João Luz VozesTurista Chinês [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ensam que não vejo o vosso ar de enfado? Os suspiros que se levantam do fundo da vossa altivez? O carregado desdém com que me olham? Esta também é a minha terra, ou pensam que esta bolha está isolada do mundo, a flutuar acima do planeta. Macau é o último calhau na enorme montanha chinesa, o parque temático plantado para o meu divertimento no delta da pérola. Entretenham-me na minha curta estadia, tragam-me iguarias, quimeras e mulheres. Será demais pedir um pouco de humildade hospitaleira no grande centro de turismo e lazer? Grande! Como o ego incha neste quarteirão minúsculo de território. Reconheçam-me por um instante. Eu sou o fundo das vossas raízes, aquele que vos sustenta e agarra ao solo, o pão na vossa mesa. Ando pelas ruas vagarosamente, liderando pelotões de turistas conduzidos pela autoridade de uma bandeira erguida. Sou todos vós há duas gerações atrás, a confirmação desconfortável de quem são, revelação e memória, génese e ser. Em cada espasmo cosmopolita vejo uma barriga a querer saltar da vestimenta para saudar o sol com afagos e carícias. A minha pança é a proa que rasga caminho, o Sol no centro do meu sistema planetário de entranhas a irradiar esperança, é prosperidade e sorte ao jeito de Buda. Como se tivesse um amuleto dentro de mim, uma jóia no meu cerne. Também as minhas secreções representam o que tenho para partilhar de mais íntimo. Ostento produção de muco sem me importar, ao contrário de ti, Macau, que escondes a tua natureza em gestos medidos, em polidez sobranceira que não engana ninguém, nem a ti própria. Podes mascarar a barbárie que te funda à vontade, eu sei, conheço-a, encarno-a, consigo ver nitidamente o ponto onde a crueza se disfarça de nobreza. Nos vossos passos lestos e elegantes prevejo a violência de um escarro que se quer impor aos trejeitos da teatral superioridade. Sou matéria combustível nesta fogueira de vaidades, ofereço-vos excedente orçamental, alicerces para uma vida desafogada, sou a fertilidade na vossa carteira, Bona Dea, Ísis e Vénus. Este simulacro de cidade é alimentado por mim, pela perseguição que faço à ilusão da riqueza, pela esperança que despejo em mesas de fatalismo. Grito para que me ouçam em bom som, para que o volume assertivo se entranhe na vossa charada identitária. Marcho indolente pelas estreitas ruas de Macau como um soldado do exército Koi Kei. A minha mulher veste-se, aos 49 anos, com rendas cor-de-rosa e uma omnipresente Hello Kitty. Não se deixem enganar pela infantilidade da vestimenta, pois ela é um panzer de carne e nervo, uma fera na protecção do núcleo familiar. Ainda não tenho o gosto consumista limado pelo ocidente na vossa escala, mas esperem um pouco que eu chego lá porque quero chegar lá. Sou o representante de uma das grandes civilizações ancestrais e do país mais populoso do mundo, sou lenda e futuro avassalador, sou a conquista ponderada ao longo de séculos de paciência. Mas agora quero o meu rolex e o meu Jaguar, mereço-os inteiramente. Sou descendente de sucessivos impérios, o filho da derradeira revolução cultural, o último mandarim, a pluralidade que engole o mundo. Carrego às costas a determinação de um povo que anseia sair das trevas directamente para o trono, sou a conquista vindoura alicerçada em números, a maré alta que irá engolir o globo. Sou o canteiro onde o ténue lótus está plantado, forneço a água e os nutrientes enlameados que o sustentam. Sou a vossa vida e poderia ser a vossa morte, se para aí estivesse virado. Macau é a pequena e indefesa criança que embalo nos braços e à qual nada nego, que gatinha a meus pés, sempre sedenta a erigir birras exigentes. Sossega no meu regaço, Macau. Mas não me menosprezes, não te aches superior, não retires mais ilações das minhas vestes e maneiras sociais, não te percas demasiado na quimérica miragem do segundo sistema que te concedemos com misericórdia, por magnificência. Vem a mim e sente o terno abraço que te dou, sou o teu igual, farinha do mesmo saco, reencarnação cultural, o teu reflexo e tu és uma extensão de mim.
Leocardo VozesUm gesto é (quase) tudo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Instituto Politécnico de Macau estabeleceu há alguns anos com a sua congénere de Leiria, Portugal, um protocolo de intercâmbio de estudantes de tradução de Português e Mandarim. Assim o curso de quatro anos implicava que os alunos de Macau fizessem o primeiro e o último no território, e os outros dois em Portugal, e vice-versa para os estudantes portugueses. Destes últimos há uma curiosidade interessante: chegados ao território com algumas noções de Mandarim, alguns deles abordavam a população local com um sonoro e caprichado “nin hao”, o que apesar de ser recebido com alguma estranheza, os residentes de Macau davam o devido desconto por se tratar de um estrangeiro. Quando cheguei a Macau, vai lá vão 24 anos, conseguia ser ainda mais ingénuo, pois assumia que se tratando de um território na altura sob administração portuguesa, a língua de Camões fosse falada pela maioria da população. Não foi presunção nem arrogância, mas o pouco que procurei saber antes de chegar, e sem conhecer mais ninguém que tivesse residido no território, tinha presente o facto que os nomes das ruas e outras indicações se encontravam escritos na nossa língua. Foi um pouco embaraçoso entrar em locais como uma padaria, ou mesmo em qualquer restaurante da cadeia McDonald’s e começar a falar em Português, e ao aperceber-me da minha falha mudar logo, mas das vezes que tinha algum sucesso, na maior parte delas notava uma reacção negativa das pessoas que não me entendiam – era mais por culpa da forma brusca com que me expressei. Fui um “bárbaro”, é o que foi. Os ocidentais que vão pela primeira vez à China podem estranhar a posição defensiva com que alguns chineses reagem à sua abordagem, e isto deve-se mais à linguagem gestual do que propriamente à expressão oral, ou ainda a atitude que demonstramos perante os obstáculos normais que encontramos em comunicar, ora rindo, levando as mãos à cabeça, ou fazendo um ar agastado – tudo sinais que os chineses interpretam como de agressividade. Mesmo quem chega a Macau e aprende rapidamente a falar o cantonense, depara com reacções que o deixam intrigado, consciente de que não terá faltado ao respeito ao seu interlocutor, mas terá bastado um gesto mal medido para arruinar o mais bem intencionado dos discursos. Macau não é a China em muitos aspectos, mas esta particularidade é comum à generalidade da cultura. Sempre são cinco milénios, e tentar mudar as coisas como alternativa a simplesmente adaptar-se – e nem custa assim tanto – é que se pode considerar uma atitude arrogante. Os portugueses têm gestos largos, apontam, mexem os braços, têm tendência para elevar a voz. Se há chineses que já se habituaram, e para os macaenses é fácil de entender, o são convívio com estas comunidades fica sempre mais facilitado se reduzirmos ao mínimo a expressão corporal, e evitar um certo repentismo próprio da nossa natureza de latinos. Quem chega de Portugal é possível que uma das primeiras coisas que nota seja a pouca receptividade que os locais têm ao tradicional “beijo no rosto”, a forma com que os portugueses habitualmente cumprimentam uma senhora, mesmo que a conheçam mal, ou tenham acabado de a conhecer. A rejeição não tem tanto a ver com a pessoa, mas com a cultura, e sobretudo com a forma como os outros entendem este comportamento: para os chineses o contacto físico mais ousado ou demorado é um sinal de grande intimidade. E isto adquiri-se logo desde a chegada ao mundo, pois se repararem o hospital “Kiang Wu” não permite que os recém-nascidos saiam da sala a eles destinada para as tradicionais fotografias com os familiares e amigos, um hábito enraízado no Ocidente, ao contrário da maternidade do Hospital Conde S. Januário, preferida pela maioria dos forasteiros. Para quem não nasceu em Macau, ou não cresceu no seio da comunidade chinesa, pode interpretar tudo isto como uma forma de distanciamento, ou até má vontade, mas quem quiser mesmo fazer desta terra a sua segunda morada, ou eventualmente a primeira, convém adaptar-se a estes detalhes, por vezes tão minuciosos, e que não implicam necessariamente que tenham que deixar de ser o que são. É claro que há sempre excepções, e pode dar-se o caso de encontrar chineses que achem graça a esta modalidade de contacto que a sua cultura considera “libertina”, e muitos macaenses são capazes de entender, e mais ainda dependendo da educação, da frequência do contacto com a comunidade portuguesa, ou ainda mais receptivos serão se já viveram em Portugal – mas isto não quer dizer que apreciem, entenda-se. Nestes casos é sempre melhor manter uma certa reserva, e esperar que a iniciativa parta da outra pessoa, demonstrando também uma vontade maior de se integrar nesta realidade diferente da sua. Pode ser um pouco chato, e parecer esquisito até, mas melhor do que aprender à custa de errar, é dar um sinal de que para bom entendedor, meio gesto basta. PS: Vou este sábado para Navarra limpar os pulmões com o ar dos Pirinéus. O Bairro do Oriente regressará assim em meados de Setembro. Um abraço do tamanho do mundo.
Hoje Macau VozesCamilo Pessanha (1867-1926) António Apolinário Lourenço “O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha” (Fernando Pessoa) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ompletam-se no dia 7 de Setembro cento e cinquenta anos sobre o nascimento, em Coimbra, de um dos mais peculiares e geniais escritores portugueses, Camilo Pessanha. Estudante de Direito, sem particular brilho, concluiu o curso em 1891. Apesar de os seus anos de vida universitária terem coincidido com a difusão, na cidade do Mondego, da corrente estética simbolista, defendida nas publicações rivais Os Insubmissos e Bohemia Nova, a participação do poeta nos círculos literários da cidade foi relativamente marginal. A sua formação artística e a sua iniciação na poesia decorreriam de forma muito mais pessoal e recatada, o que não impediu que tenha construído uma obra que o coloca num lugar cimeiro entre os poetas simbolistas portugueses e faz dele um dos principais mestres da moderna poesia lusitana. Grande parte da sua vida decorreu em Macau, território colonial para onde partiu em 1894, destinado à docência liceal, mas onde também exerceu outras actividades profissionais, como as de Conservador do Registo Predial, juiz e advogado. Aí viria a falecer em 1926, tendo passado, no entanto, largas temporadas em Portugal, beneficiando dos períodos normais de férias a que tinha direito como funcionário colonial, acrescidos de licenças extraordinárias para tratamento médico. Foi assim que pôde, ininterruptamente, permanecer na então metrópole entre 1905 e 1909. Mas foi sobretudo na sua última visita a Portugal (1915-1916) que Camilo Pessanha teve consciência de ser objecto de admiração e de culto por parte das novas gerações literárias lusas. A sua permanência em Macau, onde não seria nunca uma figura consensual, sobretudo no que respeita à sua prática como juiz, levou-o a uma aproximação da cultura e da arte chinesas, que se concretizaria na produção de textos ensaísticos, traduções e na colecção de arte que legou ao Estado Português e faz actualmente parte do espólio do Museu Machado de Castro. Pouco interessado nas glórias mundanas e com uma vida familiar sempre instável, encontrou na poesia a forma de exprimir conotativamente, através de uma imagética carregada de símbolos de carácter negativo, as suas emoções e sentimentos profundos, sem ser forçado a comprometer a sua intimidade. Antes mesmo de ter publicado qualquer livro, já o seu nome era apontado como um dos grandes criadores literários portugueses, sendo objecto de intensa veneração, na segunda década do século XX, pelos poetas da geração do Orpheu. É sobejamente conhecida a carta de 1914 em que Mário de Sá-Carneiro pede a Fernando Pessoa que lhe remeta uma cópia de alguns poemas de Camilo Pessanha, que aquele conseguira através de Carlos Amaro; e não é menos famosa a resposta enviada pelo autor de A Confissão de Lúcio, em Abril do mesmo ano, ao inquérito promovido pelo diário República, “O mais belo livro dos últimos trinta anos”, em que o mesmo poeta órfico declara que a melhor obra literária dos últimos trinta anos era um livro não publicado, aquele “que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista”. A descrição que Sá-Carneiro faz da estética de Pessanha aproxima-se extraordinariamente do projeto paúlico da geração do Orpheu: “Rodopiantes de Novo, astrais de Subtileza, os seus poemas engastam mágicas pedrarias que transmudam cores e músicas, estilizando-se em ritmo de sortilégio — cadências misteriosas, leoninas de miragem, oscilantes de vago, incertas de Íris. Pompa heráldica, sombra de cristal zebradamente roçagando cetim…”. Efectivamente, nenhum outro poeta português da geração simbolista, conseguiria explorar tão profundamente como Pessanha a capacidade auto-referencial e demiúrgica do discurso poético. Fernando Pessoa reconheceria, em carta a João Gaspar Simões, datada de 11 de Dezembro de 1931, ter sido influenciado por Camilo Pessanha, uma influência que parece evidente nalguns conjuntos poéticos do ortónimo, como é o caso de Além-Deus e Passos da Cruz, não menosprezando a existência, como o próprio Pessoa sublinhou, de leituras e influências comuns. É sabido que o autor da Ode Marítima pretendia publicar poemas de Pessanha no Orpheu 3, que seriam colocados em lugar de honra. Tendo-se gorado essa possibilidade, por motivos que são sobejamente conhecidos, acabaria por ser Luís de Montalvor, um dos directores do Orpheu 1, a conseguir a cedência de 16 poemas de do autor de “Ao longe os barcos de flores” para inserir no número único da revista decadentista Centauro, de 1916. Depois de concretizada a publicação, em 1920, da primeira edição da Clepsidra nas Edições Lusitânia, de que era proprietária Ana de Castro Osório, a paixão não correspondida do poeta, António Ferro apressar-se-ia a declarar que a sua geração passara a ter um missal e um relógio: o livro de Camilo Pessanha. Este reconhecimento é corroborado pelo autor de Mensagem, que, num apontamento datado de Novembro de 1934 (cerca de um ano antes da sua própria morte, portanto), registava que apenas três poetas portugueses dos séculos dezanove e vinte mereciam o nome de mestres: Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha: O primeiro ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta. O segundo ensinou a observar em verso; descobriu-nos a verdade de que o ser cego, ainda que Homero em lenda o fosse e Milton em verdade se tornasse, não é qualidade necessária a quem faz poemas. O terceiro ensinou a sentir veladamente; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele. *in Homenagem ao Poeta Camilo Pessanha, Editorial Moura Pinto, 2017
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMulta ou prisão, eis a questão! [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 9 ocorreu um acidente de viação perto de La Baie Du Noble. Um carro preto, conduzido por um indivíduo do sexo masculino, chocou com um táxi e acabou por capotar. Uma das portas do táxi foi arrancada. Felizmente os carros transportavam apenas os condutores, que saíram do acidente com ferimentos ligeiros. Posteriormente ambos os condutores foram submetidos ao teste de alcoolemia. Numa análise preliminar percebeu-se que o condutor do carro preto apresentava valores superiores ao normal. O condutor do táxi não apresentava sinais de ter ingerido álcool. Mais tarde veio a saber-se que o condutor do carro preto estava efectivamente embriagado. Este incidente foi divulgado pela imprensa de Macau e, ficou a saber-se, que o condutor do carro preto iria ser indiciado por “conduzir sob efeito de bebidas alcoólicas”. Acabaria por ser condenado a 100 dias de prisão, substituídos pelo pagamento de uma multa de 20.000 patacas. Ou seja, o transgressor pôde sair em liberdade pagando a multa. Ficou também com a carta apreendida durante um ano. O acidente teve lugar à luz do dia e foi testemunhado por muitas pessoas. Algumas tiraram fotografias e postaram-nas no Facebook. Este incidente desencadeou surpreendentemente uma quantidade de discussões. Um dos temas mais debatidos no Facebook foi a pena aplicada ao condutor. As pessoas em geral gostariam de tê-lo visto preso. Para analisar este assunto em pormenor, teremos de olhar para o Código Penal de Macau. O Artigo 279 (1) estabelece que, a condução sob efeito de bebida alcoólica, que ponha em risco terceiros ou bens alheios, implica uma pena de prisão até três anos ou uma pena pecuniária. Os Artigos 279 (2) e (3) estabelecem o montante da multa e o período de detenção consoante as circunstâncias. Por aqui podemos ver que o Artigo 279 deixa duas opções em aberto. O réu pode ser detido ou condenado ao pagamento de multa. Mas quem decide a opção a tomar, o juiz ou o réu? Para responder a esta pergunta temos de voltar à lei. Em primeiro lugar, a lei deve estabelecer de forma clara as circunstâncias que conduzem a uma penalização e as circunstâncias que conduzem à outra. Em segundo lugar, deverá ser inequívoca ao estabelecer sobre quem pesa a responsabilidade da decisão. Se a lei não for suficientemente clara nestes aspectos o juiz terá dificuldade em pronunciar-se adequadamente quando é chamado a decidir. O artigo 125 (1) do Código Penal de Macau, estabelece que a pena pecuniária não pode substituir a pena de prisão, salvo algumas excepções. Por aqui se depreende que o objectivo da nossa lei é impedir que os réus comprem a liberdade. Mas será que o réu pode escolher entre pagar a multa ou ir para a prisão? Mais uma vez a resposta depende da lei. Se esta lho permitir, uma vez cumpridos todos os requisitos, pode. Caso contrário terá de se sujeitar à decisão do Tribunal. O incidente que temos vindo a referir foi muito aparatoso e provocou muitos danos materiais e além disso envolveu um condutor alcoolizado. Foi uma situação grave, pelo que muita gente apelou à prisão do transgressor. No entanto, devemos salientar que, à parte os ligeiros ferimentos dos condutores, não houve mais danos pessoais. Só se pode pronunciar uma sentença de forma justa se todos os factores forem tomados em linha de conta. Se a lei permite que o transgressor pague uma multa em vez de ir para a prisão, teremos de aceitar. Se não concordarmos teremos de alterar a lei. Se este sentimento for maioritário, precisará de ser reportado ao Governo e, a partir daí, serem implementados os procedimentos que abrem caminho à criação de uma emenda à lei. Mas, mais uma vez, antes de abraçar essa opção, há que pesar todos os factores pois estão em jogo questões vitais e de justiça para todos. David Chan Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Leocardo Manchete VozesOriente incidente [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma notícia que me me deu que pensar. No último fim-de-semana dois turistas chineses foram detidos em Berlim, depois de terem sido surpreendidos a fazer a saudação nazi em frente ao Reichstag, o parlamento alemão. Repito, foi neste último fim-de-semana, e não em 1940, quando este acto não só era permitido, como também altamente recomendável (há quem defenda este gesto dizendo que se trata “apenas de uma saudação romana”, mas convém recordar que já não há desses “romanos” para saudar há 1500 anos). Hoje é crime, mas os dois turistas safaram-se com uma multa de 500 euros cada, o que acabou por tornar a brincadeira tão parva, quanto dispendiosa. E não foi um acto irreflectido da parte de jovens inconscientes, como quando há um par de anos um adolescente chinês achou por bem gravar o seu nome nas pedras de um monumento do Cairo. Neste caso foram dois homens de 36 e 49 anos. Seriam nazis chineses? Eu diria antes que eram curiosos. E ignorantes, claro. Aqui a China tem uma atitude exemplar: recomenda aos seus cidadãos que cumpram as leis dos países para onde viajam. Melhor do que isto é impossível. A este propósito lembrei-me ainda de um episódio que ocorreu em Macau durante a última tourada à portuguesa (1996?), realizada numa arena improvisada no antigo Campo dos Operários, em frente ao velho Hotel Lisboa. No fim havia um “touro para os curiosos”, com o aliciante de existir um “lai-si” de três mil patacas preso ao lombo do animal. Alguma barafunda depois e com o “lai-si” já arrebatado, há uma jovem residente que decide ficar mesmo no meio da arena, a sós com o touro. Com os aficionados de boca aberta, a pobre moça acaba por ser colhida, e só a intervenção atempada do grupo de forcados ali presente evitou uma tragédia. A jovem em questão era na altura estudante de design, e passado uns meses foi matéria de uma reportagem na TDM a propósito de um trabalho da sua autoria, onde foi também questionada sobre a sua…”veia taurina”, por assim dizer. Explicou então que teve aquele comportamento porque era algo “que nunca tinha exprimentado”. Bem, isto tem muito que se lhe diga, mas ilustra na perfeição o que pode ser a “curiosidade” de que falei um pouco mais acima. Naquele dia, e para aqueles dois turistas chineses, a saudação nazi em frente ao Reichstag era o touro do Campo dos Operários para a moça da outra história. Existe, sem dúvida, uma animosidade crescente em algumas cidades da Europa em relação aos turistas em geral (tenho lido sobre imensas queixas em Lisboa), mas no caso dos chineses em particular, a coisa muda de figura. Os chineses não são conhecidos por beber e armar confusão, como os ingleses, ou “entrarem ali a pensar que mandam em tudo”, como os espanhóis, nada disso. O que existe é um choque de culturas, uma incompatibilidade em relação a certos gestos e comportamentos que só dá mesmo para entender quando se vive dos dois lados – e nisso somos uns privilegiados, estando aqui em Macau. Quando vamos a Portugal não olhamos com os mesmos olhos que os portugueses de lá para um chinês que tenta empurrar para passar à frente na bicha, ou que tira os sapatos em qualquer sítio onde entra, ou até quando produz um sonoro arroto. Para nós é normal, e para os portugueses do rectângulo é tão estranho como são para os chineses alguns dos nossos comportamentos aqui, neste lugar da China. Não é preciso ser um génio para se chegar a uma conclusão quanto a este tema. Não somos obrigados a ser algo que não somos, ou aceitar algo que nos provoca asco a repulsa. A receita aqui é a tolerância, que é a regra de ouro do convívio entre os povos, do mundo que queremos ideal, para todos e ao alcance de todos. Isto na prática é muito mais complicado, de facto.
Carlos Morais José A outra face MancheteAssim como quem quer a coisa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] advogada de Ho Chio Meng resolveu apresentar um recurso e fê-lo por fax. Trata-se de um acto estranho, quase a roçar a rebeldia anti-sistema. E tem graça ver isto ter origem na defesa de um homem que foi Procurador da RAEM e, por isso, incarnava e representava esse mesmo sistema. Como todos sabem, a lei de Macau não prevê qualquer tipo de recurso, além do Tribunal de Última Instância. Portanto, porque Ho Chio Meng foi julgado por juízes desse mesmo tribunal, não existe possibilidade de recorrer. Tal facto não impediu a ousada advogada de apresentar recurso à mesma entidade que o julgou. Ainda que, nos termos da lei, isso não sirva para nada. Mas não servirá mesmo para nada? Provavelmente, tem uma excessiva utilidade: demonstrar que existem contradições óbvias entre o espírito da legislação vigente e alguns artigos desse mesmo conjunto de leis, que funcionam como anti-corpos e provocam sintomas que só podem ser atribuídos a uma prática legislativa doente: a saber, a impossibilidade de recorrer de uma sentença. Tal facto não deve ser considerado como estranho ou sequer decorrente de uma qualquer má intenção. Pelo contrário, deve ser, em última análise, atribuído à fragilidade de um sistema ao qual foi exigido uma profunda remodelação e no qual será normal encontrar defeitos ou excessos. Nada que não possa ser corrigido. Como explicar então que o exemplo de Ao Man Long não tenha impulsionado uma mudança legislativa que permitisse a vigência da normalidade nesta região? Certamente que a questão não é política porque não conseguimos vislumbrar como é que um assunto deste tipo poderia pôr em questão qualquer doutrina ou estratégia de fôlego geral. Também não conhecemos quaisquer declarações, por parte da dirigentes do Governo Central, acerca desta questão. Então por que razão o Governo da RAEM não se preocupou em mudar um aspecto da sua legislação que, no mínimo, atrapalha a sua imagem internacional e, no máximo, transforma Macau num espaço onde um direito fundamental é legalmente violado? Difícil de responder. Terá sido preguiça ou teimosia? Terá sido temor ou cobardia? Não sabemos. Contudo, não podemos deixar de estranhar esta lacuna legislativa que, uma e outra vez, assombra os desígnios da RAEM. Será que alguém pensou que um caso como o de Ao Man Long não se repetiria, que outro alto responsável não seria, nunca mais, acusado de corrupção ou de outro qualquer delito? Talvez… mas isso não é pensamento digno de quem é responsável pela coisa pública. A verdade é que a legislação local tem uma lacuna, entre outras, assombrosa. O direito de recorrer de uma primeira sentença é um direito universal que não deve ser sonegado a nenhum ser humano. Nem vale a pena explicar porquê. O que valeria a pena seria remediar, de algum modo, esta mancha, este sintoma de doença no sistema legal. Neste sentido, a advogada de Ho Chio Meng está a fazer mais pelas leis com o seu recurso do que os deputados fizeram em anos de legislatura. E isto porque, correndo o risco de parecer ridícula, na medida em que apresenta um papel inútil, está a mostrar o ridículo do sistema. E ainda mais interessante o facto de certamente o fazer de acordo com o seu cliente, cuja preocupação foi essencialmente, durante os anos em que foi Procurador, aumentar as penas para os toxicodependentes. Enquanto condenou Ao Man Long, Ho Chio Meng não se preocupou com esta legislação. Mas agora que lhe morde os calcanhares e o vai encerrar, sem direito a recurso, num buraco por 21 anos, já lhe faz alguma espécie. É um bom exemplo para os que julgam circular por este mundo gozando de uma certa impunidade e permitindo que outros sofram por causa de leis iníquas. Um dia, mais tarde ou mais cedo, chega a sua vez. Era, com certeza, o momento de alguém apresentar uma legislação que, nesta área, transforme Macau num espaço normal do século XXI. Assim como quem quer a coisa.
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasO terrorrismo cibernético “Organizations employing terrorism have also brought materials which in the past could only be distributed clandestinely and often with much danger to the attention of not only current members but future recruits and anyone else who might “benefit” from the destructive capabilities which are taught. Thus, training videos featuring instructions on how to build explosive devices and prepare gunpowder have recently appeared on several Web sites regularly used by militant Islamic groups. These sites also feature tips on money laundering and many other organizational needs.” “Cyber terrorism: a clear and present danger, the sum of all fears, breaking point or patriot games?” – Michael Stohl [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] tema de capital importância na agenda mundial diária o exame crítico das estratégias de recrutamento e propaganda “on-line” de organizações terroristas, a sua evolução, razões para o seu apelo e respostas governamentais destinadas a combatê-las. Os estudos mundiais que têm sido efectuados apresentam uma metodologia de resposta táctica que pode aumentar as estratégias actuais destinadas a contornar o extremismo “on-line”. As organizações terroristas aproveitam-se cada vez mais da oportunidade, proporcionada pelo rápido surgimento de novas tecnologias da Internet, para explorar os sentimentos anti-ocidentais entre os muçulmanos em massa e, consequentemente, acelerar as suas estratégias de recrutamento “on-line” e de disseminação em massa da sua propaganda ideológica. Além disso, esses programas governamentais, até ao momento, não foram adeptos da luta contra esse fenómeno crescente. Ao examinar a literatura académica actual sobre propaganda e recrutamento de terroristas “on-line”, a sua evolução, atracção motivacional e como os governos procuraram lidar com o problema, pode-se perceber uma imagem mais clara sobre o porquê do aumento e o que pode ser feito para atenuar. Após o exame, os avanços tecnológicos e a inovação na “web” foram estimulados no crescimento da propaganda e recrutamento de terroristas “on-line”, alimentados por longas e existentes queixas não resolvidas em segmentos da comunidade islâmica. A facilidade de acesso e o anonimato oferecidos pelas tecnologias “on-line” permite ver os grupos terroristas mais facilmente, e sem medo de captura, explorar esses sentimentos de injustiça utilizando o ambiente “on-line”. Os programas governamentais destinados a combater essa ameaça “on-line” mostraram eficácia nominal e uma abordagem mais pró-activa que utiliza intervenções lideradas por serviços de segurança que pode ser um benefício adicional.A evolução das estratégias de recrutamento e propaganda da organização terrorista “on-line”, necessária em resposta a uma maior securitização, ocorreu paralelamente à mudança tecnológica. Historicamente, o alcance das estratégias de recrutamento e propaganda de terroristas foi tecnicamente e geograficamente restringida. A atenção audiovisual e de média impressa forneceu exposição limitada a representações subjectivas da sua causa. Na década de 1990, deu-se a ascensão da “Al Qaeda”, que ampliou o alcance do terrorismo para além da média ocidental tradicional, aproveitando as simpatizantes fontes jornalísticas do Médio Oriente. No final da década de 1990, as organizações terroristas começaram a aproveitar as novas tecnologias da Internet para fins de angariação de fundos e publicidade. Esta média proporcionou maior autonomia em relação ao conteúdo da mensagem e à segmentação do público. A Internet, em 1999, tornou-se a arena principal para a disseminação da propaganda jiadista. Após os atentados de 11 de Setembro de 2001, a “Al Qaeda” diversificou-se, fornecendo traduções multilingues da sua propaganda “on-line”. Após a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos, uma “Al Qaeda” desmoralizada alterou a sua mensagem. Os adeptos estrangeiros foram chamados a fazer a jihad nos seus países de origem com o treinamento metodológico fornecido através de canais terroristas “on-line”. Em 2005, quarenta organizações terroristas mantiveram uma presença “on-line”, envolvendo mais de quatro mil e quinhentos sítios e o advento do “YouTube” permitiu a disseminação mundial de propaganda audiovisual profissional e de vídeos comerciais. A década de 2000 viu um novo meio para a distribuição da propaganda terrorista, através do advento das médias sociais. Ao contrário das tecnologias da “web 1.0”, as médias sociais permitiram entre os terroristas e o seu público, a capacidade de abordar recrutas demograficamente. Esta profissionalização aumentou a sua capacidade de recrutar e disseminar propaganda de forma anteriormente apenas disponível para os estados-nação. A radicalização tornou-se mais uma atracção do que um jogo de empurrão, resultando em uma explosão no número de novos adeptos que se reúnem para causas terroristas “on-line”. A ascensão do Estado Islâmico (IS na sigla inlesa) após 2010 continuou este impulso de profissionalização da média, ampliando ainda mais o alcance da mensagem terrorista e aumentando o recrutamento no Médio Oriente e em todo o mundo. Em primeiro lugar, assumindo o ponto de vista da organização terrorista, há um grande apelo na utilização de meios de comunicação “on-line” para a disseminação de mensagens de propaganda e para fins de recrutamento. A tecnologia da nova média resultou em ofertas de causa “on-line” de procura profissional, que se enquadram na capacidade das organizações com conjuntos de habilidades e recursos orçamentais mínimos. Além disso, altos níveis de anonimato, deslocalização e transportabilidade de sitíos são oferecidos pela publicação “on-line”, permitindo assim um menor risco de evasão ou apreensão por parte das autoridades policiais. Em segundo lugar, a simplicidade de aceder a recursos e grupos “on-line” torna este mundo, em um ambiente atraente e nutritivo, através do qual participar de uma causa terrorista ou explorar ideologias terroristas sem as ásperas ramificações do envolvimento físico real. A estratégia do terrorista envolve a prestação de uma participação auto-estimada que pode gradualmente levar a uma radicalização posterior em grande escala. Através da exploração de alguns sentimentos amplamente mantidos, como o sentimento de discriminação religiosa e vitimização por potências ocidentais que existe entre alguns povos islâmicos, os potenciais recrutas estão progressivamente expostos ao doutrinamento e ao envolvimento organizacional. Um crescente senso de interconexão com outros recrutas e membros da organização, é cultivado em uma experiência “on-line” evidentemente segura. O grupo terrorista mais importante actualmente, o IS, utiliza estratégias de mídia “on-line” como sua principal ferramenta de propaganda e recrutamento. O IS procura divulgar propaganda de média carregada emocionalmente, que atrai uma ampla gama de grupos de pessoas, tipos de personalidade, afiliações sectárias e motivações políticas. Atrás ficaram os dias de simples apelos ideológicos, baseados em uma mensagem unipolar consistente. A abordagem do IS não é complexa de discernir. Trata de atrair recrutas para a causa usando mensagens motivacionais e, em seguida, doutriná-los para estabelecer pela força um califado islâmico de um califa recentemente abatido. Dado o poder significativo de atracção que as organizações terroristas modernas adquiriram através do seu uso rígido da média “on-line”, é claro que é necessário um grande esforço para conter o crescimento da sua radical presença.Também deve ser percebido que este esforço para combater a propaganda terrorista “on-line” pode resultar na redução de algumas das liberdades, que a sociedade civil dá por garantida, em troca de maior segurança e protecção contra o que oferece o terrorismo. No entanto, alguns académicos e estudiosos não estão convencidos de que a presença “on-line” dos terroristas seja um factor significativo na radicalização. Alguns afirmam que esses diálogos “on-line” permitem que os indivíduos descartem as suas frustrações de forma catártica, sem realmente recorrer à violência física. Não há garantias de que um indivíduo que se envolve em violência retórica “on-line” siga automaticamente com actos de terrorismo, e há uma escassez de evidências que mostram que tal relação causal existe além da especulação. Consideradas em conjunto, ambas as perspectivas, carregam algum peso da verdade e seria um erro abordar uma análise da propaganda e recrutamento de terroristas “on-line” sem considerar as duas. As abordagens de “laissez-faire” e/ou altamente reactivas para o extremismo “on-line”, podem ser igualmente úteis para reduzir a propagação do terrorismo. Os governos alistaram uma combinação de três estratégias amplas que lidam com narrativas extremistas “on-line” que passam por uma estratégia de linha dura, que procura suprimir a actividade extremista “online”; uma estratégia de diplomacia suave envolvendo narrativas contáveis, distensão e a promoção do pluralismo social visando a contra-radicalização, e por último, uma estratégia liderada pelos serviços de informação estatais que utiliza actividades extremistas “on-line” e que fornece informação que permite identificar e processar fisicamente os envolvidos no terrorismo. Apesar de todos os três visarem combater a disseminação do extremismo violento, interagem com a narrativa terrorista “on-line” de formas muito diferentes pois, são seguidas de várias aplicações significativas do mundo real, examinando os méritos práticos e as deficiências de cada abordagem. A maioria dos governos exibe alguns elementos da política de tolerância zero ao negar acesso e/ou apagar da sua abordagem a forma de lidar com espaços “on-line” envolvidos em propaganda terrorista ou recrutamento. A negação de acesso a uma versão não filtrada da Internet ou a supressão assertiva de conteúdo terrorista são uma ferramenta importante na luta contra o terrorismo “on-line”. A China, por exemplo, tem sido bastante bem sucedida na luta contra o terrorismo, usando a negação e não excluindo políticas que procuram controlar a informação disponibilizada aos seus cidadãos. A estratégia impediu com êxito que a propaganda externa atinja a grande maioria da população, embora alguns utilizadores da Internet tenham podido contornar essas políticas e obter algum grau de acesso irrestrito à mesma. A estratégia foi prevenida exaustivamente. No entanto, a aplicação bem sucedida da China tem sido a excepção e não a regra. Na maioria das aplicações internacionais desta estratégia, a inovação tecnológica e a desatenção de detalhes por parte daqueles que realizam o bloqueio e supressão permitiram que este método de contra-radicalização “on-line” fosse prejudicado. O governo da Síria, por exemplo, em 2012 procurou, mas falhou, ao limitar a disseminação da propaganda “on-line” em relação a uma revolta popular, negando 90 por cento do acesso da população à Internet. O governo turco, mais uma vez, em 2014, procurou eliminar a retórica anti-governamental “on-line”, sem sucesso. As vozes dissidentes encontraram uma rota alternativa usando mensagens instantâneas de celular para comunicar a sua propaganda. Por fim, em 2014, durante o crescente conflito no Iraque, aos cidadãos foi negado o acesso às médias sociais, mas ainda encontraram formas de se comunicar usando plataformas alternadas e desbloqueadas na “Web”. Sem dúvida, os governos ocidentais e os serviços de informação estatais, utilizando tecnologias e pessoal devidamente preparado, tiveram maior sucesso no bloqueamento e eliminação dos sítios de propaganda terrorista. No entanto, apesar desta superioridade tecnológica, ainda são vítimas dos mesmos problemas encontrados nos exemplos anteriores. Os avanços tecnológicos e a natureza dinâmica da Internet também frustraram os seus esforços para efectivamente controlar o conteúdo. Tão rápido quanto um sítio, grupo ou aplicativo é eliminado, outro surge para preencher o vazio e dá a entender não haver uma solução a longo prazo nesta estratégia, em vez disso, parece uma medida decididamente paralisada. Também é considerado como essas estratégias são efectuadas pelos diferentes ambientes políticos que podem existir no momento da sua implantação. As estratégias de linha dura estão mais em sintonia com os partidos políticos orientados para o realismo e que estariam mais inclinados a promulgar a legislação necessária para a uma conduta eficiente. Por outro lado, as abordagens políticas liberais podem encontrar níveis mais elevados de resistência filosófica e moral nas suas fileiras e podem ter escrúpulos quanto à implementação de legislação. As tentativas de promulgar esse tipo de estratégia, por exemplo, na Austrália podem ser impedidas pelas garantidas liberdades civis que a nação abraça. A estratégia pode afectar o direito comum à privacidade pessoal e representar um sufoco das liberdades civis, nomeadamente da liberdade de expressão e associação.
Fa Seong A CanhotaAnimais no paraíso ou no inferno? Animais no paraíso ou no inferno? [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] tão atractivo, tão interessante para os miúdos irem aos jardins zoológicos, aquários ou circos para se divertirem, sobretudo quando chega o Verão. Os pais estão ocupados em encontrar mais actividades para diversificar as férias das crianças, para que elas ganhem mais conhecimentos e passem o tempo descontraídas. No outro lado da costa da Vila de Coloane, as pessoas podem escolher ir aos famosos “Safari Park” ou “Birds Park” na Ilha de Montanha, em Zhuhai, para assistir aos shows dos golfinhos, visitar pinguins, ursos polares e baleias, sentir o perigo de estar perto de tubarões, bem como para ver outras espécies de animais, os quais não são apenas objectos de diversão, mas são também o resultado do comércio dos seres humanos e ferramentas para se ganhar dinheiro. E é isto que, precisamente, não devia acontecer. Manter animais em cativeiro para o nosso entretenimento cria problemas para o bem-estar destes seres, causando sofrimento, stress e até a morte. Afecta ainda a preservação de espécies. Os humanos devem pensar que os animais existem para nos servirem, para terem uma vida de “palhaços”. A sua natureza não é viver numa área limitada, serem treinados, alimentados por tratadores e receberem a visita de milhares de pessoas. O seu dia-a-dia é repetitivo. Os aquários e jardins zoológicos estão a negar-lhes a liberdade de movimentos e a ligação com os seus parceiros. Podem sofrer de esgotamento físico e mental. Os aquários e jardins zoológicos costumam defender a sua existência pela preservação das espécies, com base em investigação ou estudo científico. No entanto, parece que nenhuma das suas acções permite que estes animais estejam no seu habitat. Inclusive, acabam por passar uma mensagem educacional errada, porque por os animais a dar espectáculo não ensina às crianças a vida que eles deveriam ter. Apesar de tudo, com a promoção cada vez maior dos aquários e jardins zoológicos, um bilhete custa somente umas centenas de patacas. É incontestável que é uma maneira fácil para a população em geral ter contacto com tantas espécies que apenas puderam conhecer em livros ou na televisão. Embora os animais em cativeiro não tenham uma vida boa, parece que as espécies no mar também não estão a viver de forma positiva. Já foram encontrados muitos golfinhos mortos na costa do território e acredita-se que a sua morte tem que ver com as obras da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau e a alta frequência de ferrys entre Macau e as regiões vizinhas. O ambiente natural das espécies selvagens também está em risco. Tanto em cativeiro como no ambiente natural, parece que os animais não podem ter o seu lugar. Ganhámos imenso com os animais. Não será o momento de lhes retribuímos? Penso que, se os aquários e jardins zoológicos não podem fechar a porta, podem comunicar e cooperar com as associações de protecção de animais e com especialistas. Podem criar condições favoráveis e sustentáveis para a vida dos animais, garantir o seu bem-estar e a sua reprodução natural. Se for possível, podem ainda permitir o regresso ao seu habitat natural após uns anos em cativeiro. É como um ser humano: também tem uma idade de reforma. Os animais também não devem servir como diversão até ao fim da vida, devem ter o direito de ficar onde devem ficar. Mas antes de se conseguir atingir isto, pagar aos aquários e aos jardins zoológicos é como ser cúmplice em manter os cativeiros. Ir ou não ir, a escolha é sua.
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasOs Estados Unidos e o Acordo de Paris “On 11 November 2014, a remarkable event occurred. President Barack Obama of the United States and President Xi Jinping of China announced a bilateral agreement to reduce the emission of greenhouse gases (GHGs) that cause global warming by their respective nations. The Obama–Xi announcement was instrumental in the framing of the Paris Climate Agreement. The INDCs submitted by the USA and China were built closely upon the November 2014 bilateral announcement. China and the USA rank number one and two, respectively, in terms of national emission of GHGs. Practically speaking, unified global action to combat global warming required these two nations to get on the same page.”” “Paris Climate Agreement: Beacon of Hope” – Ross J. Salawitch, Timothy P. Canty, Austin P. Hope, Walter R. Tribett and Brian F. Bennett [dropcap]A[/dropcap] 21ª Conferência das Partes sobre alterações climáticas (COP-21 na sigla inglesa) realizou-se a 12 de Dezembro de 2015, em Paris, tendo os líderes mundiais presentes adoptado por consenso o “Acordo de Paris”. Os representantes dos Estados presentes na COP-21 concordaram em manter a temperatura média global abaixo dos 2 graus Célsius, acima dos níveis pré-industriais, e prosseguir os esforços para limitar o aumento da temperatura para 1,5 graus Célsius, acima dos níveis pré-industriais. As promessas efectuadas, foram seguidas do esclarecimento das medidas que os países tomariam, para atingirem os seus objectivos e concordaram que os países desenvolvidos ajudariam os países em desenvolvimento, a atingir os objectivos de energia renovável. A menos de um ano após a adopção do “Acordo de Paris”, a 4 de Novembro de 2016, passou a valer na ordem jurídica internacional como um tratado, com apoio universal sem precedentes. Apenas para salientar a importância do “Acordo de Paris”, a 22ª Conferência das Partes designada por (COP-22 na sigla inglesa), realizou-se a 6 de Dezembro de 2016, em Marraquexe. A causa principal do aquecimento global é o dióxido de carbono (CO2), que compõe a maioria dos gases de efeito estufa (GEE) que criam o calor na atmosfera, aquecendo a terra e os oceanos. O dióxido de carbono é um subproduto da queima de combustíveis fósseis, principalmente carvão, petróleo e gás natural, que é lançado na atmosfera à medida que são queimados, não desaparecendo o dióxido de carbono de alguma forma e imediatamente, pelo contrário, permanece na atmosfera por muito tempo, deixando vestígios por mil anos. A concentração global de dióxido de carbono na atmosfera, actualmente, ultrapassa o que aconteceu nos últimos seiscentos e cinquenta anos, e é cerca de 30 por cento maior do que era há cento e cinquenta anos. À medida que o planeta aquecer, as consequências serão maiores, como por exemplo, o derretimento do gelo no Árctico e na Antárctica que farão aumentar a taxa de aumento do nível das águas dos oceanos, bem como alguns lugares na terra serão muito quentes para serem habitados, assim como será impossível o cultivo de terras aráveis. É de considerar que muitos países pequenos, os denominados estados insulares, simplesmente desaparecerão e muitas espécies de aves, animais e insectos se extinguirão, e para além do aquecimento, o clima tornar-se-á cada vez mais instável e imprevisível. Dados os níveis extraordinariamente elevados de GEE encarcerados na atmosfera, é necessário reduzir as suas emissões para zero até 2070, para limitar o aumento da temperatura média global, a fim de atingir o objectivo de 1,5 graus Célsius. É possível, pois existem muitas fontes de energia renovável, como a energia solar, vento, marés, nuclear, geotérmica, biomassa e biodiesel. A questão mais complicada é de como os países poderão alcançar tal objectivo, ou mais especificamente, quais são as bases sociais que possibilitarão a cooperação global? A ideia deve ser a das igualdades e diferenças que nos unem, solidariamente, na procura do bem-estar colectivo e de um planeta habitável. Os seres humanos, são todos iguais e titulares de dignidade e de direitos humanos fundamentais. Esta é a premissa da Declaração Universal dos Direitos Humanos, inúmeros tratados internacionais e a maioria das constituições dos países. Tal, é o que quer dizer com o termo “humanidade” e “género humano”. Ao mesmo tempo, reconhecemos plenamente que nenhum dos seres humanos é semelhante ou o idêntico, ou seja, temos línguas, famílias, e personalidades diferentes e, em todas as outras formas, somos distintos uns dos outros. Todos os seres humanos são iguais e diferentes, o que pode ser um paradoxo e, no entanto, é uma das contradições que devemos aceitar com alegria. Além disso, porque reconhecemos que essa dualidade é a base da humanidade, e temos a capacidade de empatia, bem como o reconhecimento da vulnerabilidade. Ajudamos as crianças, os deficientes, os idosos, as pessoas sem alojamento e outras mais fracas que precisam do nosso auxílio, mas também somos capazes dos actos opostos à solidariedade e mais extremados, a ponto de destruirmos os demais seres humanos, retirando-lhes a dignidade, idoneidade, saúde, liberdade e vida por ódio, raiva, vingança e outros sentimentos negativos, e como se não bastasse no vão propósito de acumular riqueza levam à destruição do planeta e da vida nesse desvario. Parece que quem actua debaixo de tais irracionais sentimentos negativos contra a natureza humana e meio ambiente, forçosamente terá de padecer de grave e séria desordem mental, não justificável. Em suma, porque somos iguais e diferentes uns dos outros, temos muitas habilidades e interesses, de facto, infinitos, uma grande capacidade de empatia e uma compreensão compartilhada da vulnerabilidade. A necessidade urgente de enfrentar o imenso desafio de desacelerar e de travar o aquecimento do planeta exige que reconheçamos a nossa singularidade e igualdade. Tal irá animar as nossas capacidades subjacentes de empatia, compreensão das nossas vulnerabilidades e aumentar a apreciação da humanidade compartilhada e da própria individualidade. No entanto, existem obstáculos capitais. Um são os conflitos em curso que não são apenas catastróficos por si, mas gastam a energia e os recursos humanos. Outro é a indiferença ou a ignorância (muitas vezes amedrontada). Um terceiro é o nosso fracasso em questionar o capitalismo destrutivo e homogeneizador que põe em perigo culturas, identidades e as nossas idiossincrasias únicas. Os americanos, por qualquer motivo, em comparação com as pessoas de outros países, não estão especialmente preocupados com as alterações climáticas e aquecimento do planeta que é um sintoma de irresponsabilidade total e absoluta, e bem demonstrado pelo presidente americano ao querer retirar o país de membro signatário do “Acordo de Paris”, ao considerar uma falácia o aquecimento global, com as consequentes alterações climáticas. É uma tragédia pois os americanos pretendem desconhecer, que o seu país, têm a maior responsabilidade pela emissão de CO2 para a atmosfera e nela permanece por um milénio. Tal significa que tudo o que foi emitido ao longo do período de industrialização, durante os séculos XVIII e XIX, permanece na atmosfera, uma vez que as novas e actuais emissões também se acumulam. É verdade que tanto os Estados Unidos como a China são os principais emissores do mundo. Ambos são partes no “Acordo de Paris” e enquanto os desafios são extraordinários, as aptidões humanas para enfrentá-los são infinitas. O grande desafio para os americanos é garantir que os Estados Unidos assumam as suas responsabilidades internas e internacionais para ajudar a manter o planeta habitável, e que Donald Trump veementemente tem a audácia e ousadia de negar, assistindo o mundo impávido a esta aberração. A COP-22 pode ser lembrada como a mais decisiva para o destino da humanidade, ou melhor, para o destino do planeta habitável. O “Acordo de Paris” entrou em vigor a 4 de Novembro de 2016. É o tratado internacional que obriga os estados a fazerem a transição dos combustíveis fósseis, que são os responsáveis pelas emissões que aquecem a Terra, para as energias renováveis e estabelece directrizes para os países ricos, em grande parte responsáveis pelas emissões presentes na atmosfera a ajudar os países pobres. Os países adquirem tecnologias para as energias renováveis, nomeadamente as tecnologias solar, eólica e das marés. O número de pessoas presentes na COP-22 foi superior a vinte e cinco mil, incluindo cientistas, chefes de estado e ministros, agricultores, representantes de instituições de fé, povos indígenas, pescadores e mulheres, líderes de multinacionais, trabalhadores de organizações não-governamentais e jornalistas. As apresentações e sessões de discussão ficaram marcadas pela defesa de limites mais rigorosos para o aquecimento do planeta do que os propostos anteriormente, de 1,5 graus Célsius, ao invés de 2 graus Célsius, e que os combustíveis fósseis fossem eliminados até 2050. A COP-22 anunciou que Novembro de 2016, provavelmente seria o mês mais quente até então registado, bem como 2016, igualmente, o ano mais quente. Era evidente para qualquer pessoa que tivesse assistido a essas reuniões, ficasse ainda mais determinada a convencer o resto do mundo de que, quanto mais cedo os países conhecessem as metas para terminar com a dependência de combustíveis fósseis, mais seguros estariam. Mas então, como se um raio os tivesse atingido, os participantes ficaram a saber na madrugada de 9 de Novembro de 2016 que a pessoa que tinha proclamado que as mudanças climáticas eram um engano, tinha sido eleita presidente dos Estados Unidos. A ansiedade misturada com raiva e um clima de desânimo fizeram-se presentes nas reuniões durante dois dias, mas de seguida, a atmosfera mudou dramaticamente, tendo os participantes mostrado maior determinação para forjar parcerias internacionais, tendo em vista a colaboração e cooperação para combater as alterações climáticas. Após a reunião, os participantes salientaram que era imperativo reduzir o uso de combustíveis fósseis, nomeadamente o carvão e o petróleo, acabar com as emissões de gases de efeito estufa e adaptar as energias renováveis, nomeadamente, a energia solar, eólica e das marés. O limite de 1,5 graus Célsius não só foi reafirmado conforme consta da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do “Acordo de Paris”, como também que os países mais ricos ajudariam os países menos desenvolvidos a adquirir tecnologias renováveis ou ecológicas. O então secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, fez um discurso vigoroso, positivo e ousado, afirmando o imperativo da cooperação global para travar o ritmo das alterações climáticas, e sugeriu que a China assumisse o papel de liderança abdicado pelos Estados Unidos. O presidente americano está no inicio do seu mandato e ainda que difícil, é possível que seja persuadido de que o aquecimento do planeta é inevitável e deve comprometer-se a avançar nos esforços que os Estados Unidos já estão a fazer para reduzir a intensidade e velocidade do aquecimento climático. São necessários quatro anos para que qualquer parte saia do “Acordo de Paris” conforme estipula o seu artigo 28.º e, além disso, muitas empresas dos Estados Unidos, incluindo grandes multinacionais, já aproveitaram oportunidades para desenvolver tecnologias ecológicas, e alguns estados, como a Califórnia, e especialmente as cidades costeiras, como Boston, Honolulu, Miami, Nova Iorque e São Diego estão a prepara-se para reduzir as emissões e diminuir o impacto do aumento do nível das águas do mar. O último dia da COP-22, foi marcado pelos Estados Unidos que apresentaram um relatório ambicioso que estabelece planos para reduzirem internamente as emissões e armazenar ou sequestrar o carbono. O objectivo é de reduzir os gases de efeito estufa em 80 por cento até 2050. Todavia não é claro se o relatório aliviou as ansiedades dos participantes ou não, mas o plano é inequívoco, ou seja, os Estados Unidos cooperariam plenamente com outros países para, finalmente, dentro do século atingirem a meta de zero emissões de gases de efeito estufa. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirma a igualdade de todas as pessoas, enfatizando que as vulneráveis como as crianças merecem protecção especial. No entanto, as pessoas não são iguais. Somos diferentes de forma infinita. A globalização, pelas muitas falhas que a caracterizam, fez-nos conscientizar da nossa igualdade e diferenças, proporcionando a todos os povos o incentivo e a capacidade de colaborar em solidariedade para que possamos reduzir o aquecimento do clima, colectivamente. A solução não é tão esotérica, pois envolve o abandono de combustíveis fósseis como fontes de energia, e mudança para energias renováveis, principalmente, a energia solar, as marés e o vento. A 2 de Dezembro de 2015, em Paris, os chefes de Estado de cento e noventa e cinco estados soberanos concordaram, em solidariedade, que, apesar dos muitos e grandes desentendimentos e diferenças ideológicas, históricas, económicas, culturais e sociais, deviam cooperar para diminuir as alterações climáticas. O “Acordo de Paris”, como sabemos, foi aprovado por consenso e posteriormente, foi aberto para assinatura e ratificação no “Dia Mundial da Terra”, a 22 de Abril de 2016. A 3 de Setembro de 2016, os presidentes Barack Obama e Xi Jinping concordaram formalmente em adoptar o tratado, acelerando ainda mais o seu cumprimento. A estipulação do n.º 1 do artigo 21.º do “Acordo de Paris” é de que entraria em vigor no trigésimo dia após a data em que pelo menos 55 partes do Acordo, representando no total pelo menos 55 por cento das emissões globais de gases de efeito estufa, o ratificassem. Esta estipulação foi cumprida, a 5 de Outubro de 2016, quando um total de 55 partes o ratificou. A Organização Internacional da Aviação Civil (OACI) que é uma agência especializada da ONU criada em 1944, com 191 países-membros e a sede em Montreal, no dia seguinte, ou seja, a 6 de Outubro de 2016 impôs restrições às emissões dos aviões, exigindo que as companhias aéreas comprassem créditos de carbono de projectos ambientais, em todo o mundo, para compensarem o crescimento das emissões. No entanto, surpreendentemente, a 15 de Outubro de 2016, em Kigali, Ruanda, cento e noventa e sete países aprovaram uma importante alteração ao “Protocolo de Montreal” para reduzir hidrofluorocarbonos (HFCs). A ONU descreveu os HFCs como os comumente usado em refrigeração e ar condicionado como substitutos de substâncias que destroem o ozono. Os HFCs são actualmente os gases de efeito estufa de crescimento mais rápido do mundo, aumentando as suas emissões em 10 por cento anualmente. Também, são um dos mais poderosos componentes, aprisionando milhares de vezes mais calor na atmosfera da Terra do que o dióxido de carbono (CO2). É de considerar, no entanto, que independentemente desses grandes sucessos e acordos extremamente importantes, existem profundas divisões internacionais alimentadas por guerras e conflitos, bem como a pobreza e a desigualdade. Existem ciências cépticas e os Estados Unidos têm a sua parcela no ceptcismo. Os americanos estão menos informados sobre as alterações climáticas do que as pessoas de muitos outros países e, é importante que reconheçam que contribuem mais para o aquecimento global, e isso ocorre porque as emissões geradas durante a era da industrialização permanecem na atmosfera até ao momento. É assente e reconhecido que a China e os Estados Unidos são os piores poluidores do mundo, sendo importante que ambos os países concordem em em cumprir o conteúdo do “Acordo de Paris”. A Cimeira de Hamburgo do G-20 de 7 e 8 de Julho de 2017, foi marcada por fortes dissensões entre os Estados Unidos e os restantes dezanove países no combate às alterações climáticas, mantendo-se Donald Trump irredutível, desde que a 1 de Junho de 2017 aunciou que o país se iria desvincular do “Acordo de Paris”. O presidente francês anunciou que irá organizar uma cimeira, a 12 de Dezembro de 2017, em Paris, por ocasão do segundo aniversário da assinatura do acordo, para discutir medidas adicionais às previstas. O “Acordo de Paris” deve dar mais ênfase aos avanços tecnológicos que moldaram a evolução da humanidade e como podem desbloquear as formas de combater as alterações climáticas e as ameaças ambientais. Devem existir novas perspectivas sobre as alterações climáticas e o desenvolvimento sustentável, aproveitando a tecnologia. Face às condições actuais, apenas um vegano desabrigado poderia alcançar uma pegada ecológica sustentável. Na realidade, seria impossível e até destrutivo tentar salvar o planeta interrompendo o consumo. Isso perturba a evolução e ameaça as forças motrizes da tecnologia que são a nossa esperança de combater as alterações climáticas e as ameaças ambientais no futuro. O crescimento global contínuo como o aumento do bem-estar são perfeitamente possíveis dentro das limitações ecológicas do nosso planeta se aprendemos a colocar a tecnologia a nosso proveito, um planeta será suficiente.
Sérgio de Almeida Correia VozesAs respostas que tardam sobre a ETAR de Macau [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é que não haja outros assuntos, menos desagradáveis e menos mal cheirosos, a merecerem atenção, mas, já agora, na sequência da intervenção que anteriormente fiz sobre este assunto, convém deixar algumas perguntas. Pode ser que os responsáveis do Executivo, a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental (DSPA) ou, quem sabe, talvez o Comissariado contra a Corrupção (CCAC) – no cumprimento da sua missão de combater “firme e persistentemente a corrupção e a fraude“, fiscalizando os actos administrativos, bem como “a legalidade e a razoabilidade dos procedimentos administrativos, assegurando o estrito cumprimento da lei na actuação administrativa e salvaguardando efectivamente os direitos e interesses legítimos dos cidadãos” –, queiram interessar-se pelo assunto e se predisponham a encontrar respostas às questões que aqui coloco. Anteontem, a TDM deu conta da conclusão dos trabalhos de substituição de uma conduta (ou seriam várias?) da ETAR de Macau, o que fez com que “as águas residuais fossem descarregadas sem tratamento” durante 24 horas. Olhando um pouco para trás, verifica-se que em 20 de Abril de 2016 foi publicado, no Boletim Oficial n.º 16, pela DSPA, o anúncio público para o concurso de prestação de serviços de “Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau”. O prazo para o contrato relativo a essa prestação de serviços seria de dois anos, isto é, entre 1/10/2016 e 30/09/2018. Quer isto dizer, conclusão minha, que a substituição da conduta que agora teve lugar, e que obrigou à realização de descargas de muitos metros cúbicos (m3) de águas residuais sem qualquer tratamento, devia estar incluída nessa prestação de serviços. E chego a esta conclusão simplesmente lendo o programa do concurso, onde se podia descortinar o seguinte (sublinhados do signatário): “1. Executar a O & M [Operação e Manutenção, em português] da ETAR da Península de Macau (incluindo a estação elevatória de efluentes líquidos da ETAR da Península de Macau) e de todas as suas instalações, equipamentos, peças de reserva e ferramentas, etc.; Realizar as obras de reparação adequada dos edifícios e das instalações edificadas da ETAR da Península de Macau, incluindo mas não se limitando a: bocas de descarga dos tanques, plataformas de trabalho, escadas, escadas laterais, portas e janelas, vedação da ETAR, etc.; Tratar as águas residuais brutas que entram na ETAR da Península de Macau; o volume de águas residuais que se submetam a processo de tratamento biológico (tratamento secundário) não pode ser inferior a 70 mil m3 por dia; Descarregar o efluente tratado para os locais identificados pela entidade fiscalizadora. Além disso, na condição de que a qualidade dos afluentes atinja os requisitos projectados, o efluente resultante do tratamento biológico (tratamento secundário) deve estar em conformidade com os requisitos de descarga do efluente da ETAR da Península de Macau (vide IV. Ficha Técnica do Processo do Concurso); Tratar os odores e gases gerados durante a operação da ETAR da Península de Macau (incluindo a estação elevatória dos efluentes líquidos da ETAR da Península de Macau); depois do tratamento a emissão de odores e gases não deve causar qualquer incómodo no meio ambiente vizinho e deve cumprir os requisitos de emissão dos poluentes atmosféricos no âmbito da ETAR da Península de Macau (vide IV. Ficha Técnica do Processo do Concurso); Realizar o empacotamento dos sólidos, óleos e gorduras, e areais obtidos nas diferentes fases do procedimento do tratamento da ETAR da Península de Macau e transportá-los para os locais identificados pela entidade fiscalizadora; Transportar as lamas desidratadas produzidas na ETAR da Península de Macau para a CIRS de Macau ou para os locais identificados pela entidade fiscalizadora (deve ser pago à entidade adjudicante 400 patacas por cada tonelada de lamas transportadas para a CIRS de Macau (…)…), o teor de sólidos das lamas deve estar em conformidade com os requisitos de qualidade (…)“. Quanto a esta parte, tirando os “etc.”, que num programa de um concurso público devem dar imenso jeito, convém ainda tomar nota de que em relação a um pedido de esclarecimento apresentado nesse concurso por um concorrente, foi referido o seguinte: “De acordo com os dados relativos às águas residuais apresentados entre 2011 e 2015, o volume de águas residuais submetidas ao processo de tratamento biológico (tratamento secundário) foi de 70 mil m3 por dia, pelo que o efluente pode atingir o padrão. No entanto, conforme os dados de águas residuais apresentados pela operadora em 2015 [quem são eles?] foi detectada uma redução do volume de águas tratadas no segundo semestre [é lá, “uma redução de volume“, o que é isto?; de quanto foi essa redução de volume?] e foram ponderados os princípios da imparcialidade e da boa fé assim como a fiscalização de cumprimento de obrigações contratuais pela empresa adjudicatária, pelo que, na condição de que o volume de águas residuais submetidas ao processo de tratamento biológico (tratamento secundário) seja de 70 mil m3 por dia e o efluente resultante desse tratamento não atinja o padrão, a entidade fiscalizadora terá uma comunicação estreita com a empresa adjudicatária antes de aplicar as respectivas sanções. Estas sanções só serão aplicáveis, caso seja verificado que a falta de padrão do efluente seja causada pela empresa adjudicatária, sem razão justificada.” Agora vamos às dúvidas: Quais foram os trabalhos de renovação e substituição que, em concreto, foram indicados pela entidade adjudicatária para serem executados durante a prestação de serviços? A substituição da conduta ou tubagens danificadas estava ou não contemplada na prestação de serviços deste concurso? Deviam ou não ter sido programadas pelos concorrentes desse concurso? Eram necessárias? Se eram, ficaram previstas e foram contempladas? E eram nessa altura também urgentes? O que se fez desde o início desta prestação de serviços para se evitar a situação de ruptura a que se chegou? Porque não foi construída ao lado da estrutura danificada uma outra nova que a substituísse, e para onde fossem depois desviadas as águas, até a velha ser desactivada, de maneira a evitarem-se as descargas sem qualquer tratamento durante o tempo de reparação? Qual a razão para que no programa do concurso se diga que o tratamento não pode ser inferior a 70 mil m3/dia quando aquilo que nos foi vendido pelos outros senhores, no tempo daquele general de cujo nome só os por ele condecorados ainda se devem recordar, se é que se recordam, foi a de que estaríamos perante uma estação de tratamento projectada segundo as normas europeias para tratar 144.000 m3/dia? No prefácio do programa de concurso de 2016 refere-se que a ETAR de Macau recebe diariamente 180.000 m3 de águas residuais. É mesmo? Se só se tratam adequadamente 70 mil m3/dia (tratamento biológico), o que acontece aos restantes 110.000 m3? Alguém garante algum tratamento a estes 110.000 m3? Quem fiscaliza? Como? Durante quantos dias, se é que houve algum, é que quem ganhou esse concurso cumpriu com as especificações contratuais desde 1/10/2016, nos termos que foram exigidos aos concorrentes, isto é, quanto aos 70 mil dos 180 mil que lá chegaram diariamente? Qual a quantidade de m3 que efectivamente recebe o tratamento devido? Qual a quantidade que só é “passada por água”? Qual a que é descarregada sem receber qualquer tratamento? Quem deve responder pelos milhares de m3 que são despejados anualmente sem tratamento biológico adequado? Estas obras foram, ou são para ser, pagas por quem? Estavam orçamentadas? Ficou tudo resolvido? O que se vai fazer para se evitar que se repita? Do que se viu e ouviu na reportagem da TDM, até pelas declarações daquele cidadão que diariamente vai fazer exercício físico na marginal, os cheiros e odores continuam, não havendo melhorias. O actual Secretário para as Obras Públicas não tem que responder pelo que os antecessores fizeram, ou deixaram de fazer, penso eu, mas neste momento seria interessante saber para que serve a monitorização da DSPA, se depois não se tiver conhecimento dos resultados das análises que são feitas e não nos for dado um termo de comparação. Quando eu faço análises ao sangue sei quais o valores que apresento e posso comparar com os valores normais que me são apresentados ao lado, na folha dos resultados, para saber se estou bem ou mal. É isso que também pergunto ao meu médico. Poder conhecer os resultados das análises, saber quais os valores-padrão adequados e depois poder comparar as análises de Macau com esses valores-padrão e com as que são feitas em ETARs idênticas na República Popular da China, era o mínimo exigível, sendo depois esses dados comparativos trazidos ao conhecimento público e levados ao conhecimento do governo central, para que este soubesse, com dados concretos, da qualidade de vida e do que é imposto à população da RAEM, em especial a que vive naquela zona da Areia Preta, com a gestão que tem sido feita da coisa pública pelos seus capatazes locais, um dos quais já a cumprir pena. Dizem-me que quem construiu e andou ao longo de todos estes anos a fiscalizar o que se fez, antes e depois de 1999, continua por aí. Não me admira. Penso, no entanto, que a RAEM devia ter uma atitude mais exigente. A esses não deve nada. E os cidadãos, os jornalistas, os deputados, todos deviam fazer mais perguntas para poderem cumprir com decência o seu papel. Porque com a saúde e os bens públicos não se brinca. P.S. Espero que, a este propósito, o tratamento que tem sido dado à legionella – bactéria que aparece onde há falta de limpeza e de adequada manutenção – seja efectivo, e que o problema surgido há tempos num hotel/casino esteja totalmente debelado e a ser seguido. A pressão das autoridades sobre o proprietário do hotel/casino onde aquela foi encontrada deverá ser implacável, de maneira a que os cidadãos voltem a frequentar esse local com confiança e toda a segurança. Seria muito desagradável que o problema ainda não estivesse resolvido. Um surto de legionella não colocaria em causa apenas as instalações onde surgisse, mas toda a indústria do jogo pelas repercussões negativas que traria à RAEM, ao turismo e ao espírito de todos aqueles que estariam predispostos a visitar-nos. E, já agora, que tal as autoridades exigirem que as piscinas dos hotéis tenham chuveiros, em quantidade suficiente e localização estratégica, de maneira a que os seus utentes passem por lá antes de se atirarem para dentro de água com os corpos transpirados?
Isabel Castro VozesA partida [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] primeira perda que tive foi a morte. Tinha oito anos e a morte foi-me comunicada tal como ela é, sem paninhos quentes. Ainda não se pensava muito na psicologia das coisas e ainda bem, porque há assuntos em que os rodeios não cabem. A morte é a morte, eu não percebia o que não tinha de perceber, entendi mais tarde, uma semana ou duas talvez, quando compreendi que morrer era perder para sempre. A minha primeira perda foi também um chocolate com passas e frutos secos, de tamanho gigante, nas minhas mãos de tamanho mínimo, uma espécie de pedido de desculpas antecipado pelos olhos que, à minha volta, se acinzentaram. Com o tempo, a perda ganhou outros contornos, depois do significado inicial. A dada altura, num exercício filosófico de adolescente amante de poesia, atrevi-me a pensar que a perda era mais do que a morte e não precisava necessariamente de ser provocada por ela. A escala da perda variava conforme a fragilidade do momento. Repensei a tese uns anos depois, quando a perda caiu que nem uma pedra, toda ela definitiva, independentemente da força que achava ter para sobreviver ao que desapareceu. Sem chocolate com passas e frutos secos. Mas imaginemos que há um índice de perdas. A relativização é algo que nos dá jeito, sempre. Macau é uma terra em que se perde mais do que se ganha, apesar de se ganhar muito, de forma profundamente desequilibrada. Há perdas várias, a todos os momentos, sem termos de recorrer aos lugares-comuns dos casinos onde se perdem fortunas e azares, amantes e outras substâncias inebriantes. Há perdas bem mais difíceis, porque são mais importantes e decisivas, apesar de não serem imediatamente fatais. Perder a oportunidade de crescer bem é quase tão mau quanto não se ser. Não se querer ver é quase tão mau quanto só ter a escuridão como hipótese. Não se saber pensar é o pior. O problema é, mais uma vez, da literatura, da falta de literatura, e da iliteracia, a das letras e a do resto, de não se saber ler o que vai nos rostos, nas mãos, nos gestos cansados. Perde-se a possibilidade de ser mais nesta letargia húmida que tudo invade. Perdem-se pessoas. A cidade é demasiado pequena para as pessoas que se perdem no entra e sai das fronteiras, nas despedidas junto aos barcos, imagem romântica sem qualquer romantismo que resista ao cheiro do combustível queimado, da água estagnada, da respiração dos passageiros apressados. Perdem-se pessoas por via do mundo ser grande, ter tanto para descobrir, mas também por via do cansaço, da desistência, de quem quis mais para isto para descobrir que isto não é para mais, é só para isto. Macau é uma terra de dispensáveis, de vai um chega outro, não há vizinhança que sobreviva para contar a história da porta fechada. Ninguém reparou, sequer, que a porta se fechou. Com as pessoas vão as memórias. A cidade é demasiado estreita para que não sejam conservadas. Ficam as pedras que sobram e os rostos pintados, muitos deles desconhecidos, de quem foi copiosamente chorado para ser esquecido logo a seguir, quase logo a seguir. Não nos ensinam a partir, ficando.
Carlos Morais José A outra face MancheteIdentidade [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] farol não é um farol como cada uma destas palavras não é palavra. Sabemo-lo desde Magritte. Mas o farol que ilumina a minha cidade deveria iluminar a minha cidade e proteger os barcos dos escolhos e dos tapetes de lodo, nas margens amarronadas do Delta das Pérolas. Infelizmente, isso não acontece porque deixou de acontecer. O farol gira, volta após volta, mas não ilumina: o seu estreito fio não chega ao mar, ainda menos ao coração dos homens. Esbarra em prédios, entra janelas adentro, grandes bolas de luz percorrem apartamentos. Onde pára a luz do meu farol? Por que esquinas te perdestes, em que espelhos te miraste, estreito fio de luz? Vi-te nos olhos de alguém, mas foi um relance, um clarão repentino, daqueles que é suposto iluminarem a vida e depois se extinguem entre duas aspirações. Pois é. Basta uma distracção, um outro brilho que passa, o fumo de um automóvel nas narinas e logo o estreito fio de luz se esvai e vai por certo a essa terra onde repousarão os faróis obsoletos, perto de outros elefantes. Será ilha ou mera península? Por onde andas, meu estreito fio de luz? Perdi-te tantas vezes por estas ruas, nas travessas, em falsos becos. Talvez por isso perdeste importância e a tua luz esmoreceu e outras luzes ávidas tomaram o teu lugar. São às cores, embasbacam mais. Haverá mais gente que as prefira ou até adore a complexidade das grinaldas, dos buquês casamenteiros, o alarido dos led, dos néons, de todas essas luzes de sabão. Qual era o encanto, afinal, daquele estreito fio de luz, a rodopiar sem descanso, enquanto a noite cobria o mundo? Era sinal de protecção, uma varinha de condão sobre a cidade? Talvez… quem sabe… Por vezes duvidávamos… seria verdade aquela luz? Doutras acreditávamos sem pudor, invocávamos o perdão no selo de uma garrafa e, sob a luz, cidade aos pés, havia quem fizesse o sinal da cruz. A história, essa, é ateia. Ateia e teocida. Quantos altares não derrubámos? Quantas estátuas não decapitámos? Quantos guerreiros não emasculámos? Ninguém quer saber. O que dizer dos faróis, gesto técnico sobre o mar? Pela vida e contra a sorte, tentativa de luz a tactear na escuridão, sinal de gente, talvez calor, talvez a morte. Qualquer coisa, meu bom farol, tu me indicavas. Assim, no fim de todas as noites, antes do dia te apagar, e isso tinha mais a ver comigo do que com a cidade à minha volta. Era a mim que remetia o teu estreito fio. Era pela minha janela que os teus círculos de luz entravam, sem respeito nem licença. Volteavam-me a sala, o quarto e saíam, talvez furiosos de não encontrarem o mar. Era este o meu farol, além da história, do sangue e do engenho. Dizem-me lá continuar às voltas a luz… Dizem-me tudo estar na mesma… que os espelhos funcionam como sempre, que se acende ao crepúsculo e se extingue na aurora. Mas o farol não é um farol como como cada uma destas palavras não é palavra. Nenhuma delas me interpreta ou representa ou interpreta ou representa qualquer coisa. São inúteis, por vezes graciosas, doutras pesadas, mas inúteis. Nenhuma delas me devolverá o farol. Procuro na fogueira a cinza certa. Está longe, num canto empoeirado da memória e, cinza nas mãos cerradas, digo as palavras. Abro cuidadosamente a mão. Nem rosa nem farol assomam. Há uns riscos, admito, sublinhados pela cinza, de leitura amarga e fruste. Mas nada mais. Nada mais. Onde paras, meu estreito fio de luz? Quanto podes tu, quanto pode essa estrada iniciante, se na tua ausência o coração desatina? Não podes nada. E eu cesso de existir. Amanhã acordarei morto. Levantar-me-ei, sacudirei as estrelas da roupa e tudo será radicalmente diferente.
David Chan Macau Visto de Hong KongFronteira fora de portas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 21 ficou a saber-se pelo site noticioso de Hong Kong “scmp”, que as autoridades continentais estão a preparar a instalação de um posto fronteiriço conjunto, dentro do terminal de comboios de alta velocidade de West Kowloon. A notícia vem levantar algumas questões de ordem jurídica devido à localização de um posto alfandegário chinês em território de Hong Kong. A linha ferroviária que liga West Kowloon, Hong Kong, com Shenzhen e Guangzhou, China, começou a ser construída em 2010. Os trabalhos deverão estar concluídos no próximo mês de Outubro. Este projecto vai trazer grandes melhorias ao nível das ligações entre as regiões para lá do Rio das Pérolas e as zonas em torno de Guangdong. As deslocações serão mais rápidas e mais facilitadas. A implementação deste projecto requer cooperação. Desde o início que, quer a China quer Hong Kong, pensaram localizar postos de controle fronteiriço conjuntos, serviços de imigração e quarentena na estação terminal de West Kowloon. O controle de fronteira, efectuado por funcionários chineses e por funcionários de Hong Kong permitirá aos passageiros residentes em Hong Kong concluir os procedimentos de saída e de entrada na China antes de apanharem o comboio, sem terem de passar pelo mesmo processo na chegada ao destino. Os passageiros continentais também poderão desembarcar em qualquer estação chinesa sem terem de passar por mais nenhum controle aduaneiro. Até aqui parece simples. Sem este posto de controle conjunto no terminal de West Kowloon, os passageiros teriam de ser submetidos ao mesmo processo na chegada à China, pelo que parece ser um procedimento que só traz vantagens. No entanto, para seguir este plano parte das instalações do terminal de West Kowloon terá de ser cedida aos serviços de fronteiras, de imigração e de quarentena da China continental. As leis e os regulamentos continentais vão poder ser aplicados em território de Hong Kong. A proposta desencadeou preocupações ao nível da segurança da legislação aduaneira entre a China e Hong Kong. Simplificando, este procedimento fará com que o cais da estação, bem como o interior das carruagens, fique sob a alçada da jurisdição da China continental. Os detractores desta ideia temem que os funcionários chineses possam vir a prender pessoas mesmo fora da estação. O Secretário da Justiça de Hong Kong, Rimsky Yuen Kwok-keung, prestou declarações sobre o assunto em Pequim, a 14 de Março último. “As responsabilidades legais dos passageiros não aumentarão, e o seu estatuto legal não será afectado de forma alguma.” “Foi este o espírito que orientou o projecto de localização de um posto de fronteira avançado, assegurando que esteja de acordo com a Lei Básica e que venha a ser conveniente e eficaz para os passageiros.” Esta terça-feira, 25, ficaremos a saber todos os pormenores do acordo. Para um residente de Hong Kong, é importante estar a par da forma como as leis da China continental podem vir a ser implementadas Hong Kong. No fundo é uma forma de ficar a saber como opera o princípio “Um país, dois sistemas”, tanto na China como em Hong Kong. Se Hong Kong permitir que os funcionários governamentais do continente apliquem a lei chinesa no terminal ferroviário, território de Hong Kong, estar-se-á a infringir o principio “um país, dois sistemas”. À luz da Lei Básica de Hong Kong, a cidade implementa a sua própria lei. O Artigo 18 da mesma lei, estipula que a lei chinesa só será aplicável em circunstâncias excepcionais. O acordo para a criação de um posto fronteiriço chinês dentro de terminal não cabe nessa excepção. Aparentemente uma forma de resolver o problema da aplicação da lei, é fazer passar uma nova resolução no Comité Permanente do Congresso Nacional Popular (SCNPC – sigla em inglês) que permita a aplicação da lei chinesa no posto fronteiriço do terminal e no comboio, enquanto este percorrer território de Hong Kong. Esta lei não irá regular apenas questões alfandegárias, terá de ter em consideração questões como operações de socorro a vítimas, em caso de acidente com algum comboio. Também se ficou a saber pelas notícias que os funcionários alfandegários chineses não têm autorização para pernoitar em Hong Kong enquanto estiverem de serviço. Não têm permissão para circular fora das áreas onde a lei da China continental é aplicável. Resumindo, de dia trabalham, à noite regressam a casa. Se esta ideia for para a frente, os funcionários alfandegários chineses vão ter uma vida difícil. Vão gastar imenso tempo nas viagens. Depois do trabalho, não podem sair da zona circunscrita e desfrutar de uma boa refeição, nem mesmo de uma bebida estimulante. Podemos desde já prever o quanto se vão aborrecer em Hong Kong. Seja como for, o comboio expresso vai ser bom para todas as Regiões Administrativas Especiais da China. Vai estabelecer mais ligação e promover o mútuo conhecimento entre a China e as suas RAEs. Se, futuramente, surgir outro posto fronteiriço avançado, a experiência de Hong Kong pode vir a ser útil.
Tânia dos Santos SexanálisePoliamor [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] poliamor é um estado de relação que não se rege por expectativas monogâmicas. A palavra de ordem é a do amor livre – amor livre de pre-concepções socialmente (biologicamente?) impostas. Uma forma de amor entre mais do que duas pessoas que partilham de forma consensual, ética e honesta, um relacionamento. Mas o conceito tem sido uma ideia difícil de encaixar porque mexe com as narrativas do amor e do sexo vigentes. Afinal o que é que é natural para a nossa espécie? Amor a dois, a três ou a quatro? Será que podemos estender o nosso relacionamento para uma constelação mais numerosa? Desde a invenção da agricultura que se lida com o amor como uma troca comercial. Eu (homem) tenho interesse em ter uma mulher para dar-me os filhos e eu (mulher) preciso de um homem para garantir que quando estiver mais vulnerável (com uma barriga gigante de oito meses) alguém vai poder ajudar-me. Na altura dos caçadores-recolectores parece que a história era ligeiramente diferente, as formas sexuais eram muito mais livres e a comunidade não se limitava a parelhas. Todos estavam em movimento à procura de recursos e, por isso, davam-se a outro tipo de práticas (e de liberdades). Isto só prova que até somos bastante flexíveis na forma como vivemos o sexo e o amor. Ora, hoje em dia, não estamos tão limitados por mecanismos de sobrevivência ou por exigências culturais (que estão sempre em transformação). Nós somos agora capazes de propor e negociar as formas amorosas e sexuais que nos trazem mais felicidade como por exemplo, um relacionamento a três. Não se trata de uma prática, mas de uma identidade sexual onde se estabelecem relacionamentos profundos, íntimos e carinhosos com mais do que uma pessoa. Não se enganem se pensam que o poliamor se rege pelos mesmos processos do que vulgarmente chamamos de traição, nada disso. O poliamor pressupõe um conjunto de pessoas que consente o seu envolvimento, e que se assumem como felizes e ‘poliamorosos’. Se o poliamor não for esclarecido nem discutido, garanto-vos que não vai funcionar. Porque, como devem saber, há algo de humano e emocional que poderá lixar um pouco a expectativa de se puderem ter múltiplos relacionamentos ao mesmo tempo: os ciúmes. Considero os ciúmes um mecanismo sintomático de uma relação pouco comunicada, uma coisa que acontece quando há insegurança. Nada de bom poderá sair da expressão ciumenta normalizada – nunca foi nem será uma forma genuína de amor (coisa que acontece regularmente). Mas de alguma forma os ciúmes não são um problema em relacionamentos poliamorosos porque simplesmente não existem. Por isso, mesmo que se queira achar o conceito do poliamor esquisito, talvez casais monogâmicos possam aprender alguma coisa, nem que seja perceber que os ciúmes são uma fabricação de necessidade possessiva, e não amorosa. Já que chegámos tão longe no nosso desenvolvimento e auto-descoberta (ao ponto de negociarmos significados sexuais em conjunto!) talvez não fosse má ideia de todo focarmo-nos na inutilidade que é o ciúme. Só mesmo porque isso faz-nos mais felizes, e aos relacionamentos também. Aliás, podemos permitir-nos criatividade e honestidade na busca do que queremos num relacionamento íntimo e no sexo – e podemos sair do armário do tabu sexual para aquilo que nos dá mais prazer.
Carlos Morais José A outra face VozesO desatino J. Louis David – “Morte de Marat” [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] inútil. Bem podemos ter a ilusão de marchar a direito, de ninguém afrontar, de nos desviarmos de caminhos obscuros, de respeitar escrupulosamente a lei, de tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, de deixar cada um na sua vida e apenas intervir para ajudar se for o caso: é inútil. Na nossa via, no nosso humilde carreiro, imiscui-se sempre, ergue-se por hábito, apresenta-se triunfante, o desatino. Ninguém desatina por acaso, à excepção do mundo inteiro à nossa volta, cuja propensão para o desatino parece ser uma espécie de vício. Quando tudo se emproa ares de correr bem, é quando qualquer coisa desagradável lá tem de acontecer. Para nos estragar o humor, arruinar o dia e fazer descrer dos projectos. Ele está em todo o lado, o desatino. O desatino é rei. Precisamente. É quando mais nos julgamos em controlo das nossas vidas – ganhando distância dos humores do chefe no emprego, fazendo das queixas sucessivas do cônjuge uma espécie de missa e das derrotas do nosso clube favorito algo de superficial –, ou seja, quando tudo finalmente corre bem, que novamente irrompe todo-poderoso, invasivo, inesperado, o desatino. Ele há desatinos de todos os tipos, mas uns desatinos são mais desatinados que os outros. Pouparei o amável leitor a uma lista, uma hierarquia, uma descrição de desatinos. Cada um terás os seus e o que é um desatino para um, não o é forçosamente para outro. Mas, idiossincrasias desatinadas à parte, a verdade é que a vida de todos se encontra extremamente bem recheada de desatinos. Ninguém se pode queixar de uma distribuição injusta. Há desatinos para todos e para todos os gostos. Parecem nascer debaixo das pedras, viajar nos cabos e concentrarem-se à nossa porta, à medida de cada um. Dizem que o desatino começou no Paraíso. Isso só prova que até nesse espaço de beatitude, onde Deus e os animais falavam com o Homem, já havia desatinos. Crenças e livros sacros de lado, ensina-nos hoje a ciência que o princípio foi um big desatino. O desatino acompanha-nos desde o alvorecer até à morte, até porque ela é, na maior parte dos casos, um grande desatino. Já a vida é diferente. Ou será que não é? Para viver, em geral, a vida tem que consumir vida e isso é, no mínimo, estranho e pouco solidário. Quando o leão come o carneiro, não estará a comer também um pouco de si mesmo? Ou seja, os seres vivos deviam sobreviver à conta de coisas inanimadas para não serem predadores no seu próprio reino. Mas não, a coisa não foi assim construída. Pelo contrário, foi feita para as hienas fossarem nos desvalidos, as aranhas paparem as moscas e os gatos comerem os ratos que, por sua vez, não raro chamam um doce a outros elementos da sua própria espécie. Enfim, um desatino… um acumular sucessivo de desatinos. Onde pára a harmonia, meus amigos? Onde se esconderam a temperança, o equilíbrio, o bom senso? Por onde andam a benevolência, a piedade, a contrição? Olhamos à volta e damos por nós rodeados de desatinos, próprios e alheios; alguns provocados por nós, a maior parte pelo mundo, como se eles fossem os pontos e as vírgulas do texto plasmado no Livro do Destino. Viver tornou-se numa descida de um rio cheio de escolhos, de remoinhos, de troncos flutuantes, quando não de dissimulados hipopótamos e pétreos crocodilos. Bem nos tentamos desviar mas bem sabemos ser uma missão impossível. Quantas vezes não chocamos – e de frente – e se desfaz a frágil canoa onde vagueia a nossa existência? Quantas vezes não suamos no desespero de torcer o leme do destino, enquanto a corrente trocista nos empurra para o desatino seguinte? Os leitores sabem do que estou a falar. E, por isso mesmo, ficará por aqui mais este ténue, simplório, beduíno, desatino.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDespedimento sumário [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 14 o site “appledaily.com” publicou uma notícia sobre o despedimento súbito de oito funcionários de um jardim de infância em Mongkok, Hong Kong, após a cerimónia de entrega de diplomas. O director do infantário encontra-se entre os funcionários despedidos. A história conta-se em poucas palavras. A cerimónia foi realizada fora da escola. Quando o director e alguns educadores regressaram ao estabelecimento, o supervisor esperava-os acompanhado por seguranças. “Dêem-lhes 15 minutos para irem buscar as suas coisas. Os cheques com as indemnizações já estão passados. Estou de partida para o estrangeiro e quem não levar o cheque agora, vai ter de esperar três meses até que eu regresse a Hong Kong.” O despedimento sumário atingiu seis educadores, um funcionário administrativo e o próprio director. Dos onze funcionários ao serviço, a escola ficou reduzida a três. O supervisor convidou ex-funcionários a regressar à escola. O súbito despedimento perturbou imenso os atingidos. Alguns choravam convulsivamente. Os pais, acabados de saber do sucedido, voltaram rapidamente para o infantário. Educadores e crianças choravam abraçados. Aparentemente, por trás de tudo isto, esteve a má relação de trabalho entre o director e o supervisor. Os educadores despedidos afirmaram que eram pagos abaixo da média. Mas, nem mesmo assim, conseguiram garantir o posto de trabalho. Já eram mal pagos e ainda acabaram por ser despedidos. Na sequência dos acontecimentos a polícia foi chamada ao local. Mas por se tratar apenas de um conflito laboral os agentes nada puderam fazer. Em Hong Kong, o posto mais elevado dentro de qualquer escola é o de supervisor, o director está sob as suas ordens. A decisão do supervisor prevalece, portanto. O director estava ao serviço do infantário há 17 anos. Os educadores há dez, sete, cinco, três e um ano, respectivamente. Se os meus leitores estão recordados, há algumas semanas a esta parte falei sobre o Fundo Compensatório da Previdência, que se destina a indemnizar trabalhadores que ficam desempregados após trabalho de longa duração. Os trabalhadores com mais de cinco anos de casa podem habilitar-se a este Fundo. A desactualização da lei do trabalho de Hong Kong, que ainda se rege pelas condições socio-económicas e laborais dos anos 70, é um dos problemas que estas pessoas têm de enfrentar. Se se lembrarem desse período, sabem que na década de 70 não se vivia desafogadamente em Hong Kong e que a cidade não estava desenvolvida. As empresas em geral não tinham grande capacidade económica e, por isso, a os benefícios garantidos por lei aos trabalhadores eram escassos. Nestes contratos tudo se resume ao dinheiro. Se a entidade patronal estiver disposta a pagar ao empregado o valor da indemnização previsto, não terá qualquer dificuldade em despedi-lo, pondo desta forma um ponto final nas suas obrigações para com ele. Foi o que se passou na situação que temos vindo a relatar. O supervisor paga o que tem a pagar e vê-se livre dos oito empregados. Neste caso o que choca mais é a desumanidade do processo. Em primeiro lugar, os funcionários foram despedidos no dia da cerimónia de entrega dos diplomas. Era um dia feliz que se transformou num dia de lágrimas e infelicidade. Entretanto, o caso foi comunicado à polícia e à comunicação social. A história passou a ser do domínio público e, como tal, é possível que venham a ter dificuldade em contratar novos funcionários. Em segundo lugar, as crianças serão necessariamente afectadas e irá gerar-se um sentimento de insegurança. Esta insegurança vai alastrar-se aos pais e a outros educadores que venham a trabalhar no infantário e põe em risco os laços afectivos que se têm de estabelecer entre os educadores, as crianças e os pais. Em última análise os pais podem perder a vontade de deixar as crianças nesta escola. Desconhecem-se os motivos do mau relacionamento entre o supervisor e estes educadores. Mas, no que à educação diz respeito, a principal preocupação deverá ser o interesse das crianças. Estes meninos têm idades compreendidas entre os 2 e os 6 anos. Neste período das suas vidas, o afecto que recebem dos educadores é talvez mais importante do que os conhecimentos que estes lhes transmitem. Se os professores desaparecerem sem mais nem menos no final de cada ano, este estabelecimento acabará por vir a ter problemas, e as crianças não se vão sentir bem. É uma situação em que todos ficam a perder. A Lei Laboral de Macau é bem melhor do que a de Hong Kong, porque na altura em que foi elaborada já Macau era próspero. Os empregados têm direito a mais benefícios. Basta lembrarmo-nos que a lei de Macau impõe uma pausa no final de cada cinco horas de trabalho, pagamento de horas extraordinárias quando o horário excede o estipulado, etc. Talvez Hong Kong deva rever a sua Lei Laboral de forma a dar mais protecção a quem trabalha. No mínimo deve evitar que casos como o que acabámos de descrever se repitam.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexting [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e há quem defenda que a revolução digital não alterará a nossa forma de nos relacionarmos, eu não faço parte desse grupo de pessoas. Os nossos exercícios de sedução já sofreram o upgrade dos novos desenvolvimentos tecnológicos, seja isso com os famosos dating websites, o tinder, ou simplesmente porque agora estamos todos muito mais contactáveis, e à distância de um click. Sexting, que é a maneira inglesa de nomear mensagens de teor sexual, surgiu como uma nova tendência na forma como seduzimos e queremos ser seduzidos. Contudo, da mesma forma que a big data desenvolve novos desafios para as práticas sociais e no desenvolvimento de políticas públicas, também o sexting é alvo de alguns desafios conceptuais e de regulação. Ora vamos por partes. Não há nada de errado em trocar mensagens de teor sexual, com fotografias de corpos desnudados ou pormenores de órgãos sexuais excitados, desde que seja totalmente consensual. Um casal que ande a trocar mensagens marotas para praticar novas formas de sedução faz parte da nossa sexualidade se assim o quisermos – até mesmo se o fizermos com estranhos. Repito: desde que seja consensual, não vejo nada de particularmente problemático. Só que estas novas formas de lidar com o sexo já tiveram os seus problemas. Material de conteúdo sexual, seja ele escrito, mas predominantemente imagético, é por vezes re-utilizado para outros fins. Quantas vezes é que já ouvimos histórias de casais onde um dos elementos publica as fotos íntimas do outro? Já ouvimos umas quantas – e o medo, irritação e consternação são mais do que legítimos. Já para não bastar de ver as fotos da intimidade espalhadas pelo mundo virtual, acontece que as comunidades que nos rodeiam não vão envergonhar a pessoa que publicou conteúdos que não era de seu direito, mas a pessoa que viu a sua confiança traída pelo ex-companheiro. Quando se é adolescente então, estes processos são particularmente problemáticos porque no meio de tanta fase de transição e de hormonas a saltitar, este tipo de vergonha parece intransponível. As vítimas que passam por este tipo de situação – que carregam este tipo de vergonha e que se sentem sem controlo do que se está a passar – por vezes tomam medidas mais drásticas ao porem um fim às suas vidas. Estes são casos dramáticos que inicialmente começam por uma troca inofensiva – à primeira vista segura – e consensual de imagens de teor sexual. Os governos, ao verem um desenvolvimento tão dramático a estes casos fazem o que acham melhor: ilegalizar o sexting ou promover campanhas onde nunca se deve trocar este tipo de imagens com absolutamente ninguém. Mas em vez de se educar para uma sexualidade saudável, continua-se a promover tabus e restrições que (normalmente as mulheres) têm que resolver – seja isso a vergonha, a culpabilização ou a acusação de que são umas galdérias por algum dia terem pensado em fotografar-se semi-nuas e quererem partilhar isso com quem mais intimidade sexual têm. Pensemos na prevenção rodoviária como um exemplo: não só se responsabilizam os condutores pelo que fazer (ao regular comportamentos) mas também se desenvolvem veículos mais seguros e tecnologias de protecção mais eficazes. É isso que falta na narrativa do sexting também – uma preocupação digital para contornar estas questões. Porque este é um problema que reflecte a forma como vemos o sexo ou a nossa expressão sexual e que realça alguns dos problemas relativos à privacidade digital – porque as redes sociais ainda estão na sua infância, e um entendimento de como regulamentar certas práticas também está numa fase muito embrionária. Há quem diga que a tecnologia amplifica os nossos piores comportamentos… Eu acho que o potencial de promover comportamentos seguros e bem informados deveriam ser bem maiores. Se pudermos investir numa educação sexual e digital menos melindrada, talvez possamos proteger com eficácia a nossa integridade e a liberdade de expressarmos a nossa sexualidade.
João Luz VozesTrabalhador Não Residente [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]NR, outrem, fantasma desprovido de cidadania trasladado pela força do labor. Sou a soma de todos os medos, bode expiatório dos males do mundo, o larápio de pão local. Nas palavras de um sublinhado provocador, “dizem que semeio o caos e a destruição como o vento semeia as papoilas”. Essa é a minha reputação. Porém, sou exactamente o contrário, vivo nas antípodas da percepção daquilo que projectam de mim. Procuro ser edificante, na total acepção da palavra, numa Macau que é uma construção de forasteiros. TNRs emprestam o músculo para fazer a cidade crescer em altura, estrangeiros investem deltas de cobre, gente de fora vem jogar e deixar o dinheiro que enriquece o território abraçado pelo sufocante e míope lótus. Já antes, Macau havia sido construída por outros, vivia do acasalamento entre interior e exterior. Muitas vezes com violência, como qualquer cópula que se preze. A existência é um processo de cooperação e partilha, o encerramento e a solidão só se revelam, no seu expoente máximo, na morte. Parece ser a isso que aspiram aqueles que me olham de lado, que desconfiam do estrangeiro que carrega maus presságios na bagagem. Em Macau tudo o que é mau é importado. Doenças são trazidas de fora para o seio impoluto da eterna saúde. Crime também é algo que transborda das fronteiras do medo para o interior desta imaculada comunidade de santos. Os maus costumes, a sarna, peçonhas várias, má condução de veículos, conduta sexual diabólica, erecções infames, mau hálito, caspa, tudo emanações exteriores. Nada me verga perante este tufão escala de ignorância 8, muito pelo contrário, aguento este vendaval com um esgar trocista. Pobres diabos, amedrontados pelo fantasma da concorrência, receosos de perder regalias, prioridades, na Macau que mima em demasia, que aburguesa e vive num oásis económico de pleno emprego. Aqueles que me temem, coitados, vivem presos à ineptidão de um umbigo que enclausura, dos horizontes encerrados na geografia de cárcere. Vivem num cativeiro auto-imposto. Daí o receio de quem tem o mundo por sua casa, as estrelas como tecto último, o horizonte como destino. Os meus braços querem o mundo, da mesma forma que a minha boca anseia pão e o meu equador as vossas filhas. A emigração faz parte da natureza humana, fundadora da inata curiosidade que nos move, desde os primórdios dos nossos tempos. Há mais de 200 mil anos, os primeiros humanos sentiram a vontade de partir, começava assim o engenhoso e a vontade de abarcar o globo num fôlego. Emigrámos do leste africano, daquilo que hoje é a Etiópia e lançámo-nos numa aventura sem fim, que nos está a levar hoje além do sistema solar. O nosso primeiro apetite é sair, numa eterna alusão uterina. Seguir esta pulsão é estar conforme à natureza, vogar à bolina, orçar o libidinoso contacto dos elementos em direcção ao mais sublime dos portos. Reconhecer este desiderato requer elevação, saber receber é um exercício de nobreza, aquilo que traça a distinta linha entre um anfitrião e um selvagem com medo da própria sombra. Há muito que deixámos para trás o passado neandertal, mas ele persiste resiliente e traz o Homem à sua condição ancestral de prisioneiro na platónica caverna. Mesmo sem grande vontade de resvalar para alegorias, a verdade é que as sombras nas paredes de Macau ganham cavernosas identidades, tornam-se sinistras. É verdade que a luz cega aqueles que teimam em viver na treva, mas os olhos precisam da clarividência da verdade, da exposição ao que é autêntico. Gentes de Macau, saiam da caverna, ouçam o apelo deste estrangeiro que vos quer bem, soltem-se dos pesados grilhões do medo, encarem o que de melhor há na vossa natureza. Eu não tenho medo, ostento o meu peito aberto, vivo solto, bebo a vida de um trago, sou mal pago e sorrio dos infortúnios e armadilhas que me metem na frente, sempre ciente da minha grandeza. Posso não ter muito nos bolsos, mas o meu coração transborda, encaro o sol de frente, a minha casa é onde a sola dos meus pés se firma. A orfandade de pátria é a minha assinatura no indigno cartão que me identifica, não há fronteira que me contenha. O meu nome é Liberdade!
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO desprezível regime da Coreia do Norte “Throughout the post–Cold War period, U.S. responses to North Korea’s nuclear ambitions have been based on a simple premise: a nuclear North Korea would destabilize regional stability and thus cannot be permitted under any circumstances. At the height of each of the North Korean nuclear crises, both the Clinton and Bush administrations imposed a series of economic sanctions and considered military options.” “Global Rogues and Regional Orders: The Multidimensional Challenge of North Korea and Iran” – Il Hyun Cho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Coreia do Norte tem sido particularmente contraditória nos últimos meses, aumentando acentuadamente o número e a ambição dos seus testes de mísseis balísticos. Ainda não é claro, porque razão o seu governo optou por se comportar de uma maneira tão desviante em termos internacionais. A opinião convencional é de que o regime de Kim Jong-un parece sente-se repentinamente muito mais ameaçado pelos Estados Unidos e pelos seus aliados, temendo que seja o próximo país escolhido para uma intervenção militar em grande escala e subsequente mudança de regime político. Assim, e de acordo com essa linha de pensamento, Kim e os seus seguidores estão à procura desesperadamente por construir um programa de mísseis balísticos e armas nucleares, que seja suficientemente grandioso, potente e de grande alcance para dissuadir os americanos e s o seus aliados de os atacar militarmente. Se considerarmos em termos de valor nominal, esta posição parece razoável, pois a Coreia do Norte é um estado desonesto, que é amplamente criticado pela maior parte do mundo, não fazendo uma análise minuciosa da situação em termos globais. Em primeiro plano, não existe motivo para que a Coreia do Norte se sentira mais ameaçada, actualmente, do que nos anos anteriores. As doutrinas de invasões preventivas e mudanças de regime chegaram ao seu ponto culminante, sob o governo George W. Bush, declinaram com Barack Obama e não há motivo para acreditar antes da crise actual, que Donald Trump teve algum interesse real em uma guerra com a Coreia do Norte. Os comentários de Trump sobre o Kim Jong-un, em verdade, foram geralmente corteses durante a sua campanha eleitoral e, recentemente, em Maio de 2017, Trump elogiou Kim como um biscoito muito inteligente, e sentir-se-ia feliz por sentar-se à mesa e comer na sua companhia um hamburguer. A declaração de que o regime começou a testar mísseis com mais rapidez do que nunca, porque se tornou dominada por um súbito terror de que os Estados Unidos e os seus aliados iriam invadir o país sem aviso, não tem qualquer fundamento. Em segundo lugar, há poucos desejos estratégicos da parte dos Estados Unidos e dos seus aliados de derrubar o regime de Kim Jong-un e os norte-coreanos bem o sabem. Os sul-coreanos preocupam-se com os milhões de refugiados que inundarão as suas fronteiras, se o regime de Kim Jong-un entrar em colapso, e o gigantesco custo financeiro que uma unificação subsequente poderia acarretar. Os japoneses estão mais preocupados com a ameaça representada pela China do que pela Coreia do Norte, e temem que uma mudança de regime neste país possa reduzir o número de forças militares dos Estados Unidos estacionadas na região, o que também reduziria a necessidade estratégica que une a Coreia do Sul e o Japão, apesar das nefastas memórias que existem entre os dois estados, sobre o horrível tratamento japonês dado ao povo coreano de 1910 a 1945. Sem a ameaça da Coreia do Norte, o Japão poderia sentir-se abandonado pelos seus dois principais aliados e ter de enfrentar só o emergente gigante chinês. A Coreia do Norte fornece aos Estados Unidos um pretexto para estacionar as tropas e forças navais na região, o que ajuda a conter a China, enquanto minimiza a necessidade de fazer uma menção exagerada ao elefante na sala da região. Em terceiro lugar, mesmo que Kim Jong-un realmente se sentisse em pânico sobre a administração Trump, já possui o dissuasor mais efectivo, que pode realisticamente esperar alcançar. O regime testou com sucesso, em termos nucleares, uma bomba atómica em 2006 e, posteriormente, construiu uma reserva pequena, mas letal, de armas nucleares. Tem a capacidade de fazer ataques nucleares contra os parceiros americanos na Ásia-Pacífico, nos próximos anos, e poderá até atacar os Estados Unidos usando a sua grande força submarina ou colocando ogivas em contentores de carga, que poderiam ser enviados e não detectados para os portos americanos e detonados remotamente. Além disso, as suas ogivas foram feitas de forma impenetrável contra um primeiro ataque americano por algum tempo, inclusive através da ocultação em “bunkers” subterrâneos fortificados. Pelo menos alguns seriam provavelmente carregados em submarinos lançadores de mísseis, que a Coreia do Norte testou com êxito em Setembro de 2016. Isso garante que a Coreia do Norte possui uma capacidade nuclear poderosa de retaliação. Ao reforçar a sua dissuasão nuclear, a Coreia do Norte também possui a capacidade de responder a uma invasão ou ataque nuclear americano, infligindo uma destruição terrível aos aliados dos Estados Unidos e aos americanos com base na Ásia-Pacífico usando meios não-nucleares, incluindo o ser capaz de devastar a capital sul-coreana com rajadas massivas de artilharia aptas a realizar ataques químicos, ainda que exista qualquer proximidade entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos em termos de paridade nuclear. Temos de considerar que em quarto lugar se a Coreia do Norte realmente procura evitar ser atacada, deve manter uma atitude tão moderada quanto possível. A Coreia do Norte não tem escassez de problemas internos e externos que estão sob observação da administração Trump, e seria fácil manter-se em segurança se resolver deixar de ser o centro das atenções mundiais. As acções da Coreia do Norte foram particularmente provocatórias, quase deliberadamente estudadas para fomentar uma resposta hostil. O assassinato de Kim Jong-nam em Fevereiro, usando uma arma química em plena luz do dia em um aeroporto da Malásia, só faz sentido se o objectivo fosse estimular os actores estrangeiros a níveis mais altos de hostilidade. O retorno do cidadão dos Estados Unidos, Otto Warmbier, em estado de coma e que acabou por falecer a 19 de Junho de 2017, quando tinha sido condenado a uma pena de quinze anos de trabalho e não era visto há mais de um ano, parece intencionalmente preparado para inflamar os ânimos. Porque não o mantiveram escondido, fingindo que ainda estava a cumprir a sua sentença? Mesmo os próprios testes de mísseis foram realizados de forma mais conflituante possível, com o regime norte-coreano a responder às críticas dos Estados Unidos, proclamando que realizaria os testes semanalmente, mensalmente e anualmente, juntamente com o lançamento de novos vídeos de ataques nucleares da Coreia do Norte contra importantes cidades americanas. O momento para o teste do mais recente míssil efectuado pela Coreia do Norte, foi no dia de feriado nacional dos Estados Unidos, a 4 de Julho de 2017, sendo uma verdadeira bofetada provocativa. Se a Coreia do Norte tivesse realmente medo de uma invasão pelos Estados Unidos e seus aliados, chamar deliberadamente e repetidamente a atenção de forma negativa é uma acção completamente descabida. Ainda podia testar os mísseis, mas tentaria evitar anunciar ao máximo o que está realmente a preparar. Se a série de testes de mísseis que aumentam rapidamente não está a ser feita principalmente para evitar um ataque dos Estados Unidos contra a Coreia do Norte, qual a razão porque o regime está agir tardiamente de forma tão beligerante? Alguns dos possíveis motivos são bem conhecidos e um deles é que o governo pode estar a usar os novos testes para divulgar a força e as conquistas técnicas do regime à sua população, a fim de distraí-los e reduzir o seu descontentamento. O outro motivo é de que Kim Jong-un pode acreditar que inúmeros testes permitirão fazer os Estados Unidos retornarem às negociações, e fazerem novas concessões à Coreia do Norte, tendo como moeda de troca a paralisação do seu programa de armas nucleares. Há também, no entanto, outra razão potencial que recebeu pouca consideração nos círculos políticos e académicos, que é o facto da Coreia do Norte estar intencionalmente a incitar os Estados Unidos, ao lançamento de ataques punitivos em pequena escala contra si. Tal pode parecer contra-intuitivo, qual a razão porque um país quer ser atacado por forças externas? Os ganhos em popularidade do seu líder, provavelmente, superariam as perdas materiais incorridas pelos bombardeamentos, especialmente porque a história mostrou que tais ataques de mísseis americanos raramente têm qualquer efeito militar significativo. A história também mostrou que um governo sob ataque de um inimigo internacional muitas vezes experimenta um enorme impulso de popularidade, como resultado do aumento de patriotismo, um maior desejo de cooperação contra um agressor, e uma melhor disposição para tolerar as dificuldades internas como parte do esforço de guerra e conhecido como “Síndrome ao redor do efeito de bandeira.” O mesmo aconteceu, por exemplo, no início da campanha de bombardeamento da OTAN a Belgrado, durante a Guerra do Kosovo, o que levou a uma explosão de popularidade para o anteriormente aviltado presidente Slobodan Milosevic, e que permitiu que permanecesse no poder por mais tempo do que seria possível (a sua popularidade apenas possibilitou, depois de se saber que os bombardeamentos seriam sustentados, algo que a dissuasão norte-coreana desde longa data, bem como as protecções chinesas e russas, converteriam em suicidas para que os Estados Unidos se acaso tentassem). O regime norte-coreano vem a trabalhar para acumular benefícios de popularidade, por estar em estado de animosidade com os Estados Unidos há décadas, mas a realidade do conflito essencialmente ilusório que descreve para o seu povo, sofre de uma grande falha que é a ausência de ataques inimigos palpáveis que a população pode ver, ouvir e sentir. Um ataque real dos Estados Unidos preencheria bem esse vazio. Além disso, uma das fraquezas da posição de Kim Jong-un como líder é a ausência de credenciais militares reais. Ter a oportunidade de agir como o líder que, valentemente, enfrenta o poder da superpotência mais importante do mundo e sobrevive, ajudaria também, a preencher essa lacuna com facilidade. Kim Jong-un tem uma razão clara para desejar um impulso interno em termos de popularidade. O estado fortaleza sobre o qual reina, está a ser atacado por uma multiplicidade de factores que podem prejudicar o controlo do seu regime sobre a população, incluindo uma escassez generalizada de alimentos, prestação inadequada de cuidados de saúde, extrema escassez de energia e aumento do acesso da população a informações do mundo exterior, através de meios ilegais. Apesar de o regime parecer ser seguro contra o risco de revolta interna ou golpe militar em futuro previsível, só se mantém devido ao intenso e contínuo trabalho do governo e das suas forças de segurança para manter o “status quo”, e patrocinar uma manifestação patriótica em torno do regime de Kim, face a ataques americanos abertos, bem como elevar o próprio líder a herói militar, pode ser visto como suficientemente benéfico para valer a pena o sofrimento de um dano físico, resultante de um ataque que um míssil ou drone pode causar. Assim, Kim Jong-un recuaria na ideia de um ataque nuclear americano ou de invasão em grande escala, que significaria o fim do seu regime. A dificuldade para o seu governo é de encontrar a resposta correcta. Se agir de forma muito beligerante, ao disparar uma ogiva nuclear contra Tóquio ou Seul, por exemplo, provavelmente criaria uma resposta de grande intervenção ou erradicação nuclear. Ao invés, trata de irritar e ofender os Estados Unidos a um nível que seja suficiente para incitar um bombardeamento em pequena escala, mas não a nível tão grave que possa vir a incorrer em algo pior. As acções que o regime tomou nos últimos meses, incluindo o teste de novos mísseis, mas que na verdade não atacaram país algum, matando ínfimas pessoas, em vez de grande número de civis estrangeiros, e nivelando as ameaças que são preenchidas com hipérbole, mas cuja pouca essência alinharia exactamente com esta estratégia. É altamente improvável que os Estados Unidos arrisquem que a Coreia do Norte dispare armas nucleares contra os seus aliados, ou fazendo explodir um contentor de carga nuclear em São Francisco, ou provocando uma retaliação nuclear maior da China, ou mesmo lançando uma invasão em grande escala da Coreia do Norte por causa de um único cidadão morto e alguns testes de mísseis ilegais. Todavia, não é de todo improvável que possa responder com o mesmo tipo de ataques militares que Trump usou contra a Síria este ano, depois do governo de Assad ter usado armas químicas contra a sua população, Bill Clinton usou contra o Afeganistão e a Somália após os ataques da embaixada dos Estados Unidos em 1998, e contra o Iraque no mesmo ano, por não terem cooperado com os inspectores de armas da ONU, e Ronald Reagan utilizou contra a Líbia em 1986, após o bombardeamento da discoteca de Berlim e contra Beirute, em 1983, pelo bombardeamento de um quartel militar multinacional. É de considerar que, enquanto a administração Trump considera as suas respostas ao recente aumento de beligerância da Coreia do Norte, deve ter em consideração que o lançamento de ataques limitados pode, de facto, ser exactamente o que o regime de Kim Jong-un quer. Existem muitas outras razões pelas quais os Estados Unidos devem agir com extrema prudência, antes de tomar esse caminho, que não deve ser negligenciado. Fazer exactamente o que um ditador totalitário desprezível quer, pode em geral ser uma má decisão. A verdade é que as sanções ocidentais e as promessas de acção da China não conseguiram controlar o seu programa nuclear, tendo a Coreia do Norte realizados testes de mísseis a cada duas semanas desde o início do ano. As sanções são destinadas a prejudicar a economia, mas apesar de toda a miséria, o país está a crescer entre 1 por cento a 5 por cento ao ano. A ONU tentou bloquear o acesso da Coreia do Norte ao dólar americano, limitando a quantidade de carvão que o estado pode exportar, potencialmente privando-o de mais de um quarto da sua receita total de exportações. A China, compradora de 99 por cento das vendas de carvão da Coreia do Norte, afirmou em Fevereiro de 2017 que suspenderia todas as importações. Tais medidas não tem impedido que a Coreia do Norte continue por meios fraudulentos a vender carvão e a ter acesso a moeda estrangeira, bem como usa agentes de terceiros países para vender drogas, armas e produtos falsificados. O governo permite que as pessoas singulares criem negócios lucrativos, Além de produzirem para o Estado, os agricultores e as fábricas têm alguma liberdade para procurar os seus clientes. As imagens de satélite mostram que os mercados crescem em tamanho e número entre as cidades. As pequenas e médias empresas estão a proliferar e seis empresas de táxi operam em Pyongyang. A fúria apocalíptica da Coreia do Norte na realização de um programa de armas nucleares, incluindo o seu não cientificamente e militarmente provado primeiro lançamento de mísseis balísticos intercontinentais é fundamentado no que dizem ser um conjunto racional de metas em que o mais importante é a auto-preservação. O regime diz que quer uma bomba nuclear porque viu o que aconteceu, quando o Iraque e a Líbia ficaram sem as armas de destruição massiva. Os seus regimes foram derrubados por intervenções apoiadas pelo Ocidente. A Coreia do Norte quer travar outros países de fazerem o mesmo, nomeadamente a administração do presidente Donald Trump, de derrubar o seu regime totalitário.
Isabel Castro VozesDois por quatro [dropcap]1[/dropcap] Macau tem um ritmo estranho. Às tantas os outros sítios também têm um ritmo estranho, mas quem vive aqui não está neles e, por isso, não sabe de certeza vivida. Ficamos por cá a fazer a contabilidade de um tempo bastante parvo, em que os dias são sempre muito compridos e, em simultâneo, demasiado curtos, até porque o sol foge cedo, muito cedo, nos dias em que se digna a aparecer. São dias compridos, mas curtos, que teimam em ser extraordinariamente repetitivos para quase todos nós, emoldurados que estamos entre afazeres profissionais, familiares, pessoais, sociais. Dias curtos, mas compridos, que se condensam em ciclos, sempre mais ou menos iguais. Quem veio de fora faz as contas não aos anos, mas ao número de edições deste ou de determinado acontecimento. A partir de certa altura, o tempo começa a mingar. Ainda ontem era grande prémio e está quase aí outra vez, deixem o Verão acabar e vão vê-lo em auditivas acelerações. Por entre estes compassos repetitivos de Macau, que se escreveram para serem dois por quatro, andante, andam fusas e semifusas que, de tão rápidas, se nos escapam ao entendimento. Damos por elas, mas não sabemos que leitura fazer das coisas que não aparecem escritas. O que nos mostram não chega a ser. Não nos resta mais do que esperar pelo tempo, esse conceito que alguém inventou para evitar que vida e morte se juntassem demasiado depressa. [dropcap]2[/dropcap] Vêm aí as legislativas, assunto que, muito provavelmente, não empolgará por aí além a maioria dos que me lêem. Para este ano há mais do mesmo, com mais diversidade, mas com o grau de interesse de sempre: pouco. Ainda assim. Faz parte desta coisa de ser cidadão estarmos informados das nossas opções, mesmo sabendo, de antemão, que dificilmente nos servirão. É um direito dever, um dever direito, não há mais e é o que temos. No início era complicado perceber isto, lembro-me bem. Fui assistir ao meu primeiro plenário na Assembleia Legislativa com uma útil revista na mão que me dizia quem era quem, na medida em que é possível perceber-se quem é quem, e lembro-me de pensar que seria difícil algum dia entender o que verdadeiramente se dizia por ali. Não me enganei redondamente, apesar de, com o tempo, ter conseguido fixar os rostos e algumas das ideias, uma conquista que, feitas bem as contas, serve de pouco, de muito pouco. Sei quem são mas não sei quem são, ainda hoje, apesar de tudo. Ainda bem. Ainda assim. Várias legislaturas depois, com mais mudanças pelo meio do que seria de esperar, apesar do tédio que marca o tempo político, continuo a surpreender-me com este sistema e com quem faz parte dele. Os grandes e os pequenos, os grandes que estão ali de pedra e cal, com raízes na alcatifa fofa, e os pequenos, aqueles que não chegam lá mas que, por algum motivo quase sempre pouco ligado a uma irresistível vontade de participação cívica, querem lá estar também. Por norma, não conseguem. Ainda assim. Surpreendem-me os nomes e a falta de ideias e também o excesso de monotemáticas lutas. Listas que têm apenas um único objectivo, como se fosse um disparate ter mais do que um. Ou como se fosse de todo impossível dez cabeças produzirem dez ideias diferentes. Listas que se dizem cor-de-rosa, o que quer que isso signifique. Candidatos que continuam no século XX, na primeira metade do século XX. Candidatos que não saíram do século XVIII. Candidatos que ainda não perceberam que já não há cavalos e burros nas ruas, que dos agricultores resta apenas uma associação com o nome, que as mulheres não carregam cântaros na cabeça e que as crianças não andam descalças, barrigudas de fome, nas ruas enlameadas da terra, e que os mandarins agora são outros, com menos sedas e talvez menos mulheres. O tempo tem um ritmo estranho. Compassos de dois por quatro, andante, 60 por minuto, como manda o tempo, talvez 80 em caso de crise, fusas e semifusas que não encaixam, corre tudo tão depressa e tudo fica no mesmo sítio.
Carlos Morais José VozesAs celebrações – No início era a Clepsydra [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omemora-se, neste ano de 2017, os 150 anos da morte de Camilo Pessanha. A efeméride quase passa despercebida no mundo de língua portuguesa, de Portugal a Macau, uma discrição que talvez agradasse ao poeta, cuja vida de exílio o afastou dos meios literários do seu tempo. Não deixou por isso – nem pela dimensão reduzida da sua obra – de influenciar as letras portuguesas, à medida da originalidade e brilho de uma escrita que, nas palavras de António Ferro, produziu «um missal» de uma geração. Pessanha escolheu uma vida de exílio, sobretudo de distanciamento progressivo e irremediável, no longínquo porto de Macau, nesse tempo colónia portuguesa, na costa sul da China. Se com alguma facilidade podemos pensar que a vida de Camilo Pessanha se caracterizou pela estranheza — e para isso basta ter em consideração o seu progressivo distanciamento geográfico e quotidiano das suas raízes portuguesas — é o espanto que nos assalta quando temos em consideração o estabelecimento da sua obra poética. Raramente, na história da Literatura, sobretudo do século XX, deparamos com tamanha dificuldade em ter como assente e definitiva a versão final de uma obra literária. No caso do poeta da Clepsidra, são inúmeras as dúvidas, as versões, os poemas continuamente reescritos a cada autógrafo ou no momento seguinte à sua publicação. Quando, num determinado instante, se julga ter finalmente acesso em definitivo a um corpus poético, eis que do acaso ou do estudo, da investigação ou de um acontecimento singular, surgem novas dificuldades ou, simplesmente, outras descobertas, que tudo voltam a pôr em causa e fazem repensar, se não o conjunto da obra, pelo menos o estabelecimento definitivo de um texto que insiste em se querer em processo. Descortinar que versão de seus poemas o poeta abraçaria é percorrer um labirinto – de autógrafos, publicações em jornais e revistas, edições póstumas, rasuras, cartas, anotações – cujo fio salvívico parece estar nas mãos de uma Ariadne amiga de folguedos cruéis. Um episódio é bem revelador deste imbróglio em que a obra de Pessanha se tornou. Trata-se do famoso Caderno Poético, onde o poeta colava poemas saídos na imprensa escrita, que de seguida transformava, introduzindo variantes formais e de conteúdo, ou no qual escrevia directamente versões novas de poemas. Este pequeno caderno de capa negra terá sido confiado pelo próprio, antes da sua morte, a Laura Castel Branco que, após o desaparecimento do poeta em 1926, compreendendo o valor do que tinha em mãos, o entregou à guarda segura da Biblioteca de Macau. Em vão. Durante quatro décadas o precioso documento esteve desaparecido, ou por não haver ninguém que soubesse da sua existência ou por se ter perdido entre os volumes daquele depósito de livros. Foi preciso que, em 1967, durante a Revolução Cultural chinesa, cujos ardores também incendiaram as ruas de Macau, os Guardas Vermelhos invadissem a biblioteca dos “colonialistas” e atirassem uma série de móveis para a rua, pela janela de um primeiro andar. Uma secretária velha caíu com estrépito sobre o lajedo e logo se espatifou. De uma das gavetas rebentadas, saltou um caderno negro e oleoso que o director da Biblioteca, Luís Gonzaga Gomes, se apressou a recolher, ciente da importância daquele achado. Examinado o documento, logo se tornou patente que nele existiam novas versões de poemas que se julgavam definitivos, nas edições até então trazidas a lume da sua obra. No entanto, os compiladores preferiram, nalguns casos, ignorar esta descoberta e continuar a apresentar da obra do poeta versões que ele próprio desdenhara ou emendara. Aliás, muitas são as fantasias que se produziram em torno da própria produção da poesia em Camilo Pessanha. Uma das mais correntes – e mais falsas – indicia que o poeta não recorreria à escrita e que somente utilizaria a memória para compor e guardar os poemas. Sem pretender entrar aqui em polémica, basta ter consideração os inúmeros autógrafos e, principalmente, o cuidado quase fanático com que hoje constatamos que revia e tornava reecrever alguns dos poemas, para nos assegurarmosde que o seu método de trabalho era lento e exigente, o que implicou necessariamente o recurso ao papel. Ao lermos a crítica efectuada a um volume de versos de António Fogaça, publicada ainda nos seus tempos de estudante em Coimbra, verificamos que Pessanha salvaguarda ferozes critérios de exigência, certamente os mesmos que o levaram a reter a publicação dos seus versos em livro até uma idade tardia, talvez para não incorrer nos defeitos que ainda jovem apontava ao seu condiscípulo. Daí que sejamos levados a considerar que devemos tomar como versões definitivas as que mais tardias foram realizadas pelo poeta, frutos de um labor permanente sobre um texto que não cessava de se reconstruir e aperfeiçoar. Quando, em princípios deste século, fizemos um levantamento dos livros existentes na Biblioteca Central de Macau, que tinham pertencido ao poeta, deparámos com um exemplar da revista Centauro, dirigida por Luís de Montalvor, o famoso número único da publicação, onde surgem, entre outros, poemas de Pessanha e de Fernando Pessoa. Este era o exemplar que lhe fora enviado de Lisboa e que deve ter chegado a Macau no próprio ano da sua publicação, ou seja, em 1916. Ao folhear as suas páginas, foi com emoção que demos com as anotações e rasuras feitas nos poemas pela mão do poeta, modificações estas que são, afinal, as últimas versões conhecidas, feitas por ele próprio e sem intervenção de estranhos. Quanto mais não fosse, esta descoberta justificaria uma nova edição, que foi realizada. Nela apresentámos estas novas versões de alguns dos poemas, as que por ora consideramos definitivas – deixando sempre espaço a que outros acontecimentos produzam novidades –, para além de preferirmos sempre as variantes autógrafas ou provenientes de emendas e rasuras às que foram sendo publicadas na imprensa. Assim, tomamos igualmente o Caderno Poético como referência de credibilidade superior às versões sujeitas à mão, quantas vezes apressada ou pesada, do editor. Atendendo ao intrincado deste processo e ao regular aparecimento de novos documentos, não acreditamos apresentar a versão definitiva, mas vamos proporcionar a todos quantos lhe amam esta obra, nestes 150 anos da sua morte, uma versão comemorativa da Clepsydra, em forma de missal — finalmente, como prescrevia António Ferro. E tendo sido este o lugar por ele escolhido para viver e morrer, faz um sentido quase irónico mas reconfortante ser agora, neste território há dezassete anos sob soberania chinesa, prestada por Macau uma homenagem ao que foi, indubitavelmente, o seu maior poeta. Com a publicação de uma edição renovada da Clepsydra, daremos então início em finais de Julho às celebrações dos 150 anos, que se estenderão até ao fim do ano e adiante, mas cujo ponto alto será por volta do dia do seu nascimento, 7 de Setembro. Contamos que a população de Macau participe connosco nesta homenagem a um dos nossos melhores.
Leocardo VozesAguenta, que é verão [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Verão em Macau. Sim, eu bem sei que falo disto todos os anos, mas é incontornável. E é um tema “light”, uma vez que não dá para culpar os governos nem ninguém daquilo que é apenas a culpa da mãe natureza, em suma. É como uma avó de quem gostamos muito mas nos oferece sempre meias horrorosas no Natal, e que nunca vamos usar – a gente gosta dela na mesma. Só que em vez de meias, esta avó, ou mãe ou o que quiserem, dá-nos monções. Ora está um sol e um calor que não se aguenta, ora vinte minutos depois cai um toró de proporções diluvianas. Isto a juntar à humidade relativa na ordem dos 90 e tal por cento, garante-nos uns meses de estio tudo menos secos. Aqui não há seco para ninguém no Verão. Preparai-vos para suar até de lugares que nunca chegaram a imaginar ser possível (isto nos homens é mais verdade). O Verão em Macau não se passa: aguenta-se! Dou como exemplo a última terça-feira de manhã. Saí de casa perto das 8:30 para dar o meu modesto contributo ao progresso da RAEM, não sem antes verificar pela janela o aspecto do céu, que parecia tudo menos a prometer chuva. Mas eis que cinco minutos depois de por o pé na rua, dou comigo a guardar os óculos de sol, e a procurar a varanda mais próxima para me abrigar da chuva. Deu para me safar apenas todo molhado, em vez de encharcado até aos ossos (como também já aconteceu), quando cheguei ao trabalho, altura em que não só já não chovia, como ainda fazia um sol radioso. Ninguém diria que esteve a chover cinco minutos antes. Umas das desvantagens da chuva são os guarda-chuvas, coisa que detesto usar, e só o faço em caso de não ter outra opção. Não me importo que me caiam umas gotas de uma chuvinha molha-parvos qualquer. Eu não tenho medo da água, tomo banho todos os dias. O nosso corpo é composto por 70% de água. E não é só quando chove que se abrem os guarda-chuva, pois o sol também é um elemento que a população local teme especialmente, porque os deixa com a tez escura. Que horror! E à conta disto não é raro o dia em que tenho que me fazer à luta, suportando os varões alheios no rosto, arriscando-me a ter uma vista fisgada, enfim, ai o sol, ai a chuva, ai tudo. E finalmente há o impacto do Verão na moda. Em Macau nada é moda entre Junho e Setembro. Estes meses foram guardados para a não-moda. Ele é as sandálias com meias, as capas de chuva de plástico transparentes, as botas de borracha com Hello Kitties, as meias pretas de senhora naqueles dias de fumeiro, e isto para não falar outras vez dos malditos guarda-chuvas. Andar com um sol abrasador e de guarda-chuva na mão nem chega perto de ser “british style”. É simplesmente parvo. Mas pronto, e por quê não bazar antes daqui para fora? Por que temos que trabalhar, ora essa! E onde vamos passar o fim-de-semana? Onde houver ar condicionado, onde mais? Se me estou a queixar? Nada disso, é tão agradável. É só preciso aprender a aguentar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA Biologia do Amor [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] complexo sistema hormonal que cada um de nós possui alimenta as sensações amorosas do nosso corpo. Nós sabemos quando estamos com tesão, apaixonados ou enamorados porque interpretamos os sinais ao nosso redor, ao mesmo tempo que interpretamos os sinais do nosso próprio corpo e mente. Há quem vá ainda mais longe para perceber estes sistemas que nos sustentam, ao ponto de explorar estas normais palpitações corpóreas para um mapeamento mais fidedigno do amor – da sua biologia, fisiologia e anatomia. Há neurocientistas por todo o planeta a perceber como é que o cérebro trabalha quando se apaixona ou quando se ama. Porque queremos perceber melhor estes processos? Porque assim podemos trabalhar com as melhores estratégias para garantir (escolher) um bom parceiro e assim investir num relacionamento duradouro e feliz. A investigação está tão avançada que já sabemos bastante acerca das zonas cerebrais que são activadas quando estamos apaixonados; conseguimos explorar o comportamento sexual e as suas bases inatas – ou as suas tendências evolutivas – e tenta-se perceber porque é que o amor acontece, se não é o cupido a lançar umas setas pr’áli e pr’acolá, que raio se passa então? Todas estas tentativas de desmanchar estes mecanismos poderiam desfazer a magia do amor romântico mas, lá por sabermos a receita do melhor bolo de chocolate do mundo, não quer dizer que vamos deixar de ter prazer em comê-lo. Contudo, esta visão atomista do amor – que é feita de mecanismos e processos cerebrais – mostra-nos uma realidade descontextualizada do mundo vivido. Por isso é que uma das mais conhecidas investigadoras na área do amor e das neurociências, Helen Fisher, é uma optimista acerca da história do amor e do seu futuro. Eu cá aconselho muita cautela nestas interpretações. Não só porque sou uma pessimista, mas porque não conseguiria funcionar sem uma representação do mundo complicado em que vivemos. Será que o amor se manteve o mesmo ao longo de tantos de existência da nossa espécie? Que são entre 200.000 e 100.000 anos? Eu diria que não. O amor, que é uma forma tão inata de ser, de estar e de cuidar, por mais natural que possa parecer, não é totalmente reproduzida de geração em geração. O sexo, que também é daquelas necessidades biológicas básicas das nossas vidas, também não se manteve o mesmo na nossa espécie. Estas necessidades levam uma roupagem cultural e social que lhe conferem variabilidade e imensa criatividade – que é trabalhada e transformada em conjunto. Por exemplo, quando alguém me vem dizer que o amor em nada se alterará mesmo que as nossas artes de sedução se tenham alterado drasticamente (e aqui estou a pensar nos auxiliares tecnológicos), porque os mecanismos do amor (no cérebro) são sempre os mesmos… Eu pergunto-me: exactamente como? Quando é que nos limitamos a sentir o corpo como um ditador de funções e não ouvimos as nossas complicadas cabecinhas acerca de quem somos, onde estamos, para onde queremos ir ou do que é que estamos rodeados? Por mais que se queira reduzir o amor a um processo neuro-cognitivo eu não deixo de pensar no conteúdo deste processo que é muitas vezes ignorado (e dado como redundante) nestas perspectivas mais neurológicas. Não estou de todo a julgar o ser humano como umas tabulas rasas do sexo e do amor e a pensar-nos totalmente permeáveis a tudo o que acontece à nossa volta. Nada disso! O amor há-de ter uma essência semi-universal para a forma como nos relacionamos e criamos laços vinculativos com os nossos parceiros românticos e amantes. Mas que as formas de expressão são mais que muitas, disso não tenho dúvidas nenhumas. O sexo transforma-se não só naquilo que precisamos, mas naquilo que desejamos que o sexo seja – e o amor também.
Hoje Macau VozesArte Chinesa – O dom magnífico de Camilo Pessanha Alberto Osório de Castro [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]implesmente par droit d´aînesse entre os amigos e admiradores de Camilo de Almeida Pessanha, quis o grande amigo do Poeta, o brilhante jornalista Dr. Carlos Amaro, que algumas palavras minhas acompanhassem estas fotografias da arte chinesa que a Ilustração publica, e representam a magnífica colecção de cem peças características da arte milenária do Celeste Império oferecidas por Camilo ao Museu das Janelas Verdes. Como essas fotografias avivam em mim a esta hora de Inverno português, entristecida de lufadas e névoa, a relembrança dos resplandecentes dias abafados de espera de tufão, vividos em companhia de Camilo, em Agosto de 1911, na linda e melancólica, risonha e estranha terra de Macau, à maravilha católica e china, china sobre tudo, já agora, cheia de repiques finos à missa, de discretos biocos de confessadas, de silenciosos deslizes de milhares de Celestes, atravancando as ruas cada dia mais, invadindo as praças e rossios, coalhando as airosas lorchas do porto, gente atarefada e calada, reservada e de nós distante, aparentemente impassível, mas em cuja massa se sente a força profunda da maré que avança, e vai avassalar o velho empório europeu de veniaga nas Costas da China. Pobre e linda Macau dos séculos xvi e xvii, como és ainda curiosamente portuguesa à moda desses séculos, sob a taciturna invasão china que te envolve e todavia te dá ainda um aspecto de vida! E contudo, ó arcaica Macau, desde que Fernão Mendes Pinto andou de aventura no Império do Meio, assistindo aos primeiros avanços da potência tártara, que de memoráveis coisas se não deram nessa China imensa que só na aparência é milenariamente imóvel: abalada para o sul dos exércitos tártaros da Manchúria, queda da dinastia chinesa dos Ming, sangrento, como nenhum outro, triunfo da dinastia Manchu dos Ta-Tsing, dois séculos de terrível agitação das associações secretas chinesas contra o vencedor tártaro, indo, poucos meses após a minha passagem em Macau, até à abdicação do último imperador Ta-Tsing e à proclamação duma república à europeia ou americana, como compasso de espera da passagem da sombra de um novo Dragão imperial…. Tanta coisa a dizer sobre a China e a sua arte! Mas o espaço é limitado nesta revista, naturalmente. O que é e o que vale a colecção que Camilo Pessanha acaba de oferecer a Portugal, e está representada nestas três fotografias da Ilustração do Século, mandadas ao Dr. Carlos Amaro pelo bravo oficial da Armada, [ Sr.] José Carlos da Maia, hoje o governador de Macau? Críticos de arte competentes o dirão ao público. Assinalo apenas na formosíssima colecção que vai entrar no Museu das Janelas Verdes, as pinturas de Sou-Loc-Pang, o Ho-Ku-Sai chinês, que um poderoso mandarim artista disputaria a punhados de prata de lei; reconheço esbeltíssimos vasos de obra de cloisonné, de champ-levé e de nielagem; preciosas cerâmicas dos Ming; craquelés da vetusta dinastia dos Song, que teve no seu império tão grandes artistas; estatuetas de porcelana, e bronzes litúrgicos duma patina acentuada pelos séculos; charões e madeiras marchetadas; esculturas de marfim, unicórnio, âmbar e pau de águila; pedras duras e cristal de rocha talhados com a lenta paciência do sonho, ao molde de todas as formas quiméricas, das frutas e das corolas mais raras dos vergéis de Aladim. É todo o prestígio e a fantasmagoria da cisma forte do ópio no cérebro dum Quincey, de Gautier, e do pobre Gérard de Nerval. Camilo acaba de dar à política terra portuguesa, que quase não cura já senão de politicar, o mais elevado exemplo de grande poeta e de grande patriota. Em plena Lisboa politicante, Camilo Pessanha vai-nos pôr, em um museu público, de novo em contacto, pela magia da arte (quand nous parlons aujourd’hui de la «Magie de L’art», nous ne savons pas combien nous avons raison, diz Salomão Reinach), com as velhas civilizações requintadamente artísticas da China e do Japão, que um momento nos deslumbraram no século xvi, nesse século em que a nossa Pátria era ainda uma coisa viva e orgânica, vivendo por todas as suas células e os seus tecidos mais delicados. Da maravilhosa colecção de Camilo, feita com tanto amor, e à custa talvez do melhor dos seus momentos de funcionário e de lucidíssimo advogado, cem dos mais característicos exemplares são por ele oferecidos ao Museu das Janelas Verdes. Que ao menos os artistas de Portugal, pintores, arquitectos, escultores, músicos e poetas, artífices dos metais preciosos e das finas pedrarias, das palavras e dos ritmos da Língua, actores, bordadores, lavrantes, e decoradores, criadores geniais ou simples diletantes, todos os que põem na arte a mais pura nobreza da sua inteligência e do seu sangue, os que só pela virtude mágica misteriosamente evocadora da arte esperam ainda manter viva e sensível a velha encantadora alma de Portugal, que ao menos esses, entre a turba agitada, recebam com discreto e comovido louvor o sortilégio que nos chega do Sol levante doirado, o dom magnífico do Poeta, o dom feito em vida, porque postumamente Camilo se fará relembrado pela adaptação ou adopção mais bela que possa imaginar do florido lirismo da China. Dia a dia Camilo decifra e traslada do Chinês tudo o que, de mais singular, afinado e humano criou para enlevo de milhões de almas tão diversas das nossas o génio poético da imensa China matizada de jamais vistas peónias. A China através da alma estranhamente sensitiva de Camilo! Canta docemente uma das suas líricas de «Poeta Maldito» cismando na esteira fina da fumaria: O meu coração desce, Um balão apagado… Melhor fora que ardesse Nas trevas incendiado. Há-de arder, estou certo, há-de arder o seu pobre coração de grande poeta para todo sempre exilado, e no mais belo, imaginoso, florido e espiritual incêndio de poesia sensitiva que Portugal jamais viu: num pomar de cerejeiras em flor a arder, ferido pelo fogo de todas as centelhas, da tempestade que nos arrebata, da noite trovejante que sobre nós se cerra…