da sua vida.

Ónus e Bárbara, lêem então, contristados, a fórmula que ele exibe, tatuada no pénis: Abstinência!

10 Nov 2016

António Cabrita: “O que me é natural é o poeta”

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stás neste momento como finalista do prémio do PEN Club, na categoria de narrativa (o vencedor será conhecido no dia 10 de Novembro), com o livro de contos Éter, publicado em 2014 pela Abysmo, e que tive a oportunidade de apresentar no Porto, de modo informal (mais tarde o livro foi apresentado formalmente, em Lisboa, pelo escritor e professor Luís Carmelo). É a primeira vez que és finalista de um prémio literário? Já venceste algum? E qual é a tua posição em relação aos prémios literários?

Tenho uma relação descomplexada com os prémios. Já fui finalista do Prémio Telecom do Brasil, em 2012, com o romance A Maldição de Ondina; o qual voltou a ser finalista, desta vez fazendo parte da short list, do prémio Póvoa do Varzim, de 2013. Portanto, em pouco tempo é a segunda short list que enfrento. Também já concorri a prémios, em períodos de “falência técnica”. Como fazia o Roberto Bolaño. E ganhei três. O Prémio Cesário Verde foi providencial: paguei quatro mil euros de dívidas e com os mil que restaram fui a Paris cinco dias, onde gastei 400 euros em livros – nessa altura, 1997, um bom taco. Com o prémio Natércia Freire paguei a viagem à família de Maputo para Lisboa. Como vês, às vezes são úteis. Ganhei também um concurso para guiões do ICA, mas o produtor português abotoou-se com o dinheiro. Mas, na literatura, nunca escrevi para os prémios. Se depois se conjuga, isso é outra coisa…

Os prémios são quase sempre úteis. Em 2004, escolheste ir viver para Moçambique. Foi bom para a tua escrita? Por exemplo, São Paulo e Fazenda Rio Grande, ambas cidades no Brasil, foram lugares bons para a minha escrita.

Foi muito bom. Fiquei rapidamente na condição de um duplo “exílio”, pois, primeiro descobri que as paisagens mudavam mas os meus fantasmas, limites e superstições também se vivificavam, depois vim tarde para a “fusão” (com 45 anos), razão porque aqui coabito mas não me integro na cultura local – sou estimado, respeitado e tolerado como diferente, o que é uma coisa distinta –; por outro lado, tenho uma família grande e não tenho modo de a deslocar para regressar. Esta qualidade de estar “entre” disparou em mim uma densidade que não tinha (uma espécie de vigília permanente, própria a quem não está no seu meio, e que se converte em textura) e por outro, como exercício complementar, a leveza. Rio-me mais de mim do que antes, mudo mais rapidamente de perspectivas. Por fim disciplinei-me e, tendo pouca vida social, ocupo de facto seis ou sete horas por dia a ler e escrever; em Lisboa era mais dispersivo. Daí que costume dizer que o ideal para mim era passar seis meses em Portugal e seis meses aqui.

Ao longe, de outro continente e de outro hemisfério, como vês as letras aqui em Portugal? Qual a imagem que tens acerca do que está a acontecer, em comparação com o início deste século?

Parece-me mais vivo e diversificado do que no princípio do século. Havia uns senhores polícias-sinaleiros (tipo Joaquim Manuel Magalhães e os seus satélites) que ditavam leis e afunilavam o trânsito, ao quererem impor o que “deve ser”. Hoje o panorama é mais plural. Infinitamente mais perigoso porque a ausência de modelos também leva à trapaça, mas com manifestações estimulantes. Por exemplo, é interessante como se multiplicaram até quase à saturação as sessões de leituras de poemas em Lisboa e no Porto. Coisa que de todo não havia. Há um lado de “presença”, de urbanidade e socialização que faltava à poesia e lhe foi devolvida. Embora isso tenha o risco simétrico de se esquecer que há muita e grande poesia que não é para ser dita… Mas na generalidade estou animado. E gosto muito do que as mulheres estão a fazer na prosa e na poesia, é exaltante.

A tua actividade divide-se entre o ensino de escrita de guiões para cinema, jornalista, poeta, ensaísta e escritor. Entre o ensaísta, o escritor e o poeta, em qual papel te sentes mais confortável e de qual gostas mais? Por exemplo, eu sinto-me mais confortável como poeta, mas gosto mais de escrever sobre os outros.

O que me é natural é o poeta, mas desconfio da facilidade e estou sempre com o verso no estaleiro. A narrativa faz-me sair do conforto, daí que seja o género que neste momento prefiro, até porque também gosto do jogo das estruturas. Do jornalismo, talvez por ter ocupado vinte anos da minha vida, neste momento interessa-me sobretudo a crónica, embora gostasse de fazer um dia uma reportagem em alexandrinos. O ensaio motiva-me porque me leva à leitura e a «pensar contra mim próprio», e estou tão viciado nisso como a Alice o estava com os espelhos. A crítica é do que tiro menos prazer e angustia-me. Mas iniludivelmente, o inferno para mim é o incêndio da Biblioteca de Alexandria. E por isso me interrogo por vezes sobre o que vim fazer a África, com parcas bibliotecas e caricaturais livrarias, e onde as paisagens com palmeiras, como vogais desventradas, me entendiam de morte. Na verdade, prefiro o vento às palmeiras, e o vento é universal…

3 Nov 2016

Máquina de pendurar existências, o amor

Raquel Nobre Guerra (Lisboa, 1979), estudou Filosofia. É mestre em Estética e Filosofia da Arte na Universidade de Lisboa, onde investiga para o Doutoramento em Literatura Portuguesa “a categoria de fragmento na obra de Fernando Pessoa”. Publicou “Groto Sato” (Mariposa Azual, 2012), “SMS de Amor e Ódio” (Amor-Livro, 2013), “Saudação a Álvaro de Campos”, (Palavras por dentro, 2014), “Senhor Roubado” (Douda Correria, 2016). E é por este último livro que vamos viajar.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]enhor Roubado é uma estação de metro de Lisboa. Enuncio isto de antemão, pois sei por mim mesmo que é muito fácil não sabermos disso, se não vivemos em Lisboa ou não tivermos vivido nos últimos anos, como é o meu caso. Se alguém em São Paulo intitulasse o seu livro de “Do Paraíso à Consolação”, talvez fosse difícil para quem não é de São Paulo, saber que se trata de duas estações terminais de metro, de uma das linhas da cidade; linha que vai precisamente da estação Paraíso à estação Consolação (nunca se diz o contrário), como se de uma metáfora da vida e do amor se tratasse. E não é por acaso que começamos esta viagem pelos metros de Lisboa e de São Paulo, e suas metáforas, pois o livro da Raquel Nobre Guerra é precisamente uma enorme metáfora da vida e do amor, que no Brasil, quando for editado, deveria até chamar-se “Do Paraíso à Consolação”. Como ela mesma escreve no início de um dos poemas:

“O amor desapareceu, diz-se por aí, e eu tendo a acreditar
porque dormes cada vez mais longe na metade da cama
que ocupaste com edições luxuosas do Paraíso Perdido.”

Sim, é um livro de amor. Um livro de amor como nas canções pop, em que ele já se foi e resta agora a melodia daquilo que ficou, para outros ouvirem e sonharem identificações, que ora se ajustam ao corpo, como se tivessem sido escritas para quem lê, ora ficam largas ou muito apertadas e não assentam bem. Restos de canções que também aparecem, aqui e ali, no corpo do poema. Por vezes aparecem como a única parte do mundo onde a poeta entra. Porque uma canção é o lado de fora menos perigoso, menos entediante aonde ir. Leia-se este poema, onde um verso de uma canção dos The Doors, de An American Prayer, nos surge como a parte mais quotidiana do poema, a parte em que a poeta vai à rua, em que sai de si:

“Deixa que nos chamem
pequeno cemitério de animais em flor.
O meu coração gótico espera por ti
aqui onde ninguém dança.

Porque havemos sempre de brincar
vestidos de santos até adormecer
nos olhos da cabra que, escuta:
I touched her thigh and death smiled.

Se perguntarem por nós aponta para cima
e responde com humor tipicamente irlandês
Senhor Roubado. Linha Amarela. Estação Terminal.”

Aquilo que podemos dizer acerca de nós não é muito mais do que isto: o nome e a posição do lugar onde enfrentamos os dias; e dizê-lo com humor, dizê-lo com a certeza de que a vida, a nossa, além de ter os dias contados, tem também um desconhecimento quase completo, para além de meia dúzia de nomes e algumas definições, que em relação aos frutos têm apenas um período mais alargado de validade. Entremos então no coração do livro:

“Movo-me na medida exacta da nossa distância.
Que direi eu deste lado do mundo?”

Esta passagem poderia ser o mote do livro ou, se preferirmos uma linguagem mais musical, o leitmotiv do livro. Este lado do mundo a que a poeta se refere, não é apenas ela, é a única possibilidade que tem de apreender o mundo e tudo o que lhe acontece: “a exacta medida da nossa distância”. Que não é senão a distância de cada um de nós para nós mesmos e para as coisas, para o mundo. Não estou agora a dar o dito por não dito, isto é, a recusar a leitura de amor que o poema encerra, um amor em cinzas, mas quero alargar a leitura à possibilidade de o próprio poema nos mostrar mais que amor: mostrar que toda a nossa relação com o mundo e connosco mesmos é um amor em cinzas; não é de amor, mas de nós no amor, de nós como o resto do resto do resto do amor. Ficamos cientes de que o amor é uma espécie de beleza que nunca chega para dois. Como a poeta escreve nestes dois versos: “Vim para dividir contigo a doença imaginária dos amantes. / Não tenho culpa de ter achado que a noite serve esse fim.” Mas a beleza nunca chega para dois. E julgais que o que nunca chega para dois é apenas um corpo, ou a impossibilidade de partilha do que se sente, quer seja no amor, quer seja no dia a dia?

“Nenhum clássico alternativo ao homem
mudou alguma vez o fuso do mundo.
A malha cai, o gajo escapa
é uma rosa, senhor, de plástico.”

E julgais vós que uma rosa de plástico é gajo fácil a dizer-se não? Julgais que há outras rosas que não as de plástico, no mundo e nos gajos? A rosa de plástico que um gajo é, é ela mesmo toda a humanidade. Nada muda o fuso do mundo, pois tudo, todos nós somos rosas de plástico. Raquel Nobre Guerra assume esta nossa condição humana sem quaisquer problemas ou pensamentos esotéricos:

“De resto, tenho uma perninha no bem e outra no mal
e mijo no meio, é honesto imaginar-me assim. ”

É honesto. E honestidade não é aqui uma prática ética, nem ontológica, nem estética. A honestidade é um sonho, um “imaginar-me assim”. Tudo é imaginação, menos o corpo que nos pede comida. E pede ainda outras coisas mais tenebrosas, pede imaginação. O corpo imagina. O corpo sonha. E isso, sim, é um problema. Adivinha-se. O corpo exige sonho. O corpo exige que o espírito desça do seu pedestal e se dobre para lavar o soalho, que os pés que o alimentam pisam.

“Sei que qualquer aragem me atravessará o corpo
(…)
Sei, porque me chego para a frente com força
que o poeta transporta um saco de luz
com um coração doente que canta
(…).”

A poeta sabe que é um duelo perdido, e por isso escreve: “Que eu só queria existir um pouco / na definitiva passagem do fogo / e suster a passo veloz os estragos / a força de um corpo resumido ao vento.” Mas nenhum corpo se resume ao vento. Os corpos nascem e morrem para imaginar. Os corpos até imaginam que são espírito. O corpo é em si mesmo um altar onde os amantes rezam. Não se é jovem de espírito, como se usa dizer nos arrabaldes da imaginação. É o contrário: o corpo é sempre adolescente, por mais idade que um espírito tenha. A Raquel Nobre Guerra sabe-o, e escreve: “Ou talvez esta minha inclinação adolescente / de pegar-te nas mãos para ficar nelas / ainda se torne o melhor par de versos de sempre.”
Nenhum poema de amor é somente um poema de amor. Principalmente neste livro de Raquel Nobre Guerra. Aqui, o amor é usado para dizer o mundo, para dizer o pó da humanidade. O amor é usado tal como os humanos são usados nele. Neste livro o amor não é uma máquina lírica, é antes uma máquina de pendurar existências, como nos diz os primeiros versos deste poema:

“Objectos restantes do nosso último encontro:
o tubo de tabaco Lucky Strike (seguramente)
e a pontuada consoante «só».
Coisas sem significado que se deixam ficar
como um piropo sem resposta.”

A inventividade da linguagem não prescinde de fazer sentido, não prescinde de ontologia. A vida, e não a linguagem, e não os efeitos da linguagem, e não o encantamento da linguagem, é o que importa aos versos de Raquel Nobre Guerra. A linguagem existe para dizer a vida, para complicar a vida, para fazer ver a vida, para tentar acalmar a vida. A vida é sempre o horizonte da linguagem, a vida que não existe a não ser que se invente. Nós na vida, aprendemo-lo com a poeta, somos todos “(…) um príncipe melancólico com abalos de amor / por mulheres mais tristes que uma mulher a correr (…)”.

Fora da linguagem, fora dos livros, fora de nós dentro dos livros, tudo é verdadeiramente triste como uma mulher a correr. Tudo é triste como amar uma mulher a correr. A tristeza maior, adivinha-se nos poemas deste livro, não é uma casa, seja ela qual for, não é uma vida, seja ela qual for, é uma vida separada da linguagem. Ir à rua é como se nos cortassem o cordão umbilical que nos liga à mãe linguagem; é essa dor, essa nostalgia que é sentida pela poeta que aqui escreve estes versos. Ainda que haja a consciência de que a linguagem nos mente com todas as letras do alfabeto; e consciência de que é com ela que nós também mentimos, a nós e aos outros:

“Minto, porque cedo ao poder das palavras
o que trago no saco são coisas remendadas
que vou deixando cair.”

Estes versos finais do poema inicial parecem ilustrar bem a falência do quotidiano face à poesia. Porque nada é mais triste do que o quotidiano, a não ser talvez escrever sobre ele. Fora dos livros, fora da leitura e da escrita, o mundo inteiro “ilumina-se de todos os anjos filhos da puta”, porque a tristeza começa sempre que um humano sai da sua casa para ir ao café do seu bairro ou para o trabalho ou simplesmente ir às compras, porque o corpo assim o exige.

“Acordo com um perfume que não é o meu,
faço contas ao corpo antes de ser bicho
— às vezes penso, esta obsessão não é verdade
estou morta sou infinita
e a manhã despenca como uma grua.”

Apesar de tudo é muito difícil ser-se bicho. É difícil entregar-se a uma animalidade esperada ou sonhada ou simplesmente uma animalidade que parece fácil aos outros. A animalidade não é ser viúvo de espírito, a animalidade é o corpo a deixar de sonhar. O corpo exige, mas o espírito põe os pés pelas mãos e põe-se a fazer contas. E depois há que pensar. Há que pensar, que isto é uma coisa que não nos deixa. Não nos deixa sequer dormir, não nos deixa sequer trocar de sexo com alguém. O cérebro, que serve para inventar tantas coisas belas, não consegue inventar um botão de pausa. Nem a troca de sexo com alguém nos dá descanso. Porque não há uma pausa para o pensar. Pensar não dá descanso à poeta. Pensar é ser viúvo do corpo. Raquel Nobre Guerra parece saber que o poeta quando cai de boca no sexo, a boca não vai sem palavras, não vai sem pensamentos, não vai sem indecisões, que são o departamento de finanças do país pensar, e com isso o poeta dá cabo de tudo. Não dá cabo só da sua vida, dá cabo também da possibilidade de fugir dela. Arruinada que está essa possibilidade de fuga, “a manhã despenca como uma grua.”

Estes poemas mostram a encruzilhada de se ser entre uma boca no amor ou uma boca na linguagem. E não há conciliação para esta poeta (ainda que a pessoa possa não ser assim), porque, como ela mesma escreve:

“Bebo uma bica por dia, às vezes bebo-a fria
depois disto bem que podia morrer, diga-se
com as mãos ao redor de um pescoço amigo
quero dizer, de um livro. Tenho o carácter
objectivo de uma incompetência para a vida.”

Só os livros nos compreendem. Só aos livros compreendemos. Tudo o resto é uma angústia enorme, por ter de ir à rua comprar comida, beber café (a parte boa da existência), fazer a máquina funcionar. “Quem nunca hesitou na paragem do 28 / e pensou: ali via a metáfora da minha vida.”

Vida e poesia não são coisas separadas. A poeta não vai à rua, lambuzar-se de vida, e chega a casa para escrever o seu poema, para afirmar o seu nome no mundo. Ela vai à rua (porque não pode deixar de ir) e sempre com culpa, por mais que haja açudes de alegria. Mas talvez os versos deste livro que melhor nos mostrem a identificação entre vida e poema para Raquel Nobre Guerra se encontrem aqui:

“E um bom poema? Uma banana a apodrecer numa fruteira.
E o que a comove? Uma banana a apodrecer numa fruteira.”

Além desta guerra entre os aliados – que formam um enorme exército e podem ser resumidos no verso “Gente que está viva, diria, pasto para as sensações”, que no fundo são a rua, o amor, o sexo, a vida – contra a escrita, e de traçar uma fenomenologia de bairro bem conseguida – pois toda a fenomenologia é como o fim do mundo, e “O fim do mundo começa sempre no café do bairro” – o livro é repleto de belos versos. Por fim, deixo para mostrar aquilo que é certamente a cor mais visível deste livro: a ironia. Uma ironia quase constante, a fazer-se sentir ao longo dos poemas como uma dor moinha nos dentes. Como nos exemplos seguintes, que não esgotam o caudal irónico desta poética: “Mas a natureza morta da metáfora / não me deu talho para o poema.”; “Mas aprofundei-me na ocupação da violência / um arzinho de filosofia para empernar meninos.”; ou ainda nesta estrofe inteira:

“Sais de casa porque a morte te agita
transpiras pelo empregado de mesa
que lê Balzac, tens ambições literárias
razões, enfim, para andar mal vestido
despenteado com um saco na cabeça
para que se diga ali vai a poesia portuguesa.”

Ironia e ontologia, numa sucessão de duelos, numa sucessão de inversões no modo como vemos as relações entre o corpo e o espírito, entre o corpo e o sonho. Terminemos com a voz da poeta, no final de um dos seus poemas:

“Dei por mim a propor duelos:
Café e pistolas para dois?”

13 Set 2016

Heterónima e outras demonstrações

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas.

Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos.

Pessoa, de que todos falam, ninguém ainda escutou no devido silêncio de um temor antigo. Conhecem a parte que lêem como uma adaptação de cada um de nós em sua voz, como algo que vem de fora para dentro, mas não sabem os caminhos de fronteira que fazem os homens serem assim e não de outra maneira: mesmo os estudos Pessoanos são vazios de observação neste domínio, que se me apresenta, vital, para que tenhamos então todas as associações probabilísticas. Este judeu, era, como todos, de natureza velada, tanto que nem anatomicamente se mantinha o mesmo, havendo o lado fugidio de quem sempre em fuga não faz mais que reproduzir a herança, pondo-a a trabalhar e a ser – no mínimo que faz. Este míope, que ora dilatava, ora ficava esguio como uma enguia, que trazia as calças por cima dos calcanhares ( todos os judeus fazem isto, mesmo que não notem. Jacob, quando da luta com o Anjo, fere-se no calcanhar, era coxo, portanto; e essa fronteira que dá para o chão fez de cada um homens de calças curtas) que era conversador, também, errante na cidade, trilhava os passos de algo que lhe estava prometido.

Notemos a infalibilidade de um destino quando se tem herança assim: que faziam eles? Eram astrólogos, magos, iniciados. O Catolicismo, mesmo de fachada, nada lhes dizia, e a sua forma de trabalhar foi sempre pelo registo do elemento alquímico. Não era certamente um anunciador de futuros para senhoras de sociedade e tagarela da prosápia dos jogos de cartas. Não, trata-se de um respeitável intérprete de rigor e íntima contemplação, que fez interagir no seu enunciado e deu forma a cada personagem que “inventou”: ou eram mesmos reais? Elementos de uma cultura de graus vários… também os profetas eram pastores! O medo é real, perante ele podemos expor o melhor de nós. A poesia de Pessoa não é um jogo de palavras que se amontoam com sentimentos em cima. É uma inteligência fina da alma, um refinamento singular numa laboriosa maneira de cumprir o génio por detrás da palavra escrita. Não há Pombas do Espírito Santo, nem Pentecostes nestes processos, nada cai na nossa cabeça… e na língua, por milagre infantil, tudo é um longo processo de elaboração, um caminho trilhado na linha da continuidade. Todo o seu drama era passar da casa oito para a casa nove… astralmente… um drama de passagem do deserto para a Terra Prometida. Para entender o que Pessoa fez é preciso muito, muitíssimo, mais.Ffoi necessário algo que até aqui ainda não foi lembrado: contextualizar todos estes dados e não andar atrás da quimera do ente isolado que tanto gozo dá aos que gostam de estar sozinhos. Mas a sós ou não, ele seria sempre a pessoa que Pessoa era.

Todo este dispositivo tremendamente óbvio, de tão desconhecido, dá-me por vezes uma intimidade muito boa com esta consciência, como se lá do fundo ainda me segredasse coisas que só direi depois. Como sabem, ele ainda está a escrever, idem as enigmáticas e as misteriosos frases que por aí aparecem… eu não jurarei que não… Afinal, trata-se de alguém que está disfarçado e, mesmo que não estivesse, foi assim que ao longo de séculos se apetrechara para sobreviver.

Se as pessoas fossem mais atentas, saberiam porque são raros os poetas: eles são os últimos de uma longa cadeia que reuniu toda uma herança, e tal como ele bem viu: “sentimentos todos nós temos” para depois: “sentir, sinta quem lê “. Ele tinha a denúncia toda em si, mas, o mais óbvio, sabemos que os povos não são capazes de ver, encaminhando para teses amorfas, análises pesadas, formas pedantes, análises irracionais, algo que está a nível chão da nossa percepção.

Também com esta postura foi firmando o seu ar triste e grave, dando-se conta da fragilidade da memória dos Povos, estando em trânsito como um corpo estranho numa nave de loucos. E com esse olhar se foi. E, ainda hoje, a louca leviandade do mundo acrescenta teses às suas formulações a partir deste ente que tanto desconhecem. Teriam certamente uma vida mais monótona pois que, a existir, um poeta está a dinamizar o mundo em vários ângulos que a própria vida na sua robustez não conseguiria jamais fazê-lo.

28 Jul 2016

Patrick Deville na Livraria Portuguesa este sábado

[dropcap]O[/dropcap] autor francês Patrick Deville vai estar na Livraria Portuguesa no próximo sábado, pelas 18h00 para uma conversa acerca do seu percurso enquanto autor, do seu trabalho e do projecto “Casa dos Escritores e Tradutores Estrangeiros”. Numa iniciativa promovida pela Alliance Française de Macau, em conjunto com o Festival Literário Rota das Letras, os interessados poderão conhecer mais detalhadamente Patrick Deville e o que é, para ele, ser também escritor de viagens.

Segundo a organização, Deville não escreve histórias de viagens, mas sim crónicas protagonizadas por personagens excepcionais, que o autor vai procurando aquando das suas deslocações.

Também director da “Casa dos Escritores e Tradutores Estrangeiros” em França, cargo que “encaixa nesta sua paixão pelas histórias de outros lugares”, este é ainda o lugar que representa uma espécie de “céu que dá as boas vindas a autores de todos os cantos do mundo” enquanto também organiza colóquios, tem a seu cargo a publicação de uma revista e diversos textos bilingues.

O seu trabalho “Peste e Cólera”, que retrata a vida de um bacteriologista, é considerado um dos seus mais relevantes romances estando nomeado para diversos prémios literários tendo sido já galardoado com o prémio Fnac e Femina. Esta é ainda uma ocasião para os interessados em ter esta obra ou o livro Kampuchea autografado pelo autor. A entrada é livre.

13 Abr 2016

Luís Patraquim, escritor : “A sede de conhecimento em Moçambique é grande”

Luís Patraquim é de conversa fácil, mas não de conversa mole. Preocupado com o estado de insegurança no país, deseja paz, mais compreensão para a importância da cultura e traz-nos novas de um povo com uma enorme ânsia de aprender. O convidado do Rota das Letras rejeita paternalismos, desconfia dos tolerantes e não percebe por que os cidadãos ainda não circulam livremente pela CPLP

[dropcap]O[/dropcap] que o motiva a estar vivo?
Aconteceu-me estar vivo, portanto tenho de fazer o melhor possível. O Reinaldo Ferreira (poeta moçambicano) tem um verso que dizia “ai de mim que não pedi para nascer e sou forçado a viver”, mas ele era pessimista. Não chego a esse ponto, sei que isto é tudo um absurdo, mas também tem coisas com piada pelo meio. O projecto dele era “Um voo cego a nada”. Um belíssimo poeta que morreu demasiado novo, filho do famoso Repórter X, da I República.

E na sua obra? O que o motiva a investigar, a escrever, a pensar?
Julgo ser a curiosidade das coisas. A necessidade interior de dizer coisas que já foram ditas. Mas cada um diz à sua maneira. Porque não sou pretensioso, direi que existe algo de maravilhamento no mundo, apesar das tragédias pessoais e colectivas que sabemos. Há esse maravilhamento a que nos compete ficar atentos.

Como por exemplo…
Uma criança que corre a rir pela rua fora.

Dizer o que já foi dito. Vivemos num incessante círculo vicioso?
Tem dias (risos). Mas passa por aí. Daí o mito do labirinto. A descoberta, aquele desafio do desconhecido para depois resgatar algo que, no fundo, é algo dentro de nós, que não conhecemos, para depois produzir um sentido qualquer. Os sentidos inventamos nós a cada momento, não é? A linguagem e a música são os primeiros dessa invenção de sentidos que fomos inventando ao longo da histórias em várias culturas e sociedades.

Será possível formular uma pergunta que nunca lhe tenha sido feita? Algo que você desejasse falar e nunca tenha tido oportunidade?
Por exemplo, com quantas gajas é que andou? (gargalhadas) Mas, como sou cavalheiro, não digo.

Os brasileiros têm a expressão “abaixo do equador não existe pecado”. Em Moçambique também é válida?
Isso são aquelas frases meio folclóricas mas, num certo sentido, é verdade. O pecado é da ordem do religioso. A ética é da ordem da filosofia. Eu não me revejo em nada que tenha a ver com pecado, mas sim em tudo o que tenha a ver com ética.

Como é a vida em Moçambique?
Não é fácil. Tem ilhas de tranquilidade de um viver ainda tradicional e antigo e a emergência deste conflito que está no começo mas que pode vir a ser perigoso. Tem cidades, como Maputo, que começam a ser uma grande confusão. Alta velocidade, interesses, o dinheiro, o dinheiro, o dinheiro… Mas tem outros espaços absolutamente aprazíveis onde se pode viver sem stress como, por exemplo, a cidade de Inhambane.

Em Maputo descobrem-se muitos sinais de Portugal, da culinária a símbolos como o dos clubes… Existe uma nostalgia?
Já passaram 40 anos. Os moçambicanos já fizeram muitas coisas, boas e más. Há isso sim, uma espécie de reconciliação com aquele pai que foi preciso matar, no sentido freudiano, e agora há uma percepção de que o mundo é vasto, algumas heranças ficam e as sociedades aproveitam o que acham melhor de cada cultura seja ao nível que for. Não será bem nostalgia. É talvez uma forma de trazer à memória afectiva ou “desafectiva”, se calhar mais “desafectiva”, uma presença que esteve lá de forma colonial mas também com muitas outras facetas, sem o conflito e essa necessidade de afirmação que existia antes de voltar a conviver com uma série de heranças.

Há sempre uma ideia em Portugal que fomos sempre tolerantes, amigos dos povos nativos…
Ah… isso é tudo uma mitologia desgraçada.

Agora vemos a presidência portuguesa da CPLP contestada por vários países, Moçambique incluído…
É os resultado de anti-colonialismos primários. Coisa que para o Brasil então não faz sentido nenhum. Angola e Moçambique ainda vá, porque a descolonização [foi recente]. Seria absurdo, mas podíamos tentar perceber. Para mim é uma questão política de hegemonia. Se calhar o Brasil quer tomar o comando. Se bem que o Brasil se esteja a marimbar para o tal mundo da lusofonia – eu não gosto deste termo mas ainda não se descobriu outro -, quer ter uma influência maior ou então não dá para perceber. Mas a própria CPLP foi mal construída, a partir do vértice da pirâmide e está a custar muito a descer à base.

Melhor explicado…
Os chefes de estado resolveram criar aquilo com uma noção um bocado corporativa. Conferências Ministeriais, reuniões de Associações de Advogados, de empresários, de associações disto e daquilo, mas nada chega cá abaixo, ao povão. Na prática dos povos o que interessa é o dia a dia, o chão das coisas. Uma política fácil de vistos entre estes países, por exemplo.

Faria sentido uma comunidade de livre trânsito?

Fazia mas Portugal está amarrado a Schengen. Cabo Verde propôs há muito, mas nenhum dos outros países aceitou: era uma espécie de cidadania lusófona. Uma forma diplomática, consular, que permitisse às pessoas circularem. Não apenas as corporações mas também o Zé dos Anzóis, as famílias (o resultado destas ligações que ficaram) poderem viajar sem estes entraves todos.

Há dias, Luiz Ruffato dizia ao HM que “o português de Portugal vai acabar por ser um dialecto do Brasileiro”.
Tenho de discordar. Em termos linguísticos não há dialectos. São línguas. Falava-se em dialecto quando o poder colonial se referia às línguas dos países africanos. Moçambique tem 11 grupos linguísticos, todos de raiz banta, Angola tem outros tantos. Falar em dialectos é uma espécie de menorização dos estatutos linguísticos. Hoje a linguística não vê a questão assim. Não se trata de dialecto absolutamente nenhum. O que vai acontecer são variantes da Língua Portuguesa, aliás já classificadas assim. A variante europeia não é única, porque naquele território tão pequeno, o léxico, alguma sintaxe e até a pronúncia sofrem tantas mutações… vai haver um português de Moçambique, os linguistas já fazem estudos nesse sentido, em Angola idem… O que o Luiz, se calhar, queria dizer é que pela dimensão geográfica e demográfica, o Brasil é o gigante que é.

Neste contexto, que sentido faz um acordo ortográfico?
Não faz muito. O problema da língua não está aí mas na sintaxe. O léxico não é problema porque as línguas são organismos vivos que se inventam a si próprios, depois a literatura gera uma espécie de padrão, a gramática analisa e cria um conjunto de regras que, logo a seguir, podem ser mudadas e são. Não há um proprietário da língua e qualquer Estado que julgue poder legislar a esse nível está absolutamente equivocado.

O que falta a Moçambique para que as pessoas se entendam?
As elites não se esquecerem do melhor do discurso de libertação – salvo algumas arrogâncias, a matriz não começou bem – que sejam menos arrogantes e menos ambiciosas. Estou a dizer o óbvio, mas pronto… que coloquem o interesse nacional acima dos interesses partidários.

O interesse nacional é um conceito vago…
É definido pelas classes hegemónicas que chegam ao poder, é assim em todo o lado. No caso moçambicano, é o de que se não existir juízo a própria unidade do território pode estar em causa. O país precisa de uma política que tenha em conta a distribuição da riqueza, capaz de criar condições para mais riqueza a partir da agricultura e distribuí-la pela população. Isso não está a acontecer. Vive-se de galinhas dos ovos de ouro – daí a emergência do novo conflito-, do gás natural, um ouro que está ali a luzir e a perturbar as cabeças de alguns.

Há meia dúzia de anos vi em Maputo a capa de um jornal com a fotografia de uma figura pública e a manchete “O regresso do grande pateta”, arrojado em muita democracias. Tendo em conta o momento actual, como está a liberdade de imprensa em Moçambique?
Nesse aspecto existe, de facto. De uma forma geral, a liberdade de imprensa mantém-se mas tem dias. Às vezes não é bem utilizada mas por uma questão puramente técnica. Há jornais e jornais, só por isso. A liberdade de imprensa é um dos pilares do jogo democrático, é saudável pela capacidade crítica, de criação de massa crítica, pela formação de opinião e a necessária difusão de informação que todas as sociedades precisam.

Em Macau a discussão da independência do poder judicial está na ordem do dia. Qual a situação em Moçambique?
Isso é da definição básica da coisa pública. (risos) Teoricamente existe. Praticada por um ou outro juiz mais consciencioso, também existe. Mas como sistema não existe, infelizmente, porque a teia dos interesses, dos favores, das pequenas ou grandes corrupções é de tal ordem que, de uma maneira ou de outra, as coisas estão instrumentalizadas. Às vezes aparece uma pérola caída não sei de onde como o caso do professor Castelo Branco. A consciência, a tal ética, não é?

Aconteceu-me entre Inhambane e Maputo: numa venda de estrada um grupo de crianças pedia-me livros. Existe outra utilidade para os livros ou aquelas crianças tinham mesmo necessidades de leitura?

Há uma grande curiosidade. As pessoas sacrificam-se muito para estudarem. Há uma sede de conhecimento muito grande, isso é verdade. O sistema de ensino é que tem muitas falhas. E, nessa zona, a necessidade ainda é maior porque a escassez de oferta é grande.

Que se poderia fazer para resolver essa necessidade?

Precisamos de uma rede de bibliotecas, de meios para distribuir livros pelo país. Mas a situação volta a estar difícil neste momento.

A tensão é assim tão grande?

Começamos a viver uma situação de insegurança. Já há colunas militares a acompanhar os carros pela estrada número um… Já começa a ser parecido com há uns anos atrás.

E a sociedade civil moçambicana ainda não tem força para se opor a esse “estado de sítio”?
Manifesta-se muito, faz muitas coisas, comunicados mas, no limite dos limites, não tem ainda o poder para se opor com veemência ao que está a acontecer.

Como está vida cultural em Moçambique?
Está viva. O teatro, até o cinema, mais caro, produzem. Na literatura edita-se muito, com maior ou menor qualidade. E a cultura é um sector olhado com prestígio, o que não é mau. Não existem ainda é políticas governamentais que entendam que a cultura (para além de fortalecer a moçambicanidade plural, a unidades e os chavões que se quiserem) também pode acrescentar valor ao PIB.

Hoje fala-se é de diplomacia económica.
E só se fala em diplomacia económica. A cultura é sempre vista como algo menor. O poder político tem de perceber que a cultura não são apenas umas festas para consolidar a implantação do partido nesta ou naquela região, como é o caso do famoso Festival Nacional de Canto e Dança, ou do Cultural Nacional. É preciso criar dinâmicas: uma verdadeira associação de autores, subsídios para o teatro e para o cinema, que não há. Formas de investimento para atrair públicos, gerar massa crítica e educar o gosto. Edições subsidiadas pelo governo, dos grandes mestres como se está a fazer em Itália. Mas em Moçambique, de uma forma geral, só se pensa no luxo, no papel couché e coisas dessas.

Nestes últimos anos tem-se assistido à entrada de muitas empresas chinesas em Moçambique. Como tem sido a relação com os locais?
Há um problema de comunicação. Uma coisa são os chineses e macaenses que estão lá há mais de cem anos, a outra são estas empresas, na maioria estatais, que chegam agora. Contratam os locais para lugares menores, querem tudo na velocidade chinesa e o moçambicano não é assim. Não quer dizer que seja preguiçoso, mas tem outro ritmo. E se pagassem decentemente, também ajudaria.

E de um ponto de vista mais geral? Há benefícios claros para a população?
Hoje começa é a questionar-se o modelo de cooperação chinesa com África. Há benefícios claros porque se abriu a estrada ‘x’ ou ‘y’ mas depois não há interacção. A empresa chega, monta o estaleiro, propicia um trabalho sazonal não muito bem pago, não há grandes convívios, a obra acaba, vão-se embora. Um ou outro escapa e fica mas são casos pontuais. É um esquema de cooperação um bocado disfuncional.

Fala-se muito da responsabilidade do mapa cor-rosa por parte dos problemas de África. Que ideia tem sobre isso?
É o ultimo argumento de um novo olhar europeísta sobre África, que seria o mais perigoso. Querer isso para África agora seria a desgraça total e completa. Aquando da conferência de criação da Organização da Unidade Africana, em 1963, foi acordado deixar tudo como está. Quando há conflitos graves, há estudos sobre isso, as causas, normalmente, não são étnicas mas derivadas da injustiça na distribuição da riqueza, da falta de criação de oportunidades, de poderes políticos nepotistas.

Tenho a ideia que, para si, a palavra ‘tolerância’ não tem a conotação de bondade que normalmente lhe atribuímos. É mesmo assim?
Lá para trás foi boa quando o John Locke escreveu o “Ensaio sobre a Tolerância”, quando existiam as guerras religiosas na Europa. Fazia todo o sentido e continua a fazer um certo sentido, claro. Mas uma pessoa que se diz tolerante é um bocado arrogante. Que categoria tenho eu para ser tolerante ou deixar de ser tolerante? Ou tenho opiniões ou não tenho. A minha posição deve ser a do discurso, da discussão com o outro, para ver se chegamos a acordo, ou não, mas cada um com as suas ideias ou cultura. Não é preciso guerra por isso.

Um dia foi exilado…

(interrompendo) Exilado é uma palavra muito fina para mim porque fui um refractário. Exilados são os políticos. (risos)

Como aconteceu?
Não queria participar na Guerra Colonial e queria ir para a luta de libertação. É tão simples como isso.

Porquê a Suécia?
Por contactos. Porque havia lá uma base dos três movimentos de libertação: Frelimo, PAIGC e MPLA com base na CONCP (Conferência da Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) criada em Rabat logo a seguir ao início da guerra em Angola.

O que gostava que um dia fosse o seu legado? A recordação do seu trabalho como jornalista, escritor, activista?
Não gostava de nada porque nessa altura já cá não estou. (risos). Mas sim, gostava que recordassem um trabalho sério e rigoroso.

Que trabalho será esse?
Algumas propostas para o maravilhamento do mundo.

Um desejo para Moçambique
Paz.

23 Mar 2016

Angelo R. Lacuesta, escritor: “A história dos filipinos está cheia de drama”

O escritor que começou por ser poeta revela uma predisposição para o conto e diz-se incapaz de escrever sobre o amor quando diariamente as pessoas do seu país enfrentam dificuldades económicas. Angelo R. Lacuesta esteve em Macau a convite do Festival literário Rota das Letras, naquela que foi a primeira vez que se falou da literatura filipina. Lacuesta diz estar muito ligado à política do seu país, esperando mudanças na luta contra a pobreza e corrupção

[dropcap]E[/dropcap]sta é a primeira vez que este Festival Literário aborda a literatura filipina. Como se sente a participar neste evento?
Sinto-me muito sortudo por estar aqui, por ser o primeiro escritor a representar a literatura filipina. Vim com a minha mulher, que é poetisa (Mookie Katigbak-Lacuesta). É um festival impressionante, sempre ouvi falar de Macau como uma cidade de turismo, mas nunca pensei que pudesse ser uma cidade de encontro de literatura. Nas Filipinas também somos oriundos de várias culturas, americana e espanhola, e então existem algumas semelhanças com Macau. Aqui não existe apenas a cultura portuguesa mas há uma ligação com outras culturas asiáticas e é isso que considero ser especial e único.

Disse uma vez numa entrevista: “Sempre tive uma preferência por contos”. Que histórias pode transmitir num conto que não o pode fazer num romance?
Adoro contos. Na verdade comecei como poeta, mas penso que os contos conseguem transmitir melhor as nossas histórias. Penso que é a melhor forma de contar a nossa própria história. O conto, comparando com o romance, é mais relevante, pode ler-se em menos de uma hora, carrega momentos enigmáticos e mistério. Um romance pode fazer muitas outras coisas, mas há algo de especial no conto.

Como foi passar da poesia para o conto? Isto porque são géneros diferentes, mas podem ser semelhantes ao mesmo tempo.
Sim. O que mais gosto no conto é que pode conter uma ideia poética, uma imagem. Contudo, a transição da escrita de poemas para os contos é muito difícil. Há muita dor envolvida. Sempre que tentei escrever um poema, acabei por escrever um conto, porque um poema não pode conter o drama de uma situação específica naquele momento. A história dos filipinos, por exemplo. Está cheia de drama, de realidade. É algo que a poesia não consegue expressar.

Falando dos problemas económicos e sociais do seu país. É importante expressá-los na escrita?
Absolutamente. É sempre dever de um artista reflectir sobre a sociedade onde está inserido e penso que posso falar sobre os problemas que a nossa sociedade enfrenta actualmente. Muitas pessoas não podem falar por elas próprias, não têm capacidade de escrever por elas próprias. Temos uma enorme diferença entre ricos e pobres e os pobres não conseguem expressar-se. Então conseguimos compreendê-los melhor quando escrevemos sobre eles. E expomos as falhas da nossa sociedade. Não posso escrever sobre amor quando estas histórias dramáticas estão a acontecer à frente dos meus olhos. Torna-se quase uma missão escrever sobre isso.

Essa diferença entre ricos e pobres faz com que muitos filipinos não tenham acesso à educação. Como é a relação da sociedade com a literatura?
Um último sucesso da literatura a nível nacional deve ser algo que toda a gente consiga ler e compreender. Para mim o mais efectivo na literatura é o sentimento. Quando escrevo, faço-o em Inglês, mas quando escrevo um guião para um filme, faço-o em Tagalog, para que todos o possam compreender e ver. E essa é a missão da literatura, para que todos percebam e criem as suas próprias batalhas contra as injustiças e desigualdade social. Se fizermos uma história para os pobres, para os filipinos que trabalham muito e não têm tempo para ler livros, nem dinheiro para os comprar… não vou dizer que escrevo por eles, mas escrevo para eles e é uma honra ser lido por eles.

Como descreve o mercado literário nas Filipinas? Necessita de ser desenvolvido, de ter mais escritores?
Absolutamente. A literatura está sempre em constrangimento consigo própria e com a sociedade desde sempre, especialmente num país como as Filipinas e numa sociedade como a nossa. Há um constrangimento para as pessoas que querem apenas escrever. Eu tenho um trabalho, tenho uma agência de publicidade, não consigo ser apenas escritor. Tenho de o fazer, apesar de me dar liberdade para escrever. É um paradoxo, porque se me tornar apenas escritor, fico pobre e perco essa liberdade. Vivemos num mundo digital, se pusermos fotografias no Facebook, as pessoas pensam que ganho dinheiro só por ir a festivais literários e não apreciam tanto a nossa escrita. Mas os meios digitais, e os filmes, são muito importantes, tal como a música. São canais para a literatura.

As Filipinas são um dos países mais perigosos para os jornalistas. A censura é ainda algo visível?
Tenho o maior respeito pelos jornalistas, que têm tido um trabalho mais difícil. Há muitos jornalistas assassinados nas Filipinas, mas isso é devido à política local. Não é uma questão de censura, quase não temos censura no nosso país.

Está tudo relacionado com o crime ?
É o crime, se alguém disser algo errado quase que existe a liberdade para matar essa pessoa. Esse é um grande problema porque o resto da sociedade parece não se preocupar, não são jornalistas, e há esse constrangimento na nossa sociedade para deitar a verdade cá para fora e ir contra a corrupção, conspirações, os políticos locais. Mas a luta deve continuar e, por cada morte, pode ser que a sociedade comece a despertar para esse problema.

As próximas eleições presidenciais poderão mudar algo?
Sim e não. Começo por dizer que estou muito ligado à política. Não irá mudar nada, porque, em primeiro lugar, o que precisamos de alterar é a estrutura da sociedade, a diferença entre ricos e pobres, a nossa ideia de capitalismo.

E talvez a ideia que as pessoas ainda têm em relação à corrupção.
Sim. Para mim a ditadura é uma forma de corrupção, mas com o capitalismo é muito fácil ser-se corrupto. O nosso sistema político está preso à ideia de que é preciso ser-se rico para se ser presidente do país. Tivemos uma ditadura durante 30 anos, que abafou os media, torturou jornalistas e pessoas comuns. Hoje podemos dizer o que queremos no Facebook e fazemos queixas e temos a certeza de que os militares não vão bater à nossa porta. Não, o sistema político não vai mudar e ainda há o problema dos muitos ricos que estão a ganhar mais dinheiro e dos pobres que estão cada vez mais pobres. Mas penso que graças às redes sociais, à literatura e ao cinema, as pessoas estão a ficar mais conscientes dessa diferença social e de como podem mudar as coisas. A questão é os filipinos que estão a viver fora do país, como aqui e em Hong Kong: eles são uma das chaves para a mudança. Penso que as coisas vão melhorar. Também sou muito paciente. Levou aos países europeus 300 anos para terem uma democracia absoluta, então nós podemos esperar mais cem anos.

Falando das comunidades filipinas em Macau e Hong Kong, há muitos casos de violação de direitos humanos. O Governo filipino deveria fazer algo em relação a estes casos?
Sim. Acredito que o sucesso para a nossa sociedade e economia seria o facto de toda a gente poder ter um emprego e não ter que sofrer. Não é uma questão de sofrerem com os seus patrões, para ser honesto, conheço muitas pessoas que trabalham no estrangeiro e que são muito bem tratadas. E todos sabemos que se regressarem ao seu país vão fazer menos dinheiro e essa é outra forma de abuso. É responsabilidade do Governo filipino garantir que todos os trabalhadores no exterior vivem e trabalham em boas condições. O facto das pessoas terem de sair para trabalhar é um sinal de fraqueza da nossa sociedade, mas isso também acontece a uma escala global.

Disse-me que não escreve sobre o amor, que escreve sobre questões do seu país. Qual o conto da sua autoria que melhor descreve as Filipinas?
As minhas histórias mais afectivas são sobre os filipinos que estão no estrangeiro. E não são apenas sobre empregadas domésticas, são também sobre os filipinos que vivem na América, por exemplo. Temos uma relação muito difícil com a América, um país que nos ocupou, e o mundo sabe disso. Tenho uma história sobre um filipino que vai para a América, participar numa conferência, e procura uma pintura que quer muito ver, de Edward Hopper. Uma pintura muito americana, sobre a solidão. Então todas as noites esse filipino pensa em ir ver a pintura, até que um dia apanha um autocarro. Mas não percebe que a pintura não é o que ele quer ver. Isso diz muito sobre nós: sabemos onde queremos ir mas nunca sabemos o que queremos fazer.

Os filipinos têm uma relação muito forte com a religião. Porquê?
Cresci num ambiente católico, mas não me considero um católico praticante. Mas é algo raro. Enquanto escritores de repente tornamo-nos humanistas, mais existencialistas. Os filipinos esperam sempre que algo aconteça, depois da ditadura de [Ferdinando] Marcos e, neste momento, quando atravessamos uma difícil situação social. A riqueza nas Filipinas está numa fase de progresso, mas para muitos continua a ser difícil apanhar um autocarro para o trabalho, leva duas horas. Então é fácil ligarmo-nos a Deus. Mas o facto de sermos religiosos faz com que muitas vezes não saibamos quebrar com os problemas da nossa sociedade. Se sofrermos, estamos a fazer bem, vamos para o céu. Eu prefiro dizer: “não vou sofrer mais, prefiro viver no céu aqui”. Se as pessoas são religiosas, não há problema, mas deviam começar a compreender-se melhor.

22 Mar 2016

Mário Laginha, músico: “Tive uma epifania quando vi Keith Jarrett”

Esteve em Macau a convite do Festival Literário Rota das Letras e tocou lado a lado com Cristina Branco. Mário Laginha fala do Jazz, do Fado e de todo um caminho cheio de música – um caminho que quase não acontecia por causa… da ginástica

[dropcap]O[/dropcap] piano vem desde muito pequeno. Foi por opção, por gosto?
Começou porque tive sorte. Porque os meus pais tinham interesse em que os filhos tivessem uma educação completa e queriam que, tanto eu como o meu irmão, [aprendêssemos] música, um desporto e o ensino convencional. Portanto, comecei por ter essa sorte, por ter uns pais que queriam que fizesse isso. A minha mãe tinha percebido que eu tinha muita facilidade [em aprender] e tive a sorte de gostar tanto de estudar piano que, para mim, era um prazer. Não olhava para aquilo como um estudo, era o que gostava de fazer. Em vez de ir jogar ao berlinde, ia tocar piano. Isso permitiu-me evoluir depressa ainda novo. E acho que foi graças a isso que, apesar de ter parado alguns anos, que são importantes quando se estuda música no piano, deu para recuperar.

Esses anos de paragem aconteceram por volta da adolescência? Apareceram outras músicas?
Tive vários gritos do Ipiranga. Estava um bocadinho farto. Diziam que tocava muito bem para a idade e sempre que ia alguém lá a casa, era “olha João, vai lá tocar um bocadinho”. E não foi só isso: na escola havia concertos aos sábados e eu, por tocar bem, não tinha dia descanso, ia para escola todos os sábados de manhã. Acho que isso me começou a cansar um bocado em relação ao piano. Comecei a olhar para o piano de uma outra maneira: “eu gosto mas obriga-me a estar indisponível quando às vezes gostava de estar disponível”. Entretanto pedi ao meu pai que me desse uma guitarra, que deu, e durante uns tempos só queria tocar guitarra. Queria uma coisa muito rock, mais do meu mundo da altura. Curiosamente a música que ouvia não era aquela que normalmente tentava tocar na guitarra, não sei por quê. Andava muito apaixonado pelo Paco de Lucía e pelo flamenco, tentava fazer umas coisas, sempre auto-didacta. E o que ouvia era o que se ouvia na época: Génesis, Jethro Tull, Emerson Lake & Palmer. Numa coisa mais rock, era Deep Purple, Black Sabath, etc. Mas o meu apreço maior era a ginástica.

Foi quase atleta Olímpico. A música e a ginástica eram uma espécie de “dois amores”?

Sim, mas na altura a música era uma coisa que estava posta de parte, pelo menos no ponto vista do querer utilizar isso no futuro. Era uma coisa que tinha feito e tocava umas guitarradas se fosse preciso. Ao piano não ligava nada. A ginástica gostava muito. Sempre pratiquei ginástica destes os três anos. Competia em todas as seis modalidades e praticava várias horas por dia.

Como é que a música voltou a ser uma opção mais séria?
Tive uma grande epifania quando vi [Keith] Jarrett na televisão. Não sabia sequer quem era, vi um tipo a tocar piano – na altura estava com o cabelo tipo carapinha – e achei que era a coisa mais fascinante que podia ouvir. Aquilo mudou-me a vida completamente. Não sabia que se podia tocar piano assim! “Assim, eu quero”, pensei. Antes disso já estava um bocadinho mais desperto para a música porque no ginásio, lá no Dafundo, houve um dia em que estavam fazer umas arrumações de uns colchões e por trás de um colchão descobriram um piano vertical. De repente, um dos meus colegas começou a tentar tocar uma música no piano. Eu fui lá e toquei. Ele disse:“tu sabes tocar piano assim e nunca falaste nisso?” Nem sabiam que eu tocava piano e eram meus amigos íntimos, de há cinco anos. Como tinha bases sólidas, não tentei tocar, toquei. E aquilo, de certa forma, despertou-me um nadinha. Será que estou a desprezar uma coisa que não deveria? Isto foi antes de entrar na sala e dar com Jarrett, que, na altura, não sabia ainda que era o Jarrett, a tocar. Depois o meu irmão comprou-me um disco, o “Facing You”, que ainda hoje é um dos meus discos de eleição, é um disco esmagador. Aquilo que curiosamente ouvi no disco era mais complexo do que aquilo que me tinha conquistado, mas era uma complexidade que ouvia a primeira vez e à segunda já estava completamente apaixonado. Estava no propedêutico nessa altura e as aulas eram na televisão. Eu não via nenhuma, nada. A partir do momento em que o descobri fui para o piano e pronto. Levantava-me e ia tocar piano. Inscrevi-me na Academia dos Amadores de Música e depois no Conservatório. Ao princípio até para me apoiar porque o que queria tocar era Jazz. Aliás, no princípio nem queria tocar Jazz, queria tocar como ele, o que era uma coisa muito ingénua claro, sob todos os pontos de vista, mas com muita força. Depois quis saber como é que ele tinha chegado ali, então soube que estudou Jazz. Ai é? Então também vou estudar Jazz, que apareceu de uma forma muito naif. Comecei a estudar e conheci várias pessoas, um dos meus amigos da época, o Luís Sá Pessoa, que toca violoncelo e que se dedicou mais ao clássico disse-me: “Acho que também te deverias inscrever no conservatório para melhorares a técnica.” Inscrevi-me e, ao princípio, ao contrário do que as pessoas pensam, não era uma coisa para levar a sério. Só que gostei tanto daquilo que decidi levar o curso até ao fim. mário laginha

Entre o Jazz, o clássico e outras abordagens, onde é que o Mário se situa?
Acho que o meu mundo musical é bastante poroso, as coisas que gosto comunicam-se e deixo que isso me influencie. Mas considero-me muito mais músico de Jazz do que propriamente um pianista clássico, que tem nas mãos as notas das partituras de Mozart. Quando faço algum repertório clássico estou imenso tempo a estudar e faço-o em situações muito particulares. Por exemplo, agora estou a preparar um repertório novo com o Pedro Burmester  para dois pianos e estou focado naquilo, mas de uma maneira geral não estou focado no clássico. Sou muito mais músico de Jazz, em relação às influências. Acho que para mim e muitos músicos da minha geração, e provavelmente das vindouras ainda mais, a música passou a estar toda ao alcance. Sempre tive muita influência de música africana, não pela minha ascendência, [infelizmente], mas porque gostava. Costumava comprar discos, aqueles que na época só havia na “Book Close”. Na parte de baixo havia uma parte só com música étnica, muitas vezes era de uma tribo não sei de onde e ouvia aquilo e adorava, porque sempre achei que era de uma grande simplicidade do lado melódico e de grande complexidade no lado rítmico, mas tudo aquilo é feito no equilíbrio e acho que me apaixonei por isso também. Tenho muitas influências e quero que isso se repercuta naquilo que faço, que é a minha personalidade musical. Que seja reflexo dessas paixões todas.

No 25 de Abril de 1974, faz 14 anos. Sentiu pessoalmente as mudanças ocorridas, nomeadamente no que respeita ao acesso à cultura?
Muito do que tenho consciência que mudou também me foi contado, ou seja, quando quis procurar coisas e encontrei. Posteriormente soube que só havia aquilo porque tinha existido aquele 25 de Abril. Percebi que a cultura se tornou muito mais universal, que o acesso a essa cultura universal passou a ser uma realidade, que era uma coisa à qual não estávamos habituados. Estávamos virados para o nosso umbigo pequenino, era o folclore, era o Fado e havia a música clássica. Acho que o meu pai ficou em pânico quando lhe disse que me ia dedicar à música. E tinha uma boa razão para isso, ele achava que, se não ia ser músico clássico, como pianista ia acabar num hotel a tocar, o que era o que os músicos da minha época, antes do 25 de Abril, faziam. Os músicos de Jazz eram-no por hobby.

Isso remete para a eterna questão relacionada com o “viver da música”. Como foi para si no início de carreira?
Muito complicado. Durante os primeiros dez anos tive sempre a fazer contas para comer. O meu pai é da velha guarda e eu tinha feito uma opção, portanto tinha que me aguentar e responsabilizar-me por ela. A verdade é que o meu pai não me deixava ficar mal mas ele não me dava dinheiro e eu tinha que lá ir pedir. Já tinha dois filhos entretanto e, quando o frigorífico estava vazio, era uma coisa que tinha que fazer. Mas, apesar de tudo, não houve dramas.

Já não é primeira vez que está em Macau. O que é para si, estar aqui? É tocar para um público português?
Gosto de pensar que não é só para um público português, mas é essencialmente português. Quando uma pessoa sai do seu país há uma carga emocional, de saudade ou do que seja, que as torna ligeiramente diferentes do que essas mesmas pessoas seriam se estivessem a viver em Portugal, provavelmente. Quando estou a tocar muito sinceramente não noto que haja uma diferença, as pessoas são calorosas como costumam ser em Portugal. O que talvez note mais é depois, quando vêm falar, às vezes pedem um autógrafo e penso que há ali, não sei se é uma nostalgia, mas uma saudade em relação ao país de origem e, muitas vezes, uma espécie de identificação cultural. Acho que sentem que pertenço a isto, pertenço a esta cultura e acho que o sentimento de pertença é uma coisa muito boa, que nos ampara. O que penso nestas situações é que, se posso ser uma peça do puzzle que faz as pessoas sentirem-se bem naquele momento, já é óptimo.

Solo, dueto, trio, quinteto e outros “etos”… Como é que, para si funciona este processo de colaborações?

O facto de trabalhar tanto em grupo é porque gosto e a razão pela qual gosto tanto é porque me dá um prazer enorme na partilha de ideias, neste caso ideias musicais. Na realidade, quando nos tornamos amigos não se partilham só ideias musicais, mas no acto de fazer música sim. Acho que escrevo muita música e, quando escrevo, a única pessoa que deu ideias para aquilo fui, obviamente, eu. Gosto muito quando estou a escrever para outras pessoas e lhes dou a partitura – às vezes vêm outras ideias, mesmo ao nível de interpretação. Por exemplo em trio, com o Alexandre Frazão na bateria e o Eduardo Moreira no contrabaixo, às vezes com o Alexandre falo num ritmo e ele faz outro e gosto mais do outro do que aquilo que tinha imaginado. Às vezes a linha de contrabaixo é ligeiramente diferente também e esse processo sempre me fascinou, tenho muito prazer. Agora as escolhas têm a haver com um gosto pessoal e também com os convites que tenho e gosto ou não gosto, aceito ou não.

Uma das suas colaborações sobejamente conhecidas foi o casamento musical com a Maria João. O que fica dessa união?
Ainda tocamos juntos, mas muito raramente. Não houve assim uma coisa de “agora nunca mais”, mas acho que tem sido uma partilha incomum porque somos muito diferentes ainda que os nossos lados sejam coincidentes, são muito fortes. E os lados que não são complementam-se de uma maneira que também funciona. Em Portugal, sei que não há a história de um duo que tenha gravado 14 discos, e nós temo-los. Não sempre em nome dos dois, os primeiros em nome dela e depois em nome de ambos. É muito disco junto e muito tempo. Temos um património enorme em que tenho um orgulho imenso. Acho que algumas das coisas melhores que já fiz estão aí.

E agora esteve em Macau num projecto mais ligado ao Fado, ao acompanhar Cristina Branco.

Com a Cristina o que fiz foi um projecto que veio de uma encomenda também para um festival literário, o de Óbidos, e era para fazer um repertório à volta de Chico Buarque. Ela depois perguntou-me se não queria fazer aquilo com o meu trio e com ela, achei logo a ideia maravilhosa. Adoro o Chico, adoro as músicas, adoro as letras. Fizemos isso e acho que nasceu daí a ideia de convidarem a Cristina, mas queriam que ela viesse mais com Fado, até por causa disto da comunidade portuguesa. Acontece que o pianista com quem ela viria tocar não tinha estas datas livres, numa feliz coincidência. E também já fiz muitas canções para a Cristina. Inicialmente não suportava o Fado. Na realidade, foi uma coisa progressiva. Naquela época em que estava muito concentrado no Jazz, não tinha qualquer interesse no Fado, estava mesmo voltado para outro lado. A única coisa que gostava com a guitarra portuguesa era o Carlos Paredes – que adorava – mas a coisa do Fado… aquilo não me dizia nada. Depois foi uma coisa que surgiu aos poucos. Um dia ouvi uma coisa do Camané que gostei, depois ouvi uma outra que também gostei até que achei que já podia dizer que gostava. Não gosto de tudo, o que também é verdade, mas também não posso dizer que gosto de tudo noutros géneros musicais.

21 Mar 2016

Wu Ming-yi, escritor: “Mais importante que o sucesso é a felicidade”

Wu Ming-yi, considera que o lado mais maravilhoso da escrita é poder fazê-lo contra qualquer tipo de pressão existente. Nascido em Taiwan, e convidado do Festival Literário Rota das Letras, Wu Ming-yi debruça-se sobre a necessidade de cuidar do ambiente e fala ainda de como a felicidade é mais importante que o dinheiro

[dropcap]F[/dropcap]alar sobre escrita com Wu Ming-yi é falar em desafios. Sempre que escreve e tenciona publicar alguma coisa, o escritor de Taiwan admite que tem de pensar sempre “se poderá ter algum problema”, ainda que também nos confesse que, na Ilha Formosa, onde nasceu, as coisas não são tão más quanto no continente.

“Os escritores taiwaneses preocupam-se sobretudo com o problema da impressão e em ter leitores. Quando publicamos no estrangeiro queremos ser lidos. Já o Governo chinês dá atenção a muitas coisas e o desaparecimento dos livreiros de Hong Kong trouxe um grande alerta para o público. Queremos sempre que haja liberdade para cada publicação e, enquanto escritores, acreditamos que os leitores são inteligentes e que os maus livros vão ser eliminados com o tempo, pela história. Mas a verdade é que, quando era jovem, também não podia ler certos livros, ainda que os lesse com os meus colegas às escondidas. Os políticos nem sempre conhecem bem a humanidade e isso é um limite”, confessa ao HM.

Wu Ming-Yi gostava de ver a literatura da ilha mais traduzida, de modo a fazer chegar a “cultura muito própria” de Taiwan ao Ocidente, que considera que vê Taiwan como a vê a China. “As pessoas que vivem em Taiwan sabem que não se trata apenas de política, a cultura é muito diferente”, assegura-nos.

O também ambientalista fala-nos da sua ilha, que caracteriza como um território pequeno, com pouco mais de 20 milhões de pessoas e onde “a cultura e a arte têm vindo a desaparecer graças à destruição do ambiente”.

A protecção ambiental, diz-nos, sempre foi “um lado importante” da sua vida e muito popular na juventude de Wu Ming-yi. “Nasci em 1971, a pior fase para a poluição, e acabou por ser natural que temas como a ecologia e a protecção do ambiente fossem abordados nas minhas obras”, diz-nos, admitindo que também enquanto dá aulas, já que é professor, aborda estes temas.

“Dou uma aula onde se criticam as políticas ecológicas e onde todas as semanas discuto os assuntos relacionados com a protecção ambiental com os meus alunos. Soube do caso da construção de um edifício no Alto de Coloane e dou esse exemplo em relação ao que acontece em Taiwan, onde temos grandes cidades, mas onde não podemos ignorar as pessoas que querem manter um estilo de vida simples ligado ao campo. Espero que sejam os residentes a tomar uma decisão e não o Governo”, atira ainda.

Recordar é viver

Não é a primeira vez que está em Macau, porque já cá tinha vindo com a mulher e também para dar aulas. Do tempo que já passou, relembra o território como a “vila piscatória e tranquila” que era, ao invés da cidade barulhenta e moderna em que se tornou. Mas Wu Ming-yi assegura que é possível promover “uma convivência e equilíbrios entre a protecção ambiental e o desenvolvimento” urbano. Também a natureza luxuriante de Taiwan está ameaçada pela poluição e vícios da vida moderna, como diz o escritor, à semelhança da população aborígene e da identidade taiwanesa, temas que marcam, aliás, as páginas de “The Man with the Compound Eyes”, o único livro traduzido para Inglês de Wu Ming-Yi e o quarto que publicou. Inspirado no bucolismo dos antigos poetas chineses, o livro recupera um movimento literário taiwanês dos anos 1980, quando o desenvolvimento industrial despertou uma forte consciência ambiental na ilha.

Em Macau para a sessão deste ano do Festival Literário Rota das Letras, Wu Ming-yi falou com estudantes locais, que se mostraram até curiosos sobre a cultura da Formosa. Mas não é só isto que parece preocupar os nossos estudantes.

“Os jovens de Macau e Hong Kong sentem-se ansiosos em relação ao sistema político ou ao ambiente, os modelos de pensamento nestas regiões são semelhantes. Mas, os pais deveriam encorajar os filhos que querem ser outras coisas, como ser pintores ou artistas de rua. Devem encorajar os seus filhos a encontrar o modelo certo para a sua vida, porque a educação chinesa não é assim. Os pais preocupam-se se os filhos vão ou não ganhar dinheiro. Eu digo sempre aos meus alunos que, mais importante do que ter sucesso, é termos felicidade.”

Ainda que tenha pisado pela quarta vez a RAEM, esta foi a primeira vez que veio como escritor, um trabalho que Wu Ming-yi – cujo escritor preferido é Anton Tchekhov – tem de coadunar diariamente com o papel de professor universitário. “Parte do meu dia é passado a escrever e quero sempre ter sempre tempo livre para escrever, mas tenho um horário muito cheio, sobretudo com o trabalho da universidade. Só posso escrever as minhas obras nas férias ou feriados”, diz-nos.

18 Mar 2016

Rui Zink, escritor : “Acho que Portugal é um país democrático a sério”

Findo o século da predominância da cultura americana, assistimos ao brotar da cultura e literatura chinesa. É assim que pensa Rui Zink, escritor português que regressou ao Rota das Letras e que pôde, por fim, descobrir Macau. Sobre o Portugal de hoje, Rui Zink fala de um país que pode ser um “farol de luz e bom senso” em relação à Europa

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]a segunda vez que está neste Festival e este ano teve a oportunidade de ajudar na escolha dos convidados.
O meu plano secreto é tomar o lugar do Hélder Beja e do Ricardo Pinto e daqui a dois anos ser eu a fazer o Festival. Mas foi uma grande honra e, pela primeira vez, estou a ver Macau e o Festival. Porque na primeira vez somos peixes de outro aquário. Já me sinto mais dentro e ficarei muito zangado se não me convidarem para uma terceira vez.

Macau, e sobretudo a comunidade portuguesa, está a aceitar mais o evento, a participar mais?
Não posso comparar as cinco edições, mas posso dar como exemplo o maior evento do género em Portugal, que é o Festival Correntes D’Escritas, que levou dez anos até se tornar no menino querido das gentes do norte e dos jornais. Um festival leva tempo a crescer e penso que este [Rota das Letras] tem elementos base para ser um grande festival. Tem escritores variados, participação com instituições locais e idas às escolas, que são fundamentais. Tive a oportunidade de ler muitos livros de autores que conheci aqui, como é o caso de “I love my mum”, de Chen Xiwo. Fiquei espantado com a sua franqueza. Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos.

A literatura chinesa está a tomar as rédeas da literatura mundial e vai ser cada vez mais falada? Os escritores chineses estão a começar a ter essa garra para escrever sobre outros assuntos?
É natural que tenham. Há um mito muito simpático, que é o dizer que a arte está contra a política e a economia. É mentira. Se há coisa que a história prova é que esse bonito mito é uma fraude. O poder da arte acompanha o poder económico e político. Passámos metade do século XX a ver cinema americano, a ler literatura americana e a ouvir música americana. O século XX foi o século americano. A cultura resiste enquanto o dinheiro dura e isto é um facto. Agora falo do século chinês.

Que é este que está agora a começar.
Sim. Está a começar e não tem mal nenhum, porque já houve um século português. Temos é de ser sexy, seja quando estamos por cima ou por baixo. Há uma grande curiosidade, os [autores chineses] começam a ser traduzidos, a China é um gigante. Mas os escritores americanos do princípio do século liam literatura francesa e inglesa, os clássicos, e assimilaram. Neste momento o que vejo em muitos escritores traduzidos [é que] já escrevem usando os truques dos escritores que lêem. Tenho um livro que está aos poucos a ser traduzido pela Europa fora: “A instalação do medo”. E é interessante porque saiu agora na Alemanha e vai sair em França e cada país vê aquela história de forma diferente. Este livro foi traduzido porque diz algo ao gosto francês e alemão. Há livros meus que são muito inteligentes e que não podem ser traduzidos, porque em Alemão, por exemplo, os leitores não iriam compreender.

Os seus livros conseguem ser compreendidos em Chinês?
Sim. Tenho os elementos de humor e franqueza que o público chinês adoraria ler.

[quote_box_left]“Tinha aquela ideia de que os chineses são delicados de mais e nós, portugueses, é que somos directos. Acho que nós portugueses é que somos pouco directos”[/quote_box_left]

Falta humor na China, na literatura?
Não, pelo contrário. O que acho é que o humor é muito difícil de traduzir. É eminentemente cultural.

Escrever em Portugal é mais difícil nos dias de hoje?
Porque é que haveria de ser mais difícil?

Por questões económicas e sociais. Há uma censura escondida?

Não. Usar a censura como desculpa para não escrever é uma cobardia.

É como se o escritor desistisse?
Escrever é a única arte em que não dependemos dos poderes, é papel e caneta. Depois o que há é preguiça ou trabalho.

Mas a crise económica trouxe constrangimentos ao mercado editorial.
Há, e é natural, um maior fechamento do mercado editorial, quer a nível de livros e de distribuição, quer a nível de jornais. Houve jornalistas despedidos e há menos gente a ganhar dinheiro a escrever para jornais. Mas isso não tem a ver com censura. Se fosse jornalista sentia-me censurado e perseguido, por estarem a dar cabo do meu ganha-pão. Mas não sou jornalista, e como sou escritor, não posso usar o argumento da censura económica para escrever o que me apetece.

[quote_box_right]”Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China”[/quote_box_right]

Sobre a questão de, em Portugal, mostrarmos aquilo que o turista quer… Em Lisboa vão fechar bares que fazem parte da sua geração, como o Jamaica e o Tóquio. Catarina Portas, empresária, fez há dias uma forte crítica sobre o fim de negócios tradicionais na cidade. A Lisboa que conheceu e que está no imaginário de muita gente está a desaparecer?
Não. Não gosto de muitas coisas que estão a acontecer. Mas havia mais coisas na minha infância que não gostava que estivessem a acontecer. Nasci no Bairro da Pena e aí as varinas andavam descalças. As pessoas atiravam urina para a rua. Lisboa cheirava a mijo e as pessoas escarravam na rua. Na casa onde morava não havia casa de banho, havia uma pia e um penico e tomávamos banho uma a duas vezes por semana. Não havia água quente. Vendo as coisas cruamente, a minha infância foi maravilhosa, mas foi em ditadura. A nostalgia é sempre perigosa. O Jamaica vai fechar, tenho pena, mas a verdade é que só já ia ao Jamaica uma vez por ano e era quando estava muito bêbedo. Gosto muito do Jamaica, há algumas memórias minhas que se vão perder, mas amigos meus morreram e isso é muito mais grave. A natureza da vida humana é desaparecermos um dia. Chateia-me os tuk tuk, mas chateavam-me mais as varinas irem para casa descalças, para sítios que não eram casas.

Participou numa palestra que tenta estabelecer uma comparação entre a Revolução Cultural na China e o 25 de Abril em Portugal. Que ligação é possível estabelecer aqui?
(Risos). Se há uma coisa que este debate prova é que uma palavra pode ser usada para dizer uma coisa e o seu contrário. Obviamente que a Revolução dos Cravos foi boa, talvez não tenha sido para muita gente, mas para mim foi maravilhosa. A verdade é que a minha imagem da revolução portuguesa é isto: é termos uma democracia que funciona e uma sociedade onde não damos tiros uns nos outros. Acho que somos um país democrático a sério, se calhar um dia seremos um farol de democracia e bom senso na Europa. Já estivemos mais longe. Neste momento somos um país menos estúpido do que a França, porque somos mais tolerantes com o casamento gay, por exemplo. Sabemos construir um Governo, coisa que os idiotas dos espanhóis não conseguem (risos). Em Portugal temos um Governo que funciona. Como é que se forma um Governo? É contar o número de deputados, só isso. Não nos tornámos um país fechado e perigoso como a Hungria. Neste momento Portugal é um farol de luz e bom senso na Europa e talvez no mundo.

E os portugueses têm essa percepção?
Está aqui um português que tem. A revolução portuguesa deu-nos um país normal. Tanto quanto sei, a Revolução Cultural na China foi uma experiência que correu mal, um acto de violência, que tem a ver também com o espírito do tempo. O importante aqui é não repetir os erros. A Alemanha é hoje um dos países menos racistas do mundo e, no entanto, há 70 anos fizeram umas chatices, houve uns desacatos e alguns exageros. Os países devem olhar de frente para os seus erros, para não os repetir tão cedo.

Talvez a China não os queira voltar a repetir.
Não sou um especialista em China e não venho aqui dar lições de moral. Vejo com muita atenção o que se passa na China e vejo contradições diferentes daquelas que se passam em Portugal. Mas claro, é um bicho diferente. Mas todos temos contradições e ninguém tem tantas como os agentes culturais. Nós europeus temos de ter muito cuidadinho quando damos lições de moral e quando dizemos aos outros: “porque não fazem a paz?”. Quando a porcaria da Europa tiver 200 anos seguidos de paz, nem que seja no seu território, então começa a ter autoridade moral. Acho muita presunção e pouca água benta a Europa como dadora de lições a este encantador adolescente chamado China.

16 Mar 2016

Rota das Letras | Daniel Pires fala hoje sobre o poeta Bocage

Daniel Pires estará hoje a falar sobre o poeta português na sessão “Lembrando Bocage”, do Festival Rota das Letras. O autor confirma a reedição da obra completa este ano

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Festival Literário Rota das Letras cumpre hoje o seu objectivo de homenagear, a par de Camilo Pessanha, outro poeta português que esteve em Macau: Bocage. Em “Lembrando Bocage”, Daniel Pires, que dirige desde 1999 o Centro de Estudos Bocageanos em Portugal, será um dos oradores.

Ao HM, Daniel Pires falou da curta presença de Bocage no território e das poucas palavras que este escreveu sobre Macau.

“Era oficial da Marinha e foi colocado em Goa, depois em Damão e a seguir desertou e veio parar a Cantão. Em Cantão encontrou um negociante que o trouxe para Macau. E de Macau seguiu para Portugal, por volta de 1790. Cá era muito pouco conhecido, ainda não tinha publicado nenhum livro, daí ter passado despercebido. Mesmo assim escreveu alguma coisa, especialmente uma ode e um elogio às pessoas que o protegeram aqui, porque estava numa situação irregular. E escreveu também um soneto, esse sim talvez mais importante.”

Nesse soneto, “há uma caricatura” de Macau. “Nesta altura Macau estava em profunda decadência e não está muito longe da verdade aquilo que ele disse. Mas ele era uma pessoa extremamente crítica e teve consciência de aquela sociedade estava profunda decadência”.

Daniel Pires garante que a curta passagem por Macau não teve qualquer influência na poesia que Bocage viria a escrever. “Esteve aqui meses, veio para aqui apenas para esperar por um navio que o levasse de regresso ao reino. Não é mais do que isso. Bocage é um grandíssimo poeta, esteve pouco tempo cá mas o suficiente para escrever bem sobre Macau. Passou por dificuldades aqui, encontrou pessoas que o protegeram. Mas não há nada escrito nem documentos oficiais que digam que ele esteve cá. Era um jovem dos seus 24 anos e não deixou rasto nos arquivos”, disse o autor de uma tese de doutoramento sobre o poeta.

Do erotismo

Daniel Pires lançou em Setembro do ano passado a biografia ilustrada de Bocage, e este ano, numa altura em que se comemoram os 250 anos do nascimento do poeta, prepara uma reedição da obra completa em sete volumes, com a publicação da Imprensa Nacional.

O autor, apaixonado por Bocage desde que foi viver para a sua terra natal, Setúbal, considera que há ainda um grande desconhecimento dos leitores sobre a génese da poesia de Bocage e sobre o homem que foi. “Fala-se de Bocage em lugares comuns, sobre o facto de ter sido boémio e associaram Bocage à pornografia, o que não é verdade. Pode e deve ser associado ao erotismo, completamente diferente, mas alguns editores aproveitaram-se para vender livros, publicaram composições pornográficas e por baixo escreveram Bocage. Ele não publicou nenhum poema pornográfico. Depois também se associa Bocage às anedotas. Ele era uma pessoa irónica, mas daí até assinar as anedotas que correm por aí… ele tinha uma extrema sensibilidade e nunca poderia ter assinado esse tipo de anedotas”, rematou.

16 Mar 2016

Xi Wa, poeta e autora de “After Heaven is Shangai”

Xi Wa nasceu no Tibete e agora reside em Pequim. Chegou a Macau para mostrar não só os seus poemas, mas também os seus sentimentos. A escritora admite a solidão, mas acredita que cada um tem um destino diferente. Actualmente, confessa, há muitos chineses que se estão a dedicar pura e simplesmente à poesia

[dropcap]É[/dropcap] a sua primeira vez em Macau? Que impressões sobre esta cidade?
Sim, é a primeira vez. Gosto muito deste sítio, visitei o Cotai e percebi porque é que as pessoas do interior da China gostam desta cidade. O modelo de consumo é diferente, já não se importam tanto com dinheiro, mas apreciam o ambiente confortável e a sua beleza. Depois visitei também o Museu de Macau, que é bastante rico. Pareceu-me que os trabalhadores protegem bem os pormenores do museu, com um espírito profissional. Macau traz-me uma impressão muito boa, é pequeno mas é moderno e tranquilo, pode-se observar a civilização, a raiz da cultura e a história de Macau através de pequenos detalhes à vista de todos.

No domingo passado, fez uma leitura de poemas no edifício do Antigo Tribunal. Quais os poemas que escolheu para a audiência de Macau? E as suas mensagens?
Li dois poemas meus, chamados Shi Tang e Sonambulismo. Quando os escolhi, não pensei em trazer quaisquer sentimentos especiais a Macau. Na verdade, não sou boa a ler poemas e estes dois são os que domino melhor. E também os que gosto mais.

Já teve tempo para apreciar o ambiente literário de Macau?
Até agora ainda não contactei com muitos escritores do Rota das Letras. Mas gosto e respeito muito o poeta Yao Feng (Yao Jingmin), que é muito famoso. Escreve muitos poemas clássicos, explora muito a poesia. Parece-me que é muito considerável e elegante, causa-me muito boa impressão.

O que já aprendeu com ele?
Leio sempre os poemas dele, mas penso que não consigo aprender a escrever como ele. É único e respeito-o muito.

Como é que cria as suas obras no dia-a-dia?
Consigo ser séria no meu trabalho, mas também sou séria na minha vida, concentro-me e dedico-me completamente a cada assunto que tenho pontualmente. Durante o processo de escrita, escrevo os meus sentimentos, desde as sensações físicas até às mentais. Digo a verdade, com seriedade. Amores, dores… transfiro todos os sentimentos para a poesia.

Portanto, escreve o que sente?
Cada poeta escreve de forma diferente. Não sou uma pessoa que nunca pára de escrever. Mesmo que sinta algo que me impressiona muito, não escrevo logo, mas guardo no meu coração e relembro muitas vezes até ao momento indispensável, em que a minha mente está cheia, e escrevo. Mas esses sentimentos têm de passar sempre pelo filtro do meu espírito e coração, porque se eles desaparecerem alguns dias depois de terem aparecido não acho que valha a pena escrevê-los. O que conta, o que me importa, é o tempo que ficam guardados em mim, no meu coração.

É escritora a full-time?
Trabalho também para uma revista e sou organizadora de eventos de pinturas tradicionais chinesas, escrevo também comentários sobre as pinturas. Um dos pintores convidados para o Rota das Letras, Ouyang Shijian, foi sugerido por mim. É muito jovem e pouco conhecido na China continental e o facto de conseguir ter a oportunidade de mostrar as suas obras em Macau faz-me sentir muito comovida.

Como avalia o actual ambiente da escrita na China continental?
Sou uma pessoa que não contacta muito com o exterior, mantenho uma distância com outros poetas. Sou uma pessoa que vive com a solidão e acho que não tenho capacidade para comentar [a vida dos outros]. Ou comento, mas não mudo. Faço o que faço, digo a verdade e o que posso estar a sentir, mas também comento o que considero que pode melhorar. Apesar de ser uma pessoa fechada, sei que existe no interior da China um bom número de pessoas que luta pelos seus poemas, que não fazem outras coisas excepto escrever poesia, com muita insistência e exigindo muito deles próprios.

Mas acha que as novas gerações lêem muito a literatura do seu país?
Nem todos os jovens lêem. Apenas uma pequena parte que tenha gosto, sensibilidade ou talento para a língua [chinesa]. O facto é que muitos jovens não se interessam por poemas e também não é preciso obrigá-los a interessarem-se, porque eu acredito muito no destino: cada um tem o seu gosto e talento para desenvolver: ou filmes, ou pinturas, ou tecnologia.

A Xi Wa começou a escrever desde a infância?
Eu gosto de poesia desde a infância, mas comecei por escrever romances quando tinha 20 e tal anos. Vários anos depois, pensei ser poeta porque senti que o meu interesse essencial era a poesia. Comecei a vida de poeta desde 2006 e até agora.

Já está a preparar novas obras?
Neste momento não, porque a criação surge subitamente. Não planeio trabalhos fixos para mim. Mas onde vivo, o que experimento, o que compreendo é sobre o que escrevo. Penso que, quanto mais experiência tenho, mais consigo expressar os poemas que sinto estarem mais ligados ao meu coração e sinto que estou mais sincera [a escrever].

15 Mar 2016

Adam Johnson, autor de “The Orphan Master’s Son” e vencedor de um Pullitzer

Venceu em 2012 o Pullitzer para Ficção com uma obra sobre a Coreia do Norte. A mistura de ficção com realidade é algo a que Adam Johnson se entrega de corpo e alma, num caminho onde as emoções e o ser humano são a sua maior inspiração. Em Macau pela primeira vez para o Rota das Letras, só “viu casinos” e a Universidade de Macau, da qual “gostou muito”

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]enceu um Pullitzer para Ficção em 2012, com o livro “Orphan Master’s Son”. Alguma vez pensou conseguir este prémio?
Entre os milhares de livros publicados nos EUA, apenas um é escolhido e seríamos uns tontos em pensar ganhar algo como um Pullitzer. Escrevi este livro ao longo de muitos anos e nunca conheci ninguém que estivesse a escrever ficção sobre a Coreia do Norte… todas as pessoas com quem falava sobre o livro olhavam para mim como se fosse maluco, mas eu sentia-me profundamente apaixonado pelo livro. Contudo, só queria que fosse publicado e esperar que, talvez, as pessoas ficassem tão ‘infectadas’ e curiosas face ao livro quanto eu.

adam johsonFoi arriscado e difícil escrever um livro de ficção sobre a Coreia do Norte?
É um lugar sobre o qual sabemos muito, mas não podemos provar nada. Mas acho que é mais desafiante para jornalistas escrever sobre a Coreia do Norte, porque eles ouvem os rumores e as histórias, mas não conseguem confirmar nada. Nada pode ser verificado, mesmo que milhares de pessoas tenham saído da Coreia do Norte. Essas pessoas contam a sua história e, como um novelista, essas histórias, esses pesadelos, esses mitos e rumores são valiosos para mim. Mas um jornalista não pode usá-los, por isso acho que, neste caso, a ficção consegue preencher um vazio que a ‘não-ficção’ não pode.


Esteve no país seis dias, além de ter feito investigações aprofundadas. A realidade lá é mesmo como as pessoas descrevem?

Tive lá, sim, mas numa viagem muito controlada. Estava já a meio do livro e o que queria mesmo saber eram coisas que poderia ganhar com a minha visita lá: eram as ruas pavimentadas com asfalto ou pedra? Qual era o cheiro nas ruas? Que sapatos é que as pessoas usavam? Havia cortinas nas janelas ou cortinas que isolavam as casas do mundo como eu tinha lido? Perguntei onde é que estavam as caixas de correio, as estações de bombeiros… Como é que tudo funcionava. Mas o único sítio no mundo onde não se pode falar com um norte-coreano é na Coreia do Norte – é ilegal para um cidadão falar com um estrangeiro. Então soube que só iria aprender a verdade sobre o que estava à superfície naquele lugar, o que estava à vista. Mas também houve coisas que só fiquei a saber porque fui lá.

E as pessoas, vivem mesmo assustadas? Não contactam? Vestem-se todas da mesma maneira?
Sim. Eles têm uma variação de uniforme, mas nada com marcas. As únicas mensagens permitidas são as mensagens políticas [do líder da Coreia do Norte], nunca seria permitido qualquer tipo de slogan numa t-shirt ou mesmo uma marca. Não pude falar com ninguém… se ao menos tivesse podido falar com uma mulher, ir a casa dela, beber chá com ela e ver como vivia, todas as minhas perguntas teriam tido resposta. Mas não foi o caso. Sou uma pessoa grande, tenho 1.90m – mas, durante todo o tempo que andei nas ruas de Pyongyang tinha ‘minders’ [pessoas a controlar] comigo e eles tinham uns pins especiais no casaco, que avisavam toda a gente que estas pessoas não eram para ser incomodadas. Descíamos a rua e as multidões dispersavam.

Exactamente o oposto do que pretendia…
Exacto. Americanos grandes não passam lá todos os dias… mas uma coisa que reparei é que, mesmo assim, as pessoas não pareciam olhar para mim e desviar o olhar. Elas simplesmente não olhavam. Evitavam, como se tivessem sentido a sua curiosidade, afastando-a [depois]. Apanhei alguns a olhar para o meu reflexo nos espelhos e nas janelas – estavam curiosos, mas de alguma forma digeriram a censura do Governo, acho. Mas não posso ter a certeza, porque só se sabe quando se fala com as pessoas.

Começou a carreira literária com “Emporium”, uma colecção de curtas. Qual a principal diferença entre escrever histórias curtas e escrever um livro? Mistura sempre ficção com realidade nas suas obras?
Não é isso que a vida é? Uma mistura de ficção e realidade? Se ao menos pudéssemos distingui-las… (risos) Na nossa vida, escolhemos sempre histórias para contar aos outros. Não organizamos a grande confusão de experiências [a que estamos sujeitos] em capítulos estruturados e moldados da nossa vida? Para responder à questão: há um certo prazer em escrever histórias curtas, porque podemos ser um ditador e controlar todos os aspectos da história, aperfeiçoar cada bocadinho como se fosse uma jóia, para conseguir o efeito que queremos. Um romance é algo desorganizado, cheio de compromissos… o enredo quer uma coisa, as personagens querem outra. [A personagem] quer continuar de uma determinada forma, depois há as emoções que tenho que dar a uma cena… De certa forma, um romance é um acto político, perante o qual temos de fazer compromissos entre todos os seus pedaços estruturais. Não há “perfeição” num romance.

Deixa-o fluir, então?
Sim. Mas um romance pode dar muito trabalho.

As pessoas falam muito em inspiração para conseguir escrever um livro. Sendo escritor a full-time, acredita na inspiração ou tem de se obrigar a escrever?
Ao longo dos anos, aprendi a confiar nas minhas obsessões e reparei que começo a ouvir uma certa música e passo a vida a ouvi-la, ou leio determinadas coisas ou vejo vídeos no YouTube e não páro, como se fosse uma loucura. Foi assim com a Coreia do Norte: tornei-me curioso e, durante um ano, só lia coisas sobre o país, lia, lia, lia. Ou vou ao eBay à noite e dou por mim a comprar imensas coisas… sei que parece tonto, mas a verdade é que, se pegar nessas coisas pelas quais sou obcecado e as puser numa narrativa, isso vai retirar de mim o que quer que seja que está a fazer-me focar nisso. Qualquer que seja a emoção conectada a essa obsessão. E, na maioria das vezes, é um mistério o que me faz ficar maluco com algo, até que o ponha numa narrativa. Não sei se alguma vez penso “oh, hoje deveria começar a escrever uma história”, acho que é mais quando fico enamorado por algo que sei que a minha mente está [focada na escrita].

Mas há diferentes escritores.
Sim, acho que há. Vejo imensos escritores curiosos com um tópico que não tem nada a ver com eles próprios e que fazem muita pesquisa e martelam até ter o livro cá fora. E vejo muitos escritores que são mais pessoais e escrevem sobre emoções que conhecem e assuntos seus. Os primeiros conseguem escrever um livro por ano, porque não é sobre eles. Os outros, e estes são os que eu gosto, põem o seu coração no trabalho. Tem de se esperar até que as coisas surjam, não podemos controlar quando vem de dentro. São “vítimas” dessas emoções.

Então, o Adam é um escritor pessoal?
Comecei assim e estou a tentar fundir as duas formas de escrita, porque eu até gosto de fazer pesquisa. Comecei como jornalista, mas depois vi a luz (risos). Se tudo correr bem, também vai ver a luz. O jornalismo tem o seu lugar e é importante, mas o dia vai chegar… (risos)

Mas o jornalismo ajudou-o a escrever sobre a realidade? Alguma vez exerceu?
Não, licenciei-me em Jornalismo e escrevi para jornais, mas sabia que não era um grande jornalista. Lembro-me do meu professor de Jornalismo me dizer, às vezes, “tu inventaste esta citação não foi?”. Eu admitia que sim, mas que ninguém tinha dito a verdade e que a minha posição era dizer a verdade (risos). E isto era um debate que tínhamos ao longo dos anos: eu dizia que o meu dever era mostrar a verdade, ele dizia o meu dever era dar os factos e deixar o leitor decidir qual era a verdade. Também inventava detalhes… bem, estava já a escrever ficção. E a verdade é que nunca me importei se algo é factual ou não, desde que ressoe com a verdade da experiência humana. Para mim, algo que é verdadeiro é algo que é válido para todas as culturas, para todas as pessoas, em todas as épocas. Algo que todos nós já tenhamos experienciado. Por isso é que um poema de Li Po ou uma urna grega ainda nos emocionam. Porque eles viajaram através do tempo e dos lugares, além do que é essencial. E todos nós passamos por alguma coisa na vida. E é isso que é a literatura… esses momentos.

É essa a mensagem, se é que há uma, que quer passar com os seus livros? Quer que as pessoas vejam essa humanidade?
Diria que escrevo para descobrir. Nunca sei onde é que a história vai parar, ou o que vai acontecer. Há algumas coisas pelas quais são obcecado, como agora, o mais recente, é o Jiu-Jitsu brasileiro, e coloco isso na minha história, porque é algo que a minha família pratica e eu quero descobrir mais sobre isso. Mas, se souber o que a história vai ser, torna-se aborrecido. Sinto-me mais como um professor a dar uma palestra. Uma das grandes alegrias no mundo é conhecer outros seres humanos. Alguém que é um mistério e que, ao longo do tempo, faz-nos construir uma relação. A confiança ganha-se. As vulnerabilidades começam a aparecer, as pessoas começam a revelar camadas mais profundas e, aí, deparamo-nos com uma sensação de que conhecemos realmente a pessoa. E a razão por que isto acontece é porque não sabemos o que a outra pessoa está a pensar, nunca conseguimos saber o que está na cabeça de outra pessoa. E não é isso que a literatura faz? Dar-nos a perspectiva de outros? Mesmo que seja uma ilusão. Se soubermos tudo sobre o outro, não há nada para descobrir: e é isso que quero transmitir com as minhas personagens.

Fiquei a saber que é obsessivo com a linguagem que utiliza nos livros e que a aperfeiçoa até estar satisfeito…
Não é com a sua? Com o que se pode fazer com as palavras?

Há trabalhos seus que nunca viram a luz do dia porque nunca gostou de como ficaram? Quanto tempo demora a limar essas arestas?
Todos escrevem de forma diferente. A minha mulher [escritora], escreve um pouco daquele capítulo, daquela cena… eu gosto de aperfeiçoar uma frase, se ela é [oca] não gosto dela, tem que ser sólida. E isso é o que traz alegria quando lê o seu escritor favorito: conseguimos sentir quando um autor passou meia hora a aperfeiçoar uma frase, a encontrar a expressão certa para esta incerteza que é a vida. E às vezes lemos uma passagem inteira e sabemos que levou dias a ser escrita. Foi reescrita vinte, cem vezes. Essa é uma das minhas grandes alegrias ao ler: sentir que alguém exprimiu algo perfeitamente. Isso é uma das coisas que quero dar e receber.

Está na China agora, esteve na Coreia do Norte… regimes fechados no que à liberdade de escrita diz respeito. Alguma vez pensou não ter a liberdade de escrever/publicar o que quisesse?

Tomo a liberdade como garantida. Mesmo. Vivo num reino onde todos se expressam completamente à vontade – às vezes demasiado livremente. Tenho um compromisso com a universidade, o que significa que nada do que escrevo me pode custar o meu trabalho [lá] e já levo isso muito a sério. Mas venho aqui e leio nos jornais casos como o dos livreiros [de HK], que arriscaram a sua liberdade para vender livros para que as pessoas possam ter a oportunidade de os ler e eu não sabia disso. É lamentável. É difícil de acreditar que isso ainda exista no mundo.

Ensina Escrita Criativa na Universidade de Stanford e foi considerado “o professor mais influente e imaginativo” da universidade pela revista Playboy. O que pretende ensinar aos seus estudantes, aos novos escritores?
Alguém tinha de ser (risos). Evangelicamente, tendo em mente o poder da ficção sinto o dever de usar esse poder para dar significado às nossas vidas. O que é bom na escrita é que todos podem fazê-lo, todos temos essa capacidade, somos todos ‘experts’ em humanidade, de certa forma, ou pelo menos em nós próprios e não há barreiras na escrita: só precisamos da nossa criatividade, ao contrário de um filme que custa dinheiro. Claro, vai haver muitas coisas mal escritas por aí, mas todos os que entram neste reino conseguem melhorar até a sua história falar com outra pessoa.

“Fortune Smiles” e “George Orwell Was a Friend Of Mine” foram as umas últimas obras, lançadas em 2015. Para quando um trabalho novo? Macau pode servir de influência?
Estou a escrever um grande romance agora, não sei o que vai ser, não sei se vai falhar. É o que dá não sabermos o que estamos a fazer (risos). Seria interessante [pensar que Macau poderia inspirar-me]. O livro que estou a escrever agora veio de uma visita através de um festival literário como este [Rota das Letras] e, quando fui embora, comecei a ficar obcecado por coisas que tinha visto nessa visita e, por isso, nunca se sabe. Acho que vou primeiro ler obras de autores de Macau a falarem sobre este lugar, antes de começar a escrever algo sobre Macau.

14 Mar 2016

Gil Mac, músico, designer e performer, apresenta “Oráculo”

Está em Macau para o Rota das Letras e traz consigo um projecto inovador e único, que o vai levar numa viagem irrepetível e muito pessoal. Gil Mac apresenta “Oráculo” de sexta-feira a domingo no antigo tribunal, mas não sem antes revelar o seu lado de músico, artista e investigador da vida de Camilo Pessanha – uma “obsessão” que nasceu aqui

[dropcap]D[/dropcap]esigner, músico, encenador, performer… Por onde é que começamos exactamente, qual o pontapé de saída de Gil Mac no mundo das Artes?
Sempre no mundo da música e como designer gráfico. Desde pequeno que comecei com bandas e, depois, fui estudar Design Gráfico. Mas mantive sempre essa relação entre música e design. Fui fazendo isso tudo até que entrei no CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra] há uns dez anos e intensifiquei muito a performance e é nisso que tenho trabalhado, na área de teatro. Sou um artista que trabalha nessas três áreas e vou mudando e faço-o em projectos individuais ou para a minha associação, para a qual trabalho muito, a DEMO. E para outras companhias.

A sua orientação, especialmente ao nível do projecto musical Lucifer’s Ensemble, é um pouco ligada ao oculto, ao misticismo. Porquê esse interesse?
Sim, sim. Não sei, nasceu ao mesmo tempo que estava no CITAC e estávamos a fazer um espectáculo chamado ‘Divodignos’, que era uma sociedade secreta em Coimbra e, essa investigação, fez com que tentássemos perceber os mistérios – porque aquilo passava-se no princípio do Séc. XIX – e, a partir daí comecei a desenvolver mais conhecimento e a estar ligado com o oculto, com esta curiosidade.

Isso atrai o público?
Acho que há muita gente ligada [ao oculto] e que tem essa curiosidade, outros têm algum receio. Como, para mim, esse esoterismo não é algo astérico, mas sim vontade do conhecimento. De certa forma, a procura do desconhecido, de alguma coisa que não é palpável. Esse mergulho é interessante, especialmente numa fase criativa. Mas, adicionalmente é a procura do conhecimento e, de alguma forma, o estar vivo e partilhar momentos com pessoas. Mas, por outro lado, as pessoas têm algum receio dessa experiência, da relação com algo não palpável, relacionam com o burlão, com o folclore de magia negra, algo que cria um afastamento. Mas não tenho tido muito esse problema. Acho que o público vem, de alguma forma, preparado.

Aqui vai apresentar o “Oráculo”, uma “performance interactiva”, com Tarot e com Camilo Pessanha. O que é o “Oráculo”?
Primeiro, é uma espécie de obsessão que nasceu quando vim a Macau para um projecto chamado CODE, que ia fazer em Hong Kong e a Babel (organização) propôs que fizesse cá. Há muito pouco tempo que percebi que tinha, realmente, esta ligação ao oculto. Mas começou por uma obsessão com Camilo Pessanha, quando voltei a Macau em 2014. Comecei a investigar e vi Camilo Pessanha ligado a Macau. Na Fundação Oriente fiz um curso de Xilogravura da China e, em Lisboa, fiquei nos ‘calabouços’ a estudar Pessanha e a China. Como sou designer gráfico, e estou muito mais ligado à imagem, fiz uma compilação da minha investigação em postais para apresentar numa primeira actividade onde ia fazer num projecto chamado INSCRIÇÃO, que foi no Porto, sobre o universo de Camilo Pessanha. Nos postais mostrava a vida [do poeta]. A viagem era interessante, ainda que longa, mas ao fazê-lo percebi que poderia criar um conteúdo aleatório – duas ou três imagens poderiam relacionar-se com as várias histórias dentro desta história. Comecei a fazer investigação sobre o Tarot e converti os grandes arcanos [22 cartas maiores no Tarot], são os grandes arquétipos, como se fossem os trunfos, que contam a história do Louco. Basicamente é a história dele, que tem o seu próprio caminho. Isto é como se fosse a viagem de Pessanha, que, em representação aqui será o Louco, o primeiro. Depois temos o universo dele, ligado a cada uma dessas cartas.

Nessa viagem vamos ter Fernando Pessoa, Orpheu…
Vamos passar pelos Poetas Malditos, a geração de Orpheu, Baudelaire, que será o Mago…

Esta sessão será para uma a duas pessoas. Porquê?
Sim, porque tem a ver com a relação do Tarot e de proximidade. Essas duas pessoas terão de ser próximas, íntimas e ter, de alguma forma, alguma relação porque o Tarot é eficaz quando se responde a uma pergunta – uma vontade, uma inquietação, um desejo. Depois passaremos para a fase de o que Camilo Pessanha teria para dizer à pessoa (risos). image

Nos diversos projectos de que faz parte, como o DEMO, há uma interligação de diversas artes – desde a encenação à música, ao grafismo. No meio artístico é necessário existir essa interligação?
A multidisciplinaridade, para nós, é um ‘statement’. No DEMO, as siglas são “Dispositivo”, “Experimental”, “Multidisciplinar” e “Orgânico”. Por causa disso mesmo, uma tentativa de direcção artística onde se criam objectos artísticos e onde o grupo é multidisciplinar, de várias áreas.

No Lucifer’s Ensemble vocês têm também esse cruzamento, os vossos concertos são também uma performance.
Lucifer’s Ensemble é também uma tentativa de multidisciplinaridade. Criar não uma peça de teatro musical, mas sim fazer um concerto performático. Já tínhamos trabalho partindo da influência da música com o projecto PRESENÇA. Com este, o formato é mais aproximado de um concerto, mas com grande performatividade.

É mais fácil que as pessoas entendam o que se está a passar em palco com essa performance além da música?
Lucifer’s Ensemble trabalha numa tentativa de transcendência, em nada há interactividade. O público é voyeurista. Há uma divisão completa entre um espaço e outro, as pessoas estão a ver uma cerimónia, estão em comunhão nessa cerimónia, mas há, de alguma forma, uma separação porque estamos a tentar trabalhar sobre essa relação de transcendência. Há esse ritual iniciático que desenvolvemos a partir de uma nova interpretação, uma nova forma de trabalhar essa performatividade a partir do ritual. E depois tens os vários momentos, as várias músicas, onde se podem ir vendo as transformações. Mas há sempre o cuidado de adaptação ao espaço onde vamos fazer o concerto e aos ambientes. Tem sido um trabalho muito interessante. Não ensaiamos como uma banda normal, criamos em blocos de residência, que vão fazer com que haja composição e se trabalhe nesse espaço [do concerto], onde temos sempre um artista convidado. Trabalhamos sempre com um artista [novo] para nova música e trabalhamos no espaço para [nos adaptarmos a ele]. E vamos iniciar agora o primeiro Clube do Oculto, que é uma tentativa de arranjar projectos convidados para essa cerimónia, para esse espectáculo, onde ocupamos sempre um espaço diferente. Não tem regularidade nenhuma, é espontâneo.

Um dos pontos que defende é ter a arte como intervenção urbana. De que forma?
Venho da música e essa será sempre uma alternativa e a [minha] arte também está muito ligada à ‘street art’. Logo no princípio da DEMO, num projecto que fizemos em Varsóvia e se chamava Russian Roulette, tínhamos essa intervenção – um telemóvel com uma aplicação que tinha um ‘revólver’ e uma única ‘bala’ e se jogava com uma webcam em directo na net. Durante seis semanas havia seis performances diferentes e, ao sexto dia, tínhamos uma performance ligada a temas da sociedade e ao tema de ‘um estranho num lugar estranho’ – houve um dos dias que um colega nossa [o artista] recebeu ‘a bala’ e o tema seria os média. A pergunta que tínhamos de responder era como é que um cidadão tem voz no espaço público, como consegue atingir os média. Fizemos isto cá no Fringe, em 2014, onde andávamos na rua a perguntar às pessoas o que tinham para dizer sobre [diversos temas], em espaço público. Mas também trabalhamos muito numa relação de propaganda, que tem a ver com posters de grande dimensão. É conseguir fazer algo que está na franja da ilegalidade e da ‘street art’, onde, de alguma forma, não estamos a ferir o património, mas comunicamos no espaço público.

Estiveram no Fringe cá em 2014. Sentiram participação do público nesse projecto? O público chinês é tido como um público tímido, que não expressa o que sente sobre o que vê. Sentiram isso?
Sim, são públicos difíceis de atingir. É difícil de explicar, acho que há essa inibição no princípio, e claro que há a questão da língua que deixa as pessoas mais nervosas, mas depois há esta tentativa de as pessoas continuarem a falar e cria-se mais proximidade e há, parece-me, vontade de que se exprimam. Não consigo responder a essa pergunta porque é quase uma relação sociológica e com as artes e a própria cidade.

Não consegue avaliar o ambiente cultural de Macau?
[Comparado] com onde venho, com a Europa, parece-me escasso. Mas não sei, acho que Macau é fascinante pela fusão de culturas e eu teria, pela minha natureza, tentado forçar mais os limites e a relação dessa mescla. Por acaso, no projecto que fizemos [no Fringe] foi muito fixe, porque fizemos workshops no Armazém do Boi e encontrámos uma população jovem chinesa politicamente envolvida e isso deu-me uma esperança muito grande. Ao mesmo tempo estava a acontecer o Occupy [em Hong Kong] e isso era muito próximo ao trabalho que estávamos a fazer cá, da relação com o espaço público. Mas é difícil responder a essa pergunta, é uma realidade diferente e complexa. Mas fascinante.

Há mais projectos na calha aqui para Macau? Dizia que gostava de trazer cá o Lucifer’s Ensemble.
Com certeza, queremos que o Lucifer’s Ensemble vá a todo o lado. Agora, neste momento estou envolvido com o projecto INSCRIÇÃO, com esta obsessão de Camilo Pessanha, que fez com que ele chegasse ao Orpheu. Trabalhamos muito já sobre o Futurismo e vamos continuar, até chegamos ao Portugal Futurista e criámos um espectáculo chamado Hidra e Orpheu, que era o que era para vir cá. Mas não tivemos apoios, não conseguimos as viagens e o Festival [Rota das Letras] também não conseguia suportar as viagens desse grupo [Hidra]. Mas estamos com muita vontade, e o Festival também, de o trazer para o ano. É muito interessante, seriam dois grupos sempre em movimento, com várias performances, aqui [no tribunal] ou na rua. Vamos conversar para planear. Em relação ao Lucifer’s, gostaria muito, mas como está ligado mais à arte sonora e à tecnologia estou a pensar propor ao This is my City. Gosto muito do Armazém do Boi também, acho incrível. Vontade de estar aqui tenho.

Camilo Pessanha é, como já disse, uma obsessão. Já visitou a campa aqui? E sente essa presença de Pessanha em Macau?
Já visitei e, simbolicamente, desta vez, viajei para cá no dia da morte dele (risos). Quando me perguntam o que procuro em Camilo Pessanha costumo responder, de forma intuitiva, o fantasma. Sinto-o, por vezes, nas ruas escuras da parte velha chinesa, que é o local que me agrada mais em Macau. É difícil porque quando estudamos [a vida dele] começamos a imaginar uma época e é muito difícil abstrairmo-nos do Macau onde vivemos agora. Conseguimos ter alguns enquadramentos onde imaginamos a vivência dele, mas é uma relação com a história, uma imagem a preto e branco (risos). Há algum saudosismo que não é de um Macau como este de agora.

11 Mar 2016

Chen Xiwo, escritor: “Uma revolução política (na China) não pode ser evitada”

Polémico e irreverente, Chen Xiwo já viu obras suas proibidas na China, mas ainda assim não desiste de escrever sobre o sexo e o desejo. Convidado do Rota das Letras, Chen Xiwo acredita que o seu país vai acabar por sofrer uma inevitável revolução política

[dropcap]E[/dropcap]sta quarta-feira ao final da tarde Chen Xiwo sentou-se na sala do edifício do antigo tribunal e contou perante uma plateia cheia o seu embate com as autoridades chinesas que confiscaram e baniram dois dos seus livros. A conversa, no âmbito do Festival Literário Rota das Letras, foi sobre “The Book of Sins”, um dos livros banidos no continente, mas também incidiu sobre “I love my mum”, outra obra polémica e banida, pelo seu forte teor sexual.

À margem da sessão, o autor confessou ao HM que as autoridades do seu país não poderão evitar o descontentamento crescente da população. “Nos anos 80 o Governo tentou mudar a situação que vivíamos na altura, mas apenas fizeram uma revolução económica e não política. Mas uma revolução política não pode ser evitada. Acredito que num futuro próximo a China vai ter uma revolução contra o sistema político. As palavras dos cidadãos chineses não importam, apenas as palavras dos oficiais do Governo.”

Questionado sobre o lado imoral que a cidade do Jogo pode ter, sobretudo por ser algo muito amado pelos chineses, Chen Xiwo considerou que a moralidade, sendo muito abordada na China, não se verifica na prática.

“A moralidade na China é sempre algo contestado. É algo que sempre vimos retratado nos livros e na história chinesa, mas que nunca vemos mostrado na realidade. As pessoas não jogam apenas em Macau mas também jogam em diversas partes da China. Do que sei é que a maior parte das pessoas da China que vêm a Macau jogar são oficiais do Governo”, referiu.

Estranha literatura

Chen Xiwo vive actualmente na China onde é professor universitário, com um doutoramento em Literatura Comparada e Mundial. Os livros que mandou imprimir em Taiwan acabaram por ser confiscados pelas autoridades. “Apenas me disseram: não brinque connosco, não seja tão agressivo. Não argumente connosco porque esta é a nossa maneira de fazer as coisas. Fiquei furioso e perguntei em que lei se baseavam para banir o meu livro. Disseram-me que era pornográfico e obsceno”, contou Chen Xiwo na sessão do Festival.

Referindo que o teor sexual já faz parte do quotidiano dos chineses, o autor confessou ainda que “banir o sexo tem tudo a ver com política”. “Ser erótico e sexual é algo legítimo”, apontou. Ainda assim, Chen Xiwo garantiu ao HM que nunca vai deixar de escrever sobre esta temática.

“Uma mudança de tema é para mim impossível, porque a temática do sexo vai surgir no próximo livro. Mas ainda tenho de analisar que liberdade é que o meu editor me vai dar para publicar o meu próximo livro, por isso ainda estou a ponderar essa parte. Acho que a literatura é sempre sobre como podemos provocar o senso comum. O que é normal e aceite para mim não funciona, tenho sempre de fazer algo diferente”, disse Chen Xiwo na sessão do Festival, assumindo que nem todos compreendem as palavras que escreve.

“O meu trabalho é raro na literatura chinesa e não acho que tenha muitos fãs ou leitores que gostem dos meus livros, porque tenho uma escrita agressiva.”

Ainda assim, Chen Xiwo referiu que nunca pensou sair da China, apesar de já ter estudado no Japão. “Alguns amigos sugeriram que devia sair do país, mas penso que um escritor tem que estar na sua terra natal. Um escritor é como um político, mesmo que esteja na prisão tem de ficar no seu próprio país.”

No meio de um debate sobre censura na literatura, houve ainda umas palavras sobre política. “No Ocidente há democracia, por exemplo nos Estados Unidos escolhem o seu próprio presidente, mas na China somos impotentes”, rematou o autor.

11 Mar 2016

Lolita Hu Ching-fang, autora de ‘The Third Person’: “Espero que Macau pense na sua cultura”

Participou na primeira edição do Rota das Letras e cinco anos depois volta a ser convidada para partilhar os seus pensamentos. Lolita Hu Ching-fang, escritora de Taiwan, considera que o ambiente de Macau é apropriado para criar, sendo que até a autora conseguiu escrever uma obra inspirada no território. Numa conversa sobre o processo da escrita, Lolita fala ainda sobre a identidade dos chineses fora do continente
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Lolita Hu Ching-fang, escritora de Taiwan

[dropcap]J[/dropcap]á é a segunda vez que está presente no Rota das Letras. Está a gostar de conhecer mais de Macau?
Sim, estou gradualmente a conhecer a cidade. Como vivi em Hong Kong há 11 anos, para mim Macau é a casa dos meus amigos, que visito sempre.

Como escritora como avalia o ambiente de Macau?
Hoje vejo Macau como um lugar cheio de casinos, hotéis e entretenimento, mas lembro-me do charme que Macau tinha antigamente. Era um sítio onde não era preciso muito dinheiro para se viver e bastante profícuo para o desenvolvimento criativo. Acho que é preciso encontrar um equilíbrio entre as duas realidades. Os artistas precisam sempre de parar antes de dar os próximos passos e pensar qual o significado da sociedade, qual o sentido da vida… isto depois torna-se o material para a criação. Nos bairros antigos [de Macau], existe a verdadeira natureza da cidade, que é, de facto, inspiradora para se escrever.

Costuma passear nos bairros antigos?
Sim, porque os casinos e hotéis são para um certo grupo de turistas, mas não são para as pessoas comuns, como eu. Gosto de passear nas ruas e travessas pequenas, sobretudo em Coloane, onde posso conhecer como era Macau originalmente. Aí encontrei intimidade, familiaridade e humanização.

Macau inspira-a para criar?
De facto, quando participei na primeira edição do Rota das Letras, escrevi um conto sobre Macau, que está no meu livro “Floating”, publicado em 2014. Chama-se “Spring Dream” e fala sobre uma mulher que tem um marido rico, e costuma passear em Macau antes de voltar para a China continental, mas um dia tem um encontro especial com um jovem português. A mulher já viveu muitas mudanças na China e agora é rica, mas o amor que tinha durante a juventude desapareceu, mesmo que agora ela tenha tudo. O conto pretende demonstrar que a China está sempre a querer comprar, investir, ganhar e a mulher é o símbolo da China, porque quer comprar o amor do jovem português, mas o amor não é verdadeiro. O conto fala também da bandeira nacional da China em Macau, qual é a relação entre os dois lados e como o país recupera da perda de tempos antigos. A identidade dos portugueses em Macau também é um episódio. Antigamente, o Ocidente comprava o Oriente, agora é ao contrário. Tentei usar uma história simples para expressar significados complicados.

Um dos seus livros – “A minha geração” -, publicado em 2010, fala sobre como os chineses que viajam para Hong Kong, Taiwan e interior da China mantêm ou reconfiguram  as suas identidades.  Esta questão voltou a ser polémica recentemente, depois de acontecer o caso da cantora taiwanesa Tzuyu, que levantou a bandeira de Taiwan num programa de televisão coreano, mas foi criticada por outro cantor taiwanês por ser apoiante da independência da ilha Formosa. Vários anos depois da publicação da sua obra, como agora olha para esta questão?
Esta questão tem existido porque o intercâmbio dos dois lados do estreito se alargou. Quando escrevi o livro, achei interessante porque todos falavam a língua chinesa mas sentiam-se estranhos uns aos outros. Penso que os sítios por onde uma pessoa passa tornam-se parte dela. Por exemplo, eu vivi em tantos sítios diferentes, que considero que sou de Hong Kong, de Taiwan, de Tóquio. Sou de Paris e sou de Xangai. Espero que todos estes locais façam parte de mim, porque conheço e respeito todas as partes, ainda que considere que não preciso de uma divisão tão clara.

Para Macau, Taiwan é sempre uma referência, em aspectos como o trânsito, infra-estruturas e protecção ambiental. Como vê as diferenças entre cidades como Hong Kong, Macau e Taiwan?
Considero que Taiwan tem uma coisa que Hong Kong e Macau não têm: sufrágio. É muito importante porque as opiniões da população são expressas. O povo preocupa-se com a sua terra, o seu ambiente, então pensa em melhorá-los e espera, através de eleições, escolher pessoas que ajudam a elaborar políticas [nesse sentido]. Se o Governo não representa a população, mas apenas comunica com os grupos mais ricos, então não pensa em melhorar políticas, pensa apenas em números. Em Taiwan as opiniões da população são mais fáceis de ser ouvidas, é a vantagem quando comparado com Hong Kong e Macau. É um ambiente “de pessoas”, não “de números”.

Consegue-se distinguir as vantagens de Hong Kong e Macau?
O Estado de Direito. Em Taiwan, o interesse humano é maior mas as leis são menos dedicadas. Admiro que Hong Kong não exclua os estrangeiros porque é gerido pelas leis e também pela igualdade. Em Taiwan isso é pior.

O que pretende passar para a audiência de Macau nesta edição do Rotas das Letras?
Espero que Macau pense na sua cidade, na sua cultura. Agora o sector do turismo é um dos aspectos fundamentais, a cidade recebe sempre estranhos, que entram e saem todos os dias. Qual é o significado disso? Quando se é generoso ao receber os estranhos, o que se pode preservar? Se têm uma sala em casa para receber visitantes, o que é essa sala? É preciso pensar que essa sala é a divisão principal da “casa”. Espero que a minha presença faça reflectir como as pessoas locais são importantes e, ao mesmo tempo, espero ouvir as pessoas a falar e a pensar sobre qual é a sua cultura.

Como foi partilhar sessões com o historiador José Pacheco Pereira e o escritor Chan Koonchung?
Fiquei surpreendida ao saber que José Pacheco Pereira tem a maior biblioteca privada de Portugal. Quando conversei com ele, disse-lhe que somos da cidade e que os prédios são uma coisa muito aborrecida, não conseguimos viver numa casa grande, o espaço é muito precioso. Como escritora de outra geração, tenho experiências diferentes, porque a minha geração é obrigada a ser “digital”, os livros são electrónicos, é outro modelo de leitura. Sobre Chan Koonchung, que já conheço há 20 anos, ele foi convidado por mim e temos contextos semelhantes porque nascemos em grandes cidades, preocupamo-nos com as cidades e, portanto,  escrevemos muito sobre isso.

A curto-prazo que planos tem para a sua carreira literária?
A escrita agora é a minha vida. Estou a escrever uma novela, está a meio. Além disso, vou publicar este ano uma colecção de prosa. As colunas que escrevo para os jornais chineses também vão manter-se. No final deste ano, vou mudar de Nova Iorque para Hong Kong, novamente. Portanto, ainda posso participar na próxima edição do Rota das Letras (risos).

PERFIL

Hu Ching-fang (C.F. Hu ou Lolita Hu) é ensaísta e romancista. Nascida em Taipé, viveu em Hong Kong, Xangai e Pequim, publicando livros e escrevendo artigos em Hong Kong, na China, em Taiwan e em Singapura. Os seus trabalhos exploram a temática da vida urbana nas grandes cidades, as identidades culturais num mundo globalizado, o inevitável destino de solidão do ser humano moderno. Com o livro “The Third Person” recebeu o Prémio Golden Tripod, de Taiwan, para a melhor publicação literária de 2013. A colectânea de contos “Floating” (2014) é o seu mais recente título. Reside presentemente em Nova Iorque, depois de ter vivido em Tóquio.

9 Mar 2016