Noites todos os dias

Joaquina, Lisboa, 13 Junho

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e vez em quando, mergulho em apneia no grande oceano da música brasileira. As redes permitem pescar com fartura e nas profundezas do passado. Se feito ao desafio, como há um ano e muito por culpa da Elza Soares, então as agruras ganham o perfume da dama-da-noite. Incontáveis vozes femininas cantam em veludo os desamores e as pedras da calçada do quotidiano. E ao serviço de letras que constroem sabiamente contos, crónicas, poemas, aforismos. Cresceu-me o introito a propósito de uma daquelas noites que só o Junho alfacinha contém. Na Rua Joaquina, vila sobranceira a uma das minhas colinas preferidas, ainda que sejam muitas as dilectas, costuma acontecer festa rija e fado solto. Desta vez, na ressaca da noite sacrificada ao santo, estamos postos a celebrar a amizade, que o André [Gago] acaba de fazer comovida pelo discurso aniversariante. Eis que o puto Gaspar [Varela Silva], bisneto de Celeste Rodrigues, com primeiro concerto anunciado para Novembro, pega na viola portuguesa, deixa assobiar o vento nos caracóis, e ali mesmo celebra Dolores Duran, pois adora «A Noite do Meu Bem»: «Eu quero toda beleza do mundo/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Ah! como este bem demorou a chegar/ Eu já nem sei se terei no olhar/ Toda pureza que eu quero lhe dar». O talento ouve-se a olhos vistos, mas custa a crer na força de vontade que prende o Gaspar às cordas. Pureza enfeitando a noite.

Feira do Livro, Lisboa, 18 Junho

Sob sol inclemente e com o país mergulhado na tragédia, fecha mais uma edição da Feira. Por mais voltas que dê, vejo-lhe os modos e as maneiras a moribundar. Mais do que momento anual de ter ao alcance do entendimento e da bolsa o catálogo completo de cada editora, o armazém tornado montra, o rosto a vislumbrar-se muito para além da marca, aquilo está disforme venda de saldos ao ar livre. Tudo entalado entre isto e aquilo. A maltosa passeia, mas já não disfruta. Vai para comprar o barato, mais do que livro. Praças inteiras de maduros, mais ou menos anónimos, à espera de quem lhes reconheça o autógrafo. Barracas de farturas e fartura de barracadas. Talvez não haja volta a dar, apenas subir e descer. Sem dispensar uns encontrões, que andamos sem ver onde pôr os pés.

Horta Seca, 19 Junho

Acabo a «Marquesa de Alorna» contada aos pequenos, e nem tanto, pela Luísa Paiva Boléo e pelo André [Carrilho], minha vizinha na colecção «Grandes Vidas Portuguesas». O conto espraia-se sem floreados, acreditando bem a Luísa que a personagem se agiganta só com o estender dos factos. «Querida Leonor» foi grande figura, não restam dúvidas, antes páginas. Prometo visitá-las. O mister do André usa o esboço nos cenários de um modo que parece história, sugerindo apenas para que completemos nós. (Confira-se com a ilustração do terramoto de 1755, algures nesta página) Leonor surge de rosto definido em detalhes e de corpo enchendo o tempo e os lugares. Entre cenário e corpo, dá-se a aventura.

Horta Seca, Lisboa, 21 Abril

Sem variação, mas com variantes, cada um que entra na minha oficina se espanta com a aparente desarrumação das mesas e das estantes. Não, o plural não é gralha, que são várias as mesas onde acumulo, sobretudo livros, mas também revistas e jornais e revistas, a repetição não é gralha, e cartazes e documentos, enfim, papel e pó. Esta acumulação resulta de um processo único, próximo do zen, desenvolvido com preguiça e argúcia ao longo dos anos: se não estiver perto, esqueço. Por folha estará ao menos uma ideia, cada monte contém infinita potência de leitura ou de projecto. Preciso sopesar formatos, respirar grafismos, tocar a haste da letra, beber a imagem, mergulhar no pensamento, enfim, achar que posso ler, a qualquer momento. Esta proximidade define horizontes e estruturas, sem as colunas em altura desmorono, sem a visão dos tons infinitos e movediços do papel paraliso. Moro nos antípodas do origami, ess’arte de, com dobras engenhosas, domesticar o espaço. Para que o mundo e as suas formas caibam na mão. E assim encolher o tempo. Aqui o caos parece congelar o tempo, propondo-lhe um labirinto. Não morro menos por isso.

Belém, Lisboa, 22 Junho

O Filipe [Raposo] deixa-me nas mãos uma «Inquiétude» em tons de amarelo. Os dias seguintes caminharão sobre pianos. As composições, quase todas suas, resultam de dois anos de aprendizagens várias em Estocolmo, pelo que nos chegam com as marcas da viagem, pedaços de paisagem nas botas, as malas cheias de elementos, água e vento, fogo e céu. E palavras. Há voz, ligeira, que se toca como instrumento, pois não são canções. Contudo, este jazz das planícies (interiores, ainda que lá fora) tem, no que parece ser uma constante no trabalho do Filipe, fortíssima ligação à poesia. Ténue como corda de funâmbulo. A cada tema corresponde um poema, mesmo que seja só frase, no desdobrável que acompanha o disco, entre os quais o de Louise Bourgeois que forneceu o acertado título, metendo estudo nisto do desassossego. Logo me desperta o jogo de ler o poema e ir tentar descortinar as notas que cosem relações. Surge uma Leonor, acontece Grabato sobre o Cosmos página branca, e «coisas deixadas para trás» a pretexto de um haiku: «Enquanto com a manga/ varro a minha cama/ e me sento nela/ à tua espera/ a lua já se pôs». São degraus, estas teclas.

Hoje Macau, 23 Junho

Saravá, António, que agora trazes novas tonalidades a estas páginas. Nós, os escravos do tempo, te saudamos ó grande intérprete das faldas e sinuosidades. Deixa ainda acrescentar que se fez pedra no charco o teu, tão breve quanto intenso, «É Um Clássico», na RTP2, aos sábados, pelas 21h22, mas a qualquer hora, como se vê agora televisão. Até te perdoo as mãos nos bolsos, se continuares a desfiar melancólica clareza com a perfumada alvura das manhãs que se sucedem às noites alfacinhas de Junho.

Horta Seca, 25 Junho

Vejo desta coluna a semana que passou e são tantos os sítios onde gostaria de ter estado sem o conseguir que me arrisco a perder assunto, a perder o pé: as leituras que a Rita [Taborda Duarte] organizou na Leituria, o lançamento da Patrícia [Portela], a inauguração do Jorge [dos Reis], a festa dos vizinhos na rua Joaquina, a homenagem ao Bernardo Sassetti, que será doravante também uma sala-jardim, o Nuno [Saraiva] a mostrar originais das Festas, a visita guiada do Jorge [Silva] ao Pavia. Verdade fique dita, o social dói-me sempre algures.

28 Jun 2017

Destruir a morte à custa da vida

Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética.

Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra.

Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida?

Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena.

Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica.

Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas.

O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.”

A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno.

Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.

27 Jun 2017

Das tonalidades

Francis Bacon – “Oedipus”

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma tonalidade é uma tradução para o que Heidegger escrutina como formas radicais de acesso ao mundo. São maneiras de ser. A palavra alemã é “Stimmung”. Traz à colação o fenómeno do estado-de-ânimo. É uma disposição. A palavra equivale, de certo modo, à inglesa mood. No étimo, está a palavra “Stimme” (voz). Uma tonalidade é uma cadência acústica, uma melodia, um modo. É assim que na nossa vida estamos dispostos.

Vibram em nós disposições, cadências musicais rítmicas. Heidegger usa tanto metáforas acústicas: “uma tonalidade é um modo de ser no sentido em que é uma melodia, a qual não paira sobre o ser humano que existe aí, mas indica o som do seu ser, é o jeito e a maneira que determina e tonaliza o seu do ser humano (GBM, 101)” ou como metáforas meteorológicas: “Parece que a tonalidade está desde sempre aí, como uma atmosfera na qual nós já imergimos e ela ressoa em nós completamente” (GBM, 100).

Nós temos em português expressões como “estar um ambiente de cortar à faca” ou “de cortar a respiração”, apontando assim para uma densidade extraordinária, uma atmosfera que não só paira em suspenso sobre as coisas, vibra sobre elas, mas perpassa tudo. Isto é o que dá disposição de ir ou de não apetecer ir. Não é uma coloração que pode ser detectada nas coisas (alegria rosa, melancolia negra), que acompanha o estarmos aí. É o que abre ou fecha, de todo em todo, atmosferas.

Nós existimos entre possibilidades extremas de disposições vibrarem. O mais das vezes não estamos nem bem nem mal. Aparentemente neutraliza-se a disposição. Fecha-se o olhar, para dar conta dessa mesma presença. Isto serve para situar o acontecimento do esvaziamento de sentido, no nada da angústia ou do tédio. O nada dá ritmo à vida, dá-lhe uma melodia peculiar, desde sempre, desde a primeira vez das primeiras vezes. A sua cadência é a da asfixia, do estrangulamento do próprio sentido do tempo.

Encontrarmo-nos no meio das coisas no seu todo não significa que o meio seja determinado por uma qualidade espacial (a equidistância). Por estarmos dentro de um determinado sítio não estamos dentro desse sítio: na praia, na esplanada, no mundo. Não é por estarmos entre quatro paredes que estamos na sala.

Estar na sala de jantar a comer e a jogar às cartas é diferente. Se não captamos a totalidade da natureza e história.

A disposição não apenas qualifica o sítio específico em que estamos (só esta sala). Ela faz-nos explodir para fora da sala, do edifício, para fora da cidade, tinge o céu, contamina tudo no seu todo. É centrífuga e claustrofóbica.

O meio das coisas refere a cadência, o ritmo, a atmosfera e o clima em que nos encontramos. Fazemos a experiência de como cada um se encontra ou acha fora do âmbito perceptivo ou cognitivo. Cada pessoa é uma onda ou uma vibração. Cada pessoa encerra em si um espectro de modulações e tonalidades que metamorfoseiam o tempo, circunstâncias e situações. Cada pessoa é uma onda que modula o tempo e atinge a totalidade dos entes.

A priori eu sei que quando me encontro com tonalidades diferentes: azul, rosa ou negro. Não apenas como um fenómeno cromático, mas como atmosferas que antecipam todos e quaisquer conteúdos.

Há disposições a priori que podem não ser anuláveis. Podemos anular a chatice de um filme, saindo da sala do cinema para nos expormos a outros estímulos. Mas só manipulamos as disposições até certo ponto (com um copo de whisky sexta-feira à noite, por exemplo). Os estados de espírito são calculados. Rejeitamos convites porque sabemos que nos vamos aborrecer. Mas há disposições incontroláveis.

Independentemente de onde estamos – no pátio, mar do sul, outra galáxia – estaremos sempre numa cadência com o mesmo tom.

Não é necessário percorrer todos os compartimentos, todas as regiões de ser para interrogar sobre o que ainda escapa.

À partida está ganho o horizonte e a confiança para nele estarmos: o horizonte onde vibram tonalidades. Há um tom para cada um de nós? Qual é? Conseguimos escutar-nos uns aos outros? Como?

GPM: “Grundprobleme der Metaphysik” (Problemas fundamentais da Metafísica)

23 Jun 2017

Rogério Puga, académico e investigador: “Enid Blyton é uma pioneira”

Escreveu livros que marcaram a infância de várias gerações. Enid Blyton, que deu vida a “Os Cinco” e “Os Sete”, nasceu há 120 anos. Em Portugal, a Universidade Nova e a Biblioteca Nacional assinalam a data, com um conjunto de palestras e uma mostra bibliográfica. Rogério Puga explica por que vale a pena ler e estudar a obra da escritora inglesa
Rogério Puga

[dropcap]E[/dropcap]ntre os leitores de Macau, é conhecido sobretudo pelos estudos que faz acerca da história do território. Sendo certo que as mulheres – e as mulheres que escrevem – estão muito presentes no seu percurso, como é que surge o interesse por Enid Blyton? o é que surge o interesse por Enid Blyton?
A escrita feminina interessa-me como objecto de estudo académico, nomeadamente a de língua inglesa. Enid Blyton, que terá redigido mais de 600 obras, começou a publicar poemas em 1917 e diversos livros na década de 20 do século passado, tornando-se uma das autoras que mais vende, mais de 600 milhões de cópias de livros. O meu interesse surgiu primeiro enquanto leitor adolescente e agora como fã académico (o chamado aca-fan). O imaginário e as referências culturais que apre(e)ndi com a obra de Blyton permanecem como memórias individuais partilhadas com as personagens das aventuras de “Os Cinco” e de “Os Sete”. Recentemente descobri, inclusive, que a famosa personagem Noddy foi também criada por Blyton, o que eu desconhecia. O interesse surge, então, da leitura e da investigação.

O que tem de especial o universo literário de Enid Blyton?
As obras de Blyton dirigem-se a um público infanto-juvenil de forma (então) original, e o imaginário das aventuras das suas personagens é caracterizado pelo suspense, pelo ultrapassar de obstáculo e pela reposição da ordem final, numa paisagem marcadamente inglesa, enriquecida por referências culturais, tendo sido adaptado para a televisão várias vezes, nomeadamente através da série que eu segui em criança, “The Famous Five”, produzida em 1978 e 1979. A sua obra foi criticada como simplista, xenófoba e elitista, estando obviamente marcada pela época em que foi produzida. No entanto, as aventuras das suas famosas personagens influenciaram e acompanharam muitos de nós, leitores. É sabido que a literatura infantil é produzida, comercializada e lida por adultos, como estratégia de socialização, colocando-se, portanto, a questão da ideologia veiculada por esses mesmos universos literários, e a obra de Blyton não é excepção.

Enid Blyton causou muita polémica, também pela quantidade absurda de livros que escreveu, a um ritmo que levou a que se achasse que não seria a autora de todas as obras. Por outro lado, também pelos conteúdos considerados xenófobos e elitistas. São críticas que faziam sentido?
A sua obra foi criticada, a partir dos anos 60 do século passado, como simplista, racista, xenófoba e elitista sobretudo no que diz respeito à caracterização de personagens e de atitudes estereotipadas em termos de etnia, género e de nacionalidade. A obra de Blyton está obviamente marcada pela época em que foi produzida, entre as duas guerras mundiais, e ecoa alguns dos ‘tiques’ negativos da classe média britânica desse período. Essa crítica literária é também fruto das novidades na academia e da (nova) forma de questionar a literatura, quer para adultos, quer para crianças. Uma crítica literária mais socialmente consciente e interventiva. No entanto, as aventuras das suas famosas personagens influenciaram e acompanharam muitos de nós, leitores. É sabido que a literatura infantil é produzida, comercializada, adquirida e lida em primeiro lugar por adultos (antes que seja lida à criança), como estratégia de socialização, colocando-se, portanto, a questão da ideologia veiculada por esses mesmos universos literários, e a obra de Blyton não é excepção. Essas críticas levaram a que algumas das suas obras fossem “actualizadas” e adaptadas, nomeadamente “The Faraway Tree”, em que, em edições mais recentes, desaparecesse o castigo físico de crianças. Em 2010 a editora Hodder adaptou os textos de “Os Cinco” para modernizar termos como “school tunic” (“uniform”), ou “mother and father” (“mum and dad”), projecto que foi abandonado em 2016, por não ter tido o êxito desejado.

As várias personagens que criou e os livros que escreveu tiveram imenso sucesso, e é algo que perdura. Como se explica este fenómeno?
A receita mágica do enredo baseado na descoberta, no suspense, nas aventuras picarescas tão desejadas por adolescentes, na relação do ser humano com a natureza, e numa visão moral(izada) do universo. A adaptação desses livros em formato de série ou filme também ajuda a vender livros. Blyton é, deveras, uma pioneira no que diz respeito à literatura infanto-juvenil.

A literatura infanto-juvenil foi, durante muitos anos, considerada uma arte menor, apesar de haver grandes autores que também escreveram para leitores mais jovens. Ainda é assim?
Já não, felizmente. Basta recordar o recente fenómeno literário e cultural de Harry Potter. É talvez das áreas do mercado livreiro que mais lucro gera, movimentando milhões. O diálogo entre o texto e a ilustração de qualidade enriquece o livro-objecto que agrada a graúdos e a miúdos simultaneamente, e permite um momento único de partilha entre pais/avós e filhos. Determinados livros e personagens tornam-se parte daquilo a que poderíamos chamar o nosso ADN cultural, da nossa memória familiar e pessoal, como acontece com “Os Cinco” de Blyton. O livro infantil é divertimento, mas sobretudo é visto por quem o oferece e lê como uma ferramenta didáctica que também estimula a criatividade. E cada vez mais autores conhecidos e lidos por adultos são convidados a escrever para um público mais jovem, de José Saramago, que publicou “A Maior Flor do Mundo” e o “Conto da Ilha Desconhecida”, entre outras obras para crianças, ou António Lobo Antunes, que publicou “A História do Hidroavião”, de temática pós-colonial, e logo complexa, que exige um leitor curioso, ou interessado, crítico e interventivo. A literatura infantil começou também a abordar temas que eram tabu na educação das crianças, como a morte ou a perda de entes queridos, os direitos humanos, os refugiados, a exclusão social, a sexualidade e o género.

22 Jun 2017

Equívocos de juízo acerca dos escritores

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vivemos num mundo em que queremos que os escritores sejam excelentes cidadãos e aceitamos que os políticos sejam maus cidadãos. Quantas pessoas se escandalizam ao saberem, ou verem, que o escritor ou poeta que tanto admiravam, é um bêbado em público? Como se isso não fosse natural. Quantos escritores e poetas ao longo dos tempos não eram bêbados? Fernando Pessoa, Charles Bukowski, James Joyce, Tenesse Williams, Dylan Thomas, Ernst Hemingway, Edgar Alan Poe, Serguei Iessienin, Camões, Li Bai…

Por isso, tem de se traçar uma linha entre o escritor e a pessoa. Podemos evidentemente não querer privar com um escritor bêbado, mas não devemos deixar que esse comportamento vá influenciar a leitura dos seus livros. Provavelmente seria pesaroso para muitos privar com Dylan Thomas ou James Joyce, pelas histórias que se contam, mas não deixamos de ler os seus livros por causa disso, mesmo que fôssemos seus contemporâneos. Não me parece uma condição necessária a um escritor, a sobriedade, contrariamente a um político.

E se em relação à bebida estamos conversados, pois talvez todos concordem com o que aqui foi escrito, ainda que possam depois não o praticar, a verdade é que em relação às posições políticas dos escritores a concordância fica muito mais difícil. Conheço pessoas que não lêem ou não valorizam um poeta ou um escritor, apenas porque ele é politicamente de direita. Como se ser de direita fosse equivalente a escrever mal! Como se tantos e tantos bons escritores e poetas ao longo dos tempo não tivessem posições de direita nas suas vidas! O grande dramaturgo norueguês Hentik Ibsen dizia, algo controversamente, que o escritor é por natureza um animal conservador no modo como conduz a sua vida e revolucionário no modo como escreve. Talvez se estivesse a ver a si mesmo, mas no fundo o que ele está também a dizer é que um escritor deve ser julgado pelo que escreve e não pela vida que leva. E por falar em norueguês, temos um dos maiores escritores do século XX, que era não apenas de direita, mas de direita reaccionária, Knut Hamsun.

Contrariamente ao professor Georg Steiner, que é judeu e separa completamente o trabalho intelectual de um autor do cidadão que esse autor foi, o professor Harold Bloom não o consegue fazer, invocando o que esses cidadãos fizeram de mal ao povo judeu, não conseguindo claramente separar o escritor do cidadão. Por isso vemos fora do seu Cânone Ocidental, autores como Kunt Hamsun, Pirandello ou Céline. Mas numa livraria de Telaviv encontrei livros de Céline, mostrando-me que a nação judaica consegue fazer essa separação.

Por outro lado, hoje, se um escritor tem a ingenuidade de dizer numa rede social que é de direita, erguer-se-ão vozes, que em breve se multiplicarão em milhares, a acusá-lo de fascista, acrescentando que não irão ler mais livro nenhum dele (caso o tenham feito antes). E o mesmo acontecerá se um escritor escrever no seu mural de Facebook: eu sou comunista. De um lado e do outro formam-se fileiras de exércitos de opiniões, acusando a escrita deles. Conheço quem não leia José Saramago por ele ter sido comunista a vida toda. E conheço quem o leia apenas porque ele foi comunista a vida toda. Qualquer um destes leitores está errado. Pois se José Saramago ao escrever não fosse muito maior do que era enquanto cidadão, não valaria a pena lê-lo. Qualquer grande escritor é muito maior a escrever do que é enquanto pessoa. É precisamente por isso que ele é um grande escritor: porque escreve acima daquilo que é como cidadão.

E este equívoco estende-se a muitas facetas das nossas vidas. Por vezes, ao se falar de futebol, oiço alguém a criticar o jogador Cristiano Ronaldo por ele ser vaidoso ou por outras idiossincrasias da sua personalidade. Ora, aquilo que deve interessar na apreciação de um jogador de futebol é o seu desempenho entre as quatro linhas do relvado. Fora das quatro linhas, o Cristiano Ronaldo interessa-me apenas na medida em que também me interessa um habitante distante das Maldivas, isto é, espero que não sofra.

Esta crescente confusão entre a excelência de uma actividade e a cidadania tem vindo a aumentar com as chamadas redes sociais. Estas, como promotoras de opiniões que são, tendem a julgar as actividades das pessoas pelo comportamento delas. E isto acontece, porque as pessoas naturalmente querem falar, querem fazer-se ouvir, e também porque é mais fácil julgar alguém a cair de bêbado ou uma frase que escreve no Facebook do que ler os livros que ele escreveu.

Sem dúvida, um escritor é um humano. E deve ser julgado como humano na sua praxis e como escritor na sua actividade. Aqueles a quem devemos julgar pelas suas acções são os políticos, pois esses têm o dever de ser exemplos. Evidentemente, não falo da vida privada, falo da vida pública. Um político deve ser exemplar. Não um escritor, um cantor, um cineasta ou um jogador de futebol. Devemos exigir decência a Donald Trump, a Vladimir Putin, a Marcelo Rebelo de Sousa, e julgá-los por isso, e não a Bukowski, Iessienin ou Pessoa (ainda que, como cidadão, qualquer um deles deva ser julgado pela sua cidadania ou falta dela).

20 Jun 2017

Notas acerca do livro A Urna, de David Oscar Vaz

Para Valério Romão

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]avid Oscar Vaz é um escritor brasileiro, de São Paulo, que recebeu em 1997 o prestigiado prémio de revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um dos mais importantes prémios brasileiros, com o seu livro de contos Resíduos (Ateliê Editorial). Em 2000, e também pela Ateliê, edita o seu segundo livro, também de contos, A Urna. Livro que iremos ler aqui através de alguns dos contos que o compõe.

“A CASA”

“A Casa” acaba connosco. Acaba connosco a recolhermo-nos ao cérebro e a perguntar: é verdade ou não? E, com esta pergunta, voltamos atrás no canto, atrás no texto. Talvez seja esta a mestria dos grandes contistas: a capacidade de nos fazer voltar atrás, sempre para trás. Voltar atrás, perguntar se é verdade ou não, aqui, não é do foro dos factos, nem tão pouco ontológico. Voltamos atrás e perguntamos pela veracidade estética do conto. Independentemente da sua veracidade ontológica. A factual é que não é sequer p’r’aqui chamada. Verdade factual interessa tanto ao conto como a água interessa ao vinho. Conto bom, dá à ré! Tão contrário ao romance, com a sua seta afiada em direcção ao futuro do tempo! Ainda que continuemos o romance, depois dele acabar, não voltamos atrás, pelo contrário, vamos para a frente. No fim de um romance, o que ficou para trás não causa perplexidade. No fim do conto, é o que já lemos que causa perplexidade, isto é, o que lemos e que agora se nos é revelado como “se calhar não lemos”. Este conto, de David Oscar Vaz, de apenas meia dúzia de páginas, mostra de um modo extraordinário a peculiar arte do conto. Independentemente do seu conteúdo, excelente, de resto, é na sua formalidade que encontro a razão que me faz começar por ele, na curta leitura deste livro.

“A URNA”

Conto que dá título ao livro e com o qual se começa. Tem a particularidade de se centrar num tempo muito anterior ao nosso: há um século atrás. E, talvez por essa mesma razão, a comparação com a tradição machadiana torna-se inevitável. Sem dúvida, lembra Machado no seu melhor. Lembra Machado, no seu melhor, no uso preciso da linguagem; preciso das metáforas, preciso como um relógio, e é tão difícil acertar uma metáfora; no uso preciso do ritmo; no uso preciso dos desequilíbrios narrativos, no uso preciso da lei universal do conto: o que é dado por certo ao leitor, no início, é directa e proporcionalmente retirado no fim. Por conseguinte, uma vez mais, ao terminarmos a leitura do texto, todo o conto é posto em causa. Lá vamos nós outra vez para trás à procura de onde nos enganámos, de onde nos deixámos enganar.

“TALAGARÇA”

Este é um conto dentro de um conto. Sem dúvida, uma técnica clássica de narrativa. Mas difícil é sustentar o clássico na contemporaneidade, como uma mulher que entra hoje num clube nocturno vestida como nos idos anos vinte do século passado e, ainda assim, ninguém consegue tirar os olhos dela; não por excentricidade, mas precisamente porque ela e o vestido fazem todo o sentido. Quem ainda não viu uma mulher assim, nunca viu uma mulher. Pois estou convicto de que somente nas revelações em contra-posição se chega realmente a ver alguma coisa. Depois, o conto, antes mesmo da sua formalidade clássica, começa com uma frase pré-clássica, isto é, uma frase antes do conto, antes do clássico, antes dos espartilhos de género literário. O conto começa assim: “Você pergunta se eu acredito em fantasma! Mas, se veio me procurar é porque já sabe a resposta.” Para as senhoras e os senhoras mais familiarizados com a obra de Platão, torna-se claro o ponto de vista da reminiscência. Reminiscência, porque já trazemos em nós uma resposta daquilo que perguntamos, isto é, já trazemos em nós um conhecimento prévio daquilo que desconhecemos. Imagine-se um homem que chega de Portugal a São Paulo e pergunta onde fica a Avenida Paulista. Ele pergunta por algo que não desconhece de todo, embora não saiba disso, claro. Ele não sabe onde fica, mas sabe que fica em São Paulo e que se trata de uma avenida, e que fica “não sei onde”. Ele pergunta, não por aquilo que desconhece de todo, mas por aquilo que vislumbra. Ora, e o que é um vislumbre senão um fantasma. É o próprio Platão que diz que há fantasmas, ao afirmar que se sabem coisas em forma de simulacro. Simulacro em Grego Antigo é precisamente phantom (fantasma). Assim, todo aquele que pergunta, pergunta por um fantasma, pergunta por aquilo que o assombra, isto é, pergunta pelo conhecimento que deseja. E só se deseja o que não se tem, mas que, de algum modo, lhe acedemos, que vemos, nem que em sonhos. Por conseguinte, DOV (David Oscar Vaz) começa o seu conto com um projecto iminentemente platónico. Correcto será dizer: com um projecto de filiação a Platão. De qualquer modo, e a apesar da profundidade do seu início, trata-se de um conto e não de um texto filosófico. Por isso mesmo, a terceira frase é: “O que você quer saber é da minha estória, não é?” DOV não pretende enganar o leitor, vendendo gato por lebre, dando conto por filosofia. O autor engana-nos apenas na justa medida do que nós merecemos; na justa medida de cada um como leitor. E quanto mais treinado, mais enganado. Todo o texto que vale a pena ser lido trai o seu autor, põe-lhe os cornos, é sabido, mas neste caso particular o texto também põe os cornos ao leitor. Pois durante toda a narrativa do conto o leitor fica preso aos acontecimentos relatados, à relação entre aquele que relata e a sua falecida mulher, embora na verdade, no final, leve com um grande par de cornos, isto é, no final explode todo o sentido formal deste conto: “Às vezes penso que o fantasma seja eu, preso a minha casa e ao labirinto das minhas lembranças. Já tem minha estória, moço. Agora, aperte minha mão.” Terá sido coincidência o autor terminar o livro precisamente com essas duas frases, não apenas o conto, mas o livro? Parece-me pouco provável. Em relação ao conto, a transladação do fantasma para o próprio, recupera o sentido original de Platão e das primeiras duas frases do conto, à revelia de toda a narrativa. O fantasma não é ninguém senão o próprio. O fantasma não é ninguém senão a reminiscência que nos habita, que nos enforma. Mais: é o fantasma que escreve contos. É o fantasma que escreve poemas. O filosofo é precisamente o caça-fantasmas, aquele que ambiciona e esforça-se por estar acima do seu próprio fantasma; ele luta contra o fantasma que é. O escritor, não. O escritor assume a sua condição de fantasma. O escritor diz: Platão você tem toda a razão, mas eu não consigo ser de outro modo, não consigo ir para além do meu fantasma. Mas, e isto parece-me evidente, quem escreve as frases que escreveu neste conto, tem consciência clara e aguda disto mesmo. Entre a verdade e a verdade há uma estória. A estória que é narrada no conto intromete-se entre a verdade das primeiras frases e a verdade das últimas. De qualquer modo, e isto parece exemplar neste conto, a estória é sempre uma reminiscência, uma imagem da verdade, um simulacro, embora não seja mentira, não seja um embuste. Assim, parece-me claro que fazer “Talagarça” ser o conto final deste livro não é por acaso. Pois que melhor conto nos faria andar para trás no livro todo, na reflexão acerca do livro e da própria escrita?

“O OUTRO”

Talvez este não seja o conto que eu prefiro, mas é seguramente o mais perfeito. A técnica narrativa, a beleza de expressão e a filiação a Platão atingem aqui o seu ponto máximo. O que importa, ou o que parece ser recorrente (obsessivo?) em DVO é precisamente o lugar da reminiscência: o lugar do que está em nós, não estando; do que se faz sentir, sem conhecer; do que nos aparece, sem aparecer. A reminiscência, em Platão, é precisamente esse lugar intermediário entre o que há e o que não há, entre o que se tem e o que não se tem, entre nós e nós mesmos. Usando as palavras de DOV “quando o outro é você mesmo.” O outro nós-mesmo é esse lugar intermédio, esse lugar a meio caminho entre saber e não saber, isto é, o lugar humano. O lugar que poderia ser descrito hoje como que o lugar da revelação fotográfica, como aparece escrito no conto: “qual solução de nitrato de prata a fazer surgir em papel lavado de branco a imagem que não havia, mas que ele, o papel possui sem saber”. E se essa imagem é escrita para mostrar o amor pelo outro a aparecer na poeira do dia, também podemos usá-la para mostrar tudo o que aparece em nós. Nós somos o que não sabemos que somos. E esta é a grande obsessão destes contos. Mas, se para Platão, há uma saída, não para a condição humana, mas para uma melhoria da sua condição, através do conhecimento, para DOV isso nem sequer é secretamente pensado. Viver não tem saída, isto é, não tem uma seta na direcção do melhor, pois nunca se sai da reminiscência. A reminiscência não é um modus operandi que através de uma tenaz perseguição do conhecimento nos põe num estádio diferente de consciência. Não. Reminiscência é o que somos sempre, o que não podemos deixar de ser. Viemos ao ser como reminiscência e vamo-nos de igual modo. Como se lê no conto: “Renato tentou se ver vendo, saber o que sentia ao vê-lo.” Tentar pode-se, mas não leva a lugar nenhum diferente daquele em que se está. Adiante, escreve: “Quando deu por si, se é que de fato deu por si”. Diria que toda a escrita de DOV é este movimento de nos fazer dar por nós, mas sem que de facto isso altere o nosso estádio de reminiscência. Dar por nós é compreender a prisão reminiscente em que nos encontramos. Por isso, o conto assume a certa medida desta verdade. O conto é, em si mesmo, uma contínua e perpétua reminiscência, pelo menos neste autor. O ser humano está claramente, nesta escrita, entre sucinto e explicativo, entre o poema e o romance, entre o fragmento e o ensaio. Concordemos ou não, o humano tem na escrita de Vaz a dimensão do conto. Humano e conto são uma e a mesma coisa. Não há uma seta na direcção do melhor; há uma recorrência do que há. E nesta recorrência se faz a vida e a pomos a pensar e a escrever, que é pensar pra fora.

13 Jun 2017

Virgens e meninos rabinos

05/05/2017

Max Ernst – “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas” (1926)

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez, pensava na vida olhando a minha filha mais pequena que brincava com um pato amarelo, de plástico, e perguntei-lhe de chofre: Filha, o que é a mentira? Ela, entretida com o  pato, atirou: Uma tartaruga. Não me desmanchei: E quantas patas tem? Respondeu firme: Duas.

Depois, sob pretexto de lhe ler uma história, mostrei-lhe uma gravura com uma tartaruga. Ela concluiu o resto, não precisei de lhe dizer uma palavra. Chama-se a isto a racionalidade: a capacidade de mudarmos as nossas concepções quando confrontamos aquilo  em que acreditávamos com a experiência da realidade.

O que se denota pelo comportamento de Trump é que para ele as tartarugas ainda têm duas patas e continuarão a ter.

Dizia o presidente americano que os EUA abandonam o acordo por ser mau para o emprego nos Estados Unidos, pois afecta a indústria do carvão e de outros combustíveis fósseis. O que ele não diz – eis uma personagem em quem até as omissões mentem – é que o acordo, simultaneamente, estimula outras indústrias bem mais florescentes na economia dos EUA. Elucidam os jornais: «Segundo números do Departamento da Energia, citados pela CNN, a indústria do gás natural emprega 362 mil pessoas, a solar 374 mil e a eólica 102 mil. Já a indústria do carvão dá emprego a 164 mil funcionários, um número que tem vindo a descer há décadas. Os dados mostram ainda que a empregabilidade na indústria solar cresceu, em 2016, 17 vezes mais que o crescimento total do emprego.» Não são recicláveis os operários americanos? A tal da perna curta, etc.

Na verdade, a única coisa que lhe interessa são duas.

A primeira é exibir músculo para ver se ganha ao resto do mundo a discussão sobre quem estabelece as regras da relação, o vulgo “quem manda em casa!”. E as coisas não estão a sair-lhe bem.

A segunda é a que resulta disto: em Trump, neste momento, por detrás da máscara da arrogância, existe uma criança tremendamente assustada. Alguém que deu conta de que pode haver despistes mortais num triciclo.

Em estudando-lhe as expressões faciais, nos momentos chaves da sua exposição mediática, nota-se alguém tremendamente dividido entre o papel de que ele se acha investido e a mortificação de já não saber que máscara adoptar com precisão em cada ocasião. A urgência pomposamente solene com que empurrou Montenegro (a macia matéria do mundo) para depois apertar um botão do casaco em Grande-Plano não é congruente com o ar de pilhéria com que anuncia que se está nas tintas para que o planeta fique estufado – um ar de puto radiante por contrariar os outros.

A lição dura que Trump está a ter através de humilhações sucessivas, dentro e fora – e proporcionais à irrealidade com que as nega no twitter – é a derrota do homem comum americano: a sua impropriedade para enfrentar a complexidade do mundo actual, dado padecer da inércia de nunca se interrogar se a tartaruga terá mesmo duas patas.

Por isso jamais poderá agir Trump como diplomata e nunca almejará ser mais do que o ladino intermediário de alguns negócios, não coincidindo exactamente o seu primeiro interesse com os interesses da  América, antes fixando-os na manutenção do rating da sua imagem. Será que o triciclo se aguenta na curva?

Só este pânico explica a inadequação dos tuites em que desqualifica o mayor londrino. Não é a pertinência, a justeza da palavra que ele visa, isso é irrelevante, ele apenas roga, desesperadamente, por atenção e, quiçá, ternura.

Apetecia convocar aqui a “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas”, de Max Ernst (o quadro que ilustra a crónica)” – são imensamente friáveis as nádegas do Menino, seu filho. E, para já, tirar o triciclo a Trump. Quanto a mim prometo não voltar ao tema dos meninos rabinos.

06/05/2017

Esta Virgem e a crónica de há duas semanas do Valério sobre as 72 Virgens que aguardam por mártir de um Islão no Paraíso, fez-me pensar no tipo de virgens que quereria para mim, depois duma minha virtual conversão. Eis algumas que já me ocorreram:

  1. a) Têm todas de ter um certificado de garantia de que nunca estiverem em hotel russo ao mesmo tempo que um milionário americano, não quero hímenes restaurados;
  2. b) quero uma virgem com uma genitália que seja uma espiral de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro, com rochas negras de basalto, para que eu exercite os meus dotes de montanhista;
  3. c) outra com uma (sic) como a que descrevi exaustivamente num conto: com quatro cantões como a Suiça. Já que a nomeei mereço frequentá-la;
  4. d) uma virgem, como pediria o filósofo Agamben, de “uma beleza-por-vir” mas que não seja demasiado linguaruda como a Xerazade, podendo no entanto herdar-lhe as axilas, que diziam aromatizadas em jasmim. Melhor, que seja só axilas…
  5. e) uma virgem que, como queria o gnóstico Valentim, não obre e não urine e saia ilesa de todas as minhas fantasias;
  6. f) uma virgem cuja palavra menstrue, para que me lembre. Outra
  7. g) tão inteligente que, de cada vez que me veja nu, não sinta logo necessidade de chamar os bombeiros;
  8. h) uma virgem que tenha pomares nas virilhas e exsude em aparos moles;
  9. i) uma virgem tão feliz em sê-lo que a cole num postal para o Papa Francisco;
  10. j) uma virgem especialista sobre o vasto mundo do paguro;    
  11. k) uma virgem inautêntica, até sincera nisso, e duma fantasmagórica vacuidade para que eu possa dormir lá dentro;
  12. l) uma especialista em sânscrito que me possa ler o Kama Sutra, na língua que o incarna, sem precisarmos de nos cansarmos no espaldar;
  13. m) uma não-virgem, que pode ser a minha mulher (troco-a por vinte e cinco virgens), pra que naquela imensa eternidade tenha alguém que me diga que não;
  14. n) uma virgem que respeite a minha decisão de não querer ser informado sobre os pormenores da incandescente cópula do gafanhoto (16 horas de labor operático).

Por favor, recrutadores, passem a palavra.

8 Jun 2017

Perplexidades e equilíbrios

28/05/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”.

Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha

Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário.

Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer.

Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação.

30/05/2017

A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto.

Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora.

A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer.

É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de  se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”.

Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se.

Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética.

E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/

fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”

1 Jun 2017

As 72 virgens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s religiões que conheçam postulam, todas elas, um paraíso. Este cumpre a função de resolver da morte e da sombra que esta projecta sobre todo e qualquer homem, sem excepção. Epicuro tenta solucionar lógica e friamente o medo associado à inevitabilidade da morte dizendo “enquanto somos, a morte não é; quando a morte é, não somos”. Desde logo, nada a recear, aparentemente. O problema é que o ponto de vista humano não é nem como o dos animais – completo mas cego para si próprio – nem como o dos deuses – completo e absolutamente transparente para si próprio. A forma como estamos desenhados permite-nos pensar em coisas que não existem de todo – ou ainda – ou às quais não temos um acesso adequado como, por exemplo, o infinito, deus ou o futuro. E a forma como vemos o futuro, ela própria, é paradoxal: por um lado, sabemos que vamos morrer e que isso pode acontecer a qualquer momento e, por outra parte, vivemos como se a morte fosse uma coisa que acontecer “aos mais velhos”, “aos doentes”, “àqueles que moram em países assolados pela guerra ou pela fome”, em suma, aos outros. Não conseguimos imaginar a morte própria. O mais perto que conseguimos chegar disso é imaginando a procissão de carpideiras num funeral em que somos, simultaneamente, figura principal e espectador invisível.

O paraíso cristão abjura a figura do corpo. É a alma que é sujeita a condenação ou salvação. De um ponto de vista lógico, é uma posição extremamente bem urdida: não somente elimina o problema do corpo e do seu perecimento, como a logística necessária para manter um paraíso em risco permanente sobrelotação. As almas, como se sabe, não ocupam espaço, não adoecem e são (postula-se) imortais. Não faz qualquer sentido trazer para o paraíso o plano vectorial onde acontece o desejo e a dor, em suma, o plano que possibilita a instalação de todas as formas imagináveis de desordem. O lado negativo da teologia cristã consiste na forma como o corpo é negativamente encarado em vida. Mas como o paraíso tem uma duração infinitamente superior a este “passeio no parque” a que chamamos vida, a troca parece ser, em todo o caso para o crente, vantajosa.

No caso do paraíso muçulmano, porém, a história é de todo diferente. No paraíso muçulmano, não somente o corpo existe, como existe de um modo intensamente sensual. Aos homens estão prometidas setenta e duas virgens com seios em forma de pêra, puríssimas, eternamente jovens e livres de alguns inconvenientes reservados aos corpos na terra: não menstruam, não urinam e não defecam. Em jeito de cereja no topo do bolo, diz-se também, e perdoe-se desde já a tradução livre de “appetizing vaginas”, que estas possuem como característica constitutiva, embora sendo virgens, “vaginas gulosas”.

A primeira pergunta que se pode fazer acerca deste paraíso – deixando para Deus a resolução do problema de espaço – é sobre a natureza problemática da virgindade num local em que o principal atributo é a eternidade. Quando tempo duram setenta e duas virgens no paraíso (pressupondo a virgindade um atributo fundamental, visto ser tão vincada na promoção do paraíso)? Tendo em conta os textos fundamentais da teologia muçulmana, nos quais se postula que os homens têm erecções eternas e que podem satisfazer mais de cem mulheres de seguida, muito pouco. Setenta e duas virgens não enchem nem a cova de um dente. A eternidade é muito tempo.

A forma como a sexualidade é vivida nos países nos quais a ortodoxia muçulmana está mais profundamente instalada condiciona decerto esta visão do paraíso. Na Arabia Saudita, exemplo máximo de uma concepção radical do islão, duas pessoas do sexo oposto não podem ser vistas juntas em público, sob pena de serem castigadas pela polícia dos costumes, uma dependência do Ministério da Promoção da Virtude e da Abolição do Vício. A sexualidade, que não se subsume nem por decreto real, acaba por obedecer à regra “where there’s a will, there’s a way” e as pessoas, impedidas de dar azo aos seus impulsos na forma como os sentem e como optariam exprimi-los, acaso o pudessem, adoptam soluções de recurso. Os comportamentos homossexuais, como no cárcere ou numa viagem de barco de longo curso, acabam por impor-se. E, mesmo nos casos em que a disposição fundamental é a homossexualidade, não sendo esta um recurso para algo que não tem possibilidade de cumprir-se, o comportamento não define a identidade. Por exemplo, não se considera homossexual o sujeito activo da relação, só aquele “que fica por baixo”. Sendo certo não ser possível ficarem todos “por cima”, a formulação é semelhante a que um professor meu de filosofia dava pelo nome de paradoxo mediterrânico, que se exprimia pela contradição em termos entre “todas as mulheres terem de ser castas e todos os homens, fodilhões”.

Viver desta forma absolutamente condicionada aquilo que, mesmo numa sociedade laica e tolerante, pode ser um problema fundamental da existência, a saber, a sexualidade, não pode não ter consequências. E se é certo esta leitura repousa na consideração de um sistema de variável única, não é menos certo que esta é uma variável que tem sido incompreensivelmente posta de parte nas leituras que tenho tido oportunidade de encontrar um pouco por toda a parte.

31 Mai 2017

Desacertos na recta do tempo

Santa Bárbara, 16 Abril

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] silêncio de um editor é sempre ofensa, falta de consideração, desrespeito, desatenção. De Profundis, diz o outro. «Não quero martelo e rima/Aqui no Largo da Graça/Quero ficar onde estou/para saudar a quem passa.»

Horta Seca, Lisboa, 18 Abril

Os dias andam tristes. Talvez nem tanto, apenas embrulhados em circunstâncias miúdas que não permitem abrir os braços e acolher de peito feito a cidade. Eis se não quando uma dúzia de páginas tintadas de azul e vermelho chegam pelo correio e impõem paragens. A história breve de uma solidão faz-se desdobrar por Bárbara R. em grandes planos e geometrismos e desacertos neste pequeno álbum auto-editado. O Sol da Sra. Azul celebra a vizinhança, a atenção ao outro, com simplicidade extrema. Detalhe: fá-lo assente na imperfeição. A impressão riso deste meu exemplar 51 em 90 torna-o único e não me canso de nele descobrir pormenores: de gente, de casas, de percursos. A gentileza de Bárbara deu-me a ver os velhos que ainda cruzam as ruas da cidade dos turistas cegos. Sim, ainda há velhos em Lisboa. Não sei se há sol ou Primavera.

Monumental, Lisboa, 19 Abril

Autismo, do mano Valério, dobra os 1500 exemplares em três anos bem medidos e atira-se em segunda edição. As sobras no armazém parecem desmenti-lo, mas há leitores para romances assim. De choque, dizem alguns. De rasgo, digo eu.

Horta Seca, Lisboa, 20 Abril

Faz 30 anos que Rui Baião, Al Berto e o mesmo Paulo da Costa Domingos, que passa a deixar-me prova de vida da frenesi, agora em edição viúva (!), cozinharam antologia que daria brado: Sião. Escolhas pessoalíssimas, a reinventar-se poema único de fôlego capaz de estabelecer correspondências íntimas de Antero a Fernando Luís Sampaio. «Nenhum detém uma ciência, sequer empírica, dos destinos da Poesia. Nenhum propôs a outrem cânone que não constituísse já a sua coluna vertebral e fado seu, irreversível». Palavras do ímpar editor, noutra ocasião comemorativa, de 1991, e que agora revela, entre outras mais ou menos provocatórias na brochura Sião – Doc. Interno, publicada a pretexto da exposição que comemora, na associação cultural do Porto, Sismógrafo, as tais três décadas da Sião. E que celebrava «o centro urbano, as sociedades nocturnas, pessimistas, decadentistas e que se afastavam da escrita agrária, bucólica do século XIX.» Numa altura em que surgem editoras como cogumelos, mesmos nos dias em que não chove, incautas que julgam que para editar basta imprimir livros, as reflexões suscitadas pelas dezenas de títulos postos a nu no chão ao longo da parede são de extrema importância. Contra o esquecimento, pela afirmação de uma ética. Uma editora faz-se, antes de mais, lugar de resistência pela reflexão, contra a vida, apesar dela, em nome de uma ideia de literatura que nos desarruma, que investe língua adentro, que experimenta, que pensa cada aspecto do não. O logótipo da faz-se «de um cabrito alado em silhueta, e era originalmente a asa de um recipiente persa, em ouro, talvez um jarro». A espiral foi inscrita pelo Paulo Costa Domingos e não deixou ainda de girar sobre si. A palavra vem de verso de Mário de Sá-Carneiro: «Um frenesi hialino arripiou/Pra sempre a minha carne e a minha vida.» A frenesi arrepiou. A frenesi arrepia. Basta subir, página a página, à última cidade do Armagedão.

Casa da Cultura, Setúbal, 21 Abril

E 30 anos passaram desde a morte do Zeca. Quantas décadas contém cada canção sua? As granadas de mão estão cheias de referências, supostas impurezas, nomes concretos, de lugares exactos, insultos dirigidos, asneiras de criar bicho, múltiplos sinais do seu tempo, que só tolos acharão passados pois são afinal palmos de terra sobre os quais se erguem cabanas, lares, fortalezas. Sopram nelas ventos que confluem em espiral, forças de assombrar futuros. Olha ele a cantar-me ao ouvido: «a fadiga é um dom da natureza/ Chiça!/ Com as minhas tamanquinhas/Com as minhas/ Com as minhas tamanquinhas/ P’ra quem não faz fortuna/ Mata as penas e faz covinhas». Desconfio, não tenho certezas, aprendi com ele a world music ou que o surrealismo era redondo vocábulo e isto de viver uma soma agreste. Utilidades, portanto. «Era um redondo vocábulo /uma soma agreste/revelavam-se ondas/em maninhos dedos/polpas seus cabelos/resíduos de lar». Onde andam os vinis da minha infância a querer-se outra coisa?

Mas Quem Vencer Esta Meta Que Diga Se a Linha é Recta comemora estes anos todos, os dele feitos meus. O mano José Teófilo [Duarte], que fez dele boa causa, comemorou o design na obra do José Afonso a partir da arte de José Santa-Bárbara, José Brandão, João de Azevedo, Alberto Lopes, produtores das imagens que me forram a memória. Venham mais cinco será o meu preferido? Ou antes Com as minhas tamanquinhas? Onde rodam os discos da minha infância pouco farta, mas rica? Conheci há pouco um velho amigo, o João Azevedo, que traz perfumes das quatro partidas do mundo, sendo nele mais intenso o de Moçambique, que por um triz não visito agora. As linhas não são todas rectas. O João vem de celebrar 50 anos de pinturas, em boa companhia de mais três nados na Figueira da Foz de costas para terra. Folheio o testemunho impresso, passeio pelas cores, pelos rostos. Invisto tempo nos Ícaros, divertem-me os crocodilos, céu apesar de quedas, horizontes que mordem. Pinta agora barcos apinhados de gente, refugiados. Parecem farpas as suas cores. Mas há sempre rostos, quase gritos. «A formiga no carreiro/andava à roda da vida/caiu em cima/de uma espinhela caída.» Mudemos de rumo.

26 Abr 2017

Apresentação de Autismo (2ª Edição)

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ou começar a apresentação deste livro por um filme recente, de Tom Ford, Animais Nocturnos. Numa cena do filme, em que o casal ainda está junto, a mulher diz ao homem, acerca da sua escrita: “tu estás sempre a escrever sobre ti” e di-lo de modo depreciativo, mostrando-lhe que isso é entediante, com pouco interesse. Ao que ele contrapõe, deste modo: “todos os escritores só escrevem sobre si mesmos.” Anos mais tarde, muito depois dela ter terminado a relação com ele, o homem faz-lhe chegar um livro onde descreve o modo como ele viu a separação deles, mas pondo a cena num lugar e numa circunstância completamente distinta. Aquilo que o homem finalmente entendeu, e por isso escreveu aquele livro que agora tocou tanto a sua ex-mulher, é que um escritor não escreve o que lhe acontece; um escritor escreve com o que lhe acontece, o que faz toda a diferença. Esta introdução para dizer que Autismo de Valério Romão é as duas coisas. Ele escreve com o que lhe aconteceu, sem dúvida, mas também escreve o que lhe aconteceu. E é nesta dobra que o incómodo da leitura se instala. Ele é o livro que não é. Dito de outro modo: o livro é ele amplificado. Antes de mais, amplificado pela arte – e toda a arte é mais do que o indivíduo, é uma amplificação deste –, e também amplificado pelo que não aconteceu fora dele, mas dentro dele. Amplificado, não pelos factos, mas pela vida, isto é, amplificado pelo que sentiu e ninguém viu, pelo que pensou e não disse, pelo que imaginou e nunca manchou a realidade e ainda pelo que apareceu no mundo apenas literariamente. Por isso, podemos dizer que ele é o livro que não é.

A pergunta acerca da veracidade da narrativa é secundária. O que é que é verdade e o que é que é mentira, não tem qualquer importância para apreciação de uma obra literária ou para a fruição de um romance. Pois, onde há verdade, os factos recolhem-se com vergonha. Entenda-se verdade, aqui, não como qualquer ultimato religioso ou científico, mas como profundo, humano, entenda-se verdade como aquilo que é património de todos aqueles que carregam as suas próprias vidas ao longo dos dias. Por isso, neste livro, Autismo, o narrador sou eu. O narrador é cada um dos seus leitores. Evidentemente, isto acontece com quase todos os livros em que as narrativas são na primeira pessoa, como é o caso, mas principalmente acontece porque o tom do livro é trágico. E a tragédia, sabemo-lo bem, é a verdade, isto é, é o que é de todos. No fim do dia podemos não ter uma cama onde nos deitar, mas temos tragédia. Podemos não ter o que comer, mas temos tragédia. Podemos até ter tudo, pois a tragédia arranja sempre modo de aparecer: ou por um filho que se mata, ou que morre precisamente ao volante do bólide que lhe oferecemos, ou o próprio escuta a notícia de que tem uma doença incurável, e não consegue trocar o tudo que tem por dias de vida. Isto é a tragédia. Os negros do Mississípi do século passado diziam: this is the blues.

Voltando ao livro que aqui nos reúne, acompanhamos as desventuras do narrador, através da descoberta do autismo do filho, do fim do casamento e da ruptura com o pai. Caímos do narrador abaixo até ao medo de aquilo sermos nós ou de ser algo que nos possa acontecer, ou eventualmente que já nos aconteceu e só agora nos damos conta, que é o modo de ficar a saber mais traiçoeiro que existe. E isto, que acontece ao longo das páginas de Autismo, é a passada larga da tragédia grega. Não é uma tragédia, porque não há herói, mas o tema é sem dúvida o da queda. O tema é sem dúvida este: estamos vivos, logo isto vai correr mal. Pois se não fosse para correr mal não se escrevia, como os gregos antes de nós também já sabiam.

Há escritores que têm a capacidade de nos mostrar exteriores de um modo interior. Quando Valério Romão descreve a sala de espera num hospital ou um consultório médico, estes não ficam apenas palpáveis, concretos diante de nós, eles passam a ser partes de nós, recordações nossas. Hoje, posso dizê-lo já com dias de prova, quando recordo o meu tempo de espera nesses espaços, recordo-me das descrições do Valério no Autismo. Um grande escritor diz-se de muitas maneiras, mas a mais cruel de todas é esta: fazer das suas memórias trágicas as de todos nós. Nesses espaços, consultórios, salas de espera nos hospitais, a angústia, o sem sentido da vida, a miséria de estar ali cresce como os embondeiros nas florestas tropicais, rasgando o céu. A nossa vida, de algum modo, pelo menos a partir dos trinta anos, é uma espécie de sala de espera de um hospital. E o Valério Romão não só viu isso muito bem, como no-lo disse exemplarmente. Leia-se um excerto do capítulo “Urgências”:

“Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago, mas a rapariga dizia que dali lhe era impossível, tinha de lá ir ao local, perguntar, em suma, fazer pela vida, e Rogério saiu, despedindo-se com pressa, virandose apenas para apontar para uma direcção e perguntar se era por ali o caminho, se ia bem, porque a direita variava consoante se estava de costas ou de frente e ele não queria ir parar à radiologia, do lado oposto do complexo de edifícios, só por ter desprezado perguntar pelo norte a quem soubesse dele.

Rogério entrava por um complexo de veredas onde floresciam ocasionalmente umas placas com direcções e encaminhavase para as urgências. Passados alguns carreiros quase a correr, Rogério deu com um edifício corderosa, a modos que pequeno, e à entrada do edifício estava um segurança, fardado, a ocuparse, pelos vistos, da regulação do rádio. Rogério dirigiuselhe,

Olhe, desculpe, estou à procura das urgências, disseramme que era um edifí́cio assim como este, para não confundir com as urgências gerais, pode dizerme se é aqui, e onde posso conseguir informações, é que tenho o meu filho nas urgências, internado, sabe, um acidente.

O segurança, a manusear o rádio para vazar o vagar das mãos,

Sim, de facto é aqui as urgências, mas não lhe sei dizer se o seu filho está aqui, mas se conseguiu essa informação no balcão geral é porque deve estar. O melhor é esperar que entre ou saia alguém; aqui não há recepção, há uma campainha ali dentro,

e apontava para o interior do hall de entrada das urgências, uma espécie de corredor largo ladeado por cadeiras e horas de espera, onde as pessoas se deixavam afundar sob o peso da preocupação.

Pode experimentar tocar e talvez venha alguém abrir a porta e falar consigo, nem sempre acontece, eles são muito ocupados, sabe, estão sempre a entrar pessoas em situações muito urgentes, pelo que é preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.”

Toda esta longa passagem é memorável, mas acho esta pequena parte muito querida: “Rogério aproveitava para perguntar se era possível obter mais elementos, porque aquilo das urgências era um bocado vago (…)”. Como se na vida pudéssemos pedir mais elementos e como se ela não fosse vaga (um bocado é o lado humorístico do autor). E esta é a nossa tragédia, a de estarmos à espera. Estamos à espera de nós, e nós nunca chegamos. Estamos à espera dos que amamos e eles escapam-nos por entre a vida. Estamos à espera de notícias e elas são vagas. Estamos à espera. E, como se sabe, isto só pode dar merda. Pois sabemos bem que não se faz nada de bom quando somos obrigados a ficar à espera. Escreve Valério Romão: “É preciso ter paciência aqui, porque aquela campainha nem sempre dá resposta.” E eu digo-vos: é isto é a vida, quero dizer, o Autismo.

25 Abr 2017

Os olhos e a carne

Álvares Cabral, Lisboa, 31 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a dedicatória ao seu saborosíssimo «Como Fernando Pessoa Pode Mudar a Sua Vida» (com Carlos Pitella, ed. Tinta da China), diz o Jerónimo Pizarro que foi «uma noite de grandes palavras do caraças». Dou-lhe razão, que o debate regado fechou de boa maneira este mês desatinado. O Jerónimo abriu na fossa abissal dos estudos pessoanos uma lufada de ar fresco, com as ideias que trouxe, pela quantidade de trabalho e energia, além da generosidade, convém sempre sublinhar, de tão rara. Faça-se deste volume, aqui à mão, exemplo. Piscando irónico olho aos livros de auto-ajuda, oferece com grande rigor uma colecção de pinceladas, maiores e menores, que ajudam ao retrato sempre movediço do poeta da desdobra. Não deixa de me surpreender a quantidade de inéditos, de degraus que podem ser mundos, de minudências capazes de mudar a vida. A lista do inclassificável detalha, com bom gosto e humor, listas, muitas listas, claro, de projectos e livros e antologias, esquemas de passar tempo em namoro, as inevitáveis cartas astrológicas, mas também desenhos e ideias, traduções e episódios, correspondências que se cruzam e descruzam ora para divertimento ora para interpelação. Pessoa arde ainda em efervescências. Nada do humano lhe foi estranho. Nem o insulto, que jeito dá, por alturas em que as redes sociais se fazem cloacas: «De ti se suja a imaginação/Ao querer descrever-te em verso. Tu/Fazes dôr de barriga á inspiração.//Quér faças bem ou mal, hyper-sabujo,/Tu fazes sempre mal. É como um cú,/Que ainda que esteja limpo é sempre sujo!»

CCB, Lisboa, 6 Abril

Mais uma conversa de estalo, a desta quinta, entre Mário de Carvalho e Valério Romão, gerida com a discrição habitual pela Maria João Costa, no ciclo Obra Aberta. Sobre livros, que outro assunto haverá? O Mário, invocando o esquecido Aquilino Ribeiro, defendeu o contacto com o difícil, seja texto ou autor, nos bancos da escola. Mas haverá, em período de mastigado didactismo, capacidade de atirar à cara dos educandos o enigma explosivo dos textos que nos resistem, que se impõem, que exigem regressos, que nos acompanharão pela vida fora? Mergulhei em apneia nas memórias que vou perdendo à procura do exacto volume que me abanou, irritou, encantou. Raul Brandão, talvez, o de Humus, em vetusta edição. O Fialho ou o Gomes Leal? Álvaro de Campos, com certeza, ilha no oceano Pessoa, que me foi apresentado nas aulas do liceu, sim, nas aulas do João Nogueira Costa, na Luísa de Gusmão. Aulas? Não sei se se deviam chamar assim, que aquelas sessões continham o espírito e a oficina do teatro, com cenários e figurinos, leituras em voz alta e pesquisas em voz baixa. Prolongaram-se de imediato para os intervalos e depois por longuíssimas horas e centenas de livros e cartas. Dá jeito que seja o Pessoa, mas de par veio o Sá-Carneiro e depois os surrealistas e o Herberto e. A vida mudou-se-me por ali, mas só o saberia décadas e milhares de páginas depois. Dito isto, se tivesse que escolher, punha nesta estante outro continente que o João me fez descobrir, essa deslumbrante continuação dos Lusíadas: as Quybyrycas – poema étbyco em oitavas, que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima atribuiçon de Frey Ioannes Garabatus. Não, Mário, mais importante que os clássicos era termos professores na escola.

Monumental, Lisboa, 7 Abril

Discutíamos ideias, desdobrávamos projectos, comentávamos os cactos, os vivos e os mais vivos pelo desenho do Manuel San Payo, ali sob o limoeiro, na primeira das grandes noites de Primavera. O olhar-câmara do mano Luís Gouveia Monteiro gravou-nos a ser percorridos pelas sombras. E derepentemente apanha-se um sentido, tal o perfume do limão, que abafa a dureza de não saber que responder a tantos, como pagar tanto ou o que resolver entretanto. Valha-me Pessoa: «O rio corre bem ou mal/Sem edição original./E a brisa, essa,/De tam naturalmente matinal/Como tem tempo não tem pressa.» (Como ser Livre, pág. 212)

CCB, Lisboa, 8 Abril

Tive o privilégio de entrever este impressionante projecto do António Gonçalves (detalhe na ilustração) em vários momentos da sua incarnação e subida ao altar. O esplendor da obra vista quase apaga a carpintaria do esqueleto onde as carnes se ergueram: os esboços e das maquetas, o cheiro das tintas e os cadernos, as madeiras e as dobradiças e o peso das folhas, a disciplina de trabalho, as hesitações e a indispensável dança em busca dos apoios. Fui contemplando particularmente, portanto, mas só agora vivi a experiência. Sendo pintura, ao relacionar-se com a escala e a tradição do sagrado, torna-se paisagem teatral. Uma sala, construída com este propósito a partir do desenho de Maria Eduarda Souto de Moura, para que fosse despida e neutra, nem igreja nem museu. No miolo, o vazio e a escuridão interrompe-se com o políptico, que se revela em crescendo ao longo do dia. Cada face apresenta aspectos distintos de um combate de carnes, coreografias das brutas musculações do desejo. Em ocasiões escolhidas, será tocada ao vivo a composição para piano de António Celso Ribeiro. A primeira afirmação do António diz respeito ao tempo. Precisamos parar, abrir lugar na agenda revolta dos dias para experimentar a Contemplação Particular. Na inauguração, o silêncio foi impossível, mas o restolhar dos sussurros e das movimentações espelhava bem o que acontecia perante os nossos olhos. Preciso voltar por causa do silêncio, que, temo, será sempre contaminado pelos turistas de época. Os turistas desta época tendem a perturbar-nos, essa será a sua santíssima identidade. Avancemos. Mergulhando raízes na leitura atenta de Tentações de Santo Antão, de Flaubert, o corpo desfeito em abstracções chega-nos logo pela temperatura de cor, depois pela textura até nos perdermos na dinâmica das volutas, que parecem em movimento perpétuo. Que há de erótico nisto? A visão do para além da pele, lugar onde perderemos o eu na paisagem do outro, a identidade no grande oceano dos corpos. O desejo faz-nos arder em absoluta liberdade, a de que o homem pode ser universo.

12 Abr 2017

Da compreensão simplificada do autismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] dia de ontem, 2 de Abril, é o dia mundial da consciencialização do autismo. O meu filho tem treze anos e, com apenas dois anos e meio, foi diagnosticado com uma perturbação do espectro do autismo. A minha compreensão do autismo e dos seus múltiplos efeitos condicionantes mudou radicalmente desde então. O que eu pensava do autismo estava ancorado na pouca experiência indirecta que tinha da síndrome: alguns artigos de divulgação generalista, uma criança – estranhamente silenciosa para a idade – que frequentou durante muito pouco tempo as mesmas aulas de karaté que eu e, pedra de toque fundamental do entendimento do autismo para a minha geração, a personagem interpretada por Dustin Hoffman no filme Rain Man.

Durante muito tempo os autistas foram para mim essa caricatura de Hollywood: criaturas excepcionalmente dotadas, do ponto de vista do cálculo e da matemática, mas extremamente rígidas quanto aos hábitos e às rotinas e desprovidas de quaisquer competências sociais. No fundo, uma espécie de génio cujas aptidões e insuficiências se encontram elevadas a um expoente no qual umas e outras se revelam inadequadas para dar conta da vida e do seu aspecto pragmático. Todos os autistas eram, para mim, génios. E todos os génios exibiam, em maior ou menor grau, alguma da sintomatologia associada ao autismo.

O meu filho brincava com os carrinhos de modo particular; pegava neles e rodava-os ao contrário como se fossem piões. Eu achava piada àquela – aparente – manifestação de irreverência precoce. Quando, chegado aos dois anos sem vocalizar uma única palavra e incapaz de apontar para aquilo que queria, começámos a transitar da disposição todas-as-crianças-têm-o-seu-tempo-próprio para o território muito mais inóspito do há-algo-de-errado-aqui, a internet e o seu bibliotecário universal chamado Google pareceram-nos a forma mais rápida – e anónima – de encontrar algumas repostas para perguntas que mal sabíamos formular. Lembro-me de dar com um site monocromático no qual se elencavam alguns comportamentos passíveis de serem indicadores de uma perturbação do espectro do autismo. Rodar objectos era um dos itens da lista. Lembro-me de o meu cérebro, procurando o conforto de um contraponto capaz de resistir aquele choque inesperado – o meu filho, autista? – ter formulado imediatamente uma prescrição redentora: “finalmente vamos ter um génio na família”.

Rapidamente percebemos o que não era o autismo. Rapidamente percebemos que a proporção de génios no autismo é, grosso modo, equivalente à proporção de génios existentes na população neurotípica. Rapidamente percebemos que o Rain Man, para além de caricatural, era uma imagem extremamente redutora para a multiplicidade de autismos – que descobrimos quase tão numerosa quanto a quantidade de indivíduos portadores de autismo – com os quais nos fomos deparando nas terapias, nas associações de pais de autistas e nas salas de aula especializadas. Rapidamente percebemos que aquela condição se manteria toda a vida e que era imperioso fazer o luto da criança idealizada para que a criança real encontrasse, na reconfiguração trituradora à qual por vezes temos de submeter os nossos melhores sonhos, o seu espaço vital.

Hoje em dia, quando me perguntam pelo meu filho de modo a que o autismo tenha de ser trazido à colação, apresso-me a explicar que não é o Rain Man. Que nem todos são génios – que, aliás, muitos poucos são e, dentro desses, são reduzidíssimos aqueles cujas competências lhes servem para mais do que para exibições de carácter circense. Que muitos têm limitações vincadas, tanto ao nível da inteligência como da motricidade. Que alguns até precisam de ser medicados porque não conseguem controlar a sua agressividade. Que quando gritam no supermercado, não é porque sejam mal-educados. Que não são de todo enviados cósmicos sob a forma de anjos capazes de percepções infra ou supra realidade.

Há que ter a coragem de nos despirmos de todas as explicações reconfortantes para o fenómeno da deficiência. Eu, por ser parte interessada e implicada, levei anos a fazer isso. Anos absolutamente injustos para o meu filho, que se via sempre, injusta e involuntariamente, equiparado à criança que nunca chegou a nascer, a criança perfeitinha das conversas que versam o tema da gravidez e do parto, a criança que o obrigámos a usar sobre o rosto como uma máscara de ferro. Eu levei muitos anos a abrir os olhos e o coração. Mas eu sou estúpido e lento. Vocês são melhores. Eu sei que são.

3 Abr 2017

Rita Taborda Duarte | A poesia é um acto de resistência

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ens vários livros de poesia editados – em Novembro passado escrevi aqui no jornal acerca do teu Roturas e Ligamentos – e outros tantos de literatura para jovens. Além de tudo isto és também professora de literatura na universidade. Presumo que sejam registos diferentes de pensares a palavra e o mundo. Gostava que me falasses desses diferentes registos.
Os registos da poesia e da escrita para a infância são muito similares: partem até de uma mesma atitude sobre o mundo e o modo como o relacionamos com a nossa própria linguagem. As crianças têm, perante a língua, uma atitude de espanto, desconfiança, mesmo incompreensão; nada do que lhes és dito lhes surge como estático, consabido, pré-definido; apreendem cada palavra à imagem da fluidez do seu mundo; constantemente, usam vocabulário novo e são inventivas, quando se apercebem de que a língua é pobre e fica aquém de toda a complexidade do seus universos. Os adultos, que por cá já andam há mais tempo, olham a língua de longe e do alto; usam a linguagem como uma moeda de troca gasta, cansada, repetitiva, como se não percebessem que a língua não tem a função de representar o mundo, mas de o ser, de o construir. Assim, a poesia está próxima do olhar inaugural da criança e do seu espanto; é uma arte que se move por uma rebelião contra as palavras, num perpétuo braço de ferro contra elas. Aliás, as palavras, amiúde, não seduzem o poeta coisa nenhuma: agridem-no, ludibriam-no. E ao escritor cabe esta incomodidade, esta raiva, por ter de escrever com as palavras, tão gastas, usadas, não para dizer o mundo (para isso, basta-nos, simplesmente, uma mão cheia de enredos de dicionário), mas para o reconstruir à sua imagem. A verdade é que todos nós passamos boa parte da vida a aprender a ajustar-nos à nossa língua materna; a diferença do poeta é que este procura passar todo o resto da sua vida a tentar desaprendê-la, a desfamiliarizar-se dela, buscando recuperar o olhar inaugural das crianças, quando se confrontam com a linguagem pela primeira vez e a descobrem cheia de enigmas. Na faculdade, eu não ensino literatura (dou aulas na Escola Superior de Comunicação Social), o que, na verdade, me dá uma enorme liberdade para falar de literatura, exactamente do modo que me apetecer. Ou seja, sem rodriguinhos, nem punhos de renda e sem ir cheia de pruridos e cerimónias «ao encontro do texto literário»; pelo contrário, posso ir «de encontro ao texto»; que é exactamente a forma como se deve ler: provocando-lhes umas justas amolgadelas e claro, saindo de dentro dele, do texto, também com algumas mazelas.

Recentemente, há um mês, lançaste um novo livro para crianças, Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos, em parceria com o artista plástico Pedro Proença. A ideia partiu de quem?
No caso particular de Animais e Animenos e outros bichos mais pequenos (Caminho, 2017) o texto surgiu primeiro. E apareceu, efectivamente e uma vez mais, como espécie de necessidade infantil (para se escrever para crianças, assim como para se ser poeta, deve-se ser um bocadinho infantil) de perceber que por dentro das palavras vivem outras palavras e ainda outras palavras, ainda, que podemos sempre desconstruir, transformando-as, ainda, noutras diferentes, que por sua vez edificam outras coisas novas no mundo. Dos Animais (que são «mais») passei, assim, para os animenos (que são, claro está, «menos»). O desafio ao Pedro surgiu como uma evidência, diria mesmo uma necessidade óbvia: quem melhor do que ele para dar corpo e forma a animenos inventados? Ele que é o especialista em fazer nascer de um traço criaturas que já lá viviam, sem nós nos termos apercebido? Eu criei os animenos com palavras, é certo, mas o Pedro é que acaba por ser o verdadeiro criador, ao dar-lhes sopro da vida. No princípio aqui foi o verbo, mas foi o Pedro Proença que do verbo lhes deu vida.

Qual a importância da artes visuais na tua vida, tendo em conta que ela atravessa tanto os teus livros?
A relação mais óbvia e imediata que me ocorre, digo-te por antinomia, terá a ver com o facto de eu não ser não ser capaz sequer de desenhar uma linha direita; uma iletrada por completo a desenhar seja o que for, por isso também a minha admiração por quem cria mundos palpáveis, com formas, texturas e cores, assim, só com um mover rápido de mão. Tenho uma admiração enorme por isso, já que nem as letras (a minha suposta matéria prima) consigo desenhar… Mas, agora que falas nisso, vejo que tens razão em algo de que nem me tinha bem apercebido. Além dos livros infantis, os meus livros de poesia têm, de facto, uma componente visual forte; um livro de 2004, «Sentidos das coisas» é todo feito a partir da percepção (não só, mas também visual), e grande parte desses poemas de então partiam de objectos pictóricos (quadros, pinturas, esculturas), que, não estando reproduzidos no livro, são pictoricamente reinterpretados através de imagens (ilustração e fotografia) do Luís Henriques. Também Roturas e Ligamentos, o meu último livro de poesia, é um livro duplo: o meu texto interliga-se com a relação poético-pictórica (incrível e belíssima) do André da Loba, que forma a outra face do livro. Na verdade, a questão da percepção (a minha tese de mestrado é sobre isso mesmo, mas a propósito da percepção crítica sobre a poesia) e o modo como incorporamos em nós o que vemos é muito interessante, porque podemos ler tanta ambiguidade na percepção visual como na linguagem; a pintura, por exemplo, é bem o exemplo disso mesmo. A pintura fará ao mundo o mesmo que a poesia: rasura-o e escreve por cima. Na verdade, não acredito nada naquela máxima velhinha de São Tomé… Não: «crer para ver», assim é que deve ser; como fazem as crianças, os poetas, os pintores e melhor ainda farão os poetas-pintores.

Voltando à poesia, aquando da leitura do teu Rotura e Ligamentos, não pude deixar de ver o quanto para ti a ética se liga à palavra. Para além da estética, a palavra é um instrumento ético. Não apenas no sentido da “palavra dada”, isto é, não apenas no sentido de nós com os outros, mas principalmente no sentido da responsabilidade por nós mesmos. Nós somos as palavras que usamos, as palavras que lemos, as palavras que pensamos e até as palavras que calamos. Gostava que nos falasses disto.
A poesia, por si só, é, quanto a mim, um acto de resistência; de resistência contra a própria língua que está aquém ‒ se não a torcermos, se não a torturarmos ‒ de todo o mundo que há por dizer e por construir. Enquanto não percebermos que a poesia não é algo sequer essencial, sendo simplesmente a essência, vamos continuar a tornar o mundo mais pobre e mais unidimensional. É isto que nos diz um dos verso de Carlos de Oliveira ( um neo-realista que percebeu que a poesia por si mesma é uma arma de resistência, exactamente pela própria carência da linguagem: Rosa martelo fala disto mesmo no seu ensaio sobre Carlos de Oliveira) que me habita a memória desde há muito tempo: «elevar a torre do meu canto/ é construir o mundo /pedra a pedra.» A literatura, a poesia, não é, mau grado o platonismo, uma forma mais ou menos incipiente de imitação, sequer de representação, da realidade; é, sim, uma construção do real… sem ela, teremos menos mundo no mundo à nossa volta. Só por isto a poesia será uma questão ética e também uma forma de resistência política. Uma linguagem pobre, rasteira, reflecte um mundo igualmente indigente e em vez de o edificar torna-o mais rarefeito. Mesmo que não trate de temas políticos, a literatura é sempre um proposta ética, que não se limita a aceitar simplesmente o mundo como ele supostamente é; torna-se parte activa na sua reconstrução e funda um modo de o recriar, mais do que o re(a)presentar. É o que tu dizes, na tua própria questão: o mundo é a linguagem, e nós somos as palavras que usamos e também as que calamos. Em tempos numa entrevista [para o jornal Abril Abril] a uma pergunta similar lembrei-me da formulação de Jorge Luís Borges que dizia que todos os livros eram auto-biográficos. Penso que, parafraseando o escritor argentino, podemos também dizer que toda a literatura é política: alguns textos poderão até iniciar-se desta forma «Aconteceu certo dia em Alepo», outros poderão iniciar-se assim : «Num certo lugar da Mancha, cujo nome amanhã o direi», na tradução de Aquilino, que sempre recordo. Na verdade, tudo o que sabemos do mundo muda-nos; tudo o que escrevemos acrescenta mais mundo ao mundo; e as palavras são parte intrínseca deste mundo que habitamos: não são o revestimento, são o miolo.

Entendes que a poesia hoje em Portugal atravessa um bom momento?
Penso que terá acontecido uma coisa muito interessante com a poesia, nos nossos dias; por ser o parente mais pobre da literatura, aquele mais miserável e esfarrapado, a que os grandes grupos editoriais fecham a porta com um misto de náusea e condescendência (as pessoas são condescendentes com os poetas, e isto acontecerá talvez, como já disse, por eles serem tendencialmente infantis), foram sendo criadas editoras mais pequenas, que publicam, militantemente, livros de poesia, com um desmedido desprezo pelos mercados, e com verdadeiro gosto e entusiasmo pelo trabalho poético, pela palavra dita e escrita; editoras independentes, que acabam por juntar os poetas, promover leituras, tertúlias, e que permitem que a poesia ocupe, de facto, contra todas as expectativas, a cidade, o espaço público. A poesia, efectivamente, excede, graças a essas editoras, o circuito interno comercial do livro fechado, que tantas vezes se resume ao vendável ou não vendável ou a um lugar provisório na estante da livraria: isso é muitíssimo interessante. A abysmo, a que pertenço (e eu sinto a ideia de pertença relativamente à abysmo de uma forma muito forte, como casa que de facto acolhe a minha poesia e a de poetas que muito admiro) é um exemplo disso mesmo. Mas muitas outras editoras, pequenas, têm tido um papel relevante para impedir que se expulse definitivamente os poetas da República; pequenas casas editoriais que fazem um notável trabalho de resistência, com catálogos muitos diversos, mesmo perspectivas diferentes, mas espaços que acolhem resistentemente e com critério a poesia. Citando algumas, e vou pecar por esquecer injustamente outras, reconheço as chancelas do «homem do saco», onde também já editei, na «douda correria», em «do lado esquerdo», «averno», «língua morta», «tea for two», «licorne», «mariposa azual», como alguns exemplos que têm tido uma defesa activa da poesia, contra todas as circunstâncias, divulgando e revelando, contra a maré, novas vozes poéticas.

Que projectos tens para este ano?
Estou a escrever um novo livro de poesia, que penso que estará terminado depois do Verão. Já tem título, de há uns dias para cá: por agora chama-se «A Cabeça do Louva- a- Deus». Curiosamente, é um livro que não é para crianças (soa mal dizer que é um livro para adultos: rasteiras da nossa linguagem), mas que parte de imagens, desenhos a tinta da china, do Pedro Proença. Desta vez, aconteceu o processo inverso: ele desenhou (são cerca de quarenta desenhos, belíssimos e terríveis, com um louco imaginário fundado em mitologia) e eu, a partir dessas imagens extremamente fortes, estou a fazer o que a poesia faz naturalmente ao mundo; ao mesmo tempo a resistir-lhe, a provocá-los, e a apr(e)endê-los, também; tornando-os meus e, consequentemente, naturalmente, rasurando-os… com palavras.

31 Mar 2017

Almas tenras

23/03/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço.

Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida.

Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia.

E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano.

O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la.

Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag.

26/03/2017

Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta:

– Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores?

– Que raio de pergunta… – redargue a morena.

– Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha.

– Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha.

– Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu…

– Que têm os raios a ver com as pessoas?

– Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem.

Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente:

– Já sei para que pode servir a gravidade?

– Diz lá, deve ser boa…

– Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada.

27/03/2017

Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada.

Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc.

Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media.

Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então.

Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.

30 Mar 2017

Mortais e outros voos

Torre do Tombo, Lisboa, 20 Março

Poema de Mário Cesariny (1968)

[dropcap style≠’circle’]Ú[/dropcap]ltima reunião de um grupo de trabalho sobre livrarias independentes, a ideia da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que reuniu profissionais do sector para reflectir e sugerir medidas práticas ao Ministro da Cultura capazes de travar o seu definhamento e morte. Se bem que algumas tenham surgido nos últimos meses, e na sequência das conversas que tivemos, não consigo afastar esta sensação de miúdo com dedo no buraco do dique. O óbvio desamor ao livro e à leitura, a inexorabilidade de práticas comerciais tóxicas e selvagens, se não cultivadas, pelo menos ignoradas pelo Estado, e o nosso atavismo organizativo condenam-nos à sempiterna dependência da bondade de estranhos. Alinhavaram-se definições, na vã tentativa de circunscrever o sentido de independente, e propuseram-se medidas de alcance variável, mas o que está por fazer depende afinal da capacidade de cada actor construir independências. Cesariny dizia: «Faz-se luz pelo processo /de eliminação de sombras». Vou ficar à espera de uma rede que se faça cama elástica e permita pulos, cambalhotas, mortais e outros voos.

Horta Seca, Lisboa, 22 Março

Que crueldade! Seres tão frágeis não deviam andar para aqui e para ali, de trás para frente, de casa para o escritório. Outras formas há de preservar as formas além do museu. São frágeis, mas de todo o terreno. Um fotógrafo dado à moda que pouco vem a Lisboa, Sal Nunkachov, criou editora, a Paper View, não apenas para dar corpo às suas visões de um punk benigno, mas para acolher projectos, sobretudo fotográficos, de outrem. Por exemplo, os nus de praia de Leonor Ribeiro, esculturas a preto-e-branco que parecem tintadas de bronze, reflexos de sol a brutalizar as massas, a dançar nas águas, a desfazerem-se com suave raiva no fim, afinal: a areia. Matéria que nos fica nas pontas dos dedos, pois a capa deste Sand está impressa em lixa. Não se trata apenas de fotografia, mas de impressão. Sal experimenta. Em periódica Newds, no caso a #10, imprime a negro sobre papel preto explodindo em pleonasmo. No tradicional jogo das escondidas de quem se despe, a escuridão acrescenta luzes. Lá dizia o mesmo Mário: «Ora as sombras existem/as sombras têm exaustiva vida própria/ não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela /intensamente amantes loucamente amadas /e espalham pelo chão braços de luz cinzenta /que se introduzem pelo bico nos olhos do homem». Em Pin Hole, soma-se o verde e o desfoque e a objectiva sublima o desejo, amachuca o ser no parecer, ou pelo contrário. Fulgurantes são ainda as sobreposições de Here’s How To Do It e Round Abount. Sempre corpos femininos, rostos, torsos, cabelos e atitudes, mas por cima de moldes da Burda, no primeiro, e de cartas e mapas arrancados a atlas, no segundo. Estas sedes abrem-me o apetite.

CCB, Lisboa, 23 Março

Ainda Cesariny, o de Pena Capital (Assírio & Alvim): «Por outro lado a sombra dita a luz /não ilumina realmente os objectos/os objectos vivem às escuras /numa perpétua aurora surrealista /com a qual não podemos contactar /senão como amantes /de olhos fechados /e lâmpadas nos dedos e na boca». Após a gravação de mais um Obra Aberta, com Nuno Saraiva e António Gonçalves, descemos para visita guiada à exposição que homenageia Mário Cesariny, sublinhando a sua veia experimental, libertária e iconoclasta. E lá vimos as sismogravuras, os aquamotos e os objects trouvées, figuras onde o acaso vai de mão dada com o impulso artístico. Quem diz acaso diz a água, movimento dos eléctricos ou recolha do lixo. Interessa-me, sobremaneira, a colagem, essa faculdade de romper cortes no visto para deixar surgir o imprevisto. Fico horas ouvendo esta homenagem a Satie (ao lado, na imagem) e acabo a perder os óculos. Perder as lentes na noite, quem me manda mensagens?

No aniversário da morte, ressuscito pedaço de texto antigo. «Cesariny vem de um tempo em que viver era rasgar possibilidades, Mário, e as contas não foram ainda feitas, de Vasconcelos, pelo que não sabemos quanto lhe devemos em desejo e ventania, em confusão e lucidez, em verticalidade e camisolas de alças, inteireza e veludo com nódoas. Afiou cada âncora como palito, de maneira que os dentes acabaram por se tornar estrelas. Lugares irrequietos onde só se vislumbram regressos, como este, fazem-se difíceis de atracar aos mapas e só com muita sorte e acaso se conseguem indicações capazes de levar o viajante ao encontro da sua perdição, aquela que buscamos com íntimo desespero ao fugir-lhe. Noite e dia, trabalham algures os pianos escravos a escrever no chão com navalhas as maldades, que são outros tantos caminhos. Esta personalidade geográfica caracteriza-se pela aguda magreza que explode mais tarde, por vezes antes, em largueza de vistas.»

Museu Bernardo, Caldas da Rainha, 25 Março

Paulo José Miranda anima com extrema facilidade qualquer grupo, em girândola de assertivas observações, leituras selvagens e ditos de espírito. Mal se desloca para um palco recolhe-se, encolhe-se, isola-se, hesita-se. Passa a mão pelo rosto à procura da frase certa e a coreografia rima com gaguejo. Depois a gargalhada põe fim à fase do aquecimento e o poeta solta-se. Voltou a acontecer em «Bem em Tempos de Mal», sessão dos encontros íntimos que José Ricardo Nunes anima em descomprometido e irónico Museu Bernardo, com a cumplicidade de, entre outros, Henrique Fialho. Gente que ama a poesia das mais activas formas, pelo comentário em tertúlia ou pela leitura em voz alta. Às tantas, Fialho (atentíssimo leitor, a conferir no seu blogue Antologia do Esquecimento) sublinha a (omni)presença de Deus na obra do mano convidado e pergunta-lhe em que ponto está essa produtiva relação. «Sou viciado em Deus, estou em recuperação, mas a qualquer momento posso ter uma recaída», respondeu. A noite chuvosa ganhou esplendor acetinado, à maneira da impressão de preto sobre negro: precisamos mexer corpo e colagem para detectarmos mancha e brilho.

29 Mar 2017

Da arte de contar uma história

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]alter Benjamin diz que os contadores de histórias se podem dividir, fundamentalmente, em dois tipos cujas raízes são tão antigas como a própria necessidade de contar uma história: aquele que, por opção ou por destino, não tem como sair do seu sítio de origem e conta as histórias, tradições e mitos locais, e aquele que, viajando mundo fora – sendo o expoente máximo dessa figura o marinheiro – vai contando, por onde passa e, sobretudo, quando regressa de onde partiu, aquilo que viu.

Já nos cruzamos de algum modo com uma destas duas figuras. Mais: cada um de nós tem, em quantidades desiguais, uma destas perspectivas de estar no e de ver o mundo. Somos, naturalmente, contadores de histórias. Estas servem o propósito de constituir um património comum de experiências, lendas e mitos que nos ligam e nos situam enquanto identidades sociais. Os gregos representavam a linha do tempo – e a marcha de um homem nela – como alguém virado para o passado que anda, inexoravelmente, em direcção ao futuro, de costas. A imagem, para além de adequada, é honesta. O futuro é o atractor universal que confere direcção – e, por isso, sentido – à caminhada. Mas é desconhecido. A única coisa a que temos acesso (ainda que o estatuto desse acesso não seja de todo claro) é o património de experiências que amealhámos. E neste património incluem-se as histórias que vivemos e que ouvimos e ambas, de certo modo, nos definem.

Segundo Benjamin, a arte de contar uma história está em declínio (o texto no qual o afirma data de 1936 e chama-se “The Storyteller – Reflections on the Works of Nikolai Leskov”). A massificação da informação e do seu formato específico (o de abarcar quase tudo e de ser plausível) é o oposto daquilo que alimenta a arte de contar uma história. Como diz Benjamin, quando abrimos um jornal ao calhas, de manhã, e apesar da multiplicidade de notícias de todos os cantos do globo, a quantidade de histórias dignas de relevo é incrivelmente diminuta. Isto porque, na explicação benjaminiana, tudo quanto nos chega pela via do relato e, sobretudo, do relato noticioso, já vem acompanhado de uma explicação. E a arte de contar uma história, prossegue o autor, é a de libertar a própria história da tentação de explicá-la de alguma forma, de remover quaisquer ligações psicológicas e subjectivas entre os acontecimentos da história. Um dos autores que melhor faz isso e que me vem imediatamente à cabeça é a Flannery O’Connor. A elisão a que nos vota relativamente às motivações psicológicas das suas personagens será talvez um dispositivo pelo qual faz ressair a natureza moral das mesmas. De qualquer modo, e independentemente da razão pela qual Flannery (e os contadores de histórias, na generalidade) escolhe suprimir das histórias que contam as ligações subjectivas de carácter psicológico ou explicativo acaba por dotar a história de uma miríade de ângulos que a explicação, pela sua própria natureza, tenta obviamente reduzir a um único apenas.

Numa época em que a informação se tornou o meio de transmissão de conhecimento por excelência (e que, por acréscimo, deixou de ter a verdade como fundamento axiológico) e, com isso, minou a nossa capacidade inata de trocar experiências, mirrando-a como um membro que não se exercita, era importante percebermos quais as formas que subsistem de produzir as ligações invisíveis que entretecem as estruturas sobre as quais assenta a própria noção de comunidade. Ou a solidão contemporânea deixará de ser uma metáfora simplista para passar a ser um modo de vida sem alternativas.

27 Mar 2017

Leitor de autores

EC.ON, Lisboa, 11 Março

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão devia dizê-lo tantas vezes em público, para manter aquele orvalho das primeiras madrugadas. Ou, pelo contrário, devia gritar esta fraterna ideia de que podemos cultivar comunidades, hortas dos simples nas traseiras de paraísos de onde seremos sempre expulsos. Descobri em Luís Carmelo um irmão que não sabia ter. Além das afinidades que fomos desvelando ou continuaremos tecendo e a tendência para o desvario, une-nos um estranho sentido prático, nem tanto natural, que se faz indispensável para trazer à cena as ideias que nos atormentam. Acrescente-se nele a planície da generosidade e o fulgor da dança. Aquela discreta, como convém, e esta extravagante, porque se pode. Qualquer pista, formal ou improvisada, se expande com as figuras geométricas que o Luís desenha com o corpo todo: inventou a geometria descritiva dançada.

Nas últimas semanas, descontando a presença no Correntes D’Escritas, pude acompanhar de perto o mano Luís em três outras ocasiões, no El Corte Inglés, em dissertação integrada no ciclo «Este Livro que Escrevi», no lançamento do terceiro volume da trilogia, Sísifo, e hoje nesta sessão dos cursos Ícone, da sua activíssima Escola de Escritas. Sou testemunha do seu brilhantismo. E da sua perplexidade ao contar, em preparação para hoje, 53 títulos dados à estampa (e mais de duas dezenas de inéditos), sobretudo no ensaio e no romance, mas com incursões, apenas exemplos, na poesia ou no conto. Bibliografia em badana é uma coisa, outra ver os volumes a construir sobre a mesa uma parede cronológica, a vida disposta de maneira que uma mão as puxe pela lombada e as leve aos olhos. Escusado será dizer que em poucos lugares se poderá ter tal experiência, que as livrarias há muito deixaram ter fundos, ainda assim afundando-se cada vez mais. Carmelo consegue, com um danado poder de síntese, afastar-se da sua obra, semi-cerrar os olhos, agitar os dedos da mão direita no mais longe do braço e dissertar com espantosa certeza. Acerca da circunstância concreta que despertou o desejo de escrita, uma dor ou um exercício, mais os meandros articulados de cada mecanismo, sem esquecer o óleo que une o conjunto para terminar numa conclusão, quase sempre questão em aberto. Por vezes, ferida aberta.

Esta Trilogia de Sísifo ergue-se ponto cimeiro no dançado percurso do Luís Carmelo, que obedece, mais do que aos ritmos exteriores, a um rigor orgânico que propõe formas de contar caleidoscópicas, que busca capturar a essência de cativantes personagens em movimento através de uma linguagem renovada, que acrescenta, com sombras, que não esconde o erótico labor da escrita.

O fecho faz-se com um romance sobre a iniciação, construção literária que há muito fornece à vida a potência de uma explicação, um arrumo, ainda que instável, um sentido possível para os ziguezagues com que progredimos, não necessariamente em frente. Tive crónica na revista Ler, que levava por título «Este Livro e Não Outro», para mastigar a ideia de que a cada momento do vivido temos um livro, e não outro, que lhe corresponde. Por coincidir com experiência marcante será então cabalmente nosso, tal a árvore incorpora bicicleta esquecida encostada ao seu tronco. Reparo agora, tentando a virgindade de simples leitor, que este Sísifo se tornou paisagem actualíssima ao seu famigerado editor, que anda às voltas, sem saber se roda sobre si ou se se dirige em espiral para algures.

Aldeia de Paio Pires, 18 Março

Um dos ensaios do mano Luís, Uma Infinita Voz (abysmo), foi dedicado ao Exercícios de Humano, do mano Paulo José Miranda, agora mesmo homenageado na sua aldeia, com comovente singeleza, em tarde soalheira, na Sociedade Musical 5 de Outubro, pela mão da CoopA, de António Caeiro e Sérgio Gomes. Tentei dizê-lo atabalhoadamente: um regresso que nunca foi ausência. Por ser universal, as raízes do Paulo notam-se bem no que escreve. Momento central foi o testemunho do mano António de Castro Caeiro, um pouco antes das leituras do mano José Anjos. (Sorrio com a irritação que causará em alguns, mais dados à miséria e às comichões, esta luxuriante profusão de manos…). O próprio Paulo coligiu a antologia Resta Ainda Face (abysmo), seguida de ensaio, para a poesia de Helder Macedo, e este, em entrada para A Companion to Portuguese Literature (Tamesis Books), afirma que ele e António Cabrita «estão a destabilizar as reputações pronto a vestir». Manos que escrevem sobre manos, que se lêem a qualquer pretexto. Podia continuar puxando fios de rede que não pára de crescer, e cujas cores generosas me confortam. A identidade da literatura tem que arder nesta incessante procura do sentido e do cruzamento das noites de cada um. Portanto, não basta escrever. Antes gastar a vida assim, a tactear o não dito, a puxar o manto do silêncio. Portanto, a escrever. Ainda que isso nos facilite pouco a vida.

Disse ali o mano António, para mais de meia centena de pessoas. «As suas palavras poéticas dependem de uma compreensão do sentido. E poucos têm como plano de fundo um domínio do pensamento ocidental para poder produzir uma abertura à dimensão em que o sentido acontece. Em que se compreende e não compreende, onde há ou não inteligibilidade. O debate pela palavra é o debate pela compreensão das situações em que não se compreende, não se consegue nem pode.

Por isso muitas vezes parece haver uma impermeabilidade entre a poesia e a vida, como se houvesse duas e não se desse antes o caso de a vida enquanto tal existir na dependência da situação em que nos encontramos. Encontramo-nos continuamente, o mais das vezes e primariamente, sem qualquer necessidade de confronto com o sentido. O confronto com o sentido dá-se quando ele se esvazia, quando, a partir do seu próprio colapso, nos interroga, põe problemas, levanta questões e nos dificulta a vida.»

22 Mar 2017

Poesia | Associação Amigos do Livro em Macau assinala Dia Mundial

Depois de alguns anos de pausa, na Fundação Rui Cunha volta-se a comemorar o Dia Mundial da Poesia. O regresso é feito com a ajuda da voz dos mais jovens e pela articulação de vários meios de expressão artística
Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 – Macau, 1926)

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi a um verso de Camilo Pessanha, um verso “muito significativo” – “Eu vi a luz em um país perdido” –, que Fernando Sales Lopes foi buscar a ideia que lança o evento marcado para o final da tarde de hoje. Quando forem 18h30, a Fundação Rui Cunha recebe uma sessão em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, num retorno da efeméride ao espaço.

Nos últimos anos, a data tem coincidido com o Rota das Letras, razão que levou Sales Lopes a não avançar com qualquer tipo de iniciativa. Este ano, o festival literário já terminou, não há sobreposição de eventos, pelo que o historiador e poeta decidiu juntar de novo um grupo de pessoas para lembrar a importância do dia e, sobretudo, da poesia que se faz nas várias línguas de Macau.

O acontecimento de hoje vai além de um conjunto de poemas ditos. A organização – a Associação Amigos do Livro em Macau – decidiu conjugar esforços com várias entidades e o resultado é uma sessão que conjuga diferentes formas de expressão artística. Vai haver música a acompanhar poemas, fotografias para ver hoje (e também durante o resto da semana), e um documentário em permanente exibição.

“O programa do evento divide-se em duas partes fundamentais”, aponta Fernando Sales Lopes. “Uma delas é a evocação de Camilo Pessanha. A Associação Amigos do Livro encerra as comemorações dos 150 anos do seu nascimento com esta sessão”, explica. Esta primeira parte começa com uma leitura de poemas de autores locais que se inspiraram, de algum modo, no poeta português que morreu em Macau a 1 de Março de 1926.

Depois, vão ser ditos poemas de Camilo Pessanha. “São poemas ditos por gente mais crescida, mas também por adolescentes, pessoas de várias idades. Alguns serão musicados, o que, espero, dará um ar interessante à sessão.” O evento conta com a presença de alunos da Escola Portuguesa de Macau, que se associam à iniciativa.

Ainda a propósito do grande nome do simbolismo em língua portuguesa, destaque para uma pequena exposição biobibliográfica e para o documentário de Francisco Manso “Camilo Pessanha, um poeta ao longe”, ambos para ver na Galeria da Fundação Rui Cunha.

Da aproximação

Para a segunda parte do evento, ganha importância outra colaboração: vai ser feita uma leitura de obras de poetas de Macau a partir de imagens fotográficas, criadas sob a sua inspiração, pela ArtFusion. Estas fotografias integram a exposição “Nas Lentes da Poesia”, que poderá ser vista até ao dia 29. “É uma leitura fotográfica poética. Também vai haver intervenção musical”, antecipa Sales Lopes. “E artes performativas.”

Para a construção da sessão, o responsável teve essencialmente em conta “o bilinguismo e a intervenção dos jovens”. Porque vão ser ditos poemas em português e em chinês, vai haver tradução escrita para ambas as línguas, com a distribuição de um libreto.

“Há muitos poetas em Macau”, nota Fernando Sales Lopes. A poesia é uma forma de escrita particularmente comum entre os autores portugueses, mas entre os chineses também. “Claro que há aqui um problema que é o desconhecimento mútuo. Esta sessão também se insere nisso. Também é objectivo desta associação mostrar que é necessário e tentar que haja apoios para formar gente em tradução literária, para que se saiba o que os autores chineses estão a escrever e eles saibam o que estão os autores de língua portuguesa a fazer”, conclui.

21 Mar 2017

Assim pudesse acender-me

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho até aqui, tirando os textos sobre os autores da Antiga Grécia, escrito sobre poetas de gerações mais novas do que a minha. Hoje, e antes de terminar este formato, abro uma excepção para um livro de finais do século passado, de um autor de uma geração bem anterior à minha, que trata de um tema algo arredado da temática poética contemporânea: o amor. Opus Affettuoso trata-se de um livro de poesia com 55 poemas curtos, intitulados de I a LV, e ainda um poema final, mais extenso, de três páginas, intitulado “Última Núpcia”. O tema do livro é o amor, sim. E este amor não tem qualquer conotação pejorativa, negativa ou indigente. O amor que aqui aparece, ao longo destes poemas, é o topos humano, o lugar do humano. O amor não é somente um lugar, também faz de nós um lugar. O amor é o lugar desconhecido que habitamos, que habita-nos e para o qual e com o qual caminhamos. Sabemos que há, mas não sabemos o quê, não sabemos quando, nem a natureza do seu aparecimento: “EU NÃO SEI SE / conheci a luz ou a sombra / quando bebi na tua pele. (…).” [XIV] Não podemos saber se subimos ou se descemos, se vamos para bem ou se vamos para mal quando amamos. Não é possível ao humano aceder a esse conhecimento. “(…) de quem não sabe / se é folha ou chão boca saliva / porque tudo em nós é luz líquida / que não conhecemos saboreamos / apenas.” [VIII] Aquilo que sabemos, aquilo que apenas podemos saber é que à beira do corpo há luz. Há uma luz que se acende dentro de nós na beirada de outro corpo, nos campos da amada. Isso, sim, isso sabemos. Uma luz líquida, uma luz que sai de nós e do outro e que ilumina a ambos, uma luz que nasce de um corpo contra outro, de boca contra boca, de sexo contra sexo.

                        XV

ENTRO PÉ ANTE PÉ

          no pátio da minha amada –

         arco iluminado.

           Saio limpo e vazio

          do barro de minha amada –

         de novo abandonado.

Estamos, portanto, num universo de luz e sombras. A luz do corpo e a sombra da alma. Sombra do pensamento que nos estrangula de ausência. Não é o outro que nos dá o ser, quer o outro seja Deus, quer seja a amada; o que nos dá o ser é a sensualidade do outro, o toque do outro e no outro: “(…) do ser que sou agora luz reunida / pela mão no joelho que se abre (…)”. Ser é ser um momento de sensualidade, ser um momento onde nos acabamos, onde nos esquecemos, onde nos abandonamos. Ser é descansar de nós, e só se descansa sensualmente. O amor é o contrário de nós, sabemo-lo logo nos primeiro três versos do livro: “AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO / inteiramente. O que me falta / é infinito / (…).” [I] O infinito, aqui, não é a luz, mas a sombra. A sombra do corpo que dá luz em contacto connosco. Queremos o que não sabemos, queremos mais do que podemos, queremos a sombra estendida do mundo. Mais: nós somos a sombra estendida do mundo; somos o que pensa, o que se entrega às sombras, ao desejo de infinito. E só no corpo, só no corpo do outro, da amada, descansamos das sombra que somos, do infinito que nos atormenta. Estar connosco, remetido à nossa própria sombra, ao pensamento, ao infinito desejado é ser perdido, ser em luta connosco, com a necessidade de infinito e a sua impossibilidade. O amor nasce desta consciência: a luta, em nós, entre a necessidade e a impossibilidade de infinito. Amo o outro porque não sou infinito, porque o que o meu pensamento deseja não tem reciprocidade. O amor é o que nos resta. Na impossibilidade de sermos infinitos, de nos amarmos a nós mesmos inteiramente, resta-nos o amor, que nos dá descanso, que nos recolhe dos demónios do dia.

        XXVII

NÃO ACENDAS

a luz não abras

        a janela. O teu sexo

        lâmpada viva

        ilumina-me a noite

        escura. Não abras o dia,

       ilusão impura.

O momento da sensualidade, aquele momento de descanso de nós mesmos, de ser, descanso de pensar, de ser sem ontologia é, contudo, frágil. Demasiado frágil. “A LUZ QUE ME DÁS, ESQUIVA E DURA, / serve-me de abrigo onde desfeito / é já meu cansaço. (…)” [XXXVIII] A luz já é esquiva e dura, abriga e descansa, mas não é fácil de acontecer. A luz não acontece quando se quer, nem quando queremos. A luz do corpo, essa luz líquida, nascente de um com o outro, é bem menos forte, bem menos presente do que o dia, do que a luz demoníaca do dia, que é a luz que revela a nossa sombra, o nosso eu; não o nosso ser, mas o nosso eu. Eu é precisamente o que não quero. O que quero é eu e tu. Pensar é o que não quero, o que quero é meu corpo no teu. Quero luz, a preciosa, rara e líquida luz; não quero a sombra que me habita, que sou eu, que é Eu, e que o dia vai revelar-me. No amor escapamos da humanidade como se falta a uma aula. O amor é a possibilidade de descanso de nós, desse Eu assombrado que nos impede de ser. “(…) Deixa-me levar o sabor / da pequena lâmpada / para que eu possa suportar a travessia / dos pátios que me separam / da próxima noite.” [XXXIV] Ficar entregue a mim (Eu) é caminhar pelas sombras do mundo, pelas sombras do dia, espalhando em mim e fora de mim a minha própria sombra; a minha sombra de ser. Chegar a um corpo, haver um corpo que nos receba, é o que melhor nos pode acontecer. O que melhor nos pode acontecer para não cairmos na sombra do Eu, na angústia da falta de infinito. Depois do corpo da amada, “eu” é uma pedra contra mim mesmo. Pois quando amo, quando estou apaixonado, e é deste amor que o livro fala, eu sem o outro sou uma sombra de mim mesmo, um escuro enorme. Leia-se um poema, onde claramente se vê a luz nascer à beira do corpo do outro. Luz que apaga as palavras, o pensamento, que apaga a sombra que somos. Luz redentora, porque ofusca o Eu, ofusca o que nos afasta de ser, da experiência ancestral do Ser.

A TUA PELE NÃO É A LUZ

                 mas estou perto

                ofuscado

               e sem palavras

               não preciso delas

     ouço o tumulto a

             coroação

   da minha verdade a que vem

  de ti olhar para ti

  silenciosa

e em silêncio desaprender

a musica dos outros a grata

imperfeição do mundo

        e enlouquecer

       onde fui sábio

      outrora

Mas que corpo é esse que o poeta fala? É um corpo qualquer? É o corpo do dia-a- -dia, que desejamos a caminho do trabalho ou de casa, na esperança de voltarmos a ser, de nos esquecermos de nós? Não. O corpo onde vamos acontecer, de onde recebemos nosso ser e ao outro o concedemos, não é esse corpo. O corpo não é do mundo. Há, no mundo, corpos; mas não são estes de que o poeta fala. O corpo que Casimiro de Brito canta é o corpo afectivo, o corpo para além do acontecimento, que nos dá o ser e devolve ao outro o seu ser. É o amor. O amor feito carne, nos muros da pele, nas águas que escorrem pelas calhas, pelas ranhuras do humano, pelos seus orifícios. Leia-se estes versos de “Última Núpcia”: “(…) a linguagem dos animais horizontais / que bebem na lua o olhar que nela / outros amantes deixaram esquecido (…)” O que outros esqueceram é a matéria que nos concederá o ser. A maioria das vezes o que há é esquecimento, esquecimento de um corpo no outro, de um corpo face a outro. Este corpo não é do mundo. Amor e mundo não se entendem. O amor é a experiência do lugar por excelência: o topos dos topos. O amor repele para longe a doença do desconhecido, do infinito, da angústia. O amor qua lugar. O amor enquanto topos. O amor não tem lugar, ele é um lugar. Mais: é o Lugar do humano. Nestes poemas, a casa do humano não é a linguagem, mas o amor, o outro humano com quem fabricamos a luz líquida a que os versos várias vezes se referem ao longo deste livro. “(…) A tua mão / sem palavras sem pensamentos / acaricia-me os joelho / sob a luz que do céu / fatigada / cai.” [XLIII]

Fora do amor, fora do corpo da amada, no mundo, ficamos expostos a nós mesmos, a todas as intempéries da palavra e do pensamento. “(…) Armas tão frágeis / as que temos: o mel a saliva o / sêmen. (…)”. [VI] E, para além de sermos desprovidos de armas eficazes, que combatam o mundo e nossa sombra, há ainda a fragilidade da amada, os “(…) ramos frágeis / da minha amada. (…)” [XI] Aquilo que nos dá o ser, nosso encontro corpo a corpo com a amada, é muito frágil, quase impossível de sobreviver, de prosseguir pelo tempo fora. Não é só o mundo, com seus dias derramando nossas sombras, que nos enfraquece o amor, que nos enfraquece o encontro, a possibilidade da luz líquida, também nossos próprios corpos são frágeis, vulneráveis. Veja-se o que protege a amada:

          XXX

APENAS 

                 um cinto passageiro

                a envolve. Um veio

               mais leve

              do que a brisa

              da manhã. O fio

             de água

            dos meus braços.

Tudo nos conduz à consciência da fragilidade. Mas essa consciência não se dá no amor, não se dá nesse lugar do ser, no lugar onde recebemos e damos ser. A consciência da fragilidade do amor, da fragilidade da amada, no corpo desabrigado da minha amada [XLVIII] e de nós para a amada, de mim para a amada, essa fragilidade dá-se no mundo, nos dias, na sombra, como reconhece o poeta, vagueando pelas ruas, companheiro dos cães “(…) e deito-me / de novo. Desamparado. / Apenas um jogo / de lençóis bastava.” [XVI] Sem amor, não temos onde ficar, não temos lugar onde ficar. Sem amor somos nós vagueando como cães, passeando nossa sombra pelo mundo.

21 Mar 2017

Rota das Letras | Gei Fei poderá estar presente em 2018

Terminada mais uma edição do festival literário Rota das Letras, Hélder Beja, director de programação do evento, fala da diversidade de autores que passaram por Macau e levanta a ponta do véu para a próxima edição: Gei Fei, autor chinês contemporâneo, que começou a publicar na década de 80

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hegou ontem ao fim a edição deste ano do festival literário Rota das Letras, que durante duas semanas trouxe ao edifício do antigo tribunal uma panóplia de autores de vinte nacionalidades diferentes, sem esquecer os concertos e os espectáculos. Para Hélder Beja, director do programação do festival, essa diversidade cultural foi um dos pontos altos.

“O ano passado tivemos várias nacionalidades mas este ano tivemos mais: cerca de vinte, uma coisa nova para Macau e para este festival. A maior parte das sessões tiveram bastante público. Esse para mim é o grande resumo: a diversidade resultou e o festival tem de continuar a ser essa ponte entre a China e os países de língua portuguesa, mas deve ser mais do que isso e, a partir de agora, vai ser ainda mais isso”, contou ao HM.

A pensar nisso, Hélder Beja falou de um importante nome da literatura contemporânea chinesa que já foi convidado e que poderá mesmo marcar presença em 2018: Gei Fei. “Ainda não veio, há-de vir, está convidado. Queremos trazê-lo para o ano, mas tudo depende muito das agendas dos autores”, apontou Hélder Beja.

“Os pontos altos desta edição foram os que esperávamos: a passagem por Macau de pessoas como o Pedro Mexia ou Yu Hua. Houve pontos altos surpreendentes, como a Jéssica Faleiro, uma autora que nos surpreendeu a nós e que recebeu a atenção do público, e Bruno Vieira do Amaral, por ser um autor com muita qualidade e por ter o dom da palavra, sem ser deselegante, o que é raro de encontrar”, acrescentou Hélder Beja.

Ao nível dos espectáculos e performances, o subdirector do Rota das Letras destaca a presença de Sérgio Godinho, “como autor e como músico”, e ainda da “performance lindíssima da Vera Paz, uma das mais lindas em seis anos de festival”.

Palavras do mundo

Num lugar onde vários idiomas se misturam, o director de programação do Rota das Letras considera que a ligação entre a literatura chinesa e os autores internacionais acaba por ser mais imediata, por comparação com o distanciamento físico da literatura portuguesa.

“Esse encontro [da língua chinesa] é até mais fácil do que o encontro com a literatura em língua portuguesa. Isto porque os autores que trazemos aqui já estão traduzidos para inglês, mas não estão em português. Na literatura em português há um maior desconhecimento, o que é normal, porque os autores vivem noutro hemisfério, que passa mais pela língua portuguesa”, adiantou.

Cheng Yongxin, director da revista literária Harvest, editor e escritor, disse ao HM ter ficado surpreendido com a diversidade cultural que este festival conseguiu trazer. “Fiquei muito surpreendido quando recebi o convite e quando vi este festival, achava que Macau era um lugar só com casinos, mas este festival teve uma grande escala, com tantos escritores. A literatura tem uma grande influência em pessoas tão diferentes e de todo o mundo, então penso que este evento é muito importante.”

Quanto aos autores de Macau, Hélder Beja referiu que é objectivo da direcção do festival continuar a convidar cerca de seis nomes por edição. “Há que ser muito estruturado em algumas coisas. Há três anos decidimos ter seis autores de Macau em cada edição, não achamos ser possível haver mais autores de Macau do que esse número, muitas vezes porque não há. Temos de fazer um trabalho de ir à procura de autores que não têm nada publicado numa outra língua que não seja o chinês. Queremos continuar a trazer autores de língua portuguesa de Macau, de língua chinesa e também autores internacionais que façam de Macau a sua casa.”

“Um livro excelente”

Em relação ao concurso de contos, os vencedores foram João Carvalho da Silva, que, apesar de ser português, venceu na categoria de conto em inglês. A brasileira Adi Berenice e Silva venceu na categoria do conto escrito em português, enquanto que Chi Pang Loi foi o vencedor de língua chinesa. O livro com os contos vencedores e com contos escritos por alguns autores da edição 2016 do festival foi ontem lançado.

“O concurso correu bem, não tivemos mais submissões do que o ano anterior. Estendemos o prazo e isso ajudou. Este quinto livro é excelente, tivemos muitas contribuições dos autores de 2016”, rematou Hélder Beja.

20 Mar 2017

Entrevista | Ouyang Jianghe, poeta: “Sou o que escrevo”

Ouyang Jianghe é um dos poetas com mais relevo na China. Uma escrita simples, ritmada e de interpretação complexa marca o trabalho do autor que abandonou a exultação dos grandes acontecimentos históricos para se dedicar à expressão pessoal. O poeta falou ao HM do que escreve, dos desafios da tradução e da descoberta que fez

[dropcap]N[/dropcap]asceu em Sichuan, na altura da Revolução Cultural. Como é que nestas circunstâncias a poesia apareceu na sua vida?
Penso que precisava de me descobrir e não sabia como. A poesia não é só um meio de expressão das opiniões acerca do sentido do mundo e da vida. O processo de escrita é uma descoberta que se confunde com a própria vida. Expressamos o que dentro de nós se transformou, na nossa forma de ver o que nos rodeia. Por outro lado, é nesse processo que aprendemos a moldar a própria vida. Acaba por ser a escrita que se impõe e que nos faz o que somos. Escrever acaba por se confundir com o que somos.

Faz parte da segunda geração de autores que deixa a tradição histórica e recorre ao quotidiano. No seu caso, através de uma simplicidade de palavras que não corresponde à complexidade dos conteúdos.
De facto, recorro aparentemente a vocabulário muito simples. Uso palavras que as pessoas podem realmente compreender a um nível superficial. Mas as ideias e pontos de vista subjacentes são outros. Faço um processo de condensação de ideias que se escondem em vocábulos. É também uma poesia muito visual em que uso os caracteres enquanto símbolos. É uma forma de encriptação de informação. A leitura passa a ser outro processo, o de interpretação dessa linguagem encriptada, o da procura e descoberta do que está omisso e secreto. Muita da minha poesia usa palavras muito simples, mas o processo é muito complexo. Podemos ainda fazer uso de grandes figuras como o Confúcio, e ressuscitá-las. É o “voltar a viver”. Mas a ideia principal é, de facto, esconder a complexidade atrás das palavras simples e é trabalho dos leitores interpretar o texto.

O que nos leva a outra questão. Para o público estrangeiro, que lê as traduções, há outro elemento que é a própria tradução. Como é que vê o seu trabalho, tão específico na língua chinesa, traduzido?
É realmente muito difícil traduzir o meu trabalho. A maior dificuldade, penso, é conseguir transmitir as ideias que estão ali condensadas. O processo de tradução engloba muitas camadas que se sobrepõem. Numa tradução mais superficial, e que deverá ser a primeira, é a tradução do significado básico da palavra. Estamos ao nível mais simples mas fundamental para uma primeira leitura. Um poema também tem muita técnica de escrita implícita, que inclui a expressão do imaginário e em que é usada, por exemplo, a metáfora. Encontramos aqui o segundo nível da tradução: o entendimento e interpretação do imaginário. Fazer a sua tradução e encontrar um possível equivalente na língua de chegada que possa espalhar de alguma forma, a imagem do poema.

Estamos perante um terceiro produto?
O poeta e tradutor americano Forrest Gander assinala que, num poema, o que pode ser traduzido não é realmente a parte mais importante. O que não pode ser traduzido é o cerne. Quando um poema é traduzido é recriado. Deixa de ser o original e passa, de facto, a ser um novo produto com um novo significado e capaz de ser interpretado por outra cultura, a que fala a língua de chegada. Podemos mesmo dizer que aparece numa espécie de terceira linguagem. A imagem dentro de cada poema só fica completa quando passa por uma tradução. A tradução acaba por findar um ciclo de criação. É também um processo feito a dois, durante o qual, na troca que proporciona, se consegue abranger as muitas interpretações possíveis. É tornar o poema completo de novo, até para o próprio poeta. Quando um poema é traduzido também pode perder o seu som, que um poema também é música. Mas pode ser criada uma nova canção. O processo implica perdas, mas também implica uma nova criação e é capaz de dar ao texto uma nova vida. Outra questão relevante é que quando pensamos em tradução associamos sempre a línguas diferentes. Na verdade, os poemas podem ser traduzidos dentro do mesmo idioma. No chinês acontece frequentemente. Um poema tem de ser traduzido dentro da própria língua porque é necessário ir além do tal significado superficial e nem os nativos de chinês podem muitas vezes compreender o texto se não tiverem estas traduções. Acontece com muitos dos nossos grandes poetas, como Li Bai ou Du Fu. A razão é que a interpretação e compreensão das ideias que formam um poema exigem um conhecimento vasto e profundo de toda uma realidade linguística, cultural e histórica que não é acessível a todos. O processo da tradução, seja qual for, vai resgatar as palavras e significados exilados.

Deixou de escrever durante uma década, o que marca dois períodos de criação com características diferentes. Porquê a paragem e o que é que aconteceu neste período para levar à mudança?
O período que abrange o momento em que comecei a escrever até ter decidido parar tem dois aspectos. Na primeira fase, ainda era muito jovem e escrevia em Sichuan, onde estava muito limitado à minha experiência pessoal, com as características culturais e sociais daquela província. A minha escrita não era tão pessoal mas mais dirigida às pessoas, o que fazia com que abordasse mais aspectos sociais e políticos e, talvez, mais rebeldes. A intenção era chegar a um público. Em 1993 fui para os Estados Unidos durante cinco anos. Não sabia inglês e a minha forma de expressão e pensamento mudou. Como não falava a língua, não podia falar para os outros e tinha monólogos comigo próprio. Foi quando senti que alguma coisa estava a acontecer e a mudar. Ao falar comigo percebi que afinal falava com ninguém e, por vezes, com uma espécie de fantasma. Por vezes transformava esse fantasma em alguém que admirasse, como Li Bai. Expressava-me para o vazio e isso fez com que me visse obrigado a ouvir-me. Esta voz transformou-se, mais tarde, nos meus poemas. Se não tivesse ido para os Estados Unidos, se calhar nunca tinha percebido isso. Foi também ali que comecei a ver poesia em tudo. Recordo uma situação em que fui a um museu e vi uma moeda grega. Era dinheiro, mas sem valor e muito bonito. Pensei que podia escrever sobre este dinheiro transformado em arte e história e que, dadas as imagens e o relevo, era uma escultura com um padrão. Foi também quando comecei a trabalhar na rima e na sua integração no poema. Percebi que a minha poesia também podia ter forma, podia ser uma peça. Podia desenhar as palavras. A mudança que ocorreu em mim e no meu trabalho pode ser metaforizada numa conhecida história de um prisioneiro que gostava muito de jogar xadrez. Enquanto detido, fazia-o sozinho, até que conseguiu sair em liberdade. Foi quando percebeu o que tinha aprendido antes, na sua solidão. Ganhou os campeonatos em que participou. Quando parei de escrever desenvolveram-se muitas coisas dentro de mim, e os Estados Unidos acabaram por ser a minha prisão. Quando voltei à escrita, o que saiu foi o resultado dessas observações. A palavra e a rima chinesa transformaram-se nas minhas peças de xadrez que, quando jogadas, ganhavam asas.

A China está a mudar e o Ocidente parece estar cada vez mais interessado na literatura que se faz no país. Como é que vê este interesse crescente?
O desenvolvimento da China e o interesse por ela e pela sua literatura é de facto uma coisa relativamente nova, mas considero que é um fenómeno essencialmente político. Há pessoas que estão satisfeitas com isso e outras que nem tanto. Recordo que em 2008, enquanto falava com um tradutor sobre esta questão, ele dizia-me que o crescimento da China fez com que o país existisse para o mundo. Na sua opinião, essa é a razão que leva à necessidade de conhecimento acerca deste país, porque passou a representar um tipo de ameaça. Passou a ser importante saber o que era esta China que ganhava cada vez mais relevo económico no mundo. Qual era a raiz deste país? Até aí, havia muito poucas pessoas a querem saber da China. É aí que também entra a literatura enquanto forma de aceder à cultura chinesa. Por outro lado, a razão para a falta de conhecimento da literatura chinesa assenta em dois pilares. Por um lado, a questão da tradução. Por outro, penso que há um mal-entendido entre Ocidente e China, e as pessoas que procuram a literatura chinesa não estão realmente interessadas nos livros, mas sim em procurar as circunstâncias políticas e económicas de um país. Procuram a controvérsia e querem ouvir as vozes que mais lhes convêm e o que esperam saber. Querem ouvir essencialmente vozes políticas. Não estão abertas a histórias que relatem uma sociedade contemporânea, buscam a confusão e não verdadeiramente um retrato descritivo. Penso que não têm realmente um interesse pela língua e literatura do país. A realidade de hoje não é só de hoje. O que vemos hoje tem passado e já abarca o futuro. A poesia é também isso, uma mostra do que foi, é e poderá ser a sociedade chinesa. No que faço também é isso que tento mostrar: o lado literário do que se faz hoje na China.

Já não é a primeira vez em Macau.
É a quarta. Mas a ocasião que mais me marcou aqui foi a terceira visita. Vim integrado numa comitiva para conversarmos acerca dos passos a dar no território para o desenvolvimento da arte contemporânea. Fiquei muito espantado porque a única coisa que se passou foi um almoço sem mais conteúdos. No entanto, Macau não deixa de ser uma inspiração, até mesmo devido aos casinos, e ao poder e significado do dinheiro. Já escrevi sobre isso. Aqui, quando se joga não se vê o dinheiro real, são tudo fichas. Mas por exemplo, quando se perde, o dinheiro que não se vê torna-se visível apesar de já não existir. O mesmo acontece com as palavras. Às vezes só ganham peso depois de desaparecerem.

20 Mar 2017

A Barca da Morte

[dropcap style≠’circle’]D.[/dropcap] H. Lawrence tem um belo poema muito ao estilo de uma velha barcarola, com o título deste enunciado. Ele, que foi o escritor dos «Amores no Feno» e de toda uma atmosfera que o coroou de erótica neblina, ele – e talvez por isso – fosse um desbravador indómito, poético, um arauto que se debruçou de forma muito bela sobre a morte, essa porta da iniciação que não está desligada da sexualidade e cujo movimento retorna ao ponto fixo de uma mesma força — lembro que lhe tocava em profundidade o orgasmo dos condenados à morte por enforcamento.

Estes homens não tinham como hoje as respostas organizadas para todos os efeitos como se fossem a parte robótica de si mesmos. Eles estavam animados de uma película cuja deidade desconhecemos, nós, os transmissores de todos os fenómenos em que nunca acreditamos. Decerto que Lawrence, até devido à sua saúde frágil ao longo da vida, se interrogou acerca da morte e essa imensa indagação deu origem a belas reflexões como naquele pequeno conto, «O homem que morreu», é encantador e quase crístico pela forma como se levanta um defunto e se vai lembrando em seu redor (Jerusalém) dos cheiros e dos elementos. Isto tudo a partir de um estranho cantar de um Galo que à mesma hora em que é libertado acciona nele a ressurreição…. No seu belo poema «Canção da morte» formas tautológicas que tão emblematicamente o mantiveram como um mestre do suspense sedutor, mas foi nesta Barca que o seu dom se demorou um pouco mais, talvez até mais, que nas formas de uma mulher.

Esta viagem parte do Outono, eufemisticamente, pois que é nele que embarcamos de forma compenetrada e silenciosa rumo a ela, e ele afirma que:

é tempo de ir/ do adeus ao próprio eu/ de encontrar uma saída do eu caído/e, no ar, a morte, como um cheiro de cinzas!/ E no corpo ferido, a alma assustada/(…)

Sim, toda esta inquietude e formação de um outro ser que renasce na viagem para depor o eu vencido é bonita de celebrar como um rito muito puro de passagem, e inquire-nos de forma bastante frontal:

Já construíste a tua barca da morte, a tua?/ Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela.

Todos vamos precisar de construir tal Barca e mesmo que os preconceitos do nosso tempo não assumam esta causa como uma condição articulada de profunda humanidade, ela deve ser trabalhada como a Arca da Aliança, com madeiras belas e ramos de acácia. Não devemos estar impreparados diante do desconhecido, dos desconhecidos, tudo o que é transpor um portal tem de ser “vivido” com um rito que quebre as formas saturadas. Daí, cada um, quando a vida começar a fechar o postigo das possibilidades, se deva abeirar daquele mar de dentro e, sem vontades pessoais, abrir espaço abstractamente para deixar passar a Barca. Morremos sempre por uma causa mas quase sempre nascemos por um mistério.

Nós que já atravessámos tantos mares, que temos marcas de vida em permanência, que temos todas as cicatrizes como trunfos de uma guerra muita vezes inglória, que nem sempre escolhemos, pois que somos escolhidos na abrangência das decisões, que navegamos quando não é preciso e vivemos quando não faz falta, que de tanto estarmos vivos temos uma engrenagem parada em movimento permanente, podemos ter a gravidade dos iniciados quando desta Barca se tratar.

É sempre bom para a alma contemplar outras entradas sem a visão das coisas ao redor e suas certezas, é bom sairmos deste local onde a nossa vida deixou de ter o interesse pretendido:

morrendo, estamos morrendo/ agora só nos resta aceitar a morte/ e construir a barca/ agora, lança à água a pequena barca/ agora, que o corpo morre e a vida parte, lança a alma frágil/ na frágil barca da coragem, na arca da fé.

Talvez que a morte seja um Dilúvio e sejamos nós a construir a Arca, a Barca, para atravessar aquela grande provação de águas que galgam toda a firme certeza que tivéramos de haver terra… talvez que tenhamos essa ideia profunda de voltar a navegar num oceano sem fim e só nesse fim a Pomba, a Luz, a Fonte sejam na nossa travessia tudo o que desejámos saber, contemplar. Se mudados atravessarmos tudo isto e renascermos, não seremos apenas o desejo pessoal de uma condição que ficou, pois que muitos nos tomaram para sermos e, na senda de ser abarcámos a Barca, como a insígnia mais pessoal do enviado que somos, que fomos, dos seres únicos em que cada um se tornou.

É muito bonita a analogia com a passagem bíblica… – e Noé construiu uma Arca – constrói a tua Barca – a pomba voltou ainda com um ramo de oliveira para lembrar, talvez, a ressurreição… mas era cedo e Noé não desceu, mais tarde largou de novo a ave e ela não mais voltou. O pássaro da alma que vai tentar a vida uma outra vez dizendo que ela continua, indicando outro ciclo, esta é uma bela noção de imortalidade que, estando plasmada em nomes, símbolos e incompreensíveis formas, nós conhecemos como taumaturgos de um processo imenso…

Temos medo, sim, do dilúvio, que a Barca se afunde pelo peso sombrio das nossas memórias deixadas, temos medo de atravessar esse imenso nevoeiro e não sabemos se a sombra da alma fará mais escura a travessia… se a bloqueia em porto incerto… mas os que estão livres das questões e não zelam pelo nada como parte descartável para uma vida que contaminou estes mares, entram nela como nas longas catedrais, plenos de respeito pela travessia. Saiba a nossa guardar intacto o assombro de merecer este Poema, tão cheio de vida, como esta morte que se anuncia às portas da Primavera. Lawrence, quase fecundou o momento – este momento – onde vamos descendo no grande e belíssimo instante da jornada.

Desce o dilúvio, e o corpo como uma concha polida
Emerge extraordinário e belo.
E a pequena barca torna a casa, deslizando, trémula,
E a frágil alma desembarca, volta a casa.
Cheia de paz.
O coração renovado embala-se na paz,
Mesmo na do próprio esquecimento.
Constrói a tua barca da morte, a tua!
Vais precisar dela.
espera-te a viagem do esquecimento.

20 Mar 2017

Literatura | Yu Hua fala de livros, censura e influências

Yu Hua é um dos principais nomes da literatura contemporânea chinesa. O autor, que oscila entre romances autorizados e ensaios proibidos na China Continental, não abdica da liberdade da escrita. Está em Macau para participar no Rota das Letras

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] autor de “Viver”, “A China em Dez Palavras” e “Crónicas de Um Vendedor de Sangue” está em Macau para participar no festival literário Rota das Letras. Conhecido pela sua escrita “violenta” que retrata essencialmente a sociedade ao tempo da Revolução Cultural, época em cresceu, Yu Hua tem no seu trabalho um retrato do absurdo. No entanto, não é um non-sense confinado ao contexto chinês. “Passa-se no Continente mas podemos ver o absurdo em todo o lado porque está na vida diária. A China é um exemplo e um país cheio de contradições”, referiu num encontro realizado ontem com a imprensa.

Alvo de censura em várias obras, nomeadamente ensaios, o autor explica que “não há muitas preocupações quando em causa estão romances”. A razão, aponta, é que o trabalho de ficção pode incluir o uso de estratégias muito diferentes para expressar o que gostaria de dizer de forma explícita. Quando se trata de ensaios, como “A China em Dez Palavras”, que é proibido no Continente, a expressão é diferente. “Temos de dizer as coisas de forma directa”, assume.

A proibição do livro, diz, não foi surpresa. “Mal escrevi a primeira palavra, ‘Povo’, em que falo do 4 de Junho em Tiananmen, sabia que aquele livro nunca seria publicado na China”, aponta. No entanto, continuou a escrever tendo em consideração o mercado de Taiwan e de Hong Kong. Para o autor, a atitude do Governo Central é “infantil”.

Enquanto escritor, Yu Hua considera que o maior requisito é a independência seguida de sentido crítico. Actualmente, aponta, é mais fácil ser crítico. “Temos de admitir que o Governo Central é mais tolerante agora do que antes e conseguimos ouvir mais vozes críticas que podem ou não ser aceites”, diz, acrescentando que “o sentido de independência na escrita deve ser sempre prioritário à crítica”.

Do esquecimento

A Revolução Cultural é um tema transversal nos livros de Yu Hua, quase como se fosse uma inevitabilidade. “O meu período de estudos em criança apanhou a década da Revolução. O que passei naqueles anos influenciou o resto da vida, porque o pensamento acerca do mundo nasce das experiências tidas nesses anos e que, depois, vão sendo revisitadas”, explica.

O facto de continuar dentro de histórias daquela altura é importante ainda hoje. Para Yu Hua, o problema que se levanta na actualidade é o facto de “os mais novos não saberem nada do que se passou na Revolução Cultural”.

O autor sublinha que os tempos e acontecimentos que marcam a história recente da China estão a ser apagados e que é precisamente essa a intenção das autoridades. “O Governo Central é o primeiro a proibir a discussão das coisas. No ano passado, na altura do aniversário da Revolução, pensei que fosse feito algum festejo, mas tal não aconteceu, não vi nada. A informação na Internet acerca da Revolução Cultural estava completamente bloqueada”, ilustra.

Yu Hua considera que o comportamento dos dirigentes, 50 anos depois, está a dar resultados porque “os jovens não sabem nada e nem se preocupam em saber”. Na sua opinião, a situação é perigosa e a história precisa de ser recordada para que se evitem repetições. “Hoje em dia, a Revolução Cultural aparece no dia-a-dia das pessoas como se fosse a dinastia Qing, está muito distante.” Ainda assim, entende que é um período da história da China que vai deixar um rasto para sempre.

Kafka, salva-vidas

Não é fácil escolher as obras que conseguiu ler durante a juventude e que lhe marcaram o rumo literário. Mas “havia uma cópia impressa de um livro de Alexandre Dumas, na altura banido”. As opções eram limitadas e só podia ler Lu Xun. Na altura era um autor de que não gostava. Obrigado o recitar o poeta chinês que não entendia, Lu Xun só mais tarde regressou à vida de Yu Hua e participou das suas referências fundamentais.

Após os anos conturbados na década de 1950, deram entrada na China vários livros e com eles os “três mestres” de Yu Hua. “O meu primeiro professor foi o escritor japonês Yasunari Kawabata.” Com a leitura do autor nipónico, Yu Hua sentiu que se estava a afastar de si mesmo. “Mais tarde senti-me preso por ele, estava a imitá-lo e não estava a ser eu. Foi quando em 1996 encontrei Kafka. Salvou-me a vida”, recorda.

Não é que tenha aprendido a escrever com o autor checo. Mais que isso, foi Kafka que ensinou a liberdade da escrita a Yu Hua. “Percebi que podia escrever o que me apetecesse. Kafka deu-me o direito e as asas da liberdade.”

O terceiro professor foi William Faulkner, o autor que lhe “educou os sentimentos”.

A literatura ocidental constitui o instrumento da sua escrita e, sem a sua presença, muitos dos seus livros nunca teriam existido, admite. Os clássicos são imperdíveis, até porque acompanham a escrita, mesmo que de forma subliminar. Tolstoi é um exemplo de referência.

Yu Hu, apesar de ateu, não deixa de mencionar a Bíblia como referência maior porque, considera, “é o melhor livro do mundo”.

Macau numa palavra

Se Yu Hua escolhesse uma palavra para Macau, dentro da lógica do livro “A China em Dez Palavras”, seria a “ignorância”. O termo, explica, deve-se ao facto de não conhecer o território. No entanto, não deixa de anotar as mudanças, nem sempre muito positivas, que constata.

Numa visita em 1996, recorda, Macau era mais limpo. “Lembro-me de passear de carro perto do mar e a água era limpa. Na altura, pensei que Macau fosse muito asseado”, diz. A ideia agora é outra. Sente-se a poluição e, “não estando como Pequim, aproxima-se desse estado”, lamenta.

17 Mar 2017