Chan Koonchung, autor de ‘The Fat Years’: “A censura está mais severa”

De Macau guarda memórias de juventude, das férias passadas com os pais e dos cenários para filmes que pertenciam a um outro tempo. Chan Koonchung foi considerado o Escritor do Ano na Feira do Livro de 2013 em Hong Kong, onde já esteve radicado, até chegar à conclusão que era sobre a China que queria escrever. Um dos mais importantes escritores chineses, convidado do Rota das Letras deste ano, afirma que o Ocidente deixou de prestar atenção ao Tibete e que a situação da censura na China piorou

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omecemos pela sua participação neste festival. Como é estar em Macau a participar num evento desta natureza?
Venho a Macau desde muito novo. Vivia em Hong Kong com os meus pais e vínhamos cá passar uns dias de férias. Tenho muitas memórias de Macau porque vinha cá provavelmente uma vez por ano. Nessa altura, Macau era um lugar muito mais pacífico do que é agora. Na década de 80 trabalhei na indústria do cinema de Hong Kong e fiz um filme que foi rodado cá, porque não podemos encontrar sítios como estes em Hong Kong – isto porque os locais deveriam remeter-nos para a década de 40. Nessa altura estive em Macau a filmar durante cerca de um mês. O Hotel Lisboa já lá estava e o jogo e o entretenimento sempre estiveram relacionados com a economia, para além de ser um lugar com a sua beleza especial. Foi um lugar especial em diferentes alturas da minha vida e, de repente, Macau transformou-se neste lugar megalómano com casinos e marcas internacionais. Ainda me estou a habituar a isso porque tenho memórias antigas da velha Macau, em que se podia jogar nos barcos.

É importante estar num festival onde há esta mistura de idiomas e culturas?
Penso que o Festival Literário é um bom instrumento para a introdução dos escritores, porque estes tendem a estar sozinhos. Vir a um festival obriga um escritor a conhecer outras pessoas. O lado português de Macau sempre constituiu um interesse para mim, um interesse quase académico, porque interessam-me a histórias das antigas colónias, tanto inglesa como portuguesa.

Actualmente vive em Pequim, mas chegou a estar radicado em Hong Kong. Porquê essa mudança?
Já vivo em Pequim desde 1992 e desde então não voltei a trabalhar em Hong Kong. Tenho vindo a trabalhar na China e em Taiwan também. Como escritor sempre quis escrever sobre a China, porque há um óbvio interesse na China, sobretudo ao nível dos direitos [das pessoas] e achei que era difícil escrever sobre a China em Hong Kong. Por isso tinha de estar dentro [do continente]. Tinha de me sentir próximo da China. Talvez outros escritores não sintam isso, mas eu tive de o fazer. Fui para a cidade com a qual estava mais familiarizado, que é Pequim. Em 1992 trabalhei lá durante três anos. Nessa altura Xangai ainda não era uma cidade muito desenvolvida e Pequim era o lugar ideal para realizar todo o tipo de actividades culturais.

Escreveu sobre as relações entre o Tibete e a China, bem como outros aspectos ligados ao país. Nos dias de hoje é cada vez mais importante escrever sobre estes assuntos, sobretudo sobre o Tibete e a questão dos direitos humanos?
Não estou certo sobre se a comunidade internacional continua a prestar a mesma atenção à situação no Tibete. Parece-me que está a focar a sua atenção noutras questões e lugares. O Tibete ainda está lá e ainda é uma questão sensível, mas não sei se as pessoas continuarão interessadas na questão como estavam há dez anos. Não sabia quase nada sobre o Tibete até que tive a oportunidade de fazer um filme lá, em meados dos anos 80. Um estúdio em São Francisco, de Francis Ford Coppola, queria fazer um filme sobre o 13º Dalai Lama e eu era um dos produtores. E foi quando comecei a fazer o meu trabalho de casa que comecei a aprender mais sobre o Tibete e a sua história. Desde então que tenho visitado Lhasa e conhecido muitos tibetanos, tanto em Lhasa como em Pequim. Os tibetanos são um dos grupos étnicos chineses que conheço melhor, para além dos chineses Han… E sempre quis escrever sobre o Tibete.

Mas acredita que o mundo deveria continuar a prestar atenção à situação no Tibete?
A questão dos direitos humanos está a esvanecer-se em relação à atenção que é dada pelo Ocidente, sobretudo pelas grandes forças, como o Reino Unido, a Alemanha ou os Estados Unidos. Já não estão focados em depositar a sua atenção nos direitos humanos e a questão do Tibete também tem vindo a desvanecer-se. Além disso, outras zonas da China começaram a ser mais alvo de atenção, ao nível dos grupos étnicos, e que se tornaram em questões internacionais. O Tibete é hoje uma questão local. A China é também um país muito forte e influente e a sua atitude mudou.

Criou a Green Power. Acredita que o problema da poluição na China pode colocar a população contra o seu próprio Governo?
Coloca sempre as pessoas contra os governos a nível local. As pessoas têm uma maior noção dos seus direitos, mas vão sempre assumir uma causa contra os governos locais. É muito difícil ganharem consciência quanto à criação de grupos para fazer pressão para que o Governo Central mude de política. Não vejo isso a acontecer muitas vezes. As pessoas falam enquanto indivíduos, há algumas ONG focadas nessa questão e associações a nível nacional, mas as pessoas vão continuar viradas para os problemas a nível local.

Como é escrever na China nos dias de hoje? É hoje um país mais aberto ao mundo? Como tem sido a sua experiência?
A China é de facto um país mais aberto ao mundo comparando com há 30 anos, mas é menos aberta se compararmos com há dez anos.

Porquê?
A melhor altura foi antes dos Jogos Olímpicos, em 2008, quando houve uma abertura. Mas claro que se compararmos com a fase da reforma implementada por Deng Xiaoping, a China abriu-se bastante ao mundo. Poderia ter feito melhor, abrir ainda mais. A situação actual não é muito confortável para muita gente, que preza a liberdade de expressão e que quer publicar. A situação está a ficar difícil para os editores, porque a censura está mais severa em vários aspectos, tanto ao nível da edição de livros como da imprensa, ou até na internet.

Como olha para o caso do desaparecimento dos livreiros de Hong Kong?
Esse caso chocou toda a gente. As pessoas achavam que isso nunca iria acontecer em Hong Kong. Os detalhes ainda não são totalmente conhecidos, mas há algo de terrivelmente errado nesse caso. Há editores que não querem ser os próximos a estar envolvidos num caso semelhante. A auto censura é sempre uma das coisas mais perigosas. Não é uma censura explícita, são as pessoas que se auto-censuram. Isso é o mais grave.

O seu próximo livro poderá ser sobre Macau?
Claro que gostaria de escrever algo sobre Macau, mas talvez não esteja muito qualificado para o fazer. Talvez faça um romance sobre a China. Poderia dar-lhe este, está em português não está? (Mostra a edição portuguesa de The Fat Years: China 2013). Escrevi este livro em 2009, para falar do novo normal, a nova mentalidade a seguir aos Jogos Olímpicos, sobre o facto da China estar a ter um bom desempenho económico. Porque houve uma crise financeira no Ocidente em 2008. As pessoas na China começaram a sentir-se mais confiantes em relação a elas mesmas e também mais ricas. Mas nessa altura, em 2009, os meus amigos não viam a China dessa forma, então escrevi como se estivéssemos em 2013, como se fosse no futuro, com eventos ficcionados para expressar a minha visão.

Esse novo normal é bom para a China e para a sua sociedade?
Os chineses, tal como disse, tornaram-se mais confiantes, mas às vezes confiantes de mais. Tornaram-se mais descomplexados e menos desadequados [em relação ao mundo], mas às vezes compensam isso sendo demasiado agressivos. O ano de 2008 foi um ano crítico que alterou por completo todas as mentalidades.

Perfil

Chan Koonchung nasceu em Xangai, China, em 1952, tendo estudado na Universidade de Hong Kong e também nos Estados Unidos. Jornalista, activista na área do ambiente, Chan Koonchung foi considerado o Escritor do Ano na Feira do Livro de Hong Kong em 2013. Escreveu sobre as relações entre a China e o Tibete em “The Unbearable Dreamworld of Champa the Driver”, lançado em 2014, sendo que o romance “The second year of Jiang: An alternativa history of new China” foi considerado um dos dez melhores romances chineses em 2015, pela revista Asia Weekly de Hong Kong. Chan Koonchung está também ligado ao cinema, tendo criado a Hong Kong Film Directors Association. Com “The Fat Years”, escrito em 2009, Chan Koonchung aventura-se no universo da ficção, já que narra um futuro 2013. Este livro nunca foi publicado na China continental.

8 Mar 2016

Festival Literário | Pacheco Pereira na sessão abertura

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]historiador José Pacheco Pereira alertou para o perigo da desvalorização crescente das humanidades e matérias consideradas “não úteis”, no arranque da 5.ª edição do Festival Literário de Macau.

“A aparente inutilidade das humanidades é um recuo civilizacional muito significativo”, afirmou ontem, no debate inaugural do Rota das Letras, sob o tema “Para que serve a cultura na vida do homem comum”.

“Quando propus este tema foi também porque no meu país há uma discussão sobre o valor das humanidades, das matérias que ‘não são úteis'”, como o latim, a literatura clássica ou a filosofia, começou por explicar.

Para Pacheco Pereira, “há uma certa ironia na maneira como se discute hoje a cultura e as humanidades por parte das pessoas dos negócios, que pressionam as universidades a ter cursos que sirvam as suas empresas”.

No entanto, mais tarde, são estes mesmos empresários, já bem sucedidos, que “oferecem a si próprios e aos seus colaboradores cursos na Suíça em que vão aprender filosofia”. “Percebem que há uma série de conhecimentos que são importantes até no mundo empresarial”, comentou.

Por vezes essa crítica às humanidades “é feita nas universidades”, que se mostram cépticas em relação até a “ramos da ciência que não parecem ter utilidade imediata”.

Há, assim, “uma perda da ideia da universidade”, tornando as instituições “como se fossem marcas, empresas”, lamentou.

“Não quero ser um apocalíptico mas (…) houve momentos na história em que se perdeu conhecimento. Não temos a certeza que a história corre sempre de maneira a que o futuro seja melhor do que o passado”, alertou, chamando a atenção para a importância de as sociedades “lutarem por um determinado tipo de vida e cultura” que valoriza o conhecimento, sob o risco que a sua “relação com o mundo fique mais pobre”.

Pacheco Pereira, que dividiu a mesa com a escritora taiwanesa Lolita Hu, argumentou que a cultura tem um papel importante na vida do homem comum – que definiu como alguém para quem “o trabalho intelectual não é central” – porque o ajuda a compreender o mundo.

Os exemplos, indicou, estão em todo o lado: “As séries televisivas têm tido um grande sucesso. É importante saber que o principal bandido do The Wire é uma espécie de Édipo porque apesar de tudo o que faz não consegue ultrapassar o próprio destino? É útil ou não é útil?”.

A resposta surgiu afirmativa. “É útil, dá mais liberdade às pessoas e torna-as mais capazes de intervir à sua volta, quer na sua intervenção junto de amigos, quer na intervenção cívica e na sociedade”, afirmou.

Historicamente a cultura é importante “para resistir à opressão”, mas é também essencial mesmo que se viva “numa sociedade democrática e livre”. “Precisamos de cultura para compreender o mundo, para compreender o que se passa”, defendeu.

Tal não significa, no entanto, “que ser culto nos defenda da barbárie”, ressalvou, lembrando que “alguns dos guardas dos campos de concentração faziam parte dos quartetos de música.

7 Mar 2016

Quarta-feira de cinzas

Porque eu sei que o tempo É sempre o tempo
E o lugar É sempre e apenas o lugar
E o que É real É real apenas por uma vez
E apenas para um lugar
Regozijo-me que as coisas sejam como são e
Renuncio ao rosto abençoado
T S Eliot, in Quarta-feira de Cinzas

[dropcap]H[/dropcap]oje é um dia especial na liturgia católica mas não será exactamente isso que inspira este instante, ou seja, é isso, dez, como o decálogo dos mandamentos , mas sim o poema de T. S. Elliot, exactamente chamado «Quarta-feira de Cinzas», um poema tutelar que abarca a Cultura Ocidental, feito por um poeta que bem pode estar ao lado dos profetas, pois que é demasiado fascinante para ser abordado sem uma profunda experiência do mundo. Este poema, que faz parte das células do imaginário, tem, claro está, num dia assim mais sentido. Vive-se nele o dia todo e quase a primeira essência se dissipa sem contudo nos dissociarmos face ao que o poeta dele instituiu. Entra-se num momento que nos reporta ao número quarenta, a Quaresma, a quarentena, uma passagem de dias, de anos, como forma de abordar ciclos vitais, tanto pode ser um poema elegíaco como um metadiscurso entre leituras comparadas.

“Porque eu não espero voltar
Porque eu não espero
Porque eu não espero conhecer de novo a glória frágil da hora concreta.”

O Livro de Ezequiel – 37- dá-nos a tónica do poema em ossos, os ossos daqueles que retornam à vida e fazem parte do corpo de um povo naquela planície de ossos onde um sopro lhes dá a vida nova em corpo e forma. O profeta Elias, subjugado por tristezas várias, pede para morrer debaixo de um zimbro e a cena é marejada de sofrimento e dor, como uma implorante profecia na linguagem do poeta:

“Debaixo de um zimbro os ossos cantavam dispersos e brilhantes, regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros, debaixo de uma árvore à friagem do dia, com a bênção da areia esquecidos de si próprios e uns dos outros, unidos, na quietude do deserto. Esta é a terra que tu partilharás em lotes. Recebemos a nossa herança”

É toda a estranheza do verbo que com o sopro se faz carne e mora nos Homens que aqui se bem diz e elucida. Já não podendo mais, Elias fora arrebatado por um carro de fogo e não mais voltou àquele local. Ainda hoje é esperado com entusiasmo e fé por aqueles que crêem que o desaparecimento faz parte do plano dos que não aguentando são, por forças divinas, arrebatados da sua desdita: pois que “eu não espero voltar, porque eu não espero”. Mas nós esperamo-lo! – Elias… Elias… Ele fala com Elias. – Na fronteira, Elias fala ainda aos que estão na linhagem desta imensa história de não retorno.

O poema levanta contudo muitas perturbações, e até formas nunca reveladas pelo poeta, pois que Eliot era parco a fornecer explicações da sua obra, na medida em que nada de conclusivo se pode tirar de um texto que passa em muito o factor surpresa, de uma voragem feita por leopardos na friagem do dia que se alimentavam até à saciedade de pernas, de coração e de fígados, daí os ossos, daí aquela necrópole improvável. Se fôramos cera, arderíamos apenas, mas este comerem-nos até à saciedade levanta o problema de termos sido ultrapassados nas leis não naturais. «Este é o meu corpo, comei e bebei». Nós estaremos nesse alimento de que se alimenta o poema e da minha vida ficará o tributo a um bem que todos podem partilhar, por isso o roteiro de jejuns que o próprio dia fornece, para lembrar os que têm fome e da nossa mortalidade em cinzas.

Aparece uma Senhora no poema – senhora dos silêncios calma e perturbada dilacerada e ilesa preocupada em repousa a Rosa única que era agora o Jardim – jardim esse, onde todo o amor finda terminado o tormento do amor insaciado e ainda o tormento maior do amor saciado fim do infindável, jornada para parte alguma conclusão de tudo o que é inconcludente

… Graças à Mãe pelo jardim onde todo o amor finda. Quem finda nesta voragem e o quê? Oh, meu Povo, que fiz eu de Ti? O que é isto de tão arrepiante mente ilusório, de tão assombrosamente maternal? Esta abundância de estranheza não dá para definir nem um Reino nem um Povo nem um Poeta nem um Profeta, mas as datas continuam charneiras a este tecido.

Comecemos numa indigestão de coisas articuladas pois que ao princípio da divindade subjaz a grande fúria. Aqui, neste poema, a grande deidade não está em paz, nem morre de fastio, pois que usa a vida como alimento e nutre-se de si mesma. Não será afinal este efeito maior o que faz de Eliot o enigma desta quarta-feira?

Já em «Terra sem vida» ele fala com as pedras e o mesmo povo devorado e que se articula com carnes nos ossos, faz as pedras brotarem água pela vara de Moisés. Talvez isto explique que não há poeta sem esta imensa área de mergulho na sua história civilizacional e tudo o que se faz à revelia deste caminho acabe inexoravelmente morto e invertebrado. Aquelas pedras são gotas de água. Tudo neste poeta está sempre por dizer, pois ele disse aquilo que ninguém sabe da sua própria Cultura. Eles vêm dizer-nos que se não for por estes passos que nos dilaceram por vezes os sentidos os poetas não têm razão de se apelidar assim e que quando eles desaparecem o mundo estará tão perdido que as rotas se transformarão em vãos desígnios de vociferação indistinta.

Nascido no ano de Fernando Pessoa, ambos trilharam caminhos que nos colocam agora neste dia em face do seu mistério. Tudo aconteceu para que sejam eles a revisitar na sua ânsia de não perder o fio de prumo à espectacular forma da natureza humana.

Há quem não queira mais, sim, e implore sair, e quem queira tudo e nada implore. Há os pacíficos que transbordam de tédio e os enaltecidos que usurpam os lugares que habilmente a indigência preparou, conquanto, se houver ainda um roteiro que nos transcenda, as coisas e até os ossos terão no tempo o seu lugar.

Não mais voltar ao local de um crime, mas os criminosos voltam sempre. É por isso que os seus crimes não compensam, dado que a segurança dos predadores é também a sua derrota. Quem não quer voltar sabe que fez o melhor e se for arrebatado é porque não se extinguiu no asfalto onde todo o sonho morre e a lembrança de que um deus não é a palavra que o designa, mas algo mais que convém estar atento, não vá o manto do nada apanhar-nos neste lugar sem força para implorar uma saída.

São os quarenta anos, e os quarenta dias e as quarentenas dos que andam a somar dias aos seus inesgotáveis esforços, mas a força aplica-se só, e somente, onde houver uma pedra, um osso, uma estrutura. E sem os nossos colossos e palmares de sonho e colunas, nada deste dia restaria se não a cinza de uma lembrança que julgáramos morta pela vitória de uma razão que afinal, está muito aquém de fazer um poema como este.

26 Fev 2016

Rota das Letras | Pulitzer Adam Johnson e “Cartas da Guerra”

Adam Johnson PHOTO[dropcap]A[/dropcap]dam Johnson, vencedor de um Prémio Pulitzer e autor de The Orphan Master’s Son é mais um dos convidados da mais recente edição do Festival Literário de Macau Rota das Letras. Johnson, que chega dos EUA, entra na Rota quando se confirma a saída de Junot Díaz, escritor dominicano que já não se desloca ao território “por motivos pessoais”. Díaz demonstrou, contudo, “interesse em participar numa próxima edição da Rota das Letras”.

Adam Johnson foi o vencedor do National Book Award de 2015 e Prémio Pulitzer norte-americano, autor de The Orphan Master’s Son (2012), já editado em Português (Vida Roubada). A obra, que apresenta um retrato da Coreia do Norte, valeu a Johnson o Pulitzer de ficção em 2013. Além da entrada do Pullitzer, a organização anunciou ontem a estreia na Ásia de “Cartas da Guerra”, filme de Ivo M. Ferreira. A película, que se estreou ontem no Festival de Cinema de Berlim, será exibida no primeiro dia do Festival Literário, a 5 de Março, pelas 19h30, nos cinemas do Galaxy, “marcando assim a estreia asiática do novo filme” do realizador residente de Macau.

“Cartas da Guerra” é baseado no livro “D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto”, de António Lobo Antunes (2005), que junta as cartas enviadas pelo escritor à mulher em 1971 quando o então médico foi chamado para a Guerra Colonial. O filme está em Competição para o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.

15 Fev 2016

Entre o seio e céu

«Sei os teus seios… sei-os de cor»

Alexandre O´Neill

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] um imenso instante do saber do que a língua tem de fruto, de nascimento, de acrescento, de volúpia e de bem-dizer. É para isso que os poetas eram feitos, trabalhados, identificados, respeitados e quase sempre consentidos na grande esteira da transformação. Para saberem do seio que sabe e ao que sabe o seio, que sabe a algo mais além do que sabor e saber.

Nesse céu límpido das formas que se jogavam em saberes e que nós nos deleitávamos pelo seu amplo sabor, estão inscritos os homens da linguagem, aqueles que fizeram o mais que admirável trabalho de escribas, escritores e professores de uma matéria quase gasosa, quase em éter. Alexandre, o Grande.

Toda a métrica deixada pelos poetas é uma quase noção de firmamento, teciam a metalinguagem e um metadiscurso, uma melodia plena de inventividade rítmica. O aparelho fonador é tão complexo, que para imitir sons coordenados precisamos de um enorme manancial de signos escritos e, depois, adaptá-los com tanta beleza que ficamos atónitos, mas produzir no cérebro os filamentos associativos das fórmulas e signos conhecidos formando outros é sem dúvida o mais maravilhoso.

Um seio amado desta maneira nunca cancerígena, não fica com metástases, não se inunda de vazio… pois que é “tocado” com saber que só o amor consegue. A sexualidade bravia deve ter provocado na anatomia feminina uma tormenta enorme, dado que não há razões aparentes para tanta coisa malsã. Claro que não há poetas em cada quarteirão que façam dos seios cânticos, nem que saibam deles assim, mas deve haver quem os encante, na medida em que são berço longo do mundo.

Há a síndrome do corpo vazio, daquele que fica triste e não responde à sua fórmula natural, que se deixa invadir e matar por exércitos de doenças quantas vezes requisitadas inconscientemente para pôr fim a outra doença que se transformou o viver: não é fácil estar em pé, nem andar de pé, nem amar, nem nascer, nem morrer. Um organismo só está apto quando o cérebro fez bem as suas associações e transmitiu ao todo o poema da vida. Antes disso, há uma imensa falta de coordenação motora e desordem sem fim naquilo que deve ser uma leveza a transpor.

Inundamos os afectos de coisas pragmáticas e tudo o que ficou por escutar nos mata de repente… não gosta a vida de ser desvivida nos seus círculos sacrais… e faz bem. De tanto andarmos podemos ficar insensíveis a uma maré que corre mesmo a nossos pés. Quando tudo gelar estaremos a pensar em brasas acesas num território que não tem fogo, e a memória que estava bem estruturada pode transformar-se em pequenos elencos sem sentido na mente ordenada , que não desarrumando, não gere mais memória do que aquela que armazena de fora, pela sua cabeça adentro.

Estamos numa enorme transformação linguística, mas os meios telepáticos não se equilibram nas orelhas estranhas dos homens… os amplexos laterais são para pendurar fios eléctricos, e fazer de cada orelha um suporte cujo descanso, serve apenas a surdez . Surdo, mas não fechado, nós vamos tendo coisas anatomicamente diferentes… Pensamos é que são doenças e combatemo-las… são doenças, mas não são mortais, nós ainda morremos por outras invasões. Por que temos as narinas dilatadas, por exemplo, e há oxigénio a mais… por que não sabemos ouvir o corpo… daí a raiva incontida contra as cabeças. Se não serve para o resto não tem espaço para o que quer… qualquer coisa assim de brutal ditou a raiva ofensiva contra elas.

Dizer que ainda aqui vamos é admitir uma fraca transformação, mas ela pode até não ser passível de mais metamorfoses. Nós podemos muito bem ter chegar ao máximo possível e a partir daqui haver um ser feito à nossa própria imagem e semelhança. Se, como bem disse Pessoa, «Deus é um Deus de um Deus maior», nós podemos ser os Homens médios de um maior, também. Impressiona-me o grau de atavismo de alguns médicos, ainda… como se fossem uma panaceia do tempo da «Morgadinha dos Canaviais» estão compelidos a uma técnica grosseira da anatomia, mas a felicidade é que vão aparecendo novas gerações que se sente fazerem o melhor de forma completamente nova.

Onde colocar esta medicina portuguesa com botas cardadas de doutores e mãos pesadas de curandeiros? Clínicas onde eles se entretenham a fazer “trabalhos manuais” . Não se podem deitar pessoas fora e temos de aproveitar o que sabem, mas não devemos estar sujeitos a saberes que não foram continuamente actualizados numa prática exigida pelas instituições que representam.

É muito penoso ver-se desaparecer gerações, mas elas, de facto, já não estão disponíveis para nada a não ser aos vínculos que têm e manter uma natureza enraizada a práticas desgastadas. Confrontamo-nos com multidões de paralíticos que não actualizam as fórmulas nem são permissivos a discursos outros. Há gente assim ao pé de nós, que caso estejamos mal , nos podem literalmente deixar morrer. Já não é um problema de liberdade individual, mas de consciência pública. Portugal deve ser o local do mundo onde mais gente se empata uma à outra, dado que quase todos fazem o mesmo, ou seja, optam pelas mesmas profissões.

A matéria “gorda” do entupimento colectivo é uma banha da cobra de tão difícil remoção que se morre sem que o próprio por vezes saiba de quê. Isto também é político, dado que se não fosse um martírio de governações dolosas e impertinentes nas chancelas, não havia tanta miséria e queda, que podem enfraquecer um país até à sua própria diluição.

Egos de gentes que vêm da Covilhã, do Minho, de Loulé, de Valado dos Frades… Gente que não tem a menor formação humanista: engenheiros, técnicos… (a Filosofia desapareceu dos currículos nacionais), toda esta tralha mecanicista ou economicista invadiu os pólos da Governação. E advogados? Há um em cada esquina. Vejamos o resultado prático desta “coisa”.

Claro que é preciso analisar o mercado e mais uma perspectiva sociológica, as leis laborais e governativas, pois que tudo é afinal muito difícil e temos de perder muitas horas a treinar nuns cursos fantasmas leccionados por inaptos, mas as sociedades estão em grande derrocada e todos estes aparentes saberes não dão para a vida das pessoas. As pessoas são, como começamos a ver, o que menos importa às outras pessoas, pois que se não houvesse uma mão cheia de códigos civilizacionais de base nem elas já existiriam.

A fome salva e a fome mata. De tanto laborarmos para a destreza dos bens para alguns o mundo corre agora o perigo de implosão a nível do seu próprio potencial humano, feito a duras penas por épocas e épocas de conquistas. Se a juntar a isto a crise energética vacilar, quem seremos nós, parados, num instante em que estar vivo é o mesmo que nos mexermos desgovernadamente todos os dias?

Lembremo-nos sempre da velha frase Romana «Os deuses enlouquecem aqueles que desejam perder». Pois nunca estiveram tantos condenados à espera da trombeta real!

E nós, os dos seios e os dos saberes, mesmo nus, não somos capazes de fazer enamorar as trevas. Com trevos se fazem as festas e os dons maiores, a nossa vida é uma peça gigantesca do próprio teatro do absurdo e nem Ionesco conseguiria agora descrever a peça inteira deste “puzzle”. Vivemos num conto fantástico para além de Kafka que, ao lado disto tudo, era apenas ilusionista de um imaginário saudável.

Atravessamos como os doidos as Praças, estamos a ir para o lado onde a força se faz e se fizerem mais força ainda nem memória teremos do que pode vir a acontecer. Tecemos o jeito gregário do mal adaptados, mudamos as coisas, mas as coisas não nos mudam mais do que a resistência de a elas nos adaptarmos de olhos vazios face aos abismos reais.
Entre os seios dos Cânticos e dos Poemas de Amor temos um abismo onde já não cabe a nossa anatomia. Já não sabemos o que de cor e de olhos fechados tocamos ….a nossa matéria não é a forma esperada nem a Humanidade sabe disso. Sem os «colos de garça» e os nossos sonhos somos agora, também, matéria apetecida por fomes que não esperámos. A fúria dos comedores de pedras.

20 Nov 2015

A morte saiu à rua num dia assim

Federico Garcia Lorca
(5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936)

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim.

Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores.

Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante.

Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia.

Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador.

Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém.

O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes.

19 de Agosto de 2015

Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão.

Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam».

“Do Oriente ao Ocidente
Levo tua luz redonda.
Tua grande luz que sustém
Minha alma, em tensão aguda.
Do Oriente ao Ocidente.
Que trabalho me dá.
Levar-te com teus pássaros.
E teus braços de vento!”

25 Ago 2015

Arranca nova edição do concurso de contos Rota das Letras

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stá aí a quarta edição do Concurso de Contos do Festival Literário de Macau – Rota das Letras, que visa a recolha de histórias em português, chinês e inglês até ao dia 30 de Novembro. Segundo um comunicado da organização, “o concurso de contos decorrerá em moldes semelhantes ao do ano anterior, com os vencedores a serem seleccionados por escritores que passaram pela Rota das Letras, depois de haver uma pré-selecção de um júri composto por representantes da organização e outros convidados”.

A história terá de ser obrigatoriamente sobre Macau, e, para além da publicação do conto, existe um prémio de dez mil patacas para cada um dos vencedores, um para cada idioma. O próximo volume da colecção “Contos e Outros Escritos” será lançado em Março do próximo ano, quando decorrer a 5ª edição do Festival Literário de Macau.

Os vencedores da 3ª edição do concurso de contos foram J.Cool, natural de Macau, que escreveu em chinês, a brasileira Regina Nadaers Marques e ainda Kevin M. Maher, norte-americano. Ao jornal Ponto Final, Kevin M. Maher considerou o prémio do concurso como um “incentivo” para escrever mais histórias. “Serviu-me de validação e deu-me a segurança de que talvez possa, na verdade, escrever algo que as pessoas queiram ler”, disse o também docente de inglês na Universidade de Macau (UM).

O mesmo livro incluiu ainda os textos dos escritores que passaram por Macau no âmbito do Rota das Letras e que foram convidados a escrever sobre o território. Hu Xudong, Afonso Cruz, Andrea Del Fuego e Karla Suárez são alguns dos nomes que podem ser folheados no livro, à venda na Livraria Portuguesa.

Os vencedores da 2ª edição foram Pedro Amaral, com o conto “Diário dos Últimos Dias do Coronel Vicente Nicolau de Mesquita”, Loi Chin Pan com a história “A Pequena Loja” e Sam Lee com “M”. Carlos Afonso Portela recebeu ainda uma menção honrosa com o conto “A Chegada de Cesariny a Macau”, Isolda Brasil com “Cartas de Amor de Macau” e também Lawrence Lei, com “Caça ao Homem”.

30 Jul 2015

Resíduos de uma diáspora interior

[dropcap type=”2″]D[/dropcap]evo a referência a este autor e em particular a este livro ao escritor João Paulo Borges Coelho na sua passagem por Macau, quando ambos participámos na Rota das Letras em 2014. Confesso que ainda não tinha lido nada de W. G. Sebald e fiquei com imensa curiosidade face ao entusiástico elogio de João Paulo Borges Coelho. Depois em boa verdade não comecei pelo livro intitulado Austerlitz, mas antes pelo Campo Santo, Austerlitz chegou uns meses mais tarde.

Resumo

O professor de História da Arquitectura Jacques Austerlitz investiga a estação ferroviária de Liverpool Street, em Londres, coligindo materiais para uma pesquisa sobre arquitectura industrial, quando é tomado por uma visão que talvez o ajude a explicar não a ‘arquitectura da era capitalista’, mas o sentimento incómodo de ter vivido uma vida alheia. A partir dessa experiência as suas andanças pelas ilhas britânicas e pelo continente europeu, a sua mania fotográfica e a sua memória minuciosa adquirem uma importância que já não é académica mas antes biográfica e Austerlitz passa a procurar reconstruir a sua própria história. Para cumprir esse objectivo o herói do romance terá de viajar no tempo em muitos países e nos cenários mais díspares, tal como um lar protestante no interior de Gales e um internato britânico, lugares esses onde decorreu a sua criação e educação; uma biblioteca em Paris, fortificações, palácios, campos de concentração, monumentos e balneários públicos. No fim desta viagem, que acabará por converter a dimensão biográfica e íntima do professor numa outra realidade através de uma articulação com a história europeia do século XX, indo assim ao encontro dos primórdios em que tudo começou, com outros nomes, numa outra língua, numa outra estação ferroviária, quando os horrores da Segunda Grande Guerra começavam a ser anunciados.

Reflexão

Se há uma ideia axial através da qual podemos referir a obra de W.G. Sebald, essa ideia é a de hibridismo. Contudo o hibridismo caracteriza muitos autores contemporâneos e desse ponto de vista parece que a ideia nuclear seria apenas carência de pontaria. A verdade é que o carácter ensaístico e híbrido de uma parte da ficção contemporânea, se não predomina, pelo menos marca muitos textos de incontornável importância. Estou, em particular, a pensar em autores europeus como Cláudio Magris, por exemplo, que num texto como Danúbio, desenvolve a sua narrativa numa atmosfera, a qual, temos até dificuldade em enquadrar no domínio da literatura ficcional e romanesca, embora por outro lado se possa reconhecer que o texto é um espantoso romance histórico, geográfico e intelectual de uma parte significativa da Europa e da cultura europeia. A nossa opinião depende muito do posto de observação e de uma certa tolerância relativamente às fronteiras dos géneros literários. Só a título de exemplo: O que é As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, a Vida Material de Marguerite Duras ou o Fogo Pálido de Vladimir Nabokov, para só citar alguns textos que me entusiasmaram muito e sobre os quais se pode discutir amplamente o género.

Porém o hibridismo de Sebald é mais complexo por um lado e radical por outro e apresenta-se tão bem doseado, que apesar da radicalidade nunca se perde o sentimento ficcional e romanesco. A todo o momento estamos a perguntar-nos se aquilo que acabamos de ler será memorialístico, autobiográfico, erudito ou ficcional em absoluto, embora isso pouco importe porque o prazer da leitura se sobrepõe. Como salienta muito bem António Barrento trata-se afinal de um trabalho oblíquo “sobre a memória pessoal e histórica (…) em que o ficcional se cruza com o biográfico e o documental”. Para levar a cabo este memorialismo pessoal o autor não hesita em introduzir nos seus textos pedaços dispersos de outras narrativas artísticas e de outros saberes, tais como fotografias, despojos arquitectónicos, conhecimentos técnicos de vária ordem, como a Medicina e a Engenharia, etc. «(…) por detrás dos quais se perfila a visão de uma Europa perdida, perigosamente enredada numa tragédia do esquecimento».

O que acabo de dizer e citar, aplica-se tanto ao Austerlitz, como aos outros livros, mas é justo que se diga que Austerlitz pode ser considerado um modelo, atendendo ao facto de que aqui se duplica o sentido do esquecimento, uma vez que ele é ao mesmo tempo individual e colectivo. Para que o objectivo funcione, artisticamente falando, é porém necessário que as escolhas de Sebald sejam apropriadas, tanto no plano intelectual quanto no plano estético. Ora, em boa verdade, é isso que acontece sempre. O bom gosto de Sebald é notável, sobretudo porque não é nunca gratuito. Estou a pensar no modo como começa o romance Austerlitz. Começa como se sabe na Gare de Antuérpia. A Gare de Antuérpia é de uma imponência e beleza esmagadora. Eu estive lá pela primeira vez nos anos 80 do século passado e lembro-me de sentir o quanto aquele espaço era favorável a um ambiente romanesco. Por outro lado, não penso que a designação da personagem principal através do apelido Austerlitz seja uma designação fortuita, ela é como também se sabe o nome de uma Gare, parisiense no caso, ao mesmo tempo que consagra o nome de uma batalha, que foi por sua vez determinante para a consagração de Bonaparte, figura muito emblemática também, abordada por Sebald em Campo Santo e a verdade é que o romance para além de nos aparecer centrado na biografia de Jacques Austerlitz, constitui também uma reflexão sobre a monumentalidade própria das gares, enquanto lugares da sensibilidade nostálgica. As gares mais do que lugares de partida e de chegada, e isso já seria suficiente, são sobretudo nós de comunicação e encontro. Elas encerram uma ideia ou projecto que sustenta largamente a problemática cosmopolita da alteridade. Numa gare e por maioria de razão numa gare internacional invoca-se sobretudo o Outro, o que chega e parte e na sua mobilidade permanente se apresenta hostil à armadilha da apropriação nas tenazes indiferenciadas do Mesmo.

O que justamente se apresenta como nostálgico em todos os livros de Sebald é uma espécie de diáspora interior que consagra territórios neutros ou neutralizados pela história e que só se tornam interessantes porque aparecem sempre sob a forma de vestígios, de resíduos ou de despojos, restos arqueológicos ou ruínas. Claro que muitas vezes estas ruínas não se apresentam em ruínas, fisicamente digamos assim, e quando isso acontece são mais ruínas ainda, são verdadeiras ruínas. Os monumentos são na maior parte dos casos ruínas sentimentais, ruínas morais do Espírito, desmentidos brutais das nossas maiores ilusões. E o que são as desilusões senão ruínas. Quando os monumentos aludem à História e aludem sempre, o sentimento de ruína é global, a desilusão é aterradora. É consagrada uma verdadeira terra de ninguém, espiritual, um não lugar da memória que só pode provocar nostalgia e até sofrimento. Contudo, após o estremecimento ontológico inicial desenha-se aos poucos um princípio de esperança.

É preciso passar sempre pela prova das ruínas e da desilusão. É preciso passar pela prova da memória. Simplesmente em Sebald essa memória só pode tornar-se redentora nos planos ético e moral por um lado e político por outro, para poder ser motor de redenção histórica, se filtrar os acontecimentos e os factos assim como os vestígios a uma luz dolorosa e poética, de uma poética do ser que não pode ser nunca meramente festiva e comemorativa.

A importância dos vestígios, dos resíduos e das ruínas é na aparência tautológica uma vez que é da natureza da realidade e não apenas da realidade histórica ser fragmentada e dispersa. O que se propõe é assim da ordem da resignação que se opõe à tendência do espírito para a denegação e para o recalcamento. Não obstante, resignação tem aqui o sentido não de uma desistência pusilânime mas antes de uma lucidez extrema. A aceitação resignada de uma realidade que é por natureza fragmentada prepara o Espírito para a cura e através dela para as bodas da superação reconciliada.

Nota: Se ainda não o disse em letra de forma, será provavelmente a altura ideal para o fazer: o melhor da cultura europeia, da cultura literária desde logo, está muito ligado a uma tradição de desenraizamento, de diáspora, errância, deriva e exílio. Na tradição europeia os castiços produziram muito menos e de muito menor qualidade, o que se compreende. Aconteceu assim com a grande tradição intelectual da mitteleuropa, nos séculos XIX e XX, mas também em muitas outras latitudes e épocas. Se fizéssemos uma retrospectiva da literatura e do pensamento europeu contemporâneos seguramente que confirmaríamos esta observação que porém não cabe aqui na economia apertada desta recensão; porém aproveito para referir alguns autores em que entronca esta genealogia que hoje em dia engloba nomes como Sebald, Magris, Rushdie etc… Pense-se desde logo na filosofia em Kant, e na literatura em Kafka, Marai, Zweig , assim como Borges e Cortázar.

Pense-se sobretudo nessa figura incontornável da problemática da alteridade que é Lévinas, judeu lituano, ucraniano e russo, em parte alemão pela cultura e finalmente francês, por adopção, linguística, mas não só.

E o que dizer de Vladimir Nabokov ou Joseph Conrad, que escreveram em várias línguas; e Joyce que viveu uma parte importante da sua vida em Trieste, lugar paradigma de uma grande oscilação dos mecanismos de pertença e enraizamento, como sublinhou muito bem Cláudio Magris em Um Outro Mar. Em boa verdade quase tudo o que de inovador e vanguardista a Europa produziu, a partir do século XIX sobretudo, apresenta essa marca a que não é estranho, por exemplo, o facto do enorme sucesso dos intelectuais judeus (povo de diáspora por excelência), espalhados pela Europa.

Os romenos Panaït Istrati, Tristan Tzara e Benjamin Fondane, abandonaram todos cedo o seu país e adoptaram o francês como língua literária. «Benjamin Fondane é o autor de uma «boutade» sobre a importância quiçá desmesurada da pátria de Chateaubriand, de Voltaire ou de Victor Hugo na cultura romena quando escreve que partia para França porque já não suportava viver numa colónia francesa e era portanto preferível ir viver para a metrópole. De facto a metrópole é sempre recomendável relativamente à província»: e a verdade também é que a maioria dos intelectuais ligados a uma cultura local ou nacional são quase sempre provincianos. E ser provinciano é no plano intelectual o pior dos defeitos e dos insultos. Na nossa tradição própria, os gigantes são de facto cosmopolitas ou desenraizados, como Camões, Eça de Queiroz ou Fernando Pessoa.

Dois exemplos apenas:

Sebald, W.G., Austerlitz, Quetzal, Lisboa, 2012 Descritores: Literatura alemã, Ficção, Memorialismo, Ensaio, ISBN: 9789897220517
Sebald, W.G., Austerlitz, Quetzal, Lisboa, 2012
Descritores: Literatura alemã, Ficção, Memorialismo, Ensaio,
ISBN: 9789897220517

Relativamente a Simmel, é conhecido um importante, embora breve, texto sobre o assunto, designado apropriadamente Digressão Sobre o Estrangeiro. Porém sobre este tema, o estrangeiro, nada melhor se escreveu ainda que a obra homónima de Michel de Certeau. Simmel afirma que: «o estrangeiro é o que chegou hoje, mas não para partir amanhã, sendo antes aquele que chegou para ficar». O estrangeiro conjuga assim, na perspectiva de Simmel, a harmonia que resulta da distância e da proximidade, da generalidade e da diferença. E nesse sentido ele é o verdadeiro símbolo da Modernidade, pois ele é síntese e inovação, entre por um lado a diáspora e a fixação, funcionando como intermediário das pulsões ambivalentes da alma humana. No estrangeiro convergem tolerância e auto compreensão, alteridade e identidade, generalidade e idiossincrasia. O estrangeiro é o verdadeiro símbolo da modernidade mas também do cosmopolitismo.

A reflexão de Robert Park, discípulo de Simmel, vai no sentido de evidenciar a figura simbólica do marginal das sociedades tardo industriais e pós modernas, sobretudo nas grandes metrópoles, exprimindo ainda a modernidade mas também a sua crise e desorganização, que andam afinal modernamente juntas. O marginal é também uma figura do cosmopolitismo, pois habita entre dois mundos, o que promove um desenraizamento agora não apenas cultural ou linguístico, mas também social. A figura do marginal é um estrangeiro multiplicado, pois acontece enredado entre duas realidades sociais, entre duas culturas e por vezes mesmo entre dois códigos linguísticos antagónicos. A subjectividade possui no marginal uma dimensão trágica, pois muitas vezes ele não consegue superar este divórcio que vive quase sempre de uma forma psicológica dissociativa.

W.G. Sebald nasceu em Wertach im Algau, na Alemanha, em 1944, filho de uma família católica do interior da Baviera. Estudou Língua e Literatura Alemãs em Freiburg e leccionou em Manchester na Inglaterra, de 1966 até 1970. A partir de 1970, ensinou na Universidade de East Anglia, em Norwich, tornando-se professor de Literatura Europeia, em 1987, onde permaneceu até à sua morte, num acidente de carro, em Dezembro de 2001. De 1989 a 1994, foi o primeiro director do British Center for Literary Translation. A sua obra foi contemplada com numerosos prémios literários em vários países. Poeta, ensaísta e tradutor, Sebald é contudo reverenciado no mundo todo pelos seus livros de ficção. A Teorema publicou quase toda a sua obra: Os Emigrantes, Os Anéis de SaturnoVertigens. ImpressõesAusterlitzHistória Natural da Destruição e Campo Santo. Entretanto a sua obra tem vindo a ser republicada pela Quetzal.

11 Jun 2015