Isabel Castro VozesFoi mais um [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia em que pensarmos que foi apenas mais um, está tudo dito. Mas a verdade, vista de uma certa perspectiva, é que foi apenas mais um. Nós é que temos esta dificuldade de olhar para o mundo todo, o que é compreensível. Os nossos olhos, a maior parte das vezes, são incapazes de ver o mundo como uma coisa única, pela incapacidade física e emocional de abarcarmos tudo. Ficamos, assim, pelo nosso campo de visão. E aí ainda não foi apenas mais um, como acontece em tantos outros sítios. Mais um, mais uns, mais muitos. Olha, houve ali um tiroteio. Olha, agora foi em Londres. Olha, parece que alguém foi esfaqueado. E havia uma carrinha a atropelar pessoas, gente que não é ninguém em especial e que é tudo em especial para a gente delas. Olha, são seis mortos. Não, foram oito. Mais um, mais uns, mais muitos. Ninguém sabe como lidar com este quase novo normal que não pode ser a norma. No dia em que pensarmos que foi apenas mais um, está tudo feito. Mas esse dia pode não estar longe, porque ninguém sabe o que fazer a este terror que precisa de muito pouco para existir. Ninguém sabe como lhe dar a volta, porque não há apenas um destinatário a quem se pede para ter juízo. Ensinaram-nos na escola que as guerras eram feitas de inimigos. Uns de um lado com canhões, os outros com espingardas e cavalos e espadas e depois com tanques e bombas. Havia trincheiras e frentes de combate, era sangue por todo o lado, apesar dessas guerras de antes serem todas a preto e branco. Mais tarde vieram outras bombas, mais sofisticadas, submarinos e porta-aviões, ataques à distância, mortos e feridos e gaseados. Ainda assim, ia-se para a guerra. Mais tarde ainda inventaram-se outras tecnologias, guerras telecomandadas como se estivessem todos no sofá, à excepção dos mortos, feridos e gaseados. A guerra das trincheiras ainda existe, mas não é no nosso campo de visão. De vez em quando lemos uns textos e vemos umas reportagens da guerra a sério, daquela que tem pó e sangue e mortos abandonados, para fingirmos que damos importância ao que se passa no mundo, para termos o conforto judaico-cristão da relevância dada ao nosso semelhante. Mas não são as guerras que nos dizem mais. As que mais nos incomodam são as que se arriscam a ser normais. Mais um, mais uns, mais muitos. Embarquei para Macau exactamente um mês depois do 11 de Setembro. No Aeroporto de Lisboa era gente armada por todos os lados, medidas de segurança excepcionais para tempos que, à época, eram uma assustadora novidade. O terrorismo que nos entrava pelas televisões costumava ser uma coisa circunscrita a causas, a certos países, a questões políticas e territoriais. Aquelas metralhadoras todas não faziam qualquer sentido, mas é assim que se reage ao medo. No torpor de quem voa para o desconhecido, não foi difícil deixar esse terror para trás. Deste sofá confortável onde estou, protegida pela nossa pequenez e simplicidade, por esta neutralidade histórica conquistada por nos deitarmos com Deus e com o Diabo, fui vendo o mundo que cabe no meu campo de visão ser bombardeado sem razão. Morreu gente que ia para o trabalho de manhã e que tinha acabado de deixar os filhos na escola, morreu gente que ia a ouvir música boa e música de duvidosa qualidade, morreu gente que saiu de casa chateada com o marido ou com a mulher, morreu gente que saiu de casa a amar, morreu gente que tinha ido fumar um cigarro, morreu gente sozinha e gente acompanhada. Morreu gente só porque sim. Destes soldados rasos não sabemos o nome, porque nem sequer se tinham alistado. Não tinham ido para a guerra; a guerra é que foi ter com eles. Os livros de história já não nos contam todas as formas das guerras e os dicionários ainda não foram capazes de encontrar uma definição para este terror, que é quase normal mas que não pode ser a norma, mais um, mais uns, mais muitos. No dia em que pensarmos que foi apenas mais um, não saberemos o que dizer aos nossos filhos.
Leocardo VozesLoucura, santa loucura [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]iva! Reside em Macau, e não é maluco? Bipolar? Esquizofrénico? É normal, portanto. Ora, nem sabe o que está a perder, pois em Macau vale a pena ser louco. Nem que seja um bocadinho, mas quanto mais melhor. Garantidamente ninguém se mete consigo, enquanto que se der o caso de ser uma pessoa normal, arrisca-se a ter que prestar contas à Polícia, ao Ministério Público, à Auditoria, ao CCAC, tudo! Macau é “no country for sane men”. Lembram-se daquele idoso sem abrigo que costumava ficar especado no meio do Largo do Senado a emanar um intenso odor a urina? Muitos anos passaram, e o senhor muito provavelmente já terá ido ter com o criador, mas na altura em que era um enfado para residentes e turistas, chegou a haver quem tivesse interpelado as autoridades e chamado a atenção para o caso. Resposta da polícia? “O senhor tem o direito de estar ali, se quiser”. Viva o segundo sistema, onde se consagra o direito de se revelar o que vai quer na alma, quer na bexiga. Atendamos ao exemplo do “estranho amarelo”, como é conhecido entre locais e turistas aquele indivíduo que quase diariamente pontifica na Avenida da Praia Grande, e debitar altos decibéis de poluição sonora através de uma grafonola rachada, e a exibir danças tribais entre no meio da estrada, entre os sinais vermelhos para o trânsito. Experimente o leitor desatar a berrar a meio do dia naquela artéria da cidade, e em menos de cinco minutos tem a polícia à perna. Um dia destes alguém partilhou nas redes sociais uma imagem do referido indivíduo a viajar num transporte público com todo o aparato que o acompanha – cartazes, megafone, roupagem estúpida, tudo a que tem direito. Tente o leitor entrar num autocarro com duas malas de viagem, e vai ver como é dali escorraçado em menos que nada. O pior mesmo é quando a loucura parte de onde menos se espera, ou de onde nunca deveria partir. Ainda esta semana os Serviços de Saúde (SS, e nem por acaso) anunciaram um sistema de delação, onde se encoraja os residentes a denunciar quem estiver a fumar em espaços proibidos para o efeito. Ora isto de fumar não é bem a mesma coisa que montar uma barraca de farturas, e já consigo imaginar a situação: – “Ah ah! O senhor está a fumar aqui, onde não é permitido?” – “Sim…olhe não sabia”. – “Ai não? Então olhe, fume devagarinho que eu vou ali chamar o fiscal!” – “E se entretanto eu acabar o cigarro?” – “Acenda outro!” Claro que a excepção seria sempre para o estranho amarelo. Esse bem podia estar a fumar numa maternidade ou no Macau Dome, e ninguém dizia nada. E do que me estou eu a queixar? Ora essa, de coisa nenhuma. A loucura é que está a dar, garanto-vos, ou não me chame eu Napoleão Bonaparte. PS: Realizam-se as eleições no Reino Unido, numa altura em que o país está mergulhado numa onda de insegurança devido a mais um atentado levado a cabo em Londres no último sábado, e uma outra de incerteza devido ao Brexit. Fico a torcer para que a partir de hoje a sra. Theresa May passe a uma (infeliz) nota de rodapé da História. E não, agora não é loucura.
Sérgio de Almeida Correia Manchete VozesAnálise sobre concessões de jogo: Pensar com tempo [dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] medida que o tempo se escoa e se aproxima o termo dos contratos vigentes de concessão e de “subconcessão” para exploração dos jogos de fortuna ou azar em casino, aumenta o número de questões que se coloca em relação ao seu futuro, assistindo-se a uma movimentação dos escudeiros ao serviço dos interesses dos empresários directa e indirectamente associados à indústria do jogo. Há tempos, correspondendo a um simpático convite que me foi dirigido, tive oportunidade de alinhavar algumas ideias preliminares sobre o futuro das “subconcessões”, referindo alguns pontos que a título introdutório me pareceram pertinentes avançar desde logo. Agora importa desenvolver um pouco mais essa reflexão, em português para evitar dúvidas, até para que o debate público em torno das questões que se levantam possa ser feito em tempo útil. De maneira a que amanhã não me venham perguntar, nem haja quem de boa ou de má fé se questione sobre quais os interesses que represento, clarifico de antemão que não trabalho, directa ou indirectamente, para nenhum operador da indústria do jogo, nem para o Governo da RAEM, não represento os interesses de nenhum cliente nesta matéria e não sou pago pelo jornal. O que se segue é fruto de uma breve reflexão que entendo dever ser feita em voz alta para que seja socialmente útil e permita aos cidadãos de Macau aperceberem-se de alguns contornos menos claros da situação actual que requerem a sua atenção e consciencialização. 1. As concessões em vigor atingirão o seu termo em 2020 e 2022. Pelo menos teoricamente as subconcessões deverão expirar na mesma altura. Seria de todo desejável que também na prática assim fosse para dessa forma se começar por corrigir a aberração legal decorrente da sua própria criação. Sem prejuízo disso, convirá que o Governo da RAEM comece já a pensar nos diversos caminhos que se lhe abrem e nas soluções por que poderá optar no momento oportuno. 2. Depois do desenvolvimento que a indústria do jogo alcançou ainda durante o século XX, da primeira revolução operada já neste século com a sua liberalização limitada, que permitiu a entrada de novos operadores, a modernização da indústria e a canalização de receitas para Macau numa escala mundialmente nunca vista e cujo grau de excepcionalidade ainda se reveste de maior importância em função da pequenez física e populacional da RAEM, é chegado o momento de ser dado o “grande salto em frente” que colocará a indústria do jogo exclusivamente ao serviço da sua população. 3. Será por isso desejável que qualquer que seja a solução escolhida esta esteja devidamente balizada pelo interesse público e por procedimentos tão transparentes que permitam a qualquer cidadão compreender a lógica subjacente às decisões sem que subsistam no seu espírito dúvidas quanto à seriedade do percurso e das escolhas. 4. Numa perspectiva externa, por outro lado, assentir-se-á que o que tiver de ser feito, para além de irrepreensível do ponto de vista legal, respeitará práticas internacionalmente aceites, dessa forma preservando a imagem e reputação internacionais de Macau numa área de grande atenção, competição e que sendo geradora de elevadíssimos proventos, qualquer que seja a escala, requer sempre avultados investimentos e a sua adequada protecção. 5. Naturalmente que o Governo da RAEM não tendo anteriormente criado quaisquer expectativas aos actuais operadores que não decorressem da lei, não só não pode sentir-se constrangido nas decisões que tiver que assumir, como tem de fazê-lo com inteira liberdade, independentemente da etnia, cor, nacionalidade ou religião dos lobbies de interesses. 6. Se assim é, um governante consciente começará por decidir se é conveniente (ou não) prosseguir com o actual modelo. Quanto a este ponto, entendo que o que temos não é o que mais convém a Macau. Já esclareci noutra sede que o regime das subconcessões para além de ilegal não traz benefícios que as justifiquem, havendo conveniência em que se lhes ponha termo. Ao mesmo tempo, afigura-se necessário preservar a competição entre operadores. Há por isso interesse em alterar a actual lei do jogo e aumentar o número de licenças, as quais deverão sempre ser outorgadas directamente pelo Governo da RAEM. 7. Acredito, assim, que o número de operadores poderia ser alargado até oito, sem que haja qualquer obrigatoriedade no final de se atribuir este número. Em função do que entretanto vier a acontecer e das circunstâncias do mercado, e respectiva procura nos contextos interno e externo, aprovada a alteração da actual lei o Governo ficaria com a liberdade de no momento julgado adequado colocar a concurso o número de licenças que entendesse. 8. O que se vem de referir poderia, numa primeira fase, respeitar o previsto no art.º 2.º da Lei 16/2001. Isto é, obedecer à forma de um concurso limitado com prévia qualificação – teria de ser sempre por concurso público, pois foi o que o legislador consagrou e é numa perspectiva de transparência e combate à corrupção o mais conveniente – no qual participariam apenas os actuais titulares de licenças. 9. Terminada esta fase, caso o Governo da RAEM entendesse que as propostas avançadas estariam aquém do desejável em matéria de contrapartidas, então seria aberto um concurso público internacional em que poderiam participar todos os interessados que cumprissem com o caderno de encargos. 10. Logo na primeira fase, o Governo da RAEM esclareceria qual o modelo de exploração e/ou gestão que mais conviriam. O actual modelo de gestão poderá ser melhorado e a gestão, revertendo os actuais casinos, tal como previsto na lei, para a RAEM, poderia, inclusivamente, ter uma natureza mista, sendo entregue a sociedades com a participação de capitais privados e públicos, ainda que estes em valor mínimo. 11. Depois, é preciso apontar as prioridades em matéria de realização de investimentos e contrapartidas. Não penso que haja interesse em que o número de hotéis de cinco estrelas continue a crescer indefinidamente. Mesmo prosseguindo numa política de conquista de terrenos ao mar, é agora mais importante melhorar as condições de vida dos residentes. Isto conseguir-se-ia com a canalização de investimentos para áreas mais carenciadas e onde é urgente realizar novos investimentos, como seja a criação de mais e melhores infra-estruturas de cariz social e cultural, fora dos resorts integrados onde estão os casinos. Há falta de espaços dedicados à cultura, centros de exposições, bibliotecas, esplanadas. É urgente uma aposta na renovação do tecido urbano que passe pela recuperação e manutenção de edifícios e espaços públicos, muitos precocemente degradados e dando uma imagem terceiro-mundista da cidade; também numa melhoria substancial da rede viária e do sistema de transportes de Macau, obrigando à substituição das miseráveis carcaças poluentes que aí circula por autocarros amigos do ambiente, patrocinando com as entidades públicas acções de formação de condutores de pesados e de táxis, investindo em parques de estacionamento públicos em locais onde fazem falta, contribuindo para a melhoria do sistema de saúde através da aquisição de equipamentos de última geração, fomentando uma melhoria da formação do pessoal clínico e auxiliar, incentivando a investigação científica e a produção literária, artística e cinematográfica, tudo de acordo com padrões internacionais reconhecidos. Ou seja, o tipo de investimentos que deverá ser exigido futuramente aos concessionários terá de ser de natureza diferente dos actuais e negociado caso a caso em razão das necessidades. 12. Uma reforma de médio prazo passaria também pela criação de uma entidade independente de supervisão e regulação do jogo, moderna e com funções distintas das que devem ficar cometidas à actual Direcção da Inspecção e Coordenação de Jogos. Essa entidade deverá ser capaz de pensar o jogo para além da conjuntura, aconselhando os poderes públicos sobre a matéria, estando capacitada com um corpo técnico de elite, bem pago para evitar tentações, e vocacionado em exclusivo para tratar das questões atinentes à indústria, mas deixando a fiscalização em concreto das actividades para a actual DICJ ou uma outra entidade. Muitas outras questões poderão ser equacionadas e discutidas. Para já vamos pensando nestas.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA pobreza e a dinâmica das democracias “The concern that poverty and economic inequality pose a threat to the quality and even survival of democracy has taken on new urgency in recent years.” “Poverty, Inequality, and Democracy” – Francis Fukuyama, Larry Diamond and Marc F. Plattner [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntender as origens do autoritarismo político é de vital importância para as modernas democracias. Os últimos trabalhos em psicologia evolutiva, sugerem que a preferências das pessoas, podem ser uma resposta biológica a duras experiências nas primeiras etapas de vida. Quem viveu a pobreza na infância mostra uma marcada tendência para na vida adulta preferir um líder autoritário. A essa conclusão muito importante. chegou um estudo sobre “A pobreza na infância cria preferência por líderes autoritários”, realizado pelo “Instituto Francês de Neurociências Cognitivas”. O que vivemos na nossa infância influencia as nossas atitudes políticas? Os resultados a essa pergunta foram recentemente publicados na revista “Evolution and Human Behavior”. Tendo sofrido da pobreza, o jovem está associada a uma maior adesão a atitudes políticas autoritárias na idade adulta, não só na população francesa, mas também, em outros quarenta e seis países europeus, e compreender as origens do sucesso do autoritarismo, é uma chave importante para a manutenção das actuais democracias. A partir do início do ano 2000, a maioria dos países ocidentais tem assistido a um aumento histórico dos partidos autoritários, e as atitudes autoritárias estão a espalhar-se em muitos partidos políticos. A análise destes fenómenos políticos é mais frequente, e tem base factores contextuais, como a crise económica ou a ameaça do terrorismo, que promovem atitudes de facto autoritárias. Todavia, pesquisas recentes em biologia e psicologia, têm mostrado que o ambiente em que um indivíduo é exposto durante a infância também, pode influenciar o seu comportamento na idade adulta. A primeira questão será a de descobrir se tais processos foram envolvidos no desenvolvimento das atitudes políticas, especificamente, analisando o efeito da pobreza na infância sobre as atitudes autoritárias. Os pesquisadores, para medir as preferências políticas, basearam-se em testes, pedindo aos participantes as suas primeiras impressões sobre rostos. Os estudos de psicologia anteriores, mostraram que as atitudes políticas influenciavam preferências por determinados tipos de rostos, e julgamentos simples das caras dos candidatos, permitia prever o resultado de eleições políticas. Os pesquisadores do “Laboratório de Neurociência Cognitiva” de França, mediram a preferência por políticos fictícios, representados por rostos modelados por computador e calibrados para representar os níveis de variáveis de dominância e de confiança. As dimensões da confiança e dominância são ortogonais entre si. Todas as combinações são possíveis, pois um rosto pode ser muito dominante e não confiável, muito dominante e muito confiável, um pouco dominante e não confiável ou um pouco dominante e muito confiável. Foram realizados dois testes, sendo um simplificado para crianças e outro para adultos, tendo participado no primeiro, quarenta e uma crianças de sete anos, que tiveram de escolher entre rostos mais ou menos dominantes e confiáveis, como o seu capitão de equipa para os liderar em uma expedição nas montanhas. O primeiro teste mostrou que crianças expostas a condições socioeconómicas desfavoráveis, preferiram capitães mais dominantes e menos confiáveis do que seus colegas, que vivem em ambientes mais favoráveis. Tendo por base este efeito precoce da pobreza, os pesquisadores ficaram interessados, então, em saber a sua influência sobre as preferências políticas subsequentes. A parceria com o “Instituto Ipsos”, permitiu medir as preferências de uma amostra representativa da população francesa (mil participantes, método das quotas) para os homens políticos, mais ou menos dominantes e confiáveis. Nesta parte do estudo, os rostos mais ou menos dominantes e de confiáveis foram apresentados aos participantes pares de forma aleatória, com a pergunta “em quem votariam? Este estudo revelou que ter vivido a pobreza durante a infância, aumentou a preferência pelos políticos dominantes e indignos de confiança na idade adulta e que, independentemente do nível de escolaridade e socioeconómico actual dos participantes. A equipa de investigação ficou finalmente e directamente interessada nas atitudes explicitamente autoritários, pedindo aos participantes para estudar o seu nível de aderência à segunda frase: “Eu acho que ter como líder do país um homem forte que não tem de se preocupar com o parlamento ou eleições é uma coisa boa.”. A análise dessas respostas mostrou que ter vivido a pobreza durante a infância, aumentou a adesão a atitudes explicitamente autoritárias, não só na amostra da população francesa, mas também em mais quarenta e seis países europeus. Através de três testes diferentes, estes trabalhos permitem destacar a importância dos factores iniciais, para determinar as atitudes políticas e assim enriquecer a compreensão das dinâmicas das democracias. As obras empíricas, durante décadas, demonstraram que a dureza do meio envolvente, afecta sistematicamente as preferências políticas. A ameaça perceptível para a segurança e as visões mundiais perigosas, de facto, correlacionam-se com o autoritarismo de direita, e os cenários de ameaça ou de guerra, induzem sistematicamente, à preferência por líderes mais altos, masculinos, dominantes e menos confiáveis. É importante, que a essa mudança de autoritarismo, também aparece como resposta a ameaças não-políticas. O patógeno e a prevenção de doenças, por exemplo, são um problema importante na evolução humana, e correlacionam-se com o grau de autoritarismo a nível nacional e individual. Em conjunto, esses estudos sugerem que a preferência por líderes fortes é uma resposta evolutiva profundamente enraizada aos agentes externos. No entanto, as sugestões do ambiente actual dos indivíduos não são os únicos sinais que afectam o comportamento. Os sinais percebidos, durante a infância são realmente cruciais para calibrar os comportamentos actuais e futuros. O ambiente da infância fornece sinais sobre o tipo de meio que os indivíduos provavelmente enfrentarão, como adultos, ou o tipo de recursos físicos que podem confiar para o seu desenvolvimento. Em consonância com esta ideia, pesquisas empíricas mostram que os fenótipos são ajustados às condições iniciais, através de trinta e seis mecanismos de desenvolvimento múltiplos. Os animais, por exemplo, que viveram um período de alto “stress” na fase juvenil, passam a estar mais orientados para o presente, e priorizam a sobrevivência imediata e a reprodução sobre os benefícios a longo prazo. As pessoas que nascem com baixo peso ou que sofrem “stress” psicossocial e interrupção familiar na infância, amadurecem mais cedo e têm o seu primeiro filho mais jovens, que o restante da população. A dureza nos estádios iniciais de desenvolvimento também induz a mudanças importantes na cognição social. Por exemplo, independentemente do seu estatuto socioeconómico, ulterior na vida, os adultos que cresceram em ambientes com elevado nível de “stress”, são mais sensíveis a ameaças sociais e emoções negativas, que podem ser adaptáveis em ambientes mais competitivos e violentos. O objectivo do estudo realizado pelo “Instituto Francês de Neurociências Cognitivas” aconselha também, estudar se as preferências dos líderes são influenciadas por sugestões de dureza na infância, independentemente das circunstâncias actuais dos indivíduos. Para testar esta hipótese, seria de confiar em uma medida robusta de dureza na infância, como a privação de recursos. A privação de recursos infantis reflecte realmente níveis mínimos de recursos e aumento da instabilidade e exposição a eventos adversos, ou seja, a privação de recursos constitui um servidor interessante para o nível de “stress” externo, experimentado durante a infância.Logo, avalia-se o impacto da privação durante a infância nas preferências dos líderes infantis, e depois avalia-se o seu efeito duradouro na idade adulta.Para medir as preferências dos líderes de forma consistente em crianças e adultos, depende da percepção dos participantes sobre os rostos, como foi efectuado.Pesquisas extensas em psicologia, de facto, mostraram que os sinais faciais são usados para escolha de líderes tanto em adultos como em crianças, e que seu uso prevê de forma confiável nos resultados eleitorais. Os estudos transnacionais e manipulações experimentais mostraram que a importância concedida a sinais faciais específicos, como confiabilidade ou domínio, é sensível a factores envolventes. Da mesma forma, as diferenças políticas da vida real entre democratas e republicanos, têm sido associadas a diferenças estáveis nas preferências faciais, ao escolher um líder. Esses resultados sugerem que a confiança das pessoas em sinais faciais específicos para escolher um líder é um “proxy” confiável das suas preferências políticas reais. No referido estudo, foi explorado o embate diferencial de dominância e confiabilidade, nos julgamentos sociais, para investigar o impacto da privação da infância sobre a preferência por líderes autoritários. Mais precisamente, foram usados rostos controlados tanto pela dominância, quanto pela confiabilidade, para medir a forma como a experiência adversa precoce, pode moldar o uso dessas duas questões faciais para escolher um líder. Finalmente, foi confirmada a associação entre as preferências dos líderes e a privação da infância, e analisado o impacto do autoritarismo extremo, auto-relatado em uma amostra nacional francesa e europeia em larga escala. O objectivo do primeiro estudo foi investigar o efeito imediato da pobreza infantil na preferência das crianças por líderes fortes. Para isso, foi adaptado um projecto experimental existente que desencadeia preferências políticas em crianças. O segundo estudo consistiu no facto dos participantes adultos, terem que escolher em quem votariam em uma eleição nacional, entre o “avatar” que defronta-se parametricamente, variando em confiabilidade e domínio. Os participantes também relataram a sua preferência por líderes autoritários, para investigar a relação entre privação na infância e as atitudes autoritárias explícitas. O terceiro estudo teve a ver com o impacto da privação na infância, sobre a preferência por líderes fortes, sendo analisado através de uma pesquisa sociológica de grande escala, realizada em mais de sessenta e seis mil entrevistados residentes em quarenta e seis países europeus. As experiências efectuadas pelos pesquisadores procuraram compreender o impacto do meio ambiente infantil nas preferências políticas. Em consonância com a sua hipótese, descobriram que viver a pobreza, durante a infância prejudica as preferências em relação aos líderes dominantes. Estes resultados são consistentes com a literatura sobre o efeito de ameaças externas sobre preferências políticas. Por exemplo, as análises de registos históricos revelaram o aumento do autoritarismo durante períodos de ameaça social e económica como a “Grande Depressão” e o final da década de 1960 e 1970 nos Estados Unidos. As ameaças agudas de 9 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos e os atentados de Londres em 2005, igualmente, foram fortemente associadas ao aumento do conservadorismo e do autoritarismo. Os estudos actuais, no entanto, sugerem que o efeito das ameaças externas é muito mais abrangente do que se pensava anteriormente. Os resultados, de facto, revelam um efeito imediato de experiências adversas precoces nas preferências das crianças, bem como, um efeito adiado nas preferências políticas dos adultos. Este efeito adiado foi evidenciado tanto na tarefa experimental como em auto-relatos, e sugere a existência de um impacto directo da dureza do meio ambiente infantil nas atitudes políticas. No entanto, não se pode excluir a existência de uma variável não observada, que poderia afectar as atitudes políticas dos adultos, e o meio ambiente infantil de forma independente. Além disso, vale a pena notar que mesmo que a descoberta tenha sido a mesma em quarenta e seis países europeus diferentes, factores genéticos, também podem ser parcialmente responsáveis pelos resultados. Na verdade, demonstrou-se que o autoritarismo é parcialmente determinado geneticamente. As descobertas presentes serão, assim, reforçadas por pesquisas futuras envolvendo choques externos em ambientes experimentais ou ensaios naturais. No entanto, para controlar factores de confusão, deviam ser incluídos vários exames nos modelos que permitissem demonstrar que o efeito da dureza do meio ambiente infantil, nas atitudes políticas é independente do estatuto actual, eventos da vida recente, nível educacional, estilo parental, bem como da confiança dos participantes em instituições políticas. Esta verificação de robustez, sugere um impacto limitado de variáveis observáveis omitidas no estudo. A ideia de que as preferências dos líderes, emergem relativamente cedo na infância e orienta o comportamento dos indivíduos durante toda a vida, é consistente com estudos longitudinais que mostram que a orientação do autoritarismo de direita é estável durante anos. Além disso, a pesquisa de imagens cerebrais mostrou diferenças substanciais, entre adultos que experimentaram ambientes com “stress”, como crianças em áreas cerebrais envolvidas em avaliações de rosto. O impacto da pobreza na infância evidenciado no estudo pode depender de mudanças profundas no funcionamento do cérebro. Além disso, os estudos também podem lançar luz sobre a base ecológica de atitudes políticas, como o autoritarismo e o seu valor adaptativo. Na verdade, demonstrou-se que as escolhas dos líderes são principalmente determinadas por julgamentos de competência. Essa associação entre a competência percebida e a escolha do líder pode explicar, porque os líderes dominantes são percebidos como mais atraentes em ambientes de elevado “stress”. Do ponto de vista ecológico, os ambientes de elevado “stress” são mais competitivos e menos cooperativos. Nesses ambientes, os indivíduos dominantes, que procuram superar os outros, são naturalmente capazes de adquirir maiores quantidades de recursos e, portanto, aparecem mais competentes. Finalmente, esses estudos podem oferecer uma nova maneira de explicar as mudanças de longo prazo nas atitudes políticas. A calibração inicial das preferências sociais de facto, sugere que a vida política não é apenas influenciada pelas circunstâncias actuais, como as recessões, guerras e actos de terrorismo, mas também pelas circunstâncias experimentadas pelos eleitores quando eram jovens. Tal pode ter um efeito protector contra as circunstâncias agravantes, quando os eleitores experimentam situações favoráveis como as crianças, mas também podem prejudicar os efeitos benéficos das melhorias actuais no ambiente pessoal. Por exemplo, no início da década de 1970, após trinta anos de prosperidade crescente, cada vez mais pessoas começaram a abraçar valores pós-materialistas, como enfatizava a autonomia e a auto-expressão. No entanto, as crianças nascidas e criadas antes da II Guerra Mundial, que sofreram a recessão dos anos trinta e as restrições da guerra, continuaram a aderir aos valores materialistas, enfatizando a segurança económica e o autoritarismo. Os países ocidentais, por outro lado, desde a década de 1970, experimentaram mais de trinta anos de estagnação económica e desigualdades crescentes. O efeito do elevado “stress” sobre as atitudes políticas das pessoas, pode ter sido atenuado, algum tempo, pela presença de grandes conjuntos de indivíduos criados durante períodos de prosperidade crescente de 1945 a 1975, e cujas atitudes políticas ainda foram influenciadas por uma infância favorável. Mas, à medida que as gerações mais novas atingem a maioridade e começam a votar, os candidatos autoritários podem tornar-se cada vez mais populares.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesTerrorismo informático [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 13 de Maio, o website “www.news.com.au” publicou uma notícia sobre um ataque informático global, desencadeado a partir do Reino Unido. Segundo a “Wikipedia” podemos definir ataque informático, ou ciber ataque, da seguinte forma: “Considera-se ciber ataque qualquer tipo de manobra ofensiva efectuada por Nações/Estados, indivíduos, grupos, ou organizações que vise atingir os sistemas de informação de computadores, infra-estruturas, redes informáticas e/ou computadores pessoais, mediante actos maliciosos praticados normalmente de forma anónima, que se destinam a roubar, alterar, ou destruir alvos específicos após descodificação de sistemas vulneráveis.” “Os ataques deste tipo podem ir da simples instalação de spywares em PCs até à tentativa de destruição das infra-estruturas de uma Nação.” No dia 20 podia ler-se no “telegraph.co.uk” que, na Grã-Bretanha, pelo menos 16 serviços de saúde (incluindo hospitais) tinham sido atingidos na semana anterior pelo ataque “aleatório” de um vírus conhecido como Wanna Decryptor. O pessoal teve de voltar a usar papel e canetas ou recorrer aos seus próprios telemóveis, depois deste ataque ter afectado sistemas chave, incluindo os telefones dos serviços. Vários hospitais ingleses viram-se forçados a recusar doentes e a adiar consultas e cirurgias. O ataque impedia o acesso aos dados dos computadores e os hackers exigiam pagamentos entre 300 a 600 dólares para reactivarem os sistemas. Nas áreas afectadas as pessoas foram aconselhadas a deslocar-se aos centros de saúde só em casos de urgência. Foram infectados mais de 300.000 computadores em 150 países. O vírus Wanna Decryptor, é também conhecido como WannaCry, WanaCrypt0r 2.0 e WCry. Muitas vezes é enviado através de emails. Quando o destinatário abre o anexo o vírus é descarregado. Esta técnica tem o nome de phishing. Assim que o computador é infectado, os ficheiros são encriptados e passa a ser impossível utilizá-los. É nesta altura que entra a chantagem. Para voltar a aceder é preciso pagar. Este deve ter sido o maior ataque do género de que há memória. Os hospitais não conseguiam funcionar, as operações e as consultas tiveram de ser adiadas até o problema estar resolvido. Todas as tarefas dependentes da utilização de computadores foram interrompidas. Os ataques informáticos são assustadores porque podem atingir o mundo inteiro, não conhecem fronteiras. Qualquer um pode ser atingido. desde que tenha um PC ou um smart phone ligado à internet. O WannaCry introduz-se no computador, modifica os programas e bloqueia a informação armazenada. A seguir, os hackers pedem dinheiro para “desbloquear” a informação. É um exemplo típico de crime informático. A actual legislação sobre crimes informáticos está apenas pensada para os “pequenos ataques” e não para os “grandes ataques”. Talvez seja chegada a hora de os legisladores virem a impor penas pesadas aos responsáveis por ataques informáticos de grandes dimensões, de forma a evitar que estes se repitam no futuro. Como os ataques informáticos podem sempre acontecer, é preciso encontrar respostas para o problema. Os peritos aconselham a fazer actualizações do sistema operativo, porque cada actualização pretende solucionar os defeitos da anterior. Quanto mais vezes for submetido a actualizações mais perfeito fica o programa. Outra ferramenta importante é a utilização registada. Hoje em dia, em Hong Kong e em Macau podemos comprar cartões sim a qualquer operadora e usá-los para estabelecer uma ligação dos dispositivos móveis à net, sem necessidade de qualquer registo. Mas, na China, o registo é obrigatório. Se todos os utilizadores da internet tiverem o seu nome registado junto das autoridades competentes, sempre que haja uma suspeita a polícia pode verificar. O registo facilita a investigação. As cópias de segurança dos ficheiros são também altamente recomendadas. Se sofrer um ataque, pode reinstalar o sistema operativo e os ficheiros e volta tudo a funcionar normalmente. Mas se lhe apagarem ou bloquearem a informação e não tiver cópias de segurança vai passar um mau bocado. E correndo o risco de parecer repetitivo, volto a lembrar, as cópias de segurança são a melhor forma de proteger a sua informação. Com antivírus mais sofisticados, também pode eliminar estas ameaças do seu computador. A prevenção é sempre a melhor defesa. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesMais Amor [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á não é a primeira vez que me debruço sobre a temática do amor, e muito provavelmente não será a última. O amor sustenta as complicadas relações humanas, não fossem estas necessárias para a nossa sobrevivência. Digo isto porque nós, seres humanos, para além de dotados de uma cognição individual, somos parte de um colectivo material e imaginário que cria e recria os nossos significados e conteúdos que mantêm a nossa espécie – graças às nossas capacidades relacionais. Por seu turno, o amor romântico é a tentativa supra-relevadora de levar os nossos significados, facilidades ou dificuldades a uma interacção a dois. Imaginem-se a dançar um tango em contexto de competição sem nunca sequer ter tido aulas de dança! Acho que os relacionamentos românticos podem partilhar um misto de excitação e de nervoso miudinho, ao mesmo tempo que percebemos que não sabemos o que raio estamos a fazer, nem com o amor, nem com as pessoas que amamos. Mas quando percebemos e começamos a afinar algumas das aprendizagens… então aí o amor consegue transportar os relacionamentos humanos ainda mais além do espaço e do tempo, e de uma forma ainda mais intensa. Uma coisa que já reparei é que ninguém ensina ninguém sobre o amor e sobre o quão difícil os relacionamentos podem ser. Por isso é que esta semana me disponho a tomar essa posição explícita: o amor não é fácil. Não é fácil de encontrar e também não é fácil de ser mantido no tempo, com as mesmas formas e características. O amor está sempre em mutação, seja porque é uma representação social (da sociedade) sempre sujeita a vectores discursivos ou seja porque cada um vive (percebe) o amor à sua maneira e depois tenta fazer sentido em conjunto, com um parceiro. Talvez porque o amor é daquelas invenções humanas que nunca esteve destinado a ficar-se por um estado estático e aborrecido. Iniciado o mote, gostaria de alertar que o objectivo não é assustar ninguém acerca da exequibilidade do relacionamento amoroso, porque disso não tenho dúvidas que seja possível. Contudo, acredito para que de facto isso aconteça é preciso trabalho, trabalho, disponibilidade, disponibilidade, este mantra sucessivo, esta lenga-lenga interna de que são necessários alguns cuidados para que as coisas possam funcionar. Tudo o resto nos diz que o amor é mágico, maravilhoso e fácil. As pessoas conhecem-se, dão-se muito bem, querem-se muito ou precisam-se muito e embarcam numa aventura amorosa et voilá! Mas temos que reforçar que nem mesmo um perfeito fit inicial pode ser um preditor de um relacionamento para a vida… Vão sempre acontecer percalços, que serão mais do que supérfluos, vão ser profundos. Ao relacionamento trazemos as nossas características positivas, mas também levamos a nossa bagagem emocional, fruto de experiências pouco agradáveis, mas que tentam formatar as nossas cabeças para lidar com os outros. O amor nasce, por isso, de uma aprendizagem pela intimidade e cumplicidade que se acompanha dos nossos medos. Estas são dificuldades relacionais e emocionais que todo o mundo tem. Garanto-vos que não há homo sapiens neste planeta que esteja limpo de problemazinhos que afecta a forma como nos vemos e vemos os outros. Eu gostava que me tivessem dito isso, que os nossos problemas e complicações voltam sempre, mesmo que tenhamos conhecido o parceiro das nossas vidas. E que aprender a lidar com estas coisas faz simplesmente parte do processo e não há mal nenhum nisso. Mas é preciso que as expectativas em relação ao amor romântico estejam adequadas. O amor não nos salva de estarmos sozinhos, ou de todos os males que nos assolam, mas ensina-nos a estar em conjunto e em parelha. Desde que consigam manter a lenga-lenga de que um relacionamento romântico e sério exige trabalho e suor, posso dar-me por satisfeita. Porque precisamos sempre de mais amor, o amor nunca está de menos. Mas saber lidar com ele é como domar uma fera que só conhece a excitação dos espectáculos de circo e que agora lida com o mundano, com o quotidiano, e com as dificuldades emocionais de cada um. O amor que nos traz o êxtase, também nos traz insegurança e é esse o desafio que temos que aprender a ultrapassar. Precisamos sempre de mais amor, e depende de ti adicioná-lo. Aqui e ali, e no mundo.
Fa Seong A Canhota VozesEstamos a viver “juntos”? [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre os 640 mil habitantes de Macau, além de residentes locais, vivem quase 180 mil trabalhadores-não-residentes (TNR). Este número abrange pessoas das mais variadas proveniências, com destaque para a maioria que vem do interior da China. Os restantes chegam das Filipinas, da Indonésia, do Vietname, entre outros lugares. Entretanto, quando se usa o termo “nós, pessoas de Macau” estão abrangidos esses não-locais? Neste território é fácil encontrarmos TNR quase todos os dias, são empregadas domésticas, seguranças, empregados de mesa, trabalhadores de construção. Todas posições tipicamente consideradas de classes baixas. No entanto, entre eles quem sabe se não haverá licenciados, profissionais de áreas que são normalmente ocupadas pela classe média ou alta. Pessoas com baixos vencimentos nos seus países de origem e que escolheram Macau apenas com o objectivo de ter vencimento superior, mesmo empregados em trabalhos aborrecidos. Apesar da contribuição para muitos sectores económicos de Macau, damos sempre prioridade a “nós cidadãos”, “nós residentes”, procuramos, a toda a força, proteger os direitos dos trabalhadores-residentes, em privilegiarmos os locais. Mas alguém pensa em proteger os também habitantes de Macau desprovidos da qualidade jurídica que a residência confere? O mais absurdo é que por cá existem pessoas que pagam apenas uns poucos milhares de patacas à sua empregada doméstica mas querem um controlo digno de escravidão. Obrigam-na a dormir em casa deles, não a deixam sair, não a deixam fazer amigos, especialmente, para amigos que se possam converter em namorados e futuros pais dos filhos das empregadas. Os patrões têm o poder sobre as empregadas e exercem-no de forma a que estas façam tudo o que lhes é exigido, e devem fazê-lo bem, sob pena de serem facilmente substituídas. Esta é uma situação que se espelha na grande procura de empregadas domésticas das Filipinas, e de outros países, em Macau. Esta circunstância coloca as empregadas numa posição frágil, não podendo queixar-se de maus tratos, tendo de aguentar o sofrimento sem reclamar. Eles também são humanos, são adultos como nós, também têm direito a viver normalmente, também fazem parte da sociedade de Macau, estamos ligados mas, por vezes, nós ignoramos essa ligação. Não entendemos porque é que os TNR dos países Sudeste da Ásia se juntam sempre no Lago Nam Van para conversar, cantar e dançar, apenas nos focamos no barulho que podem fazer. Não percebemos que eles estão longe de casa e da família, que precisam de fazer amigos, que precisam de rir e relaxar, tal e qual como nós. Neste pequeno território vivemos em conjunto, mas parece que não existe um ponto de intersecção entre os dois lados. Os TNR continuam a fazer as suas actividades sem a participação dos locais, e quando nós realizamos as nossas actividades, parece que não os temos em consideração. Vale a pena repensar estas relações, avaliar se se podem manter assim, ou se podem avançar para outro patamar.
António Saraiva VozesPó… PóPó… PóPó… Pó… Multas e mais multas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há muito um responsável policial afirmava na TV que o número de multas nos parquímetros era muito elevado. E concluía que tal se deve às multas serem muito baixas. Isto é, a possibilidade de os condutores não terem acordado a tempo – nem ao domingo há descanso, há que pôr as moedinhas logo a partir das 9 horas da manhã – se terem esquecido de pôr moedas, ou estarem em reuniões ou outras actividades que não puderam interromper – é simplesmente descartado como uma “não existência”. Como os cidadãos são, tanto quanto possível, cumpridores, há que “aproveitar” as horas em que, por esquecimento ou preguiça, será mais provável colher os cidadãos em falta…por exemplo às 9h e 10 m da manhã, ou às 9 horas da noite…ou certas situações – por exemplo quando os carros vão a entrar para os parques de estacionamento…Às 2 horas da manhã da noite de Natal andava um Polícia a multar junto ao Parque Central da Taipa!!! Back to basics Temos de voltar ao “básico” – e assim enunciar a noção fundamental, a nunca perder de vista – as leis são para FACILITAR A VIDA AOS CIDADÃOS, e não para lhes impor cargas desnecessárias. Assim – para que servem as proibições de estacionamento? Para encher os cofres do Governo não será, porque este de tal não precisa. As proibições servem para a) Manter a fluidez do trânsito, impedindo que as ruas, ou as saídas de garagens sejam bloqueadas por veículos; b) Possibilitar uma rotação dos lugares de estacionamento, uma vez que estes são escassos e não é justo que alguns os utilizem em permanência, impedindo os demais de estacionarem. c) Manter livres os passeios, de forma a assegurar a passagem de peões, carrinhos de bebé, cadeiras de rodas, etc. Circular e parar Mas o manter a fluidez do trânsito é apenas metade do problema – se os cidadãos têm carro é para o utilizarem – para irem tratar de negócios, transportarem materiais, levarem ou buscarem os filhos à escola (ou às “actividades”), fazer compras, ir ao Hospital…etc. Isto é, e em resumo: CIRCULAR É TÃO IMPORTANTE (ou “é indissociável” de) QUANTO PARAR. Ora este segundo aspecto parece estar ausente das preocupações dos nossos responsáveis pelo trânsito. Nenhuma escola tem um local para deixar as crianças – junto à porta há traços amarelos contínuos que impedem a simples paragem. Que fazer se quisermos deixar ou buscar uma criança à Escola Portuguesa?? Entrar para a lista dos prevaricadores?? E a lista dos locais onde só se pode estacionar ilegalmente não se limita às Escolas – os supermercados, os Centros de Saúde, as lojas de materiais de construção, etc., não têm local de estacionamento – quando muito um simples traço amarelo interrompido. Mas quem deixe o carro por momentos para acompanhar um doente ao Centro de Saúde, ou para ajudar a mulher a trazer os sacos até ao carro está sujeito a uma multa. Não se trata de suposições, mas de situações concretas que me sucederam. No caso do Centro de Saúde bem pude mostrar ao Polícia o papel da Consulta – mas em vão. A “Marca Amarela” Este desconhecimento da realidade, aliado a certa falta de preparação, é evidenciado pela proliferação das linhas amarelas. Como a lei, em meu entender, é para ser cumprida, um traço amarelo só se justifica em vias estreitas, ou muito movimentadas – situações em que a paragem de veículos causaria problemas graves à fluidez do trânsito. Mas a “marca amarela” chegou a ruas onde um veículo pode estar parado meia hora sem causar o menor problema de trânsito, o que evidencia bem a ligeireza/falta de critério com que foi colocada. A “marca amarela” chegou até a vias sem saída, como nos Jardins de Lisboa, ou os parques de estacionamento! como no caso do parque junto ao Parque de Seac Pai Wan!. Assim vêem-se não poucas vezes cidadãos a correrem esbaforidos para o carro para evitar multas, o que, convenhamos, os põe numa situação pouco digna, mais própria de crianças que de homens ou mulheres. Duas sugestões Com todo este arrazoado pode o leitor pensar que sou um anarquista militante. Nada mais longe da verdade (bom, como bom português tenho sempre uma costela anarquista…). Mas tenho de afirmar que, das muito numerosas multas que levei não considero mais que três ou quatro “justas”. E para demonstrar que não estou apenas esbracejando – propus inclusive à Direcção de Assuntos de Tráfego que fossem criados “estacionamentos de curta duração” (máximo de 30 minutos e uma pataca por cada dez minutos). E complementando esta ideia poderiam os serviços de tráfego rever as linhas amarelas contínuas e substituírem-nas por linhas tracejadas, sempre que as contínuas não fossem absolutamente necessárias; e os polícias passariam a deixar um aviso nos carros estacionados nestes locais e voltariam ao fim de 10-15 minutos, só então multando as viaturas. Também no espírito de não dificultar demasiado a vida aos cidadãos, não se colocariam imobilizadores (trancas) nos veículos estacionados em parquímetros (os imobilizadores de veículos podem traduzir-se em prejuízos graves para os condutores/proprietários desses veículos); quando muito haveria nova multa passadas duas horas. Por vezes tenho a sensação que se quer tornar Macau uma cidade “perfeita” sem lixos e sem conflitos (assunto que mereceria outro artigo). Mas, como já ensina o Taoísmo, quanto mais leis mais imperfeições.
Isabel Castro VozesOs mal-agradecidos [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hamando os bois pelos nomes: sabemos todos perfeitamente que, em Macau, há duas ou três características que contribuem de forma significativa para o sucesso profissional. Entre as mais relevantes encontra-se a quantidade de tios e primos e maridos e mulheres em cargos importantes. Nos dias que correm, pesa também muito o facto de se ser portador de um cartão de plástico, feito de material inteligente de cor esverdeada, que garante o gozo à residência. Gente da terra e de boas famílias é o que se quer à frente (e atrás) das coisas de Macau, públicas e privadas. São atributos que, claro está, dão a quem os tem capacidade de visão, sagacidade e inteligência. Se a eles juntarmos um master feito num gueto universitário no estrangeiro, teremos um doutor. Um doutor talentoso de uma competência inquestionável, à prova de ideias alheias e novíssimas correntes de pensamento e acção. Por confiar muito nos nados e criados na cidade, filhos de bons pais e boas mães, quem manda não tem grandes preocupações. As coisas fazem-se ao ritmo do calor, quem manda também é filho de boa gente e é filho da terra, o que importa é que hoje estamos todos melhor do que antes, haja patacas para distribuir, sejam gordas as estatísticas e os yum-chas, que o resto logo se vê. E foi assim que os anos aconteceram. E foi assim que, entre regulamentos administrativos, circulares internas e leis complicadas, se foi decidindo a cidade. Se tem lei faz, se não tem lei espera. Se está na lei pode ser, se não está pode ser também, mas diferente. Se tem poder obriga, se não tem poder vira as costas e vai embora falar com os amigos. Se tem dinheiro compra, se não tem dinheiro arranja, que ele abunda por aí. Há alturas em que tenho dificuldades em acreditar no que leio. Esta semana houve alguém que trabalha no Instituto Cultural que relativizou a importância dada ao Porto Interior e à preservação dos edifícios daquela área do território. Macau nasceu em Mong Ha e nasceu ali naquele porto, foi por ali que se chegou e se foi embora. Ao longo de séculos, eram de todos os lados. Entre os que vieram estão os antepassados daqueles que se dizem da terra, como se a terra fosse pertença de alguém. É uma história demasiado batida: alguém avisa e está inacreditavelmente só no aviso. Quase que cai no ridículo por pensar de forma diferente, tão espantadas e escancaradas são as bocas perante o alerta. Depois, quase que como por magia, outras almas juntam-se à prece, fazem-se duas ou três petições e alguém manda parar a grua quando metade da casa já veio abaixo. Ou então não. Tenho a sorte de ter nascido num país que rebenta história pelas costuras, apesar de as ganâncias imobiliárias terem contribuído para desfigurar várias urbes. Nas cidades onde vivi, não faltam pedras antigas para falarem do início de tudo. É também por causa das portas velhas que sei de onde sou sem que ninguém me tivesse enfiado um compêndio de história entre as orelhas. Tenho ainda a sorte de ter nascido num país de portas mais abertas do que as da terra onde hoje vivo. Quando não se sabe ou se quer diferente, vai procurar-se noutro lado. E foi assim que se fizeram hospitais, universidades, centros de investigação, casas para as artes. Com os de lá e de todos os outros sítios, pensou-se no que se quer ser porque não existem dúvidas sobre o que se é, tão fortes são as marcas do passado. Quem é de cá, independentemente da quantidade de passaportes que guarde em casa, deve ter o direito a saber de onde vem, a sentir de onde vem, apenas por aquilo que vê, cheira e toca. Deve poder mostrar aos filhos e netos e bisnetos e todos os outros que estão para vir os pedaços de chão na origem deles, na origem deste mundo que começou ali à beira-rio.
Leocardo VozesDia do adulto (com birra) [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]is-nos em Junho! Chegou o Verão, e com ele chega o calor insuportável, a chuva das monções, os tufões, e o período em que começamos a contar os dias até desopilar daqui para fora por um mês ou menos, para “arrefecer o radiador”. Espero ainda que tenham aproveitado bem o feriado do Barco Dragão, da última terça-feira, que agora o próximo é só em Outubro. Sim, e para quem está no rectângulo, lembre-se de nós, “os sortudos de Macau”, quando estiver a levar a cabo as sardinhadas, os arraiais, os concertos pimba e tudo mais que arranca em Junho e só acaba em Setembro – e depois ainda se arranja mais qualquer coisinha, aposto. Enquanto isso, é Macau porta-fora, porta-dentro. Ainda na segunda-feira de manhã saí de casa todo bem disposto, com aquela sensação de “falsa sexta-feira”, pois no dia a seguir era feriado. Eram oito e meia da manhã, uma hora perfeitamente razoável para percorrer 1200 metros a pé até ao buliço. Ou seria, não fossem os percalços começar logo à saída da porta. Um vizinho meu partiu recentemente uma perna (coitado) e resolveu nesse mesmo dia sair de casa à mesma hora que eu, acompanhado da anda de metal, proporcional à sua larga moldura, uma perna no chão e a outra pendurada (outra vez, coitado), a mulher a dar-lhe o braço, e atrás vinha o seu pai, com a cadeira de rodas. Isto tudo para caber dentro de um elevador com uma área de seis metros quadrados. Saindo dez ou quinze minutos depois para ir passar a manhã toda a apanhar o tão necessário solinho, não me deixava a rogar-lhe pragas o dia todo. Até porque depois o elevador pára noutros andares, e lá vão as mui-muis e os pi-pis, acompanhados das avós e das empregadas, e normalmente nunca falta aquele senhor obeso que entra no quarto andar para sair na garagem dois pisos abaixo. É por isso que é gordo. Curiosamente em matéria de civismo ganha o meu vizinho do sétimo andar, um taxista dono de um cão daquelas raças tipo “mastim”, e que nunca entra no elevador se estiver acompanhado do animal. Trata-se aqui de uma muito honrosa excepção. Depois na rua é outra aventura. A desvantagem de trabalhar quinze minutos a pé de casa é não se poder alegar um atraso por “greve dos transportes”, porque aqui também não há (greves, pois os transportes “vão havendo”). Mas andar na rua já foi mais fácil. Ainda nessa tal segunda-feira passada, evitei um individuo que vinha na minha direcção direito que nem um foguetão norte-coreano, enquanto olhava para o infinito, certamente à espera de ver a deusa A-Má montada num dragão. Enquanto noutros pontos podíamos sensibilizar o indivíduo no sentido de “olhar para onde anda”, nestas situações o melhor mesmo é ligar o escudo anti-míssil, e irmos à nossa vida, para evitar conversas de surdos. Finalmente o último terço do percurso, mais sinal ou menos sinal vermelho lá se vai chegando a horas, por entre uma multidão de gente com a cara espetada no telemóvel a ler os comentários às fotografias pirosas que partilharam no fim-de-semana, ou a jogar ao “Bubble-qualquer-coisa” no Facebook. É tudo gente muito ocupada, a quem ainda foram dar essa enorme chatice que é ter que ir de manhã para o emprego. É a esses heróis que dedico este artigo, e não é com este discurso de tosse de catarro que estou a tentar educar ninguém. Sabe bem desabafar, e ainda por cima hoje tenho um desconto; se é o dia mundial da criança, porque não também do adulto com birra?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSabem o que aconteceu durante a semana passada? [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]abem? Não? Permitam-me que me refira a alguns eventos relacionados com sexo e género dos últimos dias. Hoje cá me fico a enumerar e a comentar muito brevemente o que se passou, que poderá (mais ou menos) ter passado despercebido. 1. Mais direitos LGBT a Taiwan! Pois é, confesso que não estava a espera de ver acontecer tão cedo em países asiáticos. Foi com imenso orgulho e satisfação que recebi a notícia de que Taiwan tornará o casamento homossexual uma realidade. Haver reconhecimento constitucional e político das minorias sexuais, é um passo gigante na luta contra o preconceito que ainda ronda. Quando este reconhecimento ainda não existe, como em Macau, é normal que as pessoas se sintam privadas de direitos, ou, se sintam ‘cidadãos de segunda’. Estas conquistas são ainda mais importantes quando pensamos que ainda durante esta semana, na Indonésia, dois rapazes foram chicoteados 83 vezes em público (a sanção original era de 85 chicoteadas mas como passaram dois meses na prisão, retiraram-lhes duas) porque foram apanhados a fazer amor. Na Chechénia ainda existem campos de concentração com o único propósito de maltratar e ‘re-educar’ homens homossexuais. Com este clima internacional, é com ânimo que ouvimos acerca desta tão merecida conquista da comunidade LGBT. 2. Mexeu com uma, mexeu com todas Vou mudar o foco geográfico para esta: sabem o que aconteceu na queima das fitas do Porto este ano? Muita bebedeira, como sempre. Entre outros incidentes que vocês possam imaginar, é lançado um vídeo num autocarro, com imensa gente a assistir, do que parece ser uma clara prática de abuso. Um miúdo (com o apoio da sua turminha) abre a braguilha das calças de uma rapariga que está completamente ‘fora’ de bêbeda, e começa a tocá-la, enquanto riem de gozo. Ora, este infeliz incidente expôs uma discussão muito séria na esfera pública portuguesa: afinal o que é abuso? O que é consentimento? As respostas dos media e da sociedade em geral não foram muito satisfatórias, daí que tenha incentivado um pequeno movimento de ‘mexeu com uma, mexeu com todas’. Em várias cidades portuguesas mulheres e apoiantes da causa juntaram-se para dar voz contra o machismo e à objectificação feminina que ainda existe. Mas há quem conteste, há quem ache que essa luta não tem fundamento. Mas sempre que continuem a culpabilizar as mulheres por agressões sexuais (como alguns cronistas portugueses o fizeram) lá estará o activismo, o feminismo, a gritaria, e o pessoal todo de bom senso a fazer uso da sua voz para desconstruir a discriminação de género. 3. Higiene Menstrual O dia da higiene menstrual celebra-se a 28 de Maio. Poderão pensar, porque raio haveria de existir tal dia? Então, lembram-se de eu já ter dedicado algumas palavras ao tabu que é a menstruação? Pronto, por causa disso, as pessoas acanham-se de falar acerca dos cuidados a ter e as formas mais saudáveis de lidar com a menstruação. Há casos extremos, como o Nepal. O Nepal é um país com a crença de que uma mulher menstruada é mau agoiro. Por isso, as mulheres da família, uma vez por mês, são obrigadas a dormir fora das suas casas, são proibidas de tocar em frutas ou plantas para não ‘matá-las’ e não podem atravessar o rio porque ficam amaldiçoadas. Claro que o Nepal tem crenças bastantes extremas, mas eu cresci a ouvir de que mulheres menstruadas não deveriam tentar fazer bolos, porque vai correr mal, e que não podiam estar próximas de instrumentos de corda, porque as cordas poderiam rebentar. Não é só o mundo rural ou em desenvolvimento que precisa de um toquezinho ou outro acerca da menstruação, como podem ver. É um fenómeno global. Até as mulheres mais citadinas e melhor informadas não sabem tudo acerca das suas menstruações. Soube há pouco tempo que casos sérios de síndrome pré-menstrual estavam a ser vulgarmente confundidos com doença mental, como distúrbio bipolar e depressão. Até a nossa medicina parece estar pouco à vontade com os assuntos relacionados com o nosso ‘sangramento’. E pronto. Esta foi a semana, para a próxima há mais.
Rui Flores VozesTrump e a tentação autoritária [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s primeiros tempos de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos da América (EUA) têm levado diferentes autores a analisar os efeitos para a democracia das decisões e do estilo do novo presidente republicano. O périplo pelo Médio Oriente e pela Europa que Trump acaba de concluir poderia constituir um capítulo aparte nessa análise, tal foi a panóplia de gestos e mensagens que merecem reflexão e que nos mostram um homem profundamente focado nele próprio, condicionado pela sua limitada capacidade de compreender os outros e talvez ainda maior incapacidade de contribuir para soluções não conflituosas. Antes desta viagem, três académicos norte-americanos, Robert Mickey, Steven Levitsky and Lucan Ahmad Way, perguntavam provocadoramente na Foreign Affairs se os Estados Unidos ainda eram um local seguro para a democracia. Segundo eles, o mundo, mas particularmente os EUA, anda a assistir ao desenvolvimento de um “autoritarismo competitivo”, um sistema no qual as instituições democráticas existem, mas não conseguem funcionar na sua plenitude, pois o governo abusa do seu poder para enfraquecer os seus opositores, com consequências muito negativas quer do ponto de vista político quer em termos de desigualdade social. Este sistema autoritário é caracterizado por um número de traços que lembram práticas antigas de alguns líderes africanos, atentatórias do Estado de Direito, que foram sempre alvo da mais veemente condenação pelas organizações internacionais. Um dos primeiros enfraquecimentos da democracia passa pela politização dos órgãos do Estados com o objectivo de atacar a oposição. Pôr-se, por exemplo, os órgãos de justiça a investigar elementos da oposição. Mas todos, quer a procuradoria, quer a polícia criminal, quer os serviços secretos. O controlo da administração pública é feito pela nomeação para lugares de chefia de pessoas próximas do partido no poder. (É pratica comum nalguns países – e aqui os Estados Unidos não são uma excepção – a mudança de cadeiras nas estruturas intermédias e superiores da função pública em sequência de um eleição. No contexto português há uma expressão, importada curiosamente do inglês, que resume esse belo momento pós-eleitoral: Jobs for the boys.) No caso dos Estados Unidos, o controlo que o Congresso faz dos diferentes departamentos do governo chega ao ponto de poder cortar salários. A Câmara de Representantes, maioritariamente republicana, repristinou em Janeiro uma norma de 1876, a Holman Rule, que permite ao Congresso reduzir o salário de qualquer funcionário da administração para 1 dólar norte-americano. Caso o funcionário não queira seguir a linha, imagina-se que recta, a demissão talvez seja a melhor solução… Procura-se neutralizar a sociedade civil, através, por exemplo, de cortes de financiamento ou de subsídios (consoante o grau de alinhamento das organizações). É o que acontece, entre outros, com a comunicação social, os líderes religiosos ou grandes grupos empresariais. Há os favoritos. A comunicação social independente como que se torna numa ameaça à segurança do país (veja-se o tratamento especial que Donald Trump tem dado ao Washington Post ou ao New York Times). A polarização na comunicação social leva à existência de trincheiras, e o leitor médio é quem perde, pois deixa de acreditar no que lê. Mas as práticas identificadas por estes autores não se aplicam apenas ao que se está a passar nos EUA. O que se escreveu nos parágrafos anteriores poderia ser um retrato do que está a ocorrer nas Filipinas. Ou na Turquia (país a que o cientista político português António Costa Pinto se refere como um caso de autoritarismo de partido dominante), cujas recentes alterações ao quadro jurídico-constitucional são outra das tácticas usadas pelos autocratas para se perpetuarem no poder. Prática que durante anos se repetiram em vários países no continente africano sem que a comunidade de democratas as conseguisse parar. É evidente que as instituições dos Estados Unidos têm uma capacidade de resiliência muito grande. A nomeação de um procurador especial para analisar a relação de Trump com a Rússia é talvez o melhor exemplo. Mas a ameaça, tendo em conta a prática a que se assiste noutros países, é preocupante.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesDeficit de liderança global “Traditional leadership in all its forms, even the most liberal and humanistic, has always had to delve deep into what is instinctual and emotive in the collective psyche to find the elements which will lend it force. Democracy, in its fundamental dimension, is a means of limiting the egotism and waywardness of those who exercise power by replacing them with others when their pretensions become intolerable.” “The Mask of Command” – John Keegan [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] história é movida pela interacção entre a actividade humana e a circunstância, pelo que se dá um grande valor a esta união, particularmente nas matérias de guerra, paz, e de construção das nações. O historiador John Keegan fez a impressionante asserção de que a história de grande parte do século XX, foi um conto da biografia de seis homens, Lenin, Stalin, Hitler, Churchill, Roosevelt e Mao. Onde quer que nos encontremos sobre a questão do papel do indivíduo na história, o seu impacto deve ser incorporado nesta equação, particularmente, quando se trata de explicar os sinais de mudança na história de uma nação. É que actualmente somos empanturrados com líderes e lideranças como a solução, se não a panaceia, para quase tudo o que nos aflige. Admiramos o atrevido líder transformador, que procura mudanças fundamentais e valoriza menos o cauteloso que negoceia, triangula e se prepara para resultados menos dramáticos, e tendemos a esquecer também, que os grandes líderes quase sempre surgem em tempos de crise nacional, trauma e carência, um risco que corremos, se sentimos a necessidade pelo seu retorno. Ainda assim, como o Santo Graal, procuramos alguma fórmula mágica ou chave para tentar entender a explicação sobre a grande liderança, e devoramos vorazmente as lições dos percursos de quem consideramos líderes eficazes nos negócios, meios de comunicação, ou na política. Se digitarmos livros de liderança no motor de busca da “Amazon” obtemos oitenta e seis mil e quatrocentos e cinquenta e um resultados, e esse número cresce diariamente. Quer estudar sobre liderança, ou melhor ainda tornar-se um líder? Há certamente um programa até para os mais exigentes. A “International Leadership Association” faz uma lista de mais de mil e quinhentos programas académicos nessa área. Este foco nos líderes é compreensível, particularmente durante épocas de grande incerteza e ansiedade. É natural e até mesmo lógico procurar líderes, quando o nosso destino e futuro, parecem movidos por forças impessoais e imprevistas, além do nosso controlo. Os psicólogos e mitólogos dizem-nos que a necessidade de procurar o grande líder para nos guiar ou até mesmo nos resgatar é um impulso antigo, mesmo primordial. Esta forte necessidade de forte liderança existe também na América, embora pareça estar em conflito com uma crença americana, que coloca um reconhecimento na auto-suficiência e independência. É suspeita pelo poder e autoridade e, expressa ambivalência sobre a ideia de líderes poderosos. A necessidade exagerada e extraviada de heróis e de liderança heróica, de facto, parece particularmente incongruente e até mesmo inapropriada em uma cultura política que celebra uma liderança eficaz, mesmo quando a constrange, e especialmente em um momento em que parece haver tão poucos líderes políticos predestinados a serem encontrados. Para complicar ainda mais as coisas, não entendemos como os líderes realmente lideram. Na verdade, temos uma visão muito idealizada, até mesmo cartoonista, desta matéria. Temos a noção de que os melhores líderes são aqueles que são eleitos, prometendo altos princípios, visões elevadas, ou grandes programas e, em seguida, impô-los através do seu poder pessoal e persuasão, e quando os líderes não podem desempenhar o papel do herói, atribuímos o seu fracasso à incapacidade de comunicar e articular uma narrativa tão poderosa e convincente, que os seus seguidores se reúnem e os que duvidam e se opõem, não têm escolha, senão cumprir ou realizar comícios para recobrar forças, e na linha de Shakespeare, que Jacqueline Kennedy amava, Glendower vangloriava-se de Hotspur, em Henrique IV (acto 3), de que poderia “chamar espíritos do repouso profundo”. “Assim pode qualquer homem,” Hotspur respondeu, reflectindo a situação do líder na nossa era, acrescentando: “Mas virão quando os chamar?” A concepção de liderança “chamada e vinda” é mais apropriada para Hollywood e para uma visão idealizada da nossa história, do que para a vida real no mundo político. O estratega democrata Paul Begala, brincou com referência às acusações de que Barack Obama não conseguiu elaborar uma narrativa convincente, afirmando que não tinha problemas de comunicação, mas um iceberg de problemas. As palavras de um presidente são importantes, mas deve haver contexto para dar-lhes um verdadeiro significado e poder. Tal contexto é muitas vezes uma questão de circunstâncias incontroláveis. Os líderes não podem criar todo o contexto, se é crise, oportunidade, ou ambas. Karl Marx ao escrever no século XIX, observou que os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias auto-seleccionadas, mas sob circunstâncias existentes, dadas e transmitidas do passado. O líder aspiracional que adora concentrar-se no amanhã, o ontem é ironicamente pelo menos muito importante. Na maioria das vezes, os líderes eficazes intuem o que os tempos tornam possível e, em seguida, se são verdadeiramente habilidosos, exploram e ampliam essa oportunidade para ajudar a moldar a política que os sustenta. Na verdade, hoje em dia aqueles que favorecem e se alinham com a multidão de Carlyle e a visão do “Grande Homem” da história têm um sério problema. Estamos no século XXI, setenta anos após os seis transformadores de Keegan, que tentaram conquistar ou salvar o mundo. Olhando ao redor, onde se encontram os grandes heróis, os líderes ousados e inovadores, aqueles que simplesmente reagem aos acontecimentos, mas também os moldam? Onde estão os gigantes de antigamente, os transformadores que mudaram o mundo e deixaram grandes legados? Muitos foram líderes muito maus que apareceram e desapareceram como Pol Pot, Idi Amin, Saddam Hussein, Muammar Qaddafi, Slobodan Miloševic, e alguns muito bons, como Charles de Gaulle, Konrad Adenauer, Anwar Sadat, Mikhail Gorbachev, Papa João Paulo II, e Nelson Mandela. Os líderes, com certeza, podem emergir dos lugares mais improváveis e nos momentos menos esperados e mais fortuitos. Pensemos apenas em Abraham Lincoln, Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., e quem sabe que tipo de círculo longo da história dos líderes pode produzir o futuro? Apostar no futuro é, na melhor das hipóteses, um negócio incerto. Hoje as realidades não se apresentam tão brilhantes. Enfrentamos um deficit de liderança de proporções globais. Encontramo-nos no que se poderia chamar de era de liderança pós-heróica. A ONU tem cento e noventa e três países membros, dos quais oitenta e oito são democracias livres e funcionais. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, os chamados grandes poderes, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia, não são liderados por grandes líderes transformadores, e nem outros países em ascensão como o Brasil, a Índia e a África do Sul possuem líderes com sinais fortes. O Brasil vive os piores momentos de governança da sua história. Vemos líderes que são hábeis em manter o poder e os seus cargos por muitos anos, como Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan. Angela Merkel é uma líder poderosa e uma política habilidosa; o primeiro-ministro indiano Narendra Modi pode muito bem revelar-se um líder a ser escutado. Mas onde estão aqueles líderes que poderíamos descrever honestamente como potencialmente grandes, heróicos ou inspiradores? E quantos não são apenas grandes, mas bons, com humildade e elevados padrões morais e éticos, também? Quantos serão os autores de alguma realização incomparável, inigualável e enobrecedora no seu país ou no cenário mundial, uma conquista que provavelmente será vista ou lembrada como grande ou transformadora? Se fosse pressionado a identificar um líder potencialmente grande, seria impossível oferecer um chefe de Estado tradicional, mas sim uma figura religiosa – o Papa Francisco I, cuja grandeza, bem como a bondade, pode muito bem ser definida pela ironia da sua anti-grandeza, comunhão e humildade. Os grandes eventos ou crises, actualmente, não parecem conduzir a uma liderança afável, mas justamente considerados recipientes para líderes emergentes, pois nem a rebelião nem a revolução parecem capazes de produzir líderes históricos, mais condicentes com essas circunstâncias históricas. A mais ampla transformação desde a queda da antiga União Soviética foi a chamada Primavera Árabe, que ainda não conseguiu conceber um único líder político com o poder e capacidade de transição do autoritarismo para uma reforma democrática. Os que permanecem em um mundo árabe inseguro, em grande parte os reis, emires e xeques parecem muito ocupados a olhar o espelho retrovisor, para considerarem qualquer realidade como uma reforma voltada para o futuro, audaz ou transformadora, esquecendo as mudanças históricas. Os líderes têm o que é necessário para serem bons líderes transaccionais, ou seja, para gerir os problemas mais mundanos e os desafios que têm em mãos e ainda para proporcionar uma boa governança? Será possível explicar a ausência de grandes líderes no cenário mundial? Não existe nenhuma explicação simples ou única. A parcela da resposta seguramente repousa sobre o simples facto de que a grandeza, se for definida geralmente como uma realização incomparável do que é uma nação, ou mesmo que altera o mundo, é por definição rara, não apenas na política, mas em qualquer aspecto do empreendimento humano. É de entender que uma apreciação desta natureza também requer tempo, que é o último árbitro que dá valor à vida juntamente com a perspectiva de poder julgar o valor ou a qualidade de uma realização. Ao contrário da realização individual na arte, música, literatura ou mesmo nos desportos, a política tem muitas partes movediças e uma variedade muito ampla de factores, que estão além da capacidade de controlo de um político. Há uma terrível complexidade e contingência para a vida política, particularmente em democracias onde a política eleitoral, opinião pública, grupos de interesse e as burocracias conspiram para frustrar até mesmo os melhores planos estabelecidos. Se tal é verdade nos países, é duplamente real para os que procuram o sucesso da política externa no mundo cruel e imprevisível além fronteiras. Os líderes contemporâneos que aspiram a conquistas inigualáveis e sem precedentes, enfrentam o grave problema da incerteza que preside ao nosso tempo. As nações, tal como as pessoas, passam por provações necessárias, ameaças existenciais e crises no início das suas histórias. As nações e as políticas que sobrevivem provavelmente nunca passarão por essa forma de provação novamente, em grande parte, porque tinham os líderes certos no momento correcto, para guiá-las através desses desafios. À medida que as nações amadurecem, a necessidade e oportunidade da acção heróica para prevenir ou lidar com esses desafios existenciais diminui, juntamente com figuras e narrativas que definem o mito e a realidade necessárias a uma grande conquista. Talvez o mais significativo para explicar o deficit de liderança moderno, é o facto de que o mundo se tornou um lugar muito mais complexo para os que querem adquirir, manter e usar o poder de forma eficaz, mas muito menos para produzir mudanças históricas. Alguns argumentam que chegámos ao fim da liderança, outros ao fim do poder, ou pelo menos à sua decadência e dissolução. O escritor e colunista venezuelano Moisés Naím editor chefe da revista “Foreign Policy” afirma que o poder defronta-se com mudanças rápidas que tornaram as pessoas, bens e ideias mais cinéticas, móveis e conectadas, ideias que têm desencadeado expectativas e aspirações muito mais difíceis de gerir e controlar. Tal é certamente o caso dos autocratas que, como uma verdadeira classe de líderes, entraram em tempos difíceis, pois em 1977, os ditadores controlavam oitenta e nove países no mundo, tenho diminuído para vinte e três em 2011 e restando doze em 2017. O Egipto e a Tunísia que tinham sido governados por dois líderes autoritários durante décadas, foram retirados do poder em poucos meses. Mesmo nas democracias, onde reside a metade da população mundial, a era da informação globalizada e orientada para a tecnologia tornou a governação muito mais desafiadora. A mídia 24/7 intrusiva que reconhece e não aceita fronteiras, confunde a celebridade com uma realização séria e dilui a distância, desapego, aura e a mística necessárias para uma grande liderança. A proximidade, como Ben Franklin opinou, produz desprezo e ingénuos. E para os políticos, demasiada exposição e familiaridade diminui a disposição do público de pensar no líder como ser especial ou grandioso. A cultura mediática actual abre uma verdadeira janela para observar e identificar as imperfeições e falhas dos líderes. Ao mesmo tempo, o nivelamento e a globalização do tradicional campo de disputa, têm conferido ao menor poder para competir e influenciar o maior. Até certo ponto, sempre foi assim na história. O poder de um único indivíduo para actuar sempre foi terrível. O assassinato do Arquiduque Francisco Fernando por um anarquista sérvio colocou em movimento uma cadeia de eventos que levaram à guerra mundial. O assassinato do primeiro-ministro israelita Itzhak Rabin ajudou a matar o processo de paz de Oslo, e a mergulhar a relação israelo-palestiniana em uma crise de confiança, da qual ainda não se recuperou. Ainda assim, os actores menores, livres do que Naim descreve como “tamanho, escopo, história ou tradição entrincheirada”, desafiam cada vez mais os grandes de formas que poucos poderiam ter imaginado ser possível. Em 11 de Setembro, os ataques de dezanove terroristas da Al-Qaeda, prepararam o cenário para as duas guerras mais longas da história americana e uma reorientação fundamental da política de segurança nacional dos Estados Unidos. Em 2013, as revelações de um único contratado do governo dos Estados Unidos de um vasto trabalho de recolha de informações da “Agência de Segurança Nacional (NSA na sigla inglesa) ” no país e no exterior, desencadeou o maior debate em meio século, em como encontrar o equilíbrio certo entre segurança, privacidade e direitos individuais em uma sociedade democrática. Os modernos Gullivers, aspirantes e ambiciosos líderes são amarrados por um exército de constrangimentos e desafios que tornam eficaz governar de forma dura e frustrante.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesPrimeira volta da batalha eleitoral [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] sexta eleição para a Assembleia Legislativa está marcada para 17 de Setembro e prevê-se que, enquanto eleição directa, venha a ser a mais competitiva desde o regresso à soberania chinesa. Até ao momento os preparativos de constituição das comissões de candidaturas, a cargo de alguns candidatos potenciais, têm mantido a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa muito ocupada. De acordo com a legislação eleitoral de Macau, os candidatos que pretendam concorrer às eleições, sem pertencer a quaisquer associações políticas, deverão formar uma Comissão de Candidatura apoiada pelos eleitores. A Comissão necessita de um mínimo de 300 assinaturas e de um máximo de 500. Conforme estipulado pela alínea 3 do Artigo 27 da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, “cada eleitor só pode subscrever uma lista de candidatos”. No entanto não especifica quais as penalizações em caso de transgressão. Segundo práticas anteriores, se alguém assinar dois pedidos de reconhecimento de constituição de comissões de candidatura, é anulada a subscrição apresentada em segundo lugar. Desta vez, a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa (CAEAL) já divulgou alguns comunicados de imprensa onde se refere à situação de eventuais subscrições múltiplas, nos seguintes termos “… a CAEAL considera que tais casos constituem, eventualmente, uma violação às legislações vigentes, pelo que os mesmos foram submetidos ao Corpo de Polícia de Segurança Pública para uma investigação”. A partir do momento em que esta informação foi divulgada, muitos dos eleitores que tinham subscrito mais do que um pedido de reconhecimento de constituição de comissões de candidatura, intencionalmente ou não, ficaram muito assustados. Alguns deles procuraram ajuda junto da Associação de Novo Macau. Relativamente a este assunto, a Associação de Novo Macau encaminhou as apreensões dos eleitores para a CAEAL e solicitou uma reunião para analisar em profundidade estas questões, nomeadamente no que concerne às “candidaturas plúrimas”. Mas a Comissão não conseguiu programar o encontro por sobrecarga de agenda. No entanto emitiu um comunicado de imprensa durante a tarde de 18 de Maio para lembrar “os eleitores para assinarem um único pedido de reconhecimento de constituição de comissão de candidatura” para que sejam evitadas situações punidas por lei, conforme estipulado nos Artigos 150 e 186 da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa. Mas a Associação de Novo Macau descobriu que estes dois Artigos só são aplicáveis a casos de “candidaturas plúrimas”, que devem obedecer a certas circunstâncias factuais, a saber, “nomear a mesma pessoa a candidato por diferentes listas de candidatura, para a mesma eleição”. No quadro das próximas eleições, é praticamente impossível virem a ocorrer “candidaturas plúrimas”. Membros da Associação de Novo Macau preocupados com o processo eleitoral e, numa tentativa de apoiar os esforços desenvolvidos pela CAEAL, têm-se dedicado ao estudo da legislação eleitoral de Macau. Descobriram que já existiam mediadas penalizadoras (multas) para actos de “proposituras plúrimas”, antes do regresso à soberania chinesa. Mas na sequência da revisão da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, já depois do regresso à soberania chinesa, o termo “proposituras plúrimas” foi substituído por “candidaturas plúrimas”, tendo sido acrescentadas emendas aos conteúdos, numa versão da Lei Chinesa. No entanto, tem graça que não tenha sido feita qualquer outra alteração à Lei Portuguesa, para além do montante da multa. Na procura de esclarecimento para esta situação e, de forma a superar as preocupações dos eleitores que terão assinado “proposituras plúrimas”, a Associação de Novo Macau encaminhou o assunto para a CAEAL, na expectativa de que esta possa esclarecer o público com prontidão. No entanto, até terça feira a Comissão ainda não tinha dado qualquer resposta. Para que a sexta eleição para a Assembleia Legislativa venha a ser equitativa, justa, transparente e íntegra, a CAEAL terá de agir em conformidade. O seu trabalho terá de se apoiar na monitorização de diferentes sectores sociais, para que venha a existir “transparência, igualdade, justiça e integridade” no processo eleitoral. De outra forma, as eleições directas passam a ser um jogo político que terá por protagonistas os poderosos e os influentes e não serão representativas da população. A sociedade ficará à mercê do sofrimento. Para incrementar a cultura política de Macau, a monitorização efectiva da sexta eleição para a Assembleia Legislativa e da constituição das Comissões de Candidatura terão de ser implementadas escrupulosamente. Também não podem ser subvalorizadas as tentativas de manipulação dos eleitores.
Isabel Castro VozesBrincar aos chefes [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez, foram os buracos que se abrem nas ruas, que tanto chateiam quem tem de se mexer no território sem batedores à frente a garantir o espaço necessário para passar. O Comissariado da Auditoria (CA) divulgou esta semana um relatório em que chega a duas grandes conclusões: o grupo de coordenação interdepartamental criado para o efeito não serve para coisa alguma; o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais não cumpre com as suas obrigações, que passam pelo planeamento e a fiscalização das obras nas estradas. Mas o comissariado de Ho Veng On não se limita ao elenco de questões técnicas e jurídicas. Na versão resumida do relatório enviada à imprensa, a Auditoria tece uma série de considerações sobre o modo como se comportam aqueles que têm responsabilidades públicas. É dado um puxão às orelhas que se recusam a ouvir as queixas da população. Escreve o Comissariado que, “por entre dúvidas e críticas dos cidadãos, as entidades públicas envolvidas nestes trabalhos continuam a agir como muito bem entendem e a defender que os seus procedimentos e métodos de trabalho são eficazes”. A Auditoria lamenta ainda que estas entidades públicas destaquem “os pequenos sucessos, ignorando no entanto o alto preço pago, em termos de perda de qualidade de vida, pelos cidadãos”. Infelizmente, a ferida em que o CA põe o dedo não se resume ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais e ao tal grupo de coordenação sem serventia conhecida. As queixas que, durante estes anos, foram feitas pelos diferentes sectores do território são, grosso modo, recebidas com a indiferença e os tiques de superioridade de quem acha que, no momento em que tomou posse, lhe foi dada toda a impunidade, nas suas mais variadas dimensões. Em termos gerais, a reacção à crítica tem o mérito de ser altamente democrática. Só mudará, porventura, o polimento da retórica consoante o autor do reparo – um director de serviços não responderá com os mesmos modos ao Comissariado contra a Corrupção, ao jornalista anónimo e ao cidadão sem direito a existência cívica activa. Mas a todos responde com a mesma sobranceria. Com algumas (poucas) excepções, as chefias em Macau sofrem de dois grandes problemas. O primeiro tem que ver com o que lhes foi dado a ver antes de chegarem ao topo onde se encontram: as visitas de estudo em que participaram não chegaram para alargar horizontes, porque as pessoas não crescem em encarneiradas e burocráticas viagens. Falta-lhes literatura, cinema, música, vida e, acima de tudo, contacto com a diferença. Depois, sofrem da síndroma do novo-riquismo, que associo, ainda, ao facto de se terem feito gente num território administrado por outros que não eles. A partir do momento em que se viram com a faca e o queijo na mão, muitas destas pessoas esqueceram-se que o instrumento afiado que lhes foi dado serve para trabalhar e não para arma ao serviço dos seus interesses. Por entre as dúvidas e críticas dos cidadãos referidas pelo Comissariado da Auditoria, quem tem poder público no território vai vivendo bem, porque os autores dos reparos não têm qualquer poder. Não são eles que escolhem os governantes, não têm qualquer intervenção na construção das elites. Porque também falta, a quase todos, a vida que abre horizontes, os protestos não vão além dos desabafos. Quanto às elites, que poderiam contribuir de forma determinante para a construção de uma cidade mais equilibrada, sabemos todos de que são feitas: papel e plástico. O papel do dinheiro e o plástico das fichas de jogo. Não há conversa possível. Não sei como é que se dá a volta à falta de ética política apontada pelo Comissariado da Auditoria, porque consciência e responsabilidade são coisas que não se compram ao quilo nos supermercados da cidade. Só sei que, às vezes, tudo isto, mesmo que bem contado, ninguém acredita.
Leocardo VozesO velho e a escola [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m primeiro lugar gostava de deixar aqui uma palavra de apreço à Escola Portuguesa de Macau (EPM), que continua a dar o brado no ranking de escolas portuguesas no estrangeiro. Mérito daquela instituição de ensino, dos seus docentes e funcionários, e porque não dos próprios alunos e dos seus pais – parabéns a todos. A escola tem tudo para ser, como afirmou há meses o presidente do Conselho de Administração da Fundação da EPM, Roberto Carneiro, “o veículo para levar a Europa para dentro da China”. Feitos os (mais que merecidos) elogios, permitam-me uma pequena dissertação sobre o que a EPM representa para mim, e aquilo que me faz sentir: velho. Tanto eu como o leitor que tem lá as suas crianças a estudar, ora há mais tempo ou recentemente, fica inevitavelmente com aquela sensação de que o tempo vai passando mais para nós do que para os miúdos. Para eles é um desabrochar, para nós são as folhas que vão caindo. O meu filho, por exemplo, já não é aquele pequenote que em tempos eu pegava ao colo com um braço; agora é ele que me levanta! Aquele adolescente agora com 16 anos e a frequentar o 10º ano passou de “meu tesourinho” a “o outro gajo que vive cá em casa” – isto como figura de retórica, claro. E não é só ele, mas todos os seus coleguinhas, também. Macau é praticamente uma aldeia, e dentro da comunidade portuguesa conhecemo-nos praticamente a todos. Alguns dos colegas do meu filho vêm-no acompanhando desde o jardim de infância, e hoje olhando para o quanto eles cresceram, começo sinceramente a ver a areia da ampulheta do tempo a escoar, e a chegar ao fim. Quem diria que aqueles miúdos que me davam pelo joelho são hoje jovens cavalheiros e senhoritas? Os mesmos que quando os vi ainda não assim há tanto tempo quanto isso me mostravam o seu carrinho ou a sua boneca, e hoje ostentam uma espécie de barba, usam “piercings”, e respondem-nos com “iás”, e “tipo…”, quando falamos com eles? Ouvem música de artistas de que nunca ouvimos falar, guardam aqueles silêncios próprios da angústia juvenil, pois “nunca os conseguiríamos entender”. Sei lá, que diabo, a mim às vezes apetece-me sacudi-los, para saber onde anda aquela inocência que nos dava aquela confortável sensação de superioridade, e que para eles era (e ainda é, de algum modo), de dependência. Não são assim tantas as vezes que preciso de me deslocar à EPM, e quando é mesmo necessário, acaba por ser uma chatice. Mas saio sempre de lá com aquela sensação de que sim, estou a ficar velho, e os miúdos estão aí para tomar o meu lugar. E ainda bem, pois quer dizer que o mundo continua a girar, e vai-se cumprindo o ciclo e a velha máxima do “filho és, pai serás”, etc. “And the cat’s in the cradle and the silver spoon…”.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesQuem paga adiantado pode ser mal servido [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 9 deste mês o Conselho de Consumidores de Hong Kong publicou no website um comunicado de imprensa, onde se sugeria a criação de uma nova lei sobre – a situação dos credores de empresas em liquidação. A liquidação ocorre quando, por qualquer motivo, a empresa do ponto de vista legal deixa de existir. O principal motivo de uma liquidação é a falência. Os consumidores pagam frequentemente com antecedência bens e serviços a dinheiro, com cartão de crédito, etc. O caso de que vamos falar não se aplica, por exemplo, à aquisição de passagens de avião, telemóveis, electrodomésticos ou mobílias, porque entramos na posse destes bens logo a seguir ao pagamento. Mas se comprarmos uma assinatura para frequência de um ginásio, fazemos o pagamento à cabeça. O consumidor vai precisar de um determinado período de tempo para desfrutar de todos os serviços pagos antecipadamente. O pré-pagamento comporta um risco, nomeadamente no caso de o provedor dos serviços abrir falência de repente. Neste caso, o consumidor fica na posição de credor sem garantias, porque as hipóteses de reaver o seu dinheiro são muito poucas. O comunicado do Conselho dos Consumidores afirmava claramente que, se o consumidor usar o cartão de crédito para adquirir um serviço que posteriormente não lhe for prestado, pode recorrer à protecção do “mecanismo de devolução”. Este mecanismo está incluído no cartão de crédito e permite que o utilizador não pague os serviços ou bens de que não usufruiu. O “mecanismo de devolução” faz reverter a transferência, devolvendo o dinheiro à sua origem, caso tenha havido quebra do compromisso de prestação de serviços ou de entrega de bens. Este mecanismo faz parte das normas de funcionamento dos cartões de crédito. No entanto as condições e os prazos variam consoante a operadora de crédito. Para sua protecção, os utilizadores dos cartões deverão verificar previamente todos os detalhes do esquema de crédito a que acederam. Se o mecanismo de devolução funcionar, o risco desloca-se do consumidor para a operadora. A perda será então da operadora de crédito, a menos que consiga que o comerciante a reembolse. Por exemplo, imagine que vai comprar uma televisão a uma loja e que paga com o cartão de crédito (emitido pelo Banco A). O lojista compromete-se a entregar-lhe o aparelho no prazo de três dias. O pagamento dará então entrada no Banco B (do lojista). Mas, neste prazo, o negócio vai à falência. Neste caso pode apresentar uma reclamação por escrito ao seu Banco (A). A partir daí o seu Banco irá negociar com o Banco do lojista (B). Desencadeia-se o mecanismo de devolução e a perda vai recair no Banco B, o qual terá de devolver o dinheiro ao seu Banco. Contudo, em caso de liquidação, a televisão, que era um bem do comerciante, passa a ser propriedade de todos os seus credores. Ao abrigo do mecanismo de devolução, o Banco B assume o risco, e devolve-lhe o valor da televisão. Depois disto o Banco B entra na posse do aparelho. No entanto, este mecanismo não iria funcionar da mesma forma se o problema tivesse ocorrido na compra de uma assinatura para frequência de um ginásio, porque é um serviço que se projecta no tempo. Neste caso receberia uma protecção limitada. O Conselho dos Consumidores recomenda que se opte pela responsabilidade associada. Ou seja, o banco que concedeu o crédito para a aquisição do serviço/produto deve reembolsar o consumidor, caso este não receba o que pagou. Para o consumidor é a situação ideal, porque ninguém quer pagar pelo que não recebe. Claro que aqui a responsabilidade passa toda para o Banco. Agora, ponha-se na pele do Banco, acha que ia concordar com estas combinações? É evidente que não. O Banco vai alegar que é uma instituição de crédito, e que não tem obrigação de se responsabilizar por dívidas alheias. Realmente parece ser uma situação injusta. Talvez as companhias de seguros possam estar interessadas neste tipo de transação, porque devem ser muito poucas as empresas que deixam de fornecer um serviço por entrarem em falência de repente. Este tipo de risco poderá ser coberto pelas seguradoras, se nele virem interesse financeiro. Desta forma todas as partes estariam a salvo, no entanto coloca-se a questão de quem iria pagar o prémio da seguradora. Como já foi referido, o contrato entre o Banco e o portador do cartão de crédito é privado, e destina-se a proteger o cliente. Esta situação é igual em Hong Kong e em Macau. Se lermos com atenção o contrato que estabelece as condições de utilização do cartão de crédito, e as seguirmos cuidadosamente, estaremos protegidos e não teremos problemas em usá-lo. Contudo, por enquanto, ainda não existe forma de lidar com a situação que viemos a descrever, a não ser evitar os pagamentos adiantados. Será a protecção mais eficaz. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesLibertem os mamilos [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá que é assim tão simples, libertar os mamilos? Eu diria que não é fácil. Há qualquer coisa de especialmente escandaloso, chocante e perverso no mamilo, feminino, claro! Não que esta seja a minha opinião mamária (muito pelo contrário), mas o meu contacto diário dá-me a entender que esta é a opinião geral. Tópicos como sutiãs, aleitamento ou cancro da mama revelam os macaquinhos conceptuais e a constante censura da aréola mamária. Às raparigas/mulheres desde muito tenra idade que lhes são incutidos sutiãs, um obrigatório rito de passagem assim que as picadas de mosquito começam a ganhar uma forma melhor ajeitada. E assim continuamos, usamos sutiãs atrás de sutiãs, e umas aprendem, melhor ou pior, a lidar com o desconforto dos arames e dos enchimentos. As dificuldades são eternas, entre encontrar o tamanho absolutamente perfeito para a felicidade das nossas mamas, a decidir qual o formato desejado para o nosso peito. Dificuldades que existem desde a clássica obsessão pelo espartilho – a problematização do peito feminino não é de agora. Há quem se liberte da ditadura do sutiã porque até a ciência já provou ser mais saudável assim fazê-lo. Libertem a mama e o mamilo! Mas haverão consequências. Basta nos aventurarmos a ir para a rua com as meninas a baloiçarem livremente em contacto directo com a nossa t-shirt que vamos ser alvo de olhares – e quiçá de comentários. Nem parece que foi há muito tempo (nos anos 60 e 70) que parecia muito mais normal deixar as mamas livres de armação. Desde então que o pudor se intensificou, em vez de ter diminuído. E sejamos claros, não é a mama em si que incomoda – porque somos bombardeados por imagens de decotes generosíssimos – mas a existência do mamilo. A protuberância, o alto, o espevitado, o relevo, qualquer mera lembrança de que os mamilos existem no corpo da mulher e de repente tudo se torna muito mais provocatório. Esta teimosia em perceber os mamilos femininos como uma arma de provocação sexual infalível dificulta a conversa acerca de outros tópicos bastante normais, como por exemplo, falar do cancro da mama ou lidar com o aleitamento. Chegou ao ponto de anúncios de sensibilização pela prevenção do cancro da mama terem que utilizar mamas masculinas para mostrar como é que a apalpação é feita. Como as mamas femininas (detentoras de mamilos) são censuráveis pelos meios de comunicação, tiveram que pegar num homem de algum peso, com alguma gordura mamária, para ensinar como é que se pode prevenir o cancro da mama (que apesar de haver alguma incidência nos homens, tem maior incidência nas mulheres). O aleitamento, então, nem se fala. Há depoimentos de mulheres a amamentar os seus filhos em público e que foram criticadas por terem-no feito, a ponto de serem expulsas fora de um avião! Irónico, não é? O mundo força e reforça que o leite materno é o melhor suplemento para o crescimento de uma criança saudável e depois? Tem se ser feito à porta fechada ou devidamente tapadas. Ai delas se tiverem um mamilo à solta em público! Os mamilos são assim, muito úteis e grandes proporcionadores de prazer, mas censurados até ao tutano quando… os homens também têm um par e ninguém os chateia por terem-nos ou não à mostra. Até lá sofremos os dilemas de querer andar confortavelmente livres sem sutiã, ou mostrar um ou outro mamilo a nosso bel-prazer.
Rui Flores VozesLiberdade de expressão em xeque [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que é demais em termos de liberdade de expressão? Quais são as barreiras que devemos aceitar como socialmente aceitáveis à liberdade de expressão? Quando é que alguém foi longe de mais na sua liberdade de expressão? É desprestigiante, ofensivo para um regime político (seja ele qual for) mostrar que o rei, pouco antes de o ser, se passeava num centro comercial, acompanhado por uma amiga, envergando uma camisola de alças, mínima, que deixava ver as várias tatuagens que tem no dorso? Até que ponto devem ser proibidas as imagens de um herdeiro da coroa (seja ela qual for), nu, provavelmente alcoolizado, numa festa privada, a dançar com uma garrafa de cerveja na mão, rodeado por várias mulheres que há muito deixaram cair os seus soutiens? É aceitável, é socialmente aceitável, que se deixe diminuir o direito à liberdade de expressão para proteger um valor como o respeito por uma casa real? Ou por um governo? E que tipo de linguagem, ou imagens, podem ser suprimidas? Devemos apenas suprimir as mensagens que apelam ao ódio e à violência, ou devemos também apagar das redes sociais as imagens que os mais variados pais partilham dos seus filhos pequenos a fazer as coisas mais extraordinárias, a tomarem banho ou mascarados com os fatos mais extraordinários? Quem protege o direito à privacidade das crianças que os próprios progenitores deixaram de defender devido a um sentido absolutamente ilusório de fama momentânea? Se retiramos imagens da internet porque atentam contra o pudor, não deveríamos da mesma maneira retirar as imagens das crianças – quem protege as crianças quando os pais não são responsáveis por elas? Quem espoleta esses mecanismos de substituição? Se consideramos que a lei pode e deve proteger a sociedade de quem escreve “vamos matar os brancos todos”, “morte aos azuis”, “todos os vermelhos para Madagáscar!”, não deveríamos proteger também as crianças de hoje que, quando forem homens e mulheres, terão todos os momentos da sua vida disponíveis na internet, devido à sede de protagonismo dos seus próprios pais? E os complexos que poderemos estar a desenvolver nas crianças que se irão fazer adultos ao terem toda a sua vida exposta na internet? Há casos de bullying nas escolas que passam pela partilha, em grupos de alunos, de imagens disponibilizadas pelos pais nas redes sociais… O governo alemão quer restringir a liberdade de expressão quando ela atente contra a democracia. E quer que as redes sociais retirem quase instantaneamente as imagens e expressões que possam ser considerada abusivas. A questão não é de todo consensual. E levanta várias questões, como algumas das percorridas neste texto. Uma das críticas que se escutam é que, quando se admite a retirada do discurso que apela à violência, estamos a abrir demasiado a porta a uma prática que dá pelo nome de censura. Há quem prefira que os discursos de conteúdo racial ou de ódio se mantenham na internet a serem retirados. É preferível que lá estejam para que possam ser combatidos na mesma arena. Com argumentação racional. Com factos. Outras das questões que merece reflexão é quem decide o que é aceitável. Será a rede social a definir o que é tolerado ou um tribunal? Se se for pela via judicial, será possível dar resposta nas 24 horas estabelecidas como o tempo máximo para retirar o conteúdo? A guerra contra as notícias inventadas não é nova. Há anos, a campanha era contra os mitos urbanos. Por outro lado, governos a mentir às populações e a puxar por factos (alternativos, parcialmente verdadeiros – porque não postos em perspectiva) sempre existiram. Chama-se propaganda. Se se combate agora o discurso que incita à violência, está aberta a porta para depois se apagar todos os factos alternativos, todas as notícias inventadas, todo o discurso não-convencional. Uma das formas mais eficazes de combater a propaganda é garantir que o direito à expressão livre seja universal. Como as redes sociais geram milhões de lucros, acabam por aceitar a imposição que lhes é feita pelos governos. Só nos Estados Unidos, o Facebook tem neste momento mais censores online do que o Washington Post e o New York Times, juntos, têm funcionários. Agora que é a Alemanha a pôr restrições à liberdade de expressão, os seus arautos, sempre disponíveis para atacar uma meia dúzia de suspeitos habituais, têm muito por onde fazer barulho nos próximos tempos. Irão fazê-lo?
Isabel Castro VozesNão te cases [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] uma história que exemplifica bem o quão complicada pode ser uma relação com a Administração de Macau. Manter um contacto próximo, quase íntimo, com certos serviços públicos pode ser quase tão mau como um casamento amargo, daqueles que tiram o sono, a energia, que se prolongam nos anos sem risos que o justifiquem. Segue-se um divórcio litigioso, apesar de uma das partes ainda acreditar que vale a pena ir até ao fim da linha. O Comissariado contra a Corrupção (CCAC) deu esta semana razão às queixas de 27 promitentes-compradores de habitação económica que corriam o risco de ficar sem as casas onde estão a viver. Simplificando a história, 218 pessoas que obtiveram o direito à aquisição de uma fracção pública teriam de devolver os apartamentos porque, entre a data da candidatura e o dia da celebração da escritura, tinham casado. Como contraíram matrimónio, passaram a ter rendimentos superiores ao limite definido por lei; noutros casos, muitos, os promitentes-compradores casaram com quem já tinha um apartamento em Macau. Durante vários anos, o Instituto da Habitação (IH), que controla as coisas das casas públicas do território, deu a volta a esta situação através da assinatura de uma declaração em que o cônjuge do candidato contemplado com a fracção pública era excluído do agregado familiar para efeitos de contabilidade do património do promitente-comprador. Mas depois houve problemas, pediu-se um parecer jurídico, e as pessoas que sabem de leis entenderam que a tal declaração não podia ser assinada, as pessoas a quem as casas foram vendidas afinal já não precisavam delas porque passaram a reunir condições para não dependerem do Governo na busca de um tecto. De repente, deixou de valer o que esteve no início de tudo: aquando da entrega da chave, quem foi viver para aqueles apartamentos não reunia condições para comprar casa junto de uma agência imobiliária. O problema destas pessoas foi terem continuado a viver. E como continuaram a viver, algumas delas casaram. E fizeram-no com pessoas que estavam melhor na vida. É preciso azar. O CCAC percebe o que esteve na origem desta estranha decisão do IH, que promete casamento, entrega o anel de noivado, anda anos a reunir coragem e o enxoval para dizer o sim que se pretende eterno, mas recua no momento em que chega ao altar. Afinal, a habitação é um problema em Macau e, vendo bem as coisas, há quem neste momento precise mais de um casa pública do que aquelas 218 pessoas que, entretanto, têm hoje melhores condições de vida. Mas o CCAC olhou para as leis, e também para os direitos e interesses de quem esteve anos à espera de uma habitação, passou anos a viver nela e se preparava para ter de abandonar aquilo que achava que era seu. O CCAC deu razão aos queixosos e o IH vai ter de dar o último passo, assinar por baixo e levar isto até ao fim. No relatório sobre esta história – que, vendo bem, não lembra ao diabo – o Comissariado contra a Corrupção deixa uma recomendação: para evitar atropelos à lei, que se altere a legislação em vigor. E que se faça esta modificação em tempo útil, para que não haja mais episódios desagradáveis. O episódio das casas só para solteiros revela ainda outro aspecto: o tempo das relações com a Administração, que conta os minutos de uma forma diferente. As pessoas em questão candidataram-se às casas umas em 2003, outras em 2005. Os apartamentos foram distribuídos em 2012. O drama aconteceu em 2017. Pela lógica do IH, entre 2003 e 2017 nada deveria ter acontecido na vida destes homens e mulheres. Difíceis casamentos estes, em que tudo o que não interessa acontece lentamente e aos tropeções, com demasiadas dores de cabeça, para se chegar ao fim com um divórcio tão complicado que são os outros que decidem o que acontece.
Fa Seong A Canhota VozesUma cidade propícia para se viver? [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem quiser experimentar abrir o website do Gabinete de Comunicação Social do Governo, vulgo GCS, para ler as notícias do que acontece, pode ver, logo em grande destaque, uma série de vídeos intitulada “Medidas benéficas para a população que passam despercebidas em 2017”. O vídeo mais recente tem como título “Melhoria do ambiente de vida da população”. Até agora, todos estão apenas disponíveis em língua chinesa. Para conhecer melhor os trabalhos que o Governo tem levado a cabo para melhorar a vida de quem cá vive, resolvi ver o vídeo, com algumas expectativas. Foram filmadas praças, pistas para bicicletas, miradouros, jardins, zonas de lazer. Não consegui deixar de pensar o seguinte: “é este o desempenho de que se orgulha o Governo?” O nosso Governo defende sempre a ideia de transformar Macau num Centro Mundial de Turismo e Lazer e num território propício para habitar. Claro que Macau não pode ser considerado um lugar assim, porque tem aquilo a que podemos chamar de doença do urbanismo – uma elevada densidade populacional. Há também muitos veículos, pois em cada mil metros existem 600 veículos. Há edifícios antigos e novos, o que faz com que este pequeno território esteja rodeado de cimento e poluição atmosférica. O meio ambiente e a vida da população não melhoram apenas com a abertura dos acessos pedonais que ligam a zona do ZAPE e a Colina da Guia, ou com a criação do miradouro da Taipa Pequena, como mostram os vídeos divulgados no GCS. Os cidadãos continuam a sofrer com o trânsito em horas de ponta, a sentirem-se como sardinhas em lata dentro dos autocarros, a não ter vagas de estacionamento suficientes e a sentirem a falta de espaços verdes para respirar ar fresco. Talvez o problema do trânsito possa ser melhorado com a construção de um sistema pedonal entre a zona norte e sul da península de Macau, porque os cidadãos demoram muito tempo a fazer este percurso. Andar a pé para a escola ou o para o trabalho seria mais fácil. Mas será que o Governo cumpre a ideia de ter uma cidade com condições ideais de mobilidade? Uma cidade que seja propícia para habitar deve ter um equilíbrio entre o meio ambiente e o espaço urbano, sem esquecer a garantia da segurança e de uma economia estável, onde se incluem os preços do imobiliário e a inflação. Não deixa de ser irónico o facto do Governo considerar que aquilo que surge nos vídeos oficiais é o ambiente ideal para a vida da população.
Leocardo VozesOs novos do Restelo – um desabafo [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ortugal é que está a dar, e já não era sem tempo. Em menos de um ano matámos dois borregos: vencemos o Europeu de futebol e o Festival da Eurovisão. E ainda por cima este último num fim-de-semana em que o Papa esteve em Portugal, a propósito dos cem anos da menti…perdão, das aparições de Fátima. Seria este o quarto segredo de Fátima, caso tivessem havido mesmo outros três? Não interessa! A verdade é que com todo este banzé pode ser que um dia quando nos perguntarem de onde somos, possamos dizer “de Portugal” sem precisar de acrescentar “…fica ao lado da Espanha”. E para quem estiver a pensar que estou a ser velhaco, nada disso. Vencer o Festival da Eurovisão é uma daquelas coisas que os portugueses vaticinavam para o dia de S. Nunca à tarde – dia 30 de Fevereiro, para quem não sabe a que dia bate cada santo. Há quem diga cobras e lagartos do Festival da Eurovisão, mas normalmente quem o faz quer dar a entender que tem um gosto musical erudito, que “ele é que percebe de música”, e tal. Aposto que muita gente não sabe que o tema “Nel blu dipinto di blue” (mais conhecido por “Vooolare, oh oh”), de Domenico Modugno, ficou em 3º lugar no Festival da Eurovisão em 1958. Quantos detractores do evento, que apelidam de “piroseira”, já cantaram isto no chuveiro? E “o zabba”? Sim, “o zabba”, o grupo mais popular da História logo a seguir aos Beatles. Não fosse pela Eurovisão e nunca tinham passado da sua nativa Suécia, onde cantavam naquela língua que mais parece que têm a boca cheia de favas. Nana Mouskouri, Julio Iglesias, Cliff Richard, Celine Dion, France Gall e muitos outros devem as suas carreiras de sucesso ao Festival. E agora também o nosso Salvador, o Sobral. E é impossível não se gostar daquela canção, e da carga emotiva como o rapaz a interpretou. Espera lá, eu disse impossível? Para o tuga que se preze tudo e nada é impossível ao mesmo tempo. Quem não gosta e não liga ao Festival, e por isso está-se nas tintas, tem todo o direito a NÃO tugir nem mugir. Faz muitíssimo bem, e pode sempre mudar de canal. Entre estes há até quem tenha o discernimento e o bom senso de considerar a vitória de Portugal uma coisa boa em termos da promoção do país. Sempre são 200 milhões de telespectadores dos quatro cantos do mundo que vão para o ano assistir ao certame transmitido em directo de Portugal. Isto serve para o Festival como para outra coisa qualquer, que o tempo do “orgulhosamente sós” já lá vai. E ainda bem. O problema aqui é que a minoria que fala mal é tudo menos silenciosa, e como é habitual nestas coisas das artes, além de não conseguir estar calada, diz tantos disparates que se torna impossível contemplar a obra em sossego. Ora é porque o rapaz “se veste mal”, ou porque “parece um mendigo”, ou ainda “porque esta canção não é de Festival”, dizem ainda os (des)entendidos na matéria. Tanto não é que ganhou, vejam lá vocês. Por incrível que pareça, e tal como sucedeu no Europeu de futebol no ano passado, houve quem tivesse ficado aborrecido por Portugal ter ganho, imaginem! Já sei, já sei, “não foi bem assim”. O que se passa é que a malta gosta de dar palpites e de ter razão no fim, e depois não há garganta para fazer passar tamanho melão. Tudo Freud explica. Afinal sempre foi mais de meio século a ver os outros ganhar e depois afirmar “Pois, eu não disse? Queriam o quê, ganhar? Não me façam rir”. São os novos velhos do Restelo, que constantemente ressuscitam o cadáver do derrotismo, mesmo que este lhes implore para que o deixem morrer em paz. É o velho conto do pobre e mal agradecido, revisto e aumentado. De tão habituados que estão a não passar da cepa torta, desconfiam quando lhes sai a sorte grande. Porque “são vivos”, estão a ver? São de Olhão e jogam no Boavista, só que nem uma coisa nem outra. Nunca foram ao Algarve na vida e não sabem dar um chuto numa bola, isso sim. Portugal é um país pequeno, com 10 milhões de alminhas – menos que muitas cidades da China – e de nós não se esperam mundos e fundos. A sério, não se espera mesmo. Faltam-nos os meios logísticos e humanos para ombrear com as grandes potências, o que é que querem? E é por esse mesmo motivo que nos devíamos orgulhar, e se calhar parar um bocadinho para pensar que se na bola e no Festival (já) não somos menos que os outros, quem sabe se chegou a hora de arregaçar as mangas, deitar mãos à obra, e mandar os impossíveis à fava, juntamente com os novos do Restelo que por aí abundam. Despeço-me com um agradecimento ao Salvador Sobral, que juntamente com os bravos rapazes que trouxeram o caneco de França no ano passado, provaram que se pode vencer, mesmo com esse tremendo handicap que é o de ter nascido português. Sois uma inspiração. Amén!
Tânia dos Santos Sexanálise VozesRetratos [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ego numa máquina fotográfica e tento capturar a essência do sexo. A imagem enche-se de cores e diversidade que enquadram os protagonistas: o prazer e a vergonha. O prazer luta pelos seus direitos enquanto que a vergonha tenta atrofiar qualquer tentativa de legitimidade prazerosa. Este conflito é constante, repito, constante. As nódoas negras são visíveis, mas esta é daquelas lutas inevitáveis que têm que ser travadas. Contudo, este retrato pseudo-global não mostra que a tendência será a repressão sexual, e aí o Foucault também concordaria. A variedade, a disponibilidade para uma exploração sexual plena – e individual – surgiu da nossa capacidade, como sociedade, de criar espaços de discussão para que assim acontecesse. Fomos capazes de enaltecer o prazer e o bem-estar para formas supremas do ser, mesmo que nos pareça que haja fortes contra-correntes a contestar esta possibilidade. O sexo é tão natural e primitivo como intelectual. A complexidade emocional, fisiológica, biológica e mental poderia ser a protagonista deste retrato, mas prefiro pô-la no pano de fundo, como as estruturas necessárias para que o entendimento sexual evolua. O retrato reflecte a eminência da libertação sexual, e isso será possível quando a política da culpa substituir a política do prazer. Na cultura popular a sexualidade é vista como uma forma rentável de lidar com o mercado. Pensamos que o mundo ocidental é ‘liberal’, mas só o é para fins comerciais – porque o sexo vende. A hiper-sexualização social tem sido bem sucedida a mascarar o pudor que o sexo ainda é. As ‘minorias’ sexuais são as que ainda mais levam por tabela. Aqui incluem-se as mulheres também. As mulheres que de minoria não têm nada – são metade da população mundial – mas que são tratadas como se a luta pelos seus direitos sexuais fossem desnecessários. Se me perguntarem, o retrato do sexo teria que incluir estas novas nuances discriminatórias com que me deparo diariamente, quando tento incutir em muitas cabeças de que há processos interpessoais que (ainda) afectam as mulheres particularmente – e que têm que ser alterados. Se calhar este retrato merecia uma atenção particularmente feminina, particularmente queer, particularmente trans. Não que queira deixar os homens heterossexuais para atrás! Nem pensar. Só que eles foram os protagonistas do sexo por demasiado tempo, já tiveram direito à sua voz. Uma nova era impõe-se. Imaginem tempos onde o prazer consegue o seu lugar na ribalta! Talvez seja útil pensarmos no sexo mais em relação aos seus potenciais objectivos e dissociá-lo de formas patriarcais que teimam em flutuar – até nas cabeças ditas mais progressivas – incessantemente, descontroladamente. Não sei se consegui fazer com que este retrato tivesse mais forma, ou se continua difuso, confuso e complexo. Talvez o retrato do sexo consiga se expressar melhor no abstracto, no não dito, no emotivo íntimo. Ou talvez precise de corpos, de erótica de bom gosto que combata a pornografia barata que anda por aí a (infelizmente) formatar cabecinhas. Eu consigo imaginar corpos, muitos corpos que abraçam a pureza que a intimidade do sexo lhes traz. Posso imaginar também uma pessoa, ou um só sexo para reforçar a nossa individualidade sexual, as particularidades do que nos atrai e do que nos excita. Talvez uma máquina fotográfica não seja a ferramenta mais indicada para capturar tudo o que viaja na nossa imaginação. Talvez o sexo, o prazer e o tabu já não conseguem viver dissociados. Talvez o sexo tenha que ser assim mesmo.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA marcha para a transformação da França e da Europa “To avoid the trap of Europe fragmenting on the economy, security, and identity, we have to return to the original promises of the European project: peace, prosperity and freedom. We should have a real, adult, democratic debate about the Europe we want. We need to restore democracy and sovereignty in Europe.” Emmanuel Macron [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] político novato que nunca desempenhou um cargo político electivo enfrentou uma nacionalista de extrema-direita, provinda dos antípodas da política francesa, pelo que a eleição presidencial pertencerá aos livros de história. Os eleitores franceses participaram na primeira volta das eleições presidenciais, que se realizaram a 23 de Abril de 2017. Após o encerramento e contagem dos votos, os resultados determinaram uma segunda volta, entre os candidatos Emmanuel Macron e Marine Le Pen, que se realizou a 7 de Maio de 2017. O terceiro lugar foi uma corrida renhida entre o esquerdista Jean-Luc Mélenchon e o republicano detentor de alguns escândalos e ex-primeiro ministro, Francois Fillon, que era único favorito de um partido francês. Há cinco anos, na última volta das eleições presidenciais, o socialista François Hollande venceu o então Presidente francês Nicolas Sarkozy da “União por um Movimento Popular (UMP na sigla em língua francesa) ”. O partido foi fundado em 2002, pelo ex-Presidente Jacques Chirac, dissolvido em 2015 e sucedido pelo “Os Republicanos”, fundado em 2015 e liderado por Sarkozy. Os dois partidos dominaram a vida política francesa desde a década de 1980, à semelhança dos partidos republicanos e democrata nos Estados Unidos, embora em França, os principais partidos sejam frequentemente apoiados por partidos menores parceiros de coligação. O ex-Presidente Hollande cumpriu apenas um mandato presidencial, e era de esperar que se recandidatasse, mas assediado por escândalos pessoais e taxas extremamente baixas de popularidade resolveu afastar-se, sendo a primeira vez que um presidente em exercício desde 1958, não se recandidata. O candidato Benoit Hamon, escolhido pelos socialistas para substituir Hollande, lutou para sair da sombra do seu antecessor, mas apenas conseguiu 6,36 por cento dos votos. O colapso do voto na esquerda dominante deveria ter beneficiado os republicanos, mas também tiveram enormes dificuldades. O primeiro a sucumbir foi Sarkozy, cuja tentativa de retorno à vida política francesa terminou em uma derrota humilhante e ficou em terceiro lugar em uma primária republicana. O vencedor dessa corrida foi Fillon, que parecia uma aposta certa para a presidência, até que surgirem alegações de que tinha pago salários à esposa e filhos com fundos públicos, trabalho que não realizaram, e apesar de ter negado qualquer irregularidade, deteriorou a sua imagem e, teve de lutar pelo terceiro lugar com Mélenchon, fundador, em 2006, do movimento “França Insubmissa”, e seu actual líder. O movimento é uma continuação da “Frente de Esquerda”, constituída em 2008. O candidato Macron de trinta e nove anos, emergiu dos destroços dos dois clássicos partidos políticos franceses. Foi banqueiro e ex-ministro da economia e indústria de Hollande, socialista, independente e fundou o partido social – liberal, “Associação para a Renovação da Política”, mais conhecido por movimento progressista, “Em Marcha”, em 6 de Abril de 2016, que rapidamente atraiu centenas de milhares de membros e subiu nas sondagens, prometendo uma reforma da assistência social e do sistema de pensões, políticas favoráveis às empresas e aumento das despesas com a defesa e um novo projecto para a UE que passa pela sua dinamização. A fraqueza da esquerda e direita moderada, criou a circunstância ideal para um centrista como Macron, que apelou aos eleitores de Fillon e aos socialistas de direita, tendo enfrentado desafios tanto da direita como da esquerda, mas mesmo o aumento dramático de Mélenchon nas últimas semanas da campanha, chegou tarde demais para derrubar os apoiantes do “Em Marcha”. O valor do euro subiu no dia seguinte às votações que favoreceram Macron na primeira volta das eleições, ao contrário das resultantes do voto no Brexit ou das eleições presidenciais nos Estados Unidos. O então candidato Macron é um forte defensor da UE, ao contrário da sua ex-rival Marine Le Pen que defrontou na segunda volta das eleições presidenciais. A líder da “Frente Nacional” de extrema-direita, desde 16 de Janeiro de 2011, mudou o partido racista e anti-semita fundado pelo seu pai Jean-Marie Le Pen, com um discurso mais próximo da maioria da população para tentar vencer as eleições presidenciais. A candidata apesar de vir do extremismo da política francesa foi uma das figuras mais reconhecidas na campanha eleitoral francesa, sendo figura de relevo em todos os meios de comunicação social nacionais e estrangeiros. O facto de ser anti-imigrante, economicamente conservadora e partidária da saída da França da UE e da OTAN, a sua eleição seria uma ruptura dramática da tradição política francesa, não diminuindo por tal facto, as suas possibilidades de poder eventualmente ganhar as eleições, que foram impulsionadas pelas preocupações sobre o terrorismo e a crise de refugiados, beneficiado do aumento de apoiantes em muitas partes do mundo, nomeadamente na UE e nos Estados Unidos às políticas anti-imigração. Apesar de sua forte campanha na primeira volta das eleições, teve a inteligência suficiente para considerar o maior obstáculo que representou o desafio de Macron, cujo apoio político maioritário previsível, acabou por se formar. O candidato Hamon exortou os eleitores socialistas a apoiarem o novato, mesmo não sendo de esquerda, assim como o ex-primeiro-ministro Bernard Cazeneuve. O candidato Fillon, após conhecidos os resultados eleitorais, pediu aos eleitores para apoiar Macron, afirmando que a “Frente Nacional” tinha uma história conhecida pela sua violência e intolerância, e que o seu programa económico e social levaria a França ao fracasso. Os líderes da UE também apoiaram Macron, pelo menos em privado, pois esperavam evitar um outro Brexit, sendo benéfico que o candidato vencedor tivesse sucesso nas eleições para o fortalecimento da UE e da economia social de mercado. A última vez que a “Frente Nacional” esteve próxima de alcançar a presidência, foi em 2002, quando Jean-Marie Le Pen foi à segunda volta, mas os eleitores de todo o espectro político acabaram por derrotar a extrema-direita, tendo Jacques Chirac esmagado Le Pen com mais de 82 por cento dos votos, o maior desaire de uma eleição presidencial francesa, que contou com uma enorme participação, tendo a abstenção representado, apenas 20 por cento dos eleitores registados. A candidata Le Pen melhorou significativamente o seu círculo eleitoral, mas mais de 73 por cento dos eleitores na primeira volta, escolheram um candidato diferente da líder da “Frente Nacional”, constituindo um sinal bastante sólido acerca da forma como as pessoas iriam votar no dia 7 de Maio de 2017, não tolerando que Le Pen viesse a ganhar as eleições na segunda volta. O escrutínio da primeira volta deu a Macron 24,01 por cento, a Le Pen 21,30 por cento, a Fillon 20,01 por cento e a Mélenchon 19,58 por cento. O recém-chegado político centrista Macron acabou por derrotar na segunda volta das eleições a candidata de extrema-direita, Le Pen. Assim, o pro-europeu Macron obteve 66,1 por cento dos votos, que representam 20,75 milhões de eleitores e Le Pen 33,9 por cento, que representam 10,64 milhões de eleitores e que tinha prometido um referendo “Frexit” se ganhasse as eleições. A abstenção foi de 25,44 por cento e os votos brancos e nulos de 11,47 por cento. A vitória de Macron representa um virar de página na longa história dos cinquenta e nove anos da “Quinta República Francesa”, sendo o mais jovem presidente eleito. O resultado eleitoral foi uma rejeição enfática ao nacionalismo primário francês. A candidata Le Pen, esperava que a mesma vaga populista que fez Donald Trump vencer as eleições nos Estados Unidos e que teve o seu apoio de Putin, se repetiriam em França. Macron tem pela frente enormes desafios, devendo para além do que consta do seu programa eleitoral, encontrar os medicamentos certos para curar as divisões sociais expostas pela áspera campanha eleitoral e trazer fé e segurança reavivada, que minore a raiva, ansiedade, e as dúvidas que muitos expressaram ao votar em um extremismo agudo de direita. A vitória de Macron foi a terceira em seis meses, após as eleições na Áustria e na Holanda, em que os eleitores europeus derrotaram os populistas de extrema-direita que queriam restaurar as fronteiras em toda a Europa. A eleição de um presidente francês que defende a unidade europeia também pode reforçar a UE no seu complexo processo de divórcio com a Grã-Bretanha. A campanha presidencial francesa foi a mais imprevisível que há memória em que muitos eleitores rejeitaram os programas de ambos os candidatos. A França moderna sempre foi governada pelos socialistas ou pelos conservadores. Quer Macron como Le Pen desviaram essa tradição da direita – esquerda. A França enviou uma incrível mensagem para si, para a Europa e para o mundo. Macron era um desconhecido dos eleitores antes de exercer as suas turbulentas funções como ministro da economia e indústria de 2014 a 2016, tendo assumido um repto gigantesco quando deixou o governo do presidente socialista Hollande e concorreu como independente na sua primeira campanha. O seu movimento político inicial, optimisticamente denominado de “Em Marcha” enraizou-se em apenas um ano, aproveitando a ânsia dos eleitores por novos rostos e ideias. É um momento de glória para a França e para a UE, porque depois do Brexit, e da eleição de Donald Trump, o populismo foi derrotado. Apesar da sua derrota, a subida enorme do número de votantes em Le Pen, pela primeira vez, marca um progresso pessoal e político e realça uma aceitação crescente da sua feroz plataforma anti-imigração. Le Pen foi a terceira candidata mais votada nas eleições presidenciais de 2012. Após estas eleições a sua atenção volta-se imediatamente para as próximas eleições legislativas em França, a realizar, em 11 e 18 de Junho de 2017. Macron vai precisar de uma maioria para poder governar de forma eficaz, tendo o movimento “Em Marcha”, mudado o nome para partido “República em Marcha”, para disputar as eleições legislativas e que é liderado desde 8 de Maio de 2017, por Catherine Barbaroux. Le Pen teve uma votação histórica e maciça, que no seu entender, tornou o partido na principal força de oposição contra os planos do novo presidente. O número de votos obtidos por Le Pen representa quase o dobro dos votos obtidos pelo seu pai nas eleições presidenciais de 2002. As visões de pólos opostos de Macron e Le Pen foram apresentadas a quarenta e sete milhões de eleitores registados em França e com a maior escolha possível. As fronteiras fechadas de Le Pen confrontaram-se às abertas de Macron. O compromisso deste com o livre comércio competiu contra as propostas daquela para proteger os franceses da concorrência económica global e da imigração. O desejo de Le Pen de libertar a França da UE e do euro como moeda comum foi contra o argumento de Macron, de que ambos são essenciais para o futuro da terceira maior economia da Europa. Além de capitalizar a rejeição dos eleitores do monopólio esquerda -direita do poder, Macron também teve sorte, pois o ex-primeiro-ministro conservador Fillon, um dos seus adversários mais perigosos, foi prejudicado pelas alegações de que a sua família tinha beneficiado de empregos financiados durante anos pelos contribuintes. O Partido Socialista ruiu e o seu candidato foi abandonado pelos eleitores que queriam punir Hollande, o Presidente mais impopular da França desde a II Guerra Mundial. Macron preside a uma nação que, quando a Grã-Bretanha deixar a UE em 2019, se tornará o único Estado membro com armas nucleares e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. A votação também mostrou que os sessenta e sete milhões de franceses estão profundamente divididos, angustiados pelo terrorismo e pelo desemprego crónico, preocupados com o impacto cultural e económico da imigração e temendo a capacidade da França de competir com gigantes como China e o Google. Macron prometeu uma França que iria enfrentar a Rússia, mas que também iria procurar trabalhar com o Vladimir Putin na luta contra o Estado Islâmico, cujos extremistas reivindicaram ou inspiraram vários ataques na França, desde 2015. Tendo tomado posse a 14 de Maio de 2007, o novo Presidente francês tem um vasto e ambicioso programa liberal – conservador, que não é de esquerda, nem de direita, não se propondo reformar a França, mas transformá-la, sem rupturas, baseadas no trabalho e responsabilidade. Quanto à área económica propõe medidas como o eliminar de cento e vinte mil postos de trabalho na administração pública nos próximos cinco anos; realizar uma poupança na despesa pública de sessenta mil milhões de euros durante o seu mandato; destinar cinquenta mil milhões de euros ao investimento público nos sectores de futuro; cortar o cabaz de impostos que sobrecarregam as empresas, acompanhada da redução dos impostos locais. A estratégia económica procurará melhorar as despesas públicas, responsabilizar os particulares e relançar o emprego com investimentos, para além de financiar a educação e a formação profissional. Quanto à área social propõe uma reforma global do sistema nacional de contribuições e de protecção social, procurando flexibilizar o mercado de trabalho, assim como a aposentação, que sofrerá uma grande mudança. Quanto à área política propõe moralizar a vida política, com legislação mais apropriada, considerando-se a favor de uma reforma parcial do modelo eleitoral a duas voltas, benéfico aos grandes partidos, por um modelo com certa dose de proporcionalidade, para facilitar a situação dos partidos mais jovens e emergentes. Quanto à área da segurança propõe reforçar a polícia e as forças de segurança, sugerindo novas formas de cooperação europeia. Quanto à UE considera que já funciona a várias velocidades, sendo a favorável ao inicio de reformas feitas por outros países, para poder adquirir poder e prestigio na Europa. Quanto à área social e cultural aposta no modelo laico francês, avançando ideias mais ou menos gerais e pouco comprometedoras sobre a nova França multicultural. O presidente social reformista maquilha todas as suas iniciativas com doses aleatórias de ecologia, radicalismo e respeito à diversidade. O ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Sigmar Gabriel, disse uma verdade cruel: se o Presidente Macron falhar nos próximos cinco anos, Le Pen será Presidente, e o projecto europeu será como um osso atirado aos cães. A UE por sua parte terá de voltar à essência e natureza do projecto da sua fundação, deixando de ser a Europa dos políticos, tecnocratas e burocratas, para passar efectivamente a ser a tão anunciada e desejada e não praticada, Europa dos cidadãos.