Selecção do júri (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dois artigos anteriores analisámos a selecção do júri e a língua usada durante o julgamento de Donald Tsang. Hoje vamos debruçar-nos sobre os bastidores do júri, antes de ter sido revelado o destino do antigo Chefe do Executivo de Hong Kong.

Um dos jurados foi excluído pelo juiz um dia antes do início das deliberações, deixando o Tribunal envolto numa aura de mistério. O juiz Andrew Chan Hing-wai, declarou,

“Registaram-se algumas ocorrências que, no entanto, não nos dão motivo para preocupação.”

O juiz não adiantou mais explicações para a sua decisão. Assim, o júri ficou reduzido a oito jurados. No final da audiência o colectivo retirou-se para deliberar. Após um largo período de debate o júri não conseguiu chegar a um consenso, que no mínimo exige o acordo de seis jurados. Em resultado desta situação Donald Tsang não pôde ser condenado.

Agora que o julgamento acabou, o mistério da exclusão do jurado já pode ser revelado.

Certo dia, durante a hora do almoço, o jurado, a quem nos referiremos como Mr. Q, foi ter com Chip Tsao, uma personalidade mediática apoiante de Donald Tsang. Mr. Q, que era desde há muito fã de Chip Tsao, tirou-lhe fotografias e esteve à conversa com ele por algum tempo. Durante a conversa Tsao perguntou-lhe:

“Você é de Xangai?”

Ao que o outro retorquiu:

“Não, sou de Pequim.”

Um funcionário que se apercebeu da situação, separou imediatamente Mr. Q dos outros jurados e reportou o sucedido ao juiz. O funcionário ficou preocupado com possíveis interferências exteriores na decisão do jurado, até porque sabia que Tsao estava sentado na galeria ao lado da família de Tsang. O apoio de Tsao a Donald Tsang também é do conhecimento público. O juiz, temendo a parcialidade de Mr. Q, exclui-o do júri.

Como referimos a semana passada, a condição de jurado é contínua, só se considerada interrompida quando o julgamento termina. Durante este processo, os jurados não podem ser influenciados por terceiros. Este é um dos motivos pelos quais não estão autorizados a comparecer nos seus locais de trabalho. A conversa de Mr. Q com Tsao origina uma situação idêntica. Antes da decisão ser tomada, o jurado ao serviço do Tribunal, não pode contactar com ninguém. Possivelmente, nem Mr. Q, nem Tsao, tiveram consciência de que a tal conversa informal e as fotos poderiam vir a ter consequências graves, mas baseando-se nos princípios de justiça e de igualdade de oportunidades, o juiz excluiu Mr. Q.

A decisão do juiz foi correcta. A lei tem de ser encarada com seriedade, porque estabelece a regra pela qual todos se regem. Se o juiz não a levar a sério, quem a levará?

Após 14 horas de deliberação, os oito jurados não chegaram a consenso, que pede como foi dito, um mínimo de seis votos a

favor de uma decisão, pelo que não foi pronunciado nenhum veredicto quanto à culpabilidade ou inocência de Donald Tsang. Às 23.05 o júri comunicou ao juiz, por escrito, a impossibilidade de estabelecer um veredicto. O juiz recusou-se a aceitar a situação e pediu que voltassem a reunir. A discussão prosseguiu até às 5.15, altura em que os jurados voltaram a comunicar ao juiz:

“Após debate exaustivo, o júri não conseguiu que pelo menos seis jurados chegassem a consenso. Cada jurado defende firmemente os seus pontos de vista. Decidimos terminar.”

O juiz dispensou os jurados, afirmando:

“Sei que a vossa tarefa é difícil, mas cumpriram-na de forma consciente.”

“Com estas palavras vos agradeço. Estais dispensados.”

É o segundo julgamento que Donald Tsang enfrenta pela acusação de corrupção passiva, relacionada com a troca de favores com uma estação de rádio local. O primeiro julgamento tinha terminado precisamente da mesma forma que este, ou seja, com um empate do júri. Mais uma vez Donald Tsang não pôde ser considerado culpado.

Mais tarde, o Tribunal foi informado que o Secretário da Justiça não pretende repetir o julgamento. O juiz aceitou a decisão e arquivou o caso, que necessitará ainda da aprovação do Tribunal de Primeira Instância, ou do Tribunal de Apelação.

“Não é invulgar que seja pedido um novo julgamento se surgirem novas provas e se for considerado do interesse público.”

Em resumo, o caso de corrupção passiva contra Donald Tsang terminou. Em todas as investigações criminais que decorrem em Hong Kong, os investigadores reúnem o máximo possível de provas, para fornecer à acusação. Neste processo, é muito provável que nem todas as provas reunidas tenham sido entregues à acusação, porque se algumas delas beneficiassem o réu, deverão ter sido entregues à defesa. Portanto, é muito pouco provável que surjam novas provas acusatórias. Além disso, Donald Tsang pode alegar “gravidade extrema” se for chamado mais uma vez a Tribunal por esta acusação.

Seja como for e por agora, para Donald Tsang e para o júri este caso está encerrado.

21 Nov 2017

Convidado de casamento chinês

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo em qualquer parte do mundo, a cerimónia do matrimónio na China é uma epopeia de mil labores e rituais simbólicos que culminam no dia em que o noivo conquista definitivamente a noiva, começando a perdê-la de imediato. Ok, dramatizo, mas foi assim que senti a coisa, como uma mudança de estação.

No entanto, a primeira reflexão foi bem mais prática. Não faria mais sentido o lançamento de arroz num casamento oriental? Esta forma de agressão ritualística com comida, após uns copos de vinho chileno, agigantou-se para a fantasia do arremesso de noodles aos recém-casados. Tudo é possível no sossego da imaginação enquanto se sorri educadamente para os convivas de mesa.

Mas, adiante. No meio de um considerável fosso linguístico e cultural, foi-me explicado que a própria data do casamento não é deixada ao acaso. Como tal, a data deve ser escolhida por um monge, um vidente, ou alguém com uma sintonia paranormal ao universo da boa e má numeração. O objectivo é encontrar um dia auspicioso para dar o nó.

Na véspera do grande dia, cumpre-se a cerimónia de escovar o cabelo da noiva, algo que ultrapassa em muito o significado de uma normal ida ao cabeleireiro. A tarefa deve ser executada pela mãe, ou sogra, enquanto são recitadas frases de desejos de um matrimónio que dure a vida inteira, onde não faltem filhos, dinheiro e saúde. Estes gestos trazem a noiva, definitivamente, para a idade adulta.

Outro aspecto interessante e bem diferente do que se passa na cultura ocidental é a serenata que o noivo faz enquanto a noiva se encontra noutra sala atrás de uma porta semi-aberta. Este detalhe do protocolo chinês tem como palco a casa da noiva onde o noivo tenta recolher a aprovação dos amigos e familiares da sua futura esposa. Não me foi explicado o que acontece no caso do noivo ter uma voz de unhas em quadro de ardósia.

No fundo, esta parte da cerimónia pretende representar a ideia de que a lindíssima noiva não se entrega a um pelintra qualquer. Finda a cantoria e alguns jogos de compreensão impossível, a noiva sai do quarto e junta-se ao seu futuro esposo e encaminha-se para o automóvel que a levará ao altar, que neste caso foi num hotel em Kowloon.

Chega a altura de uma das fases mais importantes do casamento chinês, a cerimónia do chá, em que os noivos agradecem e demonstram todo o respeito que os seus pais merecem por os terem aturado este tempo todo.

À semelhança do casamento ocidental, há também o corte de um bolo de núpcias mas, no Oriente o bolo é falso, num aparato desprovido de sentido para um português com apetites de pastelaria.

No fundo, o casamento chinês é um somatório de cerimónias carregadas de simbolismo e respeito, longe do deboche e da ébria orgia de excessos que é a celebração do matrimónio à ocidental. Talvez fosse desta específica boda, mas a educação e a classe foram a tónica da noite inteira.

Indo ao que interessa, e àquilo que nos une enquanto seres humanos, a noite foi marcada pelo festim infinito de comida, um desfile sem fim de iguarias e copos sempre cheios. Um mundo inteiro unido em mil brindes, com os noivos e os seus séquitos a irem de mesa em mesa brindar com os convidados.

A certa altura senti pena dos noivos que não tiveram um momento de descanso ao longo do dia, forçados a não desarmar os amistosos e agradecidos sorrisos perante milhentas fotografias de circunstância.

Como não poderia deixar de ser, a última mesa a ser desocupada no inteiro andar do hotel, onde se celebraram pelo menos três casamentos, foi a nossa. Ali ficámos a vogar numa maré cheia de tinto chileno até nos mandarem embora, cumprindo o nosso desígnio de ébrios marinheiros, aportados pelo acaso num casamento chinês em Hong Kong.

A minha primeira boda oriental deixou-me com uma ideia sentimentalista de unidade entre os povos. Seja em que canto do mundo for, o dia do casamento é uma festa e uma celebração de indulgência para todos, menos para os noivos, vítimas de mil labores festivos. Que vivam uma longa vida nos braços um do outro.

20 Nov 2017

O Chefe do Executivo e o deputado

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Chefe do Executivo Chui Sai On apresentou na Assembleia Legislativa, durante uma hora, o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, no passado dia 14 de Novembro. Segundo o relatório, tudo irá permanecer em consonância com o status quo, registando-se um aumento no orçamento da segurança social. A temática do Relatório versa, como de costume, a redução de impostos, a distribuição de dinheiro e os aumentos salariais, sem surpresas nem inovações. O Chefe do Executivo deve pretender chegar ao fim do seu mandato, que termina dentro de apenas dois anos, de forma estável e pacífica. O que o futuro nos reservar virá a ser da responsabilidade da próxima Administração.

Comparado com a segurança derivada do Relatório das Linhas de Acção Governativa, o deputado Sou Ka Hou enfrenta uma guerra aberta. Os leitores terão provavelmente conhecimento de que, na véspera da apresentação do Relatório, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público e as Forças de Segurança de Macau emitiram os seus próprios comunicados de imprensa sobre o envolvimento de Sou Ka Hou no caso das “reuniões ilegais” e sobre a acusação que lhe foi feita de “prática do crime de desobediência qualificada”. O julgamento do deputado está marcado para breve. No seu comunicado de imprensa, a Assembleia Legislativa afirmava que, de acordo com o Estatuto dos Deputados à Assembleia Legislativa, o caso tinha sido enviado para discussão à Comissão de Regimento de Mandatos e que se aguarda o seu parecer. O Ministério Público forneceu apenas um apanhado geral dos pormenores do caso no seu comunicado. Estes dois órgãos públicos prestaram esclarecimentos sobre a situação. Mas, as Forças de Segurança de Macau emitiram uma nota explicativa contendo 27 pontos críticos, semelhante à reconstituição detalhada de um crime, de uma forma que cria nos leitores a sensação de estarem a presenciar um julgamento.

Em Macau, uma sociedade regida pela lei, antes de um suspeito ser julgado, deverá ser tratado ao abrigo do princípio da “presunção de inocência”. Este direito legal, que assiste a todos os réus, é reconhecido pela Convenção Internacional das Nações Unidas e é uma salvaguarda fundamental dos direitos humanos. Neste aspecto, Macau não é excepção. No entanto, as autoridades do Governo da RAEM parecem ter abraçado e trazido para a praça pública a causa da acusação, o que não deixa de ser estranho. O caso aconteceu há um ano atrás. A condenação de Sou por “reuniões ilegais”, só poderá ser decidida no Tribunal Judicial de Base. Mesmo depois da deliberação deste Tribunal, qualquer uma das partes pode apresentar recurso. É um assunto de competência jurídica. Já quanto à permanência de Sou Ka como deputado, a decisão caberá, após parecer da Comissão de Regimento de Mandatos, à Assembleia Legislativa, que reunirá em sessão plenária para o efeito. Esta decisão será tomada, com a presença de todos os deputados, por escrutínio secreto, mas Sou não será o único a enfrentar as consequências, os outros 33 deputados também serão afectados.

Após ter apresentado o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, o Chefe do Executivo deu uma série de entrevistas. Um dos jornalistas lembrou-o que, desde que assumiu o cargo, tem vindo a alertar a população para o potencial risco que existe na compra de propriedades imobiliárias, que registam aumentos constantes de preço. O Chefe do Executivo comentou que o mercado imobiliário se rege pela lei da oferta e da procura e que a maioria dos compradores são residentes, sendo que alguns deles adquirem uma segunda habitação. O problema de raiz está no facto de o rápido crescimento da economia de Macau apenas beneficiar um pequeno grupo, sendo a maioria afectada de forma negativa. Hoje em dia, quem detém poderosos interesses na sociedade controla a distribuição dos recursos e, de forma alguma, abre mão do seu domínio.

Confrontado com uma série de problemas sociais, o Governo da RAEM recorre basicamente ao Plano de Comparticipação Pecuniária e às pensões para minorar a insatisfação e distribui subsídios para garantir o apoio de associações e organizações. Macau é conhecido por ser “uma sociedade com muitas associações e organizações”. Muitas delas, subsidiadas pelo Governo, garantem apoio às suas políticas. Nos tempos que correm, com a entrada em alta das taxas do jogo, esta aliança com as organizações e associações, prontas a patentear o seu “patriotismo e amor a Macau” tem, até certo ponto, criado uma falsa sensação de super-estabilidade. Em resultado desta situação, a discrepância entre os ricos e os pobres, e a complementar crise escondida, têm vindo a tornar-se cada vez mais graves. Pessoas mais jovens, como é o caso de Sou Ka Hou, sem qualquer apoio das associações tradicionais, são muitas vezes apanhadas na teia quando tentam agir de forma genuína contra uma situação de injustiça. Sou Ka Hou defendeu activamente posições de oposição de forma bastante destemida, acabando diversas vezes por ser estigmatizado e rotulado de defensor da “Independência de Macau”.

A forma como a Assembleia Legislativa lidar com este caso, dará uma oportunidade à população e aos eleitores de Macau de ficarem a conhecer o seu funcionamento e a verdadeira natureza dos seus deputados. Nos próximos dois anos, tempo que falta até ao termo do seu mandato, o Chefe do Executivo Chui Sai On não deve ser sujeito a mais pressões. Mas para Sou Ka Hou, este biénio será certamente um período de teste.

17 Nov 2017

Com “o meu dinheiro”, não

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau continua a ser um oásis, caros leitores. O Chefe do Executivo foi anunciar as Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2018, e nela está incluída a sempre tão aguardada “participação pecuniária”, vulgo “os cheques” distribuídos a meio do ano pela população, que aquando do início da sua distribuição, há dez anos, foram tidos como uma medida para fazer face à elevada inflação.

A inflação vai e vem, e os cheques foram ficando. Isto em termos leigos quer dizer mais ou menos que o Governo “dá” dinheiro à população, mas também cobra impostos – claro, nem poderia ser de outra forma. Aqui não se discute muito, ou de todo, no que são aplicados os impostos, talvez porque não tenhamos assim muitas razões de queixa, ou não hajam motivos de indignação nesse particular. Já em Portugal o caso muda de figura. Portugal é a capital mundial da indignação, e aquilo que o(s) Governo(s) faz(em) como o “o nosso dinheiro”, que é como quem diz, o dinheiro “dos nossos” impostos, não é excepção.

Tenho visto bastante disto, quer em comentários em artigos de opinião na imprensa, quer nas redes sociais (especialmente aí), e é claro que o factor da simpatia partidária não é despeciendo para explicar desta nova tendência para cada português se tornar especialista em fiscalidade – há uma tendência para cada um puxar a brasa à sua sardinha, portanto. Olhemos para o exemplo de requalificação da zona da Mouraria, em Lisboa, que inclui a construção de uma nova mesquita, num total de três milhões de euros – dos “nossos impostos”, lá está, e que equivale a menos de um euro por contribuinte. Aqui pesa a notória antipatia pela confissão maometana (leia-se islamofobia), que leva a que certos grupelhos apelem ao argumento da “ida ao bolso” dos portugueses para criar a ideia (errada) de que sem mesquita, o dinheiro seria aplicado noutra coisa qualquer, ou revertia directamente para a carteira de cada contribuinte. Curiosamente ninguém se importou muito com outras obras que, isso sim, podem ser considerados elefantes brancos. O Estádio de Aveiro, por exemplo, construído para a organização do Euro 2004, custou 60 milhões de euros na altura, e foi utilizado cinco vezes desde então. E não, não pode ser utilizado para se fazerem ali piqueniques, por muito que “o vosso dinheiro” o tenha pago.

E não é apenas nas obras públicas que se reclama pelo dinheiro “dos nossos” impostos. O canal público de televisão também tem sofrido com esta nova escola de pensamento, que atribui a cada português o super-poder de achar o que deve ser feito ou não com “o seu dinheiro”. Se a RTP (a agradeço desde já ao canal público pela RTPi, que aqui a milhares de quilómetros de distância nos aproxima mais das origens) passa um programa que não é do agrado de alguns, toca a sacar do argumento dos impostos, refilar, barafustar e bater com o pé, quando o mais fácil seria simplesmente mudar de canal. Os fiscalistas de trazer por casa preferem dar a entender que por cada programa que um português não gosta, foi “do próprio bolso” que o pagou. Claro que aqui o contraditório não existe; ninguém vai gostar de um programa e dizer “sim senhor, isto é o que eu chamo de uma aplicação bem feita do dinheiro dos meus impostos!”, pois não?

Esta ideia mesquinha e errada de que um português está a pagar do seu bolso por coisas de que não gosta ou que não lhe interessam pode servir para tudo e mais alguma coisa. Por esta lógica, uma estrada que liga o interior ao litoral do país pode dar muito jeito a quem vive nas povoações mais remotas, mas lá está, porque é que EU tenho que pagá-la, se não me serve para nada? E se o tio Zé dos Nabos, de Carrazeda de Ansiães, apanhar uma bebedeira de caixão à cova, ao ponto de precisar de ficar internado no INEM durante dois dias, com o MEU dinheiro? Eu não sou obrigado a pagar pelas bebedeiras do tio Zé dos Nabos, pois não? Ou será que sou, tal como ele é obrigado a pagar pelas minhas? Mais contenção amigos. O tal dinheiro é de todos, é verdade, e obviamente que desejamos uma aplicação sensata do mesmo. Mas alto lá, e para concluir, “olhem que não é bem assim”. Não caiam no conto dos vigários que pensam que sabem o que deve ser feito com o tal “dinheiro de todos”.

16 Nov 2017

11.11

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]iria que há locais, socialmente falando, favoráveis à condição de vida solteira. A China talvez não seja um desses lugares se nos relembrarmos da denominação nada carinhosa de shengnu, ‘left-over woman’, quando se tem 28 anos e ainda não se casou. Há uma falsa crença que a vida não-casada é uma vida de desastre, mas o conceito começa a ser menos categoricamente quadrado. Neste caso, vamos agradecer ao consumismo económico pelo nascimento de dias dedicados à vida solteira, e que o fazem em tom de festa. Ora aqui está uma criação chinesa, 11.11 – 11 de Novembro – de composição numérica que reflecte os números da solteirice: um(a).

Este dia é no fundo um dia de saldos online dedicado aos mimos que os solteiros deveriam oferecer-se, seja isso roupa ou outro tipo de objectos mais ou menos úteis à vida diária. O marketing para esta campanha que anualmente faz com que milhões de yuan se mexam na China é surpreendentemente eficaz. Quando o conceito foi originalmente pensado, partiu de um grupo de pessoas que queria um pretexto para celebrar a sua condição solteira, desejando, contudo, um parceiro para a vida – não é por acaso que o dia dos solteiros se celebra no dia 11.11 e não no dia 1.1 – e alguém pegou na ‘neo-celebração’ para criar o maior dia de compras online.

Agora com uma ambição de fazer o dia 11.11 um fenómeno de compras global, a imprensa internacional tem realçado a importância do ‘mimo ao solteiro’, como se esse fosse realmente o objectivo máximo do evento. Não vou entrar em reflexões de como é que certas políticas económicas são importantes para a projecção no mercado internacional – porque o CEO do Alibaba sabe bem como fazê-las – mas gostaria de reflectir sobre os solteiros, o mimo, e as formas que utilizamos para chegar lá.

O dinheiro não compra a felicidade, mas deve comprar qualquer coisa. Ninguém é ingénuo para pensar que vivemos num mundo de valores morais em que o dinheiro não serve para nada. Nem 8 ou 80. A linha que separa a importância do dinheiro na felicidade relacional com a felicidade livre de financiamento, não existe verdadeiramente. Por vezes cai-se numa dicotomia moral que não serve de muito à experiência humana. Tomemos o exemplo do 11.11 que em vez de ser sobre pessoas, é sobre coisas. Eu podia dizer isto sobre qualquer celebração que envolva o consumo, que é um assunto mais do que batido.

O que me parece discutível, é que a vida solteira, que pode ter o seu q.b. de estigma em certas sociedades, possa ser ‘compensado’ com umas comprinhas. Todos nós gostamos de uma boa promoção, não digo que não, mas que mensagem é nos transmitida, a do dia 11? Milhares que se preparam (com dias de antecedência!) para estar à frente do computador a partir da meia-noite, para poder aproveitar os descontos e comprar todo aquilo que verdadeiramente desejam. Uma ‘festividade’ dedicada à ausência de amor romântico, e por isso um canal de gasto monetário. É claro que não se pinta assim, de forma tão pura e dura, o dia dedicado a estas promoções são simplesmente uma estratégia de suspense de vendas. Um dia dos solteiros a sério teria promoções em dildos ou outros brinquedos sexuais, em produtos de cozinha para uma maior autonomia doméstica, ou se quiser ser mais sha-la-la, teria à venda experiências que estimulem o amor de e para nós próprios. Porque o grande desafio da vida solteira não são só as expectativas socais, mas a criação de amor pessoal e íntimo, para nós mesmos.

15 Nov 2017

Selecção do júri (II)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada analisámos parte do processo de selecção do júri presente no julgamento de Donald Tsang, antigo Chefe do Executivo de Hong Kong. A utilização da língua inglesa e um pedido de isenção do dever de jurado foram as questões debatidas. Hoje continuaremos a discussão do caso.

Um dos jurados presentes neste julgamento é uma enfermeira que exerce num hospital do Governo. As suas funções obrigam-na a trabalhar dois sábados por mês. Como o julgamento decorre de segunda a sexta, não está isenta de trabalhar nesses dias. A jurada reclamou formalmente junto do juiz a este propósito.

Quase em cima da hora, a Directora do Departamento de Saúde, Drª. Constance Chan Hon-yee, foi convocada para o banco das testemunhas. Pediu desculpa pelos incómodos causados ao Tribunal, mas, adiantou não poder assegurar que a enfermeira viesse a ficar isenta do trabalho ao sábado durante o período do julgamento.

A Drª. Constance Chan Hon-yee explicou que a enfermeira tem um contrato que a obriga a trabalhar dois sábados por mês. O regulamento da função pública, bem como exemplos anteriores, indica que o sábado não está abrangido pela isenção de prestação de serviço, por isso a enfermeira deve ir trabalhar. Acrescentou ainda que este caso não é simples, e que dependerá da decisão do Secretário da Função Pública, se ela deverá ou não comparecer ao serviço nesses dias.

Mas o juiz ripostou:

“E se a decisão tomada estiver errada?”

Citando a Ordenança do Júri, o juiz esclareceu que o julgamento é um processo contínuo, que não é interrompido quando a sessão diária termina.

O juiz também realçou uma provisão incluída na Ordenança do Júri, que impede eventuais casos de discriminação dos jurados por parte dos seus empregadores. Se o Governo da RAEHK não abrir uma excepção, estaremos perante um caso de “RAEHK versus RAEHK”, ou seja, um processo jurídico em que o queixoso e o réu são a mesma entidade.

O juiz criticou ainda os termos em que estava escrito o fax que a Drª. Constance entregou ao Tribunal. No documento podia ler-se “não nos opomos a que a enfermeira seja dispensada” para prestar serviço como jurada.

“O vosso departamento não está a fazer um favor ao Tribunal, está a cumprir um dever cívico.”

O juiz censurou severamente a atitude do departamento, afirmando que podia incentivar outros empregadores a seguir-lhe o exemplo, deixando assim os membros do júri à mercê da “exploração”.

“Esta atitude não abona a favor da boa política governamental.”

O juiz solicitou que o Governo deliberasse sobre o assunto e que enviasse uma resposta na segunda-feira seguinte.

No dia marcado, o advogado Jin Pao, representante do Governo, informou o Tribunal que a administração concordava com o seu ponto de vista e que a enfermeira seria dispensada de qualquer serviço no Hospital enquanto o julgamento durasse. O advogado afirmou:

“O Governo reconhece a importância do serviço prestado pelos jurados.”

Acrescentou ainda que, posteriormente, não haveria qualquer dedução aos períodos de folga da enfermeira.

Não há dúvida que o Governo da RAEHK tomou uma boa decisão. Seguiu as indicações do juiz. Evitou colocar-se numa situação em poderia ser criticado por não obedecer à lei. Contudo, este caso revelou que a formulação da Ordenança do Júri não é suficientemente clara. É necessária maior clareza. Por exemplo:

“O jurado fica dispensado de se apresentar no local de trabalho durante o período em que estiver ao serviço do Tribunal.”

Por aqui se pode verificar que, independentemente de os jurados não irem ao Tribunal ao sábado, não podem ser convocados pelos patrões para trabalhar nesse dia. A formulação é vital e, como mencionámos a semana passada, os jurados são cidadãos comuns, não são especialistas em leis. A Ordenança do Júri é a única ferramenta em que o jurado pode confiar. É fundamental que o fraseamento deste Regulamento seja simples e directo. O Regulamento é o escudo que protege os direitos do jurado. Esta protecção visa garantir a prestação deste dever. Permite sobretudo que o jurado não sofra interferências do patrão e dos colegas durante a audiência do caso. Estas interferências poderiam, em última análise, influenciar a sua decisão em Tribunal.

Por outo lado, o termo “continuidade” pode ser problemático. Talvez seja difícil para um leigo compreender a natureza contínua de um processo jurídico. O caso de Donald Tsang é um bom exemplo. Se o juiz não tivesse levantado a questão da continuidade da prestação do júri durante o julgamento, não teria sido fácil para o cidadão comum compreender o conceito. A má interpretação desta Ordenança pode repetir-se vezes sem conta.

Mas não é só a Ordenança do Júri que implica a noção de continuidade.  Em certos crimes esta ideia também está presente. Por exemplo, se um criminoso esfaquear a vitima cinco vezes, estaremos a lidar com uma ou com cinco acusações de danos corporais? Podemos dar outro exemplo simples. Se durante um certo percurso, um condutor passar cinco sinais vermelhos, pratica uma ou cinco infracções de trânsito? É uma questão legal de difícil resposta.

Para contornar esta dificuldade, o ideal será criar uma Emenda à Ordenança do Júri.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
14 Nov 2017

A China e a liderança na Ásia Oriental (II)

“The emerging U.S.-China bipolarity will be tense but stable because balancing will be efficient and misjudgments about each other’s capabilities and intentions will be minimized.”
“Managing Hegemony in East Asia: China’s Rise in Historical Perspective” – Yuan-kang Wang

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China no mar da China Meridional, contra as Filipinas muito mais fraca e o Vietname não-alinhado, está disposta a intensificar o discurso do seu primado histórico auto-declarado na região. O confronto de Scarborough Shoal, refere-se às tensões entre a China e as Filipinas que começaram a 8 de Abril de 2012, com a apreensão pela marinha filipina de oito navios de pesca chineses no disputado local, tendo no mesmo dia um avião de vigilância, avistado oito navios de pesca chineses ancorados nas águas objecto de reivindicação. O navio patrulha foi enviado no mesmo dia para pesquisar o local e confirmou a presença das embarcações de pesca, e as suas actividades, tendo a 10 de Abril de 2012, constatado a captura de peixe, pelos navios de pesca chineses.

A equipa de inspecção filipina descobriu corais apanhados ilegalmente, mariscos e tubarões vivos dentro de um dos navios. O navio patrulha filipino tentou prender os pescadores chineses, mas foram impedidos pelos navios chineses de vigilância marítima e desde então, a tensão continuou entre os dois países. A defesa económica que a China teve na região foi mostrada pela resposta de muitos legisladores e empresários filipinos que advertiram o governo para não provocar a China, pois prejudicaria as relações comerciais entre os dois países. A reacção chinesa era de congelar a importação de frutas filipinas, arriscando o emprego de duzentos mil trabalhadores da indústria bananeira, e limitar os voos para as Filipinas por alegados motivos de segurança.

Alguns meios de comunicação social chineses solicitaram que o governo se envolvesse numa guerra de pequenas dimensões com as Filipinas para resolver de vez o conflito. Após dois anos, em 2014, a China instalou uma grande plataforma de exploração de petróleo dentro da Zona Económica Exclusiva do Vietname, acompanhada de navios de guerra e da guarda costeira. Todos os navios vietnamitas que tentaram entrar nas imediações foram atingidos ou atacados com canhões de água de alta pressão. Ainda que a China esteja a explorar o petróleo, o Vietname tenta manter o equílibrio com outras potências regionais e comprou à Rússia seis submarinos de ataque a diesel, bem como uma grande quantidade de mísseis antinavio.

As Filipinas, por outro lado, decidiram renovar a sua antiga aliança com os Estados Unidos, apesar das menos boas e complexas relações que os dois países atravessam, depois da eleição do Presidente Rodrigo Duterte, que pretende fazer uma política externa independente, sem a vassalagem dos seus aliados. Os Estados Unidos são o país-chave em qualquer tentativa de formar uma coligação de equilíbrio para conter o poder da China. É de relembrar que um dos momentos mais complexos dos últimos quarenta anos das relações sino-americanas, foi a crise do Estreito de Taiwan, em 1996. A política de uma China única, exerceu influência sobre os eleitores da ilha para não votarem em um partido político pró-independência, realizando uma série de exercícios militares no Estreito.

Os Estados Unidos, retaliaram, em ingerência de política considerada interna chinesa, enviando dois porta-aviões para a área, sem que se tenha produzido qualquer conflito. A China, desde meados da década de 1990, empreendeu um programa bem financiado de modernização militar. É uma tentativa de contrariar a potencial projecção das forças armadas americanas, dentro das águas disputadas do primeiro grupo de ilhas. A desvalorização das forças navais dos Estados Unidos e a liberdade de movimento nos mares do Leste e do Sul da China é vital. A capacidade da China de manter a marinha dos Estados Unidos afastada das águas da Ásia Oriental, constitui uma condição necessária e quase suficiente para deter uma hegemonia regional.

A grande maioria dos académicos nacionalistas reconhecem que a China cometeu um erro histórico, ao ignorar os oceanos e que a falta de preparação para a guerra naval, levou às humilhações do século XIX, e esta sensação foi mostrada em uma conferência na Universidade de Pequim, em 2007, onde a maioria dos oficiais militares, analistas do governo e académicos participantes, apoiaram a construção de uma grande marinha equipada com porta-aviões. Todavia, não é uma tarefa fácil, construir e criar uma frota de mar que poderá levar várias décadas a concretizar pela marinha do Exército de Libertação Popular, para alcançar a paridade com a marinha dos Estados Unidos.

Os militares chineses estão a construir a possibilidade e a capacidade de deter as operações americanas no Leste Asiático. A sua estratégia de dissuasão poderá ser o do uso de uma táctica militar chamada de “negação de área”, que inclui o uso extensivo de mísseis anti-aéreos e antinavio, que podem causar uma alta taxa de risco para os aviões dos Estados Unidos em qualquer conflito, dentro do primeiro conjunto de ilhas, o que faria afastar a marinha americana para longe do continente chinês, dificultando a sua flexibilidade operacional. Todavia, qualquer tentativa de consideração de hegemonia regional será reduzida por várias desvantagens da China.

A China, em termos de tecnologia militar, ainda se encontra muitos anos atrás dos americanos, ainda que esteja a evoluir a passos de gigante, dependendo da Rússia para a maioria dos seus equipamentos militares de ponta, incluindo motores para o seu avião de combate. Os submarinos nucleares que estão a ser construidos são similares à tecnologia da Guerra Fria e não são comparáveis ao actual equipamento da marinha americana. Os Estados Unidos, por outro lado, têm as suas debilidades. A guerra económica provavelmente funcionaria melhor contra a China, mesmo integrada mundialmente, quando comparada com a Guerra Fria contra a União Soviética que criou enormes prejuízos aos Estados Unidos e o assassinato do presidente John Kennedy.

Os Estados Unidos e a China estão em um relacionamento mutuamente seguro economicamente, e cada um pode retaliar em uma guerra económica iniciada pela outra. Todas as acções mal calculadas dos Estados Unidos podem empurrar alguns dos seus aliados do Leste Asiático para o lado da China. A força da influência económica da China não deve ser subestimada. Actualmente, existem oitenta países no mundo que têm a China como seu maior parceiro comercial. O comércio com a China é vital para a prosperidade dos países da ASEAN, pois dado o tamanho da classe média chinesa ainda em crescimento, é óbvio que a Organização Regional precisa mais do mercado chinês, do que o inverso. É de prever que até 2018, a China seja a maior economia do mundo, em termos de PIB. É natural que a China deseje dominar a sua região, porque em um mundo sem uma autoridade hegemónica, somente os países que maximizam o seu poder podem, tal como defende o realismo ofensivo, garantir a sua sobrevivência.

A China pode precisar de hegemonia regional para garantir o seu acesso às reservas mundiais de combustível fóssil, dado que na década de 2030, prevê-se que precisará de importar 80 por cento das suas reservas de petróleo, provenientes do Golfo Pérsico e do Estreito de Malaca. A situação, indiscutivelmente levará a China a ser ainda mais assertiva na reivindicação do primado no Mar da China Meridional. Além disso, se o crescimento económico actual da China continuar nas próximas décadas, e os seus gastos militares seguirem uma trajetória idêntica, pode ser difícil para os actores regionais resistirem ao seu poder. Se os Estados Unidos e os seus aliados regionais não conseguirem criar uma coligação de equilíbrio efectiva, terão grandes dificuldades em fazer face às movimentações da China. A China poderia alcançar a hegemonia regional de forma viável, e ser inatacável em virtude do seu tamanho económico e da sua capacidade militar.

A China foi o poder hegemónico no Leste Asiático durante séculos, antes dos europeus e americanos abrirem a região ao comércio no século XIX. Após o sucesso das reformas económicas de Deng Xiaoping, a China é mais uma vez um jogador na região e no cenário mundial e de acordo com a teoria do realismo ofensivo, é provável que a China faça uma tentativa em direcção à hegemonia regional. O seu comportamento nos mares do Leste e do Sul da China, bem como o crescente poderio militar e o surgimento do nacionalismo no país, dão a entender que tal processo se iniciou. A China, no entanto, ainda não possui as capacidades militares para desafiar os Estados Unidos em um confronto directo. Se os Estados Unidos puderem criar uma coligação efectiva de equilíbrio, o poder chinês será contido.

A China ainda não é uma hegemonia regional, mas se o seu potencial continuar a crescer de forma económica e militar como se prevê, pode ser uma força irresistível de conter, pelo que os actores regionais podem não ter outra escolha senão o de acomodar a China devido à sua própria sobrevivência econômica, e por falta de capacidade para contrabalançar militarmente. Se vasculharmos a memória o Comunicado de Xangai, também chamado de Comunicado Conjunto dos Estados Unidos da América e da República Popular da China (RPC), que foi assinado durante a visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972, tendo levado a uma aproximação sino-americana que teve um impacto dramático na geopolítica asiática. Tal, aconteceu após a visita igualmente importante e secreta à China do então conselheiro de segurança nacional de Nixon, Henry Kissinger.

As palavras consignadas no comunicado são particularmente significativas, afirmando que não devem procurar a hegemonia na região da Ásia-Pacífico, e cada uma das potências opõe-se aos esforços de qualquer outro país ou grupo de países para estabelecer tal hegemonia… A China nunca será uma superpotência e opõe-se à hegemonia e política de poder de qualquer tipo. Os Estados Unidos naquele momento não reconheceram a RPC. O assento chinês na ONU foi ocupado pela designada República da China, até 25 de Outubro de 1971, quando foi aprovada a resolução 2758, pela Assembleia Geral da ONU, substituindo Taiwan pela RPC, em todas as suas instâncias e organismos. A 23 de Novembro de 1971, tornou-se membro permanente do Conselho de Segurança com direito a veto. Os Estados Unidos, contudo, só reconheceram oficialmente a RPC como o único governo legítimo da China, a 1 de Janeiro de 1979.

O que fez os Estados Unidos mudarem a sua política em relação à RPC? A União Soviética e a RPC sofreram um conflito fronteiriço em 1969. A divisão sino-soviética foi um dos principais determinantes da política americana para com a China. Era geopolíticamente prudente que os Estados Unidos dividissem o conjunto de irmãos comunistas A RPC de Mao Tsé-Tung nunca se viu como um pequeno irmão da União Soviética. Existia um pensamento geopolítico bastante simples para enfrentar uma nação comunista contra outra e verificar a expansão daquele que era o inimigo e concorrente dos Estados Unidos no ambiente de segurança global. O inimigo era a União Soviética. À China, importava o entendimento com um poder extra-regional para verificar os avanços de um grande poder ao seu redor e nada melhor que a estratégia de uma nação comunista unida a uma nação capitalista para verificar as tendências hegemónicas de outra nação comunista na Ásia-Pacífico.

Todavia, os cálculos geopolíticos, parecem ser muito estranhos no século XXI. Um documento de estratégia divulgado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, em Janeiro de 2012, com o título “Sustentando a liderança global: prioridade para a defesa do século XXI” afirma que o crescimento do poder militar da China deve ser acompanhado por uma maior clareza das suas intenções estratégicas para evitar causar fricção na região. Além disso, as considerações resultantes de subsequentes debates, examinam a probabilidade de uma armadilha de Tucídides nas relações entre os Estados Unidos e a China, pelo que se sentia a inevitabilidade da procura da hegemonia regional da China na Ásia-Pacífico, que poderia criar um iminente conflito entre os dois países. Assim, existe matéria combustível suficiente na região, incluindo a estratégia de negação de área/anti-acesso da China aos mares do Sul e do Leste da China versus a posição da América quanto à liberdade de navegação e operações marítimas na região e as tensões sobre o Estreito de Taiwan.

O que tais situações implicam em termos de comportamento para uma grande potência e a continuidade e mudança das suas percepções de ameaças? Tal, significa que qualquer país que goze de um grande estatuto de poder ao ter uma hegemonia estabelecida no seu hemisfério, como os Estados Unidos no hemisfério ocidental, detestaria o surgimento de outro concorrente em outro hemisfério, neste caso o provável aumento da China como uma hegemonia no hemisfério oriental? Nesse caso, o medo do surgimento de outra hegemonia regional que restringa o acesso do estatuto hegemónico a essa região certamente será desafiado, independentemente de quem é o actor.

A União Soviética durante a Guerra Fria foi claramente o inimigo dos Estados Unidos e teve que ser combatida por todos os meios possíveis, incluindo cedências e acordos impressionantes com uma China que tinha mais ou menos os mesmos valores políticos e que transtornou os Estados Unidos. Os Estados Unidos tentaram de tudo, incluindo apoiar as forças do Kuomintang contra as forças comunistas na Guerra Civil chinesa e, mais tarde, espicaçar uma Índia não-alinhada para actuar como contrapeso contra uma China comunista antes de procurar uma aproximação. Actualmente, um dos maiores desafios para os Estados Unidos é usar velhas e novas ferramentas que variam entre estratégias de cooperação e coerção para gerir o crescimento da China.

Os Estados Unidos, que parecem querer retirar-se da liderança global, enfrentam uma China que, sob o comando do seu poderoso líder, presidente Xi Jinping, abandonou a estratégia de ocultar e abraçou plenamente a estratégia do “Sonho Chinês” que querem partilhar com o mundo, e em particular com os Estados Unidos, para que reconheçam que o tempo da China chegou. Os chineses desejam mais influência, respeito e espaço. Esses desejos parecem todos abrangentes em termos das implicações de uma China que tem visto o crescimento político, económico e militar e mostra intenções de remodelar normas e regras globais à sua imagem.

A influência económica da China é palpável mesmo entre os países com os quais compartilha equações de segurança adversas, levando a análises que alguns países queiram alinhar com a China em questões económicas e com os Estados Unidos em questões de segurança. A demarcação enganosa e simples dificilmente se desenrola facilmente na complexa geopolítica do século XXI. Os empreendimentos económicos da China, incluindo a ambiciosa “Iniciativa uma cintura, uma estrada (BRI na sigla inglesa) ”, têm objectivos estratégicos. O nome dado à iniciativa não ajuda a esclarecimentos. A “cintura” refere-se às ligações terrestres entre a China e a Ásia Central, reproduzindo a rota da seda que durante séculos foi o eixo que dominou o comércio mundial entre o Extremo Oriente e a Europa, pois foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, no final do século XV, que coincidiu com o seu declínio. A “estrada” trata-se da rota marítima através da qual a China pretende reforçar a sua ligação ao Sudeste Asiático, e conectá-la a África, onde a presença de empresas chinesas é assinalável.

Os corredores de conectividade e os seus resultados económicos para a China são ingredientes do pensamento do país de distribuir bens públicos no sistema internacional como uma grande potência. Mas ainda não está claro quais são os compromissos para a generosidade chinesa e qual a oportunidade que os países estão dispostos a pagar por enredar-se com os projectos geopolíticos e geoeconómicos chineses. O que tudo isso implica para a liderança global dos Estados Unidos e compromissos com países preocupados com uma China forte, ainda estão enredados na rede económica chinesa? O julgamento ainda está fora da natureza da dinâmica Estados Unidos-China e das suas implicações para a geopolítica global. No entanto, uma coisa parece ser clara, que é a procura da hegemonia e do jogo do equilíbrio de poder ser uma constante, pois apenas os actores mudam.

[LEIA A PRIMEIRA PARTE DESTE ARTIGO]
8 Nov 2017

Selecção do júri (I)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter recebido da Wave Media, uma penthouse localizada na China continental e avaliada em 3,8 milhões de Hong Kong dólares (487.000 USD).  Em contrapartida, Donald Tsang tinha-se manifestado “favorável” à concessão da licença de difusão, requerida pela Wave Media, proprietária de uma rádio local, durante a sua chefia do Governo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista da Wave Media, tinha a casa em seu nome e pagou do seu bolso as obras de renovação. O caso vai ser ouvido no Supremo Tribunal de Hong Kong. O julgamento será presidido pelo juiz Andrew Chan Hing-wai e contará com a presença de um júri.

Segundo o sistema legal de Hong Kong, sempre que esteja em causa o julgamento de um caso de maior gravidade, será necessária a presença de júri no Tribunal. Esta é a principal diferença para o sistema jurídico de Macau, que não contempla a existência de júri. Consoante a gravidade do caso, assim serão requeridos sete, oito ou nove jurados. Os jurados são escolhidos entre os residentes de Hong Kong. O júri terá apenas de decidir se o réu é culpado ou inocente da acusação. Deverá ser constituído por pessoas comuns. Não devem ser especialistas em assuntos jurídicos, nem personalidades de destaque. Os jurados deverão ser maiores de 21anos e terão de ter o ensino secundário completo. A partir do momento em que um cidadão é seleccionado como jurado, tem obrigação de respeitar a convocatória. É um dever cívico. Os jurados estão dispensados de comparecer nos seus locais de trabalho, enquanto o julgamento estiver a decorrer. Neste período, cada jurado recebe do Governo uma diária de 830 Hong Kong dólares.

Actualmente, em Hong Kong, o réu tem o direito de escolher a língua que será usada durante o julgamento. Pode escolher entre o chinês e o inglês. Neste caso, como o advogado de acusação é originário do Reino Unido, será utilizado o inglês.

Segundo os noticiários, a selecção do júri para este julgamento tem sido muito criteriosa, embora já tenha havido alguns casos a salientar. Em primeiro lugar houve um homem que apelou ao direito de excepção. O homem justificou o apelo, afirmando:

“Não gosto de Donald Tsang.”

O juiz começou por rejeitar o apelo, alegando que o motivo não era suficientemente forte. Mas, depois de o advogado de defesa se ter oposto à inclusão do homem no júri, o juiz acabou por anuir.

O segundo caso assinalado envolveu uma mulher, rejeitada pelo juiz porque não conseguia pronunciar em inglês as palavras, “afirmo, solenemente e veredicto”. A rejeição baseada no mau inglês da potencial jurada, acaba por ser um motivo injusto para o réu.

A terceira pessoa a ser rejeitada foi uma jornalista. A bem da isenção noticiosa, o juiz considerou que a sua profissão era incompatível com esta função.

A quarta, e última rejeição, foi também baseada na má pronunciação do inglês. Desta feita, a senhora em questão, não conseguia pronunciar “almighty” (todo poderoso). O juiz voltou a manifestar a sua apreensão em relação às exclusões baseadas no mau domínio da língua inglesa. Teme que este factor possa afectar o resultado final.

Como se pode ver, o juiz tem sido muito cuidadoso no tratamento dos assuntos relacionados com este caso. Devido à proeminência social do réu, qualquer erro pode resultar numa anulação do julgamento e conduzir a críticas severas ao Tribunal.

No primeiro caso de exclusão, o juiz insistiu na permanência do convocado, e, inicialmente, não aceitou a “antipatia pelo réu” como motivo suficiente para o isentar das suas obrigações. Se qualquer pessoa pudesse alegar esse motivo para ser isentada destas funções, o sistema de jurados deixava de funcionar em Hong Kong. Só motivos muito mais fortes costumam ser aceites.

Mas a recusa do advogado de defesa em aceitar esta pessoa, deu motivo suficiente ao juiz para aceitar o apelo. Deve fazer-se tudo para evitar recursos e aumento das despesas de Tribunal.

No entanto, esta posição pode ser questionável. Será que existe uma boa razão para obrigar alguém a ser jurado, mesmo que o advogado de defesa insista que a “antipatia pelo réu” é motivo para que não possa ser aceite? Imagine-se que num caso futuro o advogado de defesa alega o mesmo que alegou o de Donald Tsang. A decisão vai ser a mesma. O círculo vicioso mantém-se e o problema nunca terá solução.

Outra questão que merece ser discutida é a adopção da língua usada em tribunal. Neste caso dois jurados foram excluídos por não falarem bem inglês. O juiz não tinha confiança do seu domínio da língua. Se os jurados não compreenderem bem inglês, não podem acompanhar o julgamento e não terão bases para tomar uma decisão justa. Por aqui se pode ver como a escolha da língua do julgamento pode ser problemática. Os advogados e o juiz são obrigados a dominar o inglês, mas os jurados não são. Será que o Governo deve acrescentar uma emenda à Ordenança dos Júris, a requer que os jurados falem inglês fluentemente? Se essa condição for exigida por lei, acabará por perder a utilidade se o julgamento for em chinês. A questão parece ser complicada.

Aplica-se o mesmo princípio a qualquer região ou país com um sistema legal bilíngue. Em que circunstâncias se deverá adoptar uma ou outra língua, é a primeira questão, se ambas as partes em confronto dominam a língua escolhida, é a outra. Num sistema legal bilíngue, os juízes e os advogados dominam as duas línguas. Contudo, esse pode não ser o caso das testemunhas e do réu. Nesses casos, poder-se-á recorrer à tradução para solucionar o problema? A sociedade deverá considerar todas estas questões. Se todos os documentos tiverem duas versões, será um desperdício de tempo e de dinheiro e, além disso, implicará mais demoras no julgamento. Será isso que todos nós queremos?

Como o caso de Donald Tsang é complicado, continuaremos a nossa análise na próxima semana. Até lá, despeço-me dos meus leitores.

Professor Associado do IPM
Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
7 Nov 2017

Sexo na distopia

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] romance de Margaret Atwood, História de uma Serva, em inglês The Handmaid’s Tale, de repente lançou-se para fama porque alguém se lembrou de fazer uma adaptação televisiva. A autora diz-se encaixar no género de ficção especulativa, projectando futuros distópicos que podiam muito bem acontecer, e não discordo. Esta história soa à actualidade de alguma forma, mesmo que tenha sido escrita nos anos 80. O actual interesse por ideologias mais conservadoras no mundo ocidental parece encaixar que nem uma luva em alguns dos processos que levaram ao contexto político e social desta narrativa.

Vi a série e li o livro, e não pretendo de modo algum revelar spoilers. Esta é só uma reflexão a partir da ideia base em que esta história se desenvolve: no poder encontra-se um governo conservador altamente patriarcal. A narrativa gira à volta de uma mulher que é feita serva do sexo – para colmatar a necessidade de procriação. É uma espécie de concubina para trazer ao mundo os bebés que já são difíceis de produzir.

Como toda a ficção transporta-nos para futuros mais ou menos plausíveis, os nossos pobres neurónios são quase que obrigados a reflectir sobre as condições sociais, culturais e sexuais das nossas vidas. Remeteu-me para a existência particularmente feminina porque aborda o sexo e a maternidade de forma sufocante e urgente. Entrei nas realidades psicológicas das personagens e na de mim própria. A sexualidade feminina como conquista contrasta com a reinterpretação fictícia do sexo como objecto económico. Não é descabido – assustou-me – a fertilidade como bem estatal. Se algum dia virmos o mundo a padecer de uma taxa de natalidade decrescente, ao ponto dos humanos entrarem em vias de extinção, não serão absurdos os movimentos que instigam a mulheres a serem única e exclusivamente parideiras. Como os pandas em cativeiro.

Nesta história o sexo é atirado para o plano religioso e utilizado somente para procriar – com aquelas que ainda podem, com as mulheres que ainda são férteis. A ‘cerimónia’ acontece uma vez por mês de forma mecânica, impessoal, dolorosa ou não dolorosa, nem interessa. A gestação é uma formalidade para trazer alguém ao mundo. Sabemos como é a mente humana, a dor é silenciosa mas sabemos que a engenharia social magoa estas servas que não escolheram estar ali. Vê-se materializada a imposição ideológica que cobre formas de vida, e de sexo, sem grande reflexão. Já viram um mundo que em vez de entendê-lo, massacra-o?

A história é marcada pelo exagero patriarcal que se mascara na necessidade demográfica. O sexo carrega pudor social mas são permitidas manifestações clandestinas e violentas. Quem é que vive sem sexo? Quem é que vive sem carinho, ou amor? Quem é que vive sem sedução? Quem vive sem que lhe toquem? A história da Offred, personagem principal e narradora, torna saliente o desespero de não ter aquilo que o nosso corpo e mente precisa. Quando somos contrariados e tornamo-nos marionetas de uma ideia que não é nossa, e da qual não temos controlo algum. E o sexo assim torna-se, sem formas saudáveis e livres de expressão, num fruto envenenado que ninguém quer experimentar. A maternidade revela-se instrumental e sem espaço para afectos. A emoção que reina (e controla) é o medo, e assim se mantém a ordem social.

Reflectir sobre os significados do The Handmaid’s Tale é ter medo também – não necessariamente do possível tom profético – mas do extremismo ou autoritarismo que regem muitas vidas por esse mundo fora, no presente.

7 Nov 2017

Barata

[dropcap style≠‘circle’]L[/dropcap]onge da vigília dos sentidos decorre uma noite de mutação kafkiana. Acordo com a sensação de me estar a afundar na cama, de barriga para cima como uma tartaruga em apuros sem firmeza debaixo dos pés. Uma aflição de pernas em articulação desengonçada e pouco familiar esperneiam acima da minha barriga.

Apesar do choque inicial aceito a minha condição com alguma facilidade, talvez devida à simpatia de longa data com Gregor Samsa. A partir das primeiras páginas de “A Metamorfose” consumi compulsivamente tudo o que Franz Kafka escreveu, leituras que viriam a forjar não só o meu gosto, mas a minha morfologia. Talvez tivesse sido mais sensato orientar o meu fascínio literário para a inglória luta de Josef K. em “O Processo”. Mas se existem cidades ideais para uma pessoa se transformar em barata Macau estará, certamente, no pódio das mais apropriadas.

Esgravato no ar um desequilíbrio que me vira para a minha nova posição natural e experimento a tracção de meia dúzia de patas numa vertigem de velocidade. A rapidez com que me movo, aliada à minha recente reduzida dimensão faz-me correr como um carro desportivo com as antenas caídas para trás. Ensaio o primeiro voo e entro num domínio alado que nunca antes me fora permitido pelas óbvias restrições humanas. Só por isto já valeria a pena.

Por outro lado, passo de uma minoria nacional dentro de uma minoria biológica e entro na maior e mais ancestral família animal do globo, testemunha colectiva de sucessivas ascensões e quedas de impérios naturais e artificiais.

Segundo os registos que se conhecem hoje em dia, o primeiro parente afastado dos inaugurais hominídeos remonta a 14 milhões de anos atrás, ainda muito longe e a longos saltos evolutivos dos polegares oponíveis. O meu mais antigo parente de que há registo tem mais de 320 milhões de anos, muito antes de aparecerem os primeiros dinossauros. E sabem que mais? Cá estaremos quando vós, seres pensantes, se extinguirem por terem conseguido cogitar e concretizar o vosso suicídio colectivo e outras colaterais extinções em massa.

Pronto para enfrentar a rua, voo pela janela e contemplo o meu reino. Tudo isto sempre foi meu e assim continuará a ser até à morte do sol. Aterro no passeio e atravesso-me à frente de uma miúda, que segundo as minhas concepções anteriores é de origem ocidental, e divirto-me com o sobressalto que provoco. Ela não sabe, mas estas ruas são minhas, as sarjetas também. Tudo em todo o lado está ao meu dispor, o mundo é o local do meu perpétuo saque desde que do meu torço nasceram seis patas. Também a individualidade se esgueirou para um plano supérfluo.

Tudo nos pertence, somos os donos silenciosos de Macau por mais desinfestações que se façam, por mais que nos matem, nos espezinhem e nos roguem pragas. Nós somos a praga do Êxodo, a vingança adiada do Deus de Israel, os dignos soberanos da sombra e da luz.

Juntas constituímos o maior afluente que a fluidez conseguiu materializar em coloração de madeira encerada, correndo pelas alamedas de detritos animais, somos colectividade, legião, a verdadeira fraternidade da biologia intrinsecamente gregária. Somos a festa dentro de infestação, a seiva que corre pelas canalizações do mundo e das suas entranhas para o exterior. Este planeta é uma migalha que devoramos silenciosamente com o maior apetite comunitário alguma vez visto.

Um dia iremos cobrir a inteira crosta terrestre com sucessivas camadas de nós, seremos planeta, cobrindo tudo de tonalidades que vão do avermelhado ao negro luzidio, revestindo edifícios, montanhas e oceanos. O último som, suspiro de vida, será o coro de patas a raspar na solidez de tudo o que nos é exterior. Faremos migas da Terra e, hoje, proclamamos o início do nosso domínio global. Macau será a fundação da grande Era da Barata, a Jerusalém dos insectos, a confirmação do inevitável. Gregor Samsa é o Messias, o verdadeiro filho do deus das pequenas coisas. Lutar contra a nossa força é inútil, juntem-se ao corpo maior que reina nas vísceras de Macau.

6 Nov 2017

Em defesa do artigo 95 da Lei Básica

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o seguimento do 31 de Dezembro de 2001, o Governo da RAEM nada fez para implementar as disposições estipuladas pelo Anexo I da Lei Básica de Macau. Não seleccionou representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo. Foi por esse motivo que os 2º, 3º e 4º mandatos dos Chefes do Executivo foram exercidos sob uma “lei deficitária”. E isto porque antes da extinção dos órgãos municipais provisórios, em 2001, o Governo da RAEM não fez uma gestão correcta dos tempos previstos. Tinha sido dado um período de dois anos, a contar do regresso de Macau à soberania chinesa, para organizar a criação do órgão municipal sem poder político, mas tal não aconteceu. O resultado foi a ausência de representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, durante os três mandatos dos Chefes do Executivo. A quota destes representantes foi preenchida por membros de Macau no Comité Nacional da Conferência Consultiva do Povo Chinês.

Ao longo dos últimos dez anos e, apesar de muitas pessoas terem lutado pela constituição do órgão municipal sem poder político, a antiga secretária para a Administração e Justiça, Florinda Chan, afirmou que este órgão “poderia ou não vir a ser criado”. Estas declarações explicam porque é que, enquanto esteve no poder, não tomou quais quer medidas neste sentido. Além disso, os sucessivos Chefes do Executivo nunca deram grande importância à criação destes órgãos e quem tem grandes interesses a defender sempre a boicotou. Até agora as coisas foram permanecendo na mesma, mas nesta altura já não são permitidas mais desculpas nem mais adiamentos. No actual documento de consulta, pode ler-se “atendendo rigorosamente às disposições consagradas na Lei Básica de Macau…. procurando-se que os mesmos sejam criados legalmente conforme o consagrado na Lei Básica de Macau em inícios de 2019 e de forma a que sejam criados os representantes dos membros dos órgãos municipais a integrar a Comissão Eleitoral do 5.º Mandato do Chefe do Executivo”.

Perante esta situação, pergunto-me se os 2º, 3º e 4º mandatos dos Chefes do Executivo foram legítimos, já que foram eleitos através da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, com uma composição imperfeita (não obedecia escrupulosamente à Lei Básica de Macau). Se estes mandatos foram legítimos, então a Lei Básica de Macau não passa de um pedaço de papel sujeito a interpretações aleatórias. Se foram ilegítimos, de quem é a responsabilidade? Embora a população de Macau seja tolerante, quem desconsidera a lei não deve tomar essa tolerância como um dado adquirido.

Para implementar escrupulosamente o Artigo 95 da Lei Básica de Macau, é preciso respeitar o seu conteúdo legislativo durante o processo de criação do órgão municipal sem poder político. O actual documento de consulta sugere que todos os membros dos dois conselhos do órgão municipal sejam nomeados pelo Chefe do Executivo. Mas esta forma de nomeação é completamente inaceitável porque não se ajusta à realidade de Macau. Além disso, não está de acordo com o propósito legislativo da Lei Básica, na qual o órgão municipal sem poder político está estabelecido como um corpo estatutário, com a possibilidade de ser organizado pelos membros da população, de forma a existir participação na gestão de questões sociais, assuntos relacionados com a vida do dia a dia, bem-estar social e, ainda, sugestões e aconselhamento do Governo nas suas decisões.

Para se compreender melhor o que acabei de dizer, passo a citar um trecho da obra do Professor Xiao Weiyun, antigo membro da Comissão de Redacção da Lei Básica de Macau e professor de Direito na Universidade de Pequim. Segundo Xiao, a razão pela qual o Artigo 96 da Lei Básica só contém uma frase, “A competência e a constituição dos órgãos municipais são reguladas por lei”, fica a dever-se a “ter sido tido em consideração que, os diferentes sectores de Macau têm pontos de vista próprios sobre competência e sobre a constituição dos órgãos municipais”, e é por isso que a Lei Básica só estabelece princípios orientadores no Artigo 96, de forma a poder lidar com as necessidades emergentes no futuro. Foi dada flexibilidade ao Governo da RAEM no que respeita à definição de competência e à constituição dos futuros órgãos municipais”.

Mas terá o Governo tido qualquer flexibilidade na redacção do documento de consulta sobre a “Criação do órgão municipal sem poder político”? Em que altura é que os diferentes sectores de Macau declararam oficialmente que queriam desistir do direito de se tornarem membros dos conselhos dos órgãos municipais? O que se propõe actualmente é que todos os membros do Conselho de Administração Municipal” e do “Conselho Consultivo Municipal” sejam nomeados pelo Chefe do Executivo, o que constitui uma desobediência ao Governo Central e aos princípios da Lei Básica orientadores do desenvolvimento gradual da democracia na RAEHK e na RAEM. Esta proposta é um desrespeito à constituição dos órgãos municipais, já que esta contempla a inclusão de cidadãos e lhes confere o direito de opinião e aconselhamento.

Actualmente, o IACM tem três Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários (na Zona Norte, na Zona Central e nas Ilhas), com membros nomeados pelo Governo na sua totalidade, e realiza colóquios abertos sobre assuntos comunitários a intervalos irregulares. A permanência destes conselhos está dependente das necessidades futuras. A nomeação dos membros do órgão municipal sem poder político (pertencentes ao Conselho Consultivo Municipal), com acção nos domínios da cultura, recreio e salubridade pública, deverá ser feita pela população. Desta forma estes representantes da população têm uma oportunidade para participar na “gestão de questões sociais, assuntos relacionados com a vida do dia a dia, bem-estar social e, ainda, de sugerir e aconselhar o Governo nas suas decisões”. Os respectivos sistemas de nomeação podem ser baseados no modelo já existente dos Conselhos Consultivos de Serviços Comunitários, que define três zonas, e o número dos seus membros deve ser determinado pela quantidade de habitantes de cada uma delas. Defendo ainda que um número considerável de membros do Conselho de Administração Municipal deverá pertencer ao Conselho Consultivo Municipal, para facilitar a coordenação entre os dois Conselhos.

Os membros dos conselhos do órgão municipal sem poder político, devem ser escolhidos através de eleições representativas e não apenas por nomeação do Chefe do Executivo. A implementação e a interpretação dos Artigos 95 e 96 da Lei Básica encerram propósitos legislativos que não podem ser distorcidos segundo a vontade de cada um.

3 Nov 2017

Toque

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ual é o maior órgão do corpo responsável pelo prazer? A pele. Acho que esta pergunta já foi usada em tom de anedota – não tenho muito jeito para anedotas – mas as palavras ‘prazer’ e ‘grande’ leva a pensarmos em formas fálicas, muito naturalmente.

Temos a pele como a estrutura que nos protege do mundo exterior e a que conduz as mais variadas sensações, sejam elas de dor ou de prazer. No sexo, este prazer do toque é central para uma união sexual mais inteira, mas todos estão convidados a discordar. Desde cedo que aprendemos que os órgãos genitais estão no centro do prazer sexual sem reflectir acerca das periferias do corpo e o seu contributo. Quem tem fetiches particulares provavelmente terá uma noção mais alargada do sexo – para além dos seus genitais. A pele tem um papel importante nisto, ou por outra, o toque subtil ou violento estimula os nossos centros de prazer de forma mais integrada para quiçá, um bom preliminar ou um bom orgasmo.

Temos o toque tão garantidamente presente. Quando nos privamos do toque enlouquecemos. Não me refiro somente ao contexto sexual, mas em tudo das nossas vidas. Quando é que sentiram que um abraço com o toque de um corpo com o outro poderia fortalecer o sentido de ser, um sentido de ligação quando estamos particularmente sozinhos na nossa experiência. Seres intelectuais que somos vivemos preocupados com a nossa mente, preocupamo-nos em viver com a ‘cabeça’, com racionalidade. Esquecemo-nos das sensações do corpo e da pele que a acompanha em formatos mais ou menos do nosso agrado – quem é que se sente totalmente confortável na sua pele? Vão-se perdendo sentidos porque vivemos demasiado agarrados ao passado ou no futuro, nunca no presente.

O sexo vive disso também, de uma sensação de presença temporal que deveria ser obrigatória, e facilitadora pela pele. Prendemo-nos no(s) outro(s) à espera de percebermos mais sobre nós próprios, sobre o nosso corpo e a nossa sensação. Nada de pensar na lista de compras, nas tarefas ainda por fazer, nos problemas familiares ou num outro qualquer macaquinho na cabeça. Não – deixem-se ir.

Se esta fosse a normal perspectiva do sexo, teríamos pessoas mais felizes? É provável que sim. Não que seja a solução perfeita para a doença mental, mas ajuda – nascemos sensíveis em todas as pontas do corpo para nos protegermos do perigo, para nos mantermos vivos, para nos sentirmos. Quantas vezes já se queimaram com água a ferver e tiveram a perfeita sensação de alívio por só ser uma pequena área do dedo? O contrário do prazer é a dor, e por mais que nos confundamos com a linha ténue de diferença, o prazer – mais ou menos intenso – ensinou-nos como é que nos tratamos bem. Mas é isso, somos tanto pelo hedonismo simplificado – da mesma forma que se criam robôs hedonistas sensíveis à aprendizagem pelo prazer  – que bem podíamos dar complexidade ao prazer e à sensação, para nos deixarmos de prazer básico, e de consumo rápido.

Queremos o prazer certeiro de roçar de genitais, ou será que queremos perder mais tempo (eu sei, ninguém tem tempo estes dias) a procurar formas de prazer mais sofisticadas, pele com pele, corpo com corpo e mente? Não quero complicar a vida de ninguém, mas se somos seres conscientes com potencial de prazer imenso, porque é que nos acomodamos? Procurem o prazer, conscientemente, lentamente. Compliquem o prazer para descomplicar tudo outra vez.

1 Nov 2017

Justiça ameaçada

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente soube-se por um jornal de Hong Kong que um homem, empunhando uma faca, tinha ameaçado um juiz no Supremo Tribunal.

Operário da construção civil, Yu Zulin, de 53 anos, foi acusado de ameaçar o juiz Wilson Chan Ka-shun, com insultos pessoais, numa tentativa de intimidação. Os acontecimentos ocorreram dia 17 deste mês, nas instalações do Supremo Tribunal. O homem, que se encontrava apenas a dois metros de distância do juiz, empunhava uma faca de 20cm de comprimento. O juiz estava no Tribunal para presidir ao julgamento de um caso de Direito Civil.

Por volta das 10h da manhã, Yu encontrava-se na galeria pública da sala de audiências nº 13, onde o juiz Wilson presidia ao julgamento. De repente, Yu puxou de uma faca e gritou para o juiz em mandarim:

“Vendido! Pensavas que eu não te ia encontrar!”

O juiz não respondeu e abandonou a sala de imediato. Nessa altura Yu também saiu a correr. Os funcionários do Tribunal chamaram a polícia. Quase de imediato chegaram ao local dezenas de polícias que se puseram à procura do homem.

Polícias à paisana fizeram buscas em todos os andares do edifício, inclusivamente no 5º andar, onde o antigo Chefe do Executivo  Donald Tsang Yam-kuen estava a ser julgado por corrupção. A audiência não foi interrompida.

O Inspector-Chefe Dilys Lo Shui-lin, da Polícia Central, comunicou que tinham revistado o edifício por duas vezes, mas que não tinham encontrado ninguém suspeito.

Yu acabou por se render ao fim de oito horas. Na esquadra explicou à polícia as razões do seu comportamento e foi conduzido ao Tribunal de Magistrados, no passado dia 19. O delegado do Ministério Púbico declarou,

“Este crime foi planeado, ao contrário de outras situações de ameaça.”

Yu foi preso pelo crime de intimidação. O apelo para sair em liberdade condicional foi rejeitado pelo Tribunal de Magistrados.

No entanto Yu afirmou que:

“Agi por impulso. Peço desculpa ao juiz e à população de Hong Kong pelos meus actos. Estou arrependido. Não vou oferecer resistência.”

Este caso resume-se à insatisfação de alguém com a sentença de um juiz e que, em consequência disso, o ameaça.

Em Hong Kong, existe um sistema bem estruturado que permite apresentar queixa da actuação dos magistrados, caso a pessoa se sinta lesada por uma decisão injusta. Nessa altura o juiz será sujeito a um inquérito. Teria sido melhor para Yu se se tivesse informado sobre o funcionamento do sistema legal de Hong Kong, antes de ter partido para acções desadequadas.

Agora Yu vai ter de enfrentar consequências graves. Como afirmou o delegado do Ministério Público, este caso excede a acção de intimidação habitual. Foi premeditado e houve intenção de agressão. Em causa está, não só, a ameaça feita ao juiz, mas também o estado de direito em Hong Kong. De acordo com a seriedade da situação, a hipótese de o réu vir a ser preso é elevada. A sentença não se limitará ao pagamento de uma multa. A data para o encarceramento do réu será anunciada posteriormente pelo magistrado.

Como já referimos por diversas vezes, condenamos em absoluto qualquer tipo de ameaças feitas a representantes da justiça. Devemos dar o nosso melhor para que sejam criadas todas as condições que permitam aos juízes deliberar de acordo com a lei. Qualquer demonstração de desagrado em relação às decisões do juiz, dentro ou fora da sala de audiências, ou qualquer tipo de ameaça, são comportamentos condenáveis.

Se o juiz:

for pressionado, ou
sentir que a sua vida corre perigo, ou
sofrer qualquer represália pós julgamento, ou
for despedido na sequência de uma sentença

acabará por ficar condicionado e deixa de haver garantias de que as suas decisões não estão a ser determinadas pelo medo. O interesse da justiça deixará de estar protegido. Será isto a que queremos assistir?

As situações que atrás mencionámos devem ser evitadas, porque só assim o juiz estará livre para deliberar de acordo com a lei, sem qualquer tipo de pressão. O interesse das partes envolvidas estará protegido e as pessoas acreditarão que a lei é um instrumento de que nos servimos para resolver contendas. Se a população confiar nas decisões dos juízes, o estado de direito fica garantido. É preciso que nunca nos esqueçamos que o “estado de direito” não se impõe pelas armas, mas sim pela nossa crença na sua necessidade.

Embora o caso relatado não seja complexo, não deixa de ser muitíssimo sério. Se toda a gente que fica insatisfeita com a decisão de um Tribunal agisse desta forma, imagine-se o tipo de sociedade que teríamos.

31 Out 2017

A China e a liderança na Ásia Oriental  (I)

“China’s rising power is chipping away at the unipolar structure of the world. The power gap between China and the United States continues to shrink. China’s rise will challenge the U.S policy of maintaining the balance of power in Asia. President Obama’s “pivot” to Asia is an effort to rebalance the distribution of power in the region. Most Asian nations prefer to have the United States as an offshore balancer, an option that they did not have in their pre-modern history. A security dilemma is operating in U.S.-China relations, causing a deepening strategic distrust between the two countries.”
“Managing Hegemony in East Asia: China’s Rise in Historical Perspective” – Yuan-kang Wang

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China foi o poder dominante na Ásia Oriental durante séculos antes da chegada do imperialismo ocidental no século XIX. Após quase trinta anos de crescimento económico espectacular, a China está novamente preparada para retomar o seu lugar, como poder hegemónico regional. O argumento advém do facto da China, apesar das suas aspirações a um novo domínio na Ásia Oriental, ainda não estar em condições de desafiar a preponderância militar dos Estados Unidos no Pacífico Ocidental. Fazendo uso da epistemologia objectiva do neorrealismo e das ferramentas teóricas do realismo ofensivo, damo-nos conta das razões que motivam a China a querer ser o poder regional dominante.

O desejo de hegemonia levou a acções contudentes nos mares do Leste e do Sul da China, bem como a um crescimento do nacionalismo chinês, o que conduziu alguns países da região a reforçar os seus laços com os Estados Unidos, aumentando as probabilidades da tentativa de formação de uma coligação de equilibrio, para conter a ideia da China de domínio regional. Todavia, é reconhecido que o crescimento aparentemente imparável da economia chinesa, em conjunto com o aumento dos gastos com a defesa, pode ser uma força irresistível a longo prazo, o que pode levar a uma situação, em que a maioria dos actores regionais concilie a necessidade económica, bem como a realidade militar, e aceite a primazia chinesa no Leste Asiático, conjuntamente com o aumento das despesas de defesa.

A definição proeminente de hegemonia tem subjacente a ideia neo-gramsciana do consentimento, o que significa a aceitação do pensamento de hegemonia a liderar as forças sociais dentro de um determinado Estado. O termo mais correcto, é o proposto pelo cientista político americano, John Mearsheimer, que claramente o define no texto “The Gathering Storm: China’s Challenge to US Power in Asia” de 2010, desenvolvido no seu livro “The Tragedy of Great Power Politics”, e que desde 2001, data em que lançou a primeira versão da sua teoria sobre o realismo ofensivo, defende que a hegemonia é o facto de um país ser tão poderoso que domina todos os outros, ou seja, nenhum outro país tem os recursos militares para o enfrentar em um conflito sério.

É de considerar que em essência, uma hegemonia é o único grande poder no sistema, pois de  acordo com a teoria do realismo ofensivo, é natural que uma grande potência como a China procure a hegemonia regional, que é uma posição que os Estados Unidos actualmente detém no Hemisfério Ocidental.  Ainda, considerando um sistema internacional anárquico, sem autoridade principal para recorrer, a sobrevivência é o principal objectivo, uma vez  que os países nunca podem ter a certeza das intenções de outros actores.

Assim, em um mundo de auto-ajuda, a China ganha por ser o poder mais seguro, económico e militar. Chegar à posição de ser uma hegemonia regional sem concorrentes de igual peso, dar-lhe-ia a capacidade de alterar o equilíbrio de poder em outras regiões do mundo. O neorrealismo, alternadamente chamado de realismo defensivo, difere nesta matéria do realismo ofensivo. O americano, neo-realista ou realista estrutural, cientista de relações internacionais, Kenneth Waltz, argumenta que um  poder excessivo pode induzir outros países a aumentar os seus aliados e a agrupar os esforços e segundo essa visão, podem formar uma “coligação de equilíbrio” para evitar o aumento de um poder dominante.

Tendo em conta essas premissas, seria bastante racional para a China não antagonizar os seus vizinhos construindo um predomínio de poder que juntamente com os Estados Unidos, levem a formar uma aliança contra si. Os realistas ofensivos, no entanto, argumentam que a hegemonia regional é a única forma segura de manter a sobrevivência. Os actores estatais, portanto, devem estar sempre atentos a momentos oportunos para maximizar o seu poder. Talvez, tenha sido a perda da hegemonia regional da China, em meados do século XIX e o subsequente “século de humilhação”, que ilustra perfeitamente esta situação. Por mais de dois mil anos, a China e a civilização sínica foram a força política e cultural dominante na Ásia Oriental.

A sua hegemonia sobre a região foi demonstrada pelo sistema de tributo institucionalizado, após o qual as nações estrangeiras reconheciam o seu estatuto inferior em comparação com os chineses. Uma das formas como o  faziam era enviando missões diplomáticas ao imperador chinês. Essas missões levaram consigo presentes caros e incluíam elaborados procedimentos de subserviência ao imperador, que deveriam ser conduzidos por embaixadores estrangeiros para que as relações comerciais se iniciassem.  É de referir que esse sistema esteve activo, e impediu que as guerras interestaduais se estendessem e até mesmo restringissem o comportamento chinês, em relação aos seus vizinhos mais fracos. Mas essa ideia de um sistema regional pacífico sob hegemonia chinesa é negada pela estimativa de que os estados chineses lutaram em três mil e setecentas e cinquenta e seis guerras desde de 770 aC até 1912, com uma média de 1.4 guerras por ano.

O sistema de tributo ainda era uma ordem internacional de natureza anárquica, mas com um arranjo hierárquico que tinha a China como o poder predominante,  e que por força desse poder e recursos esmagadores, desenvolveu um conjunto de regras e instituições para governar as ligações entre si e os outros actores políticos. A China desenvolveu relações externas dentros dos seus canônes, o que sem dúvida, poderia explicar a razão pela qual a Ásia Oriental era pacífica, sob o domínio chinês, não sendo tão consensual quanto submissa diante de uma poderosa hegemonia. A predominância de poder da China, em termos neorrealistas, era o garante  da paz, pois nenhuma combinação de actores regionais poderia coligar-se contra si. Todavia, nas áreas onde estavam em desvantagem militar, como, por exemplo, contra as tribos nómadas do norte, que tinham um excelente conhecimento táctico da guerra de cavalaria, o conflito não foi evitado, porque os nómadas se recusaram a aceitar a superioridade chinesa. O problema psicológico que o sistema de tributo pode ter causado, foi de que a China não se apercebeu do quanto dominante era, tendo ficado em situação de negligência com a sua primazia regional. Assim, quando o imperialismo ocidental chegou à Ásia Oriental no século XIX, o pensamento chinês era muito intuitivo para poder enfrentar o desafio da superioridade tecnológica do Ocidente.

Os acontecimentos do passado foram demonstrados pela humilhação da China ao ser derrotada pela Grã-Bretanha na Primeira Guerra do Ópio de 1840 a 1842, tendo nas décadas subsequentes produzido a abertura do país pelos europeus e americanos, em uma série de tratados desiguais. Talvez, a lição mais importante que os chineses tenham aprendido sobre a necessidade de acumular o máximo de poder possível, foi a da  ocupação humilhante que o Império japonês lhes infligiu, após o incidente da Ponte Marco Polo, em 1937. Os fortes sentimentos negativos da ocupação japonesam, estão na memória dos chineses, e foi demonstrado pelos tumultos anti-japoneses de 2005. Tal, ocorreu depois do Japão introduzir um livro escolar em que os crimes de guerra japoneses cometidos na China, estavam amenizados.

O nacionalismo está em ascensão na China em paralelo com o seu ressurgimento como potência regional e mundial. É a ferramenta usada para legitimar a regra do Partido Comunista Chinês, embora, até à década de 2000, a China ainda estivesse a seguir a estratégia de Deng Xiaoping para facilitar o seu crescimento, traduzido na máxima de observar com calma; assegurar a posição do país; lidar com os assuntos tranquilamente; esconder as capacidades e aguardar pelo melhor  tempo; manter um baixo perfil e nunca reivindicar a liderança. A China é uma potência muito mais forte do que há três décadas e, até 2010, graças às reformas económicas de Deng em 1978, é a segunda maior economia do mundo.

A conquista do crescimento económico tem sido tremenda, sendo o PIB da China em 1979 de apenas 10 por cento do Japão. O seu PIB, actualmente, é duas vezes e meia maior que o do Japão. Alguns intelectuais chineses pediram uma nova ordem internacional hierárquica inspirada no termo relativo ao antigo conceito cultural chinês, denominado de “Sob o céu” ou “Tianxia”,  que conota o mundo geográfico ou o reino metafísico dos mortais, e mais tarde foi associado à soberania política e que teria melhor capacidade de resolver os conflitos do mundo que a ONU,  podendo ajudar a criar uma utopia pacífica mundial.

O mais provável, é que “Tianxia”  não é mais que uma nova hegemonia que reproduz o império hierárquico da China para o século XXI. Todavia, existe indubitavelmente um desejo na China de mudar a ordem internacional dominada pelo Ocidente. O enfraquecimento percebido dos Estados Unidos após a crise financeira de 2008, tornou a China mais confiante em afirmar os seus interesses na Ásia Oriental e sabemos que no início da década e milénio, o país era muito mais conciliador para com os seus vizinhos e quando se juntou ao Tratado de Amizade e Cooperação (TAC) da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN na sigla em inglês), em 2003, parecia estar a aceitar um mundo de instituições multilaterais sob o domínio americano. A China, entretanto, tornou-se mais poderosa e desenvolveu uma posição cada vez mais forte em relação aos seus vizinhos, podendo-se afirmar que segue na direcção da teoria do realismo ofensivo.

À medida que ganha mais poder, bem como interesses globais, é provável que deseje dominar a sua região para garantir a sua segurança, começando por tentar resolver as disputas territoriais segundo as suas regras. Os três principais conflitos que a China tem são com o Japão no Mar da China Oriental e com as Filipinas e o Vietname no Mar da China Meridional. As relações sino-japonesas, foram as mais amargas e contenciosas por vários motivos históricos. A China em 2004, foi oficialmente considerada como uma ameaça à segurança pelo Japão. A China considera fortemente a reivindicação do Japão às Ilhas Diaoyu/Senkaku, alegando que só foram entregues,  após a guerra sino-japonesa de 1894-1895 e deveriam ter sido devolvidas à China, após a II Guerra Mundial.

As reivindicações de reservas de petróleo na área variam entre os sessenta e cem milhões de barris calculados pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos e mais de cem mil milhões de barris calculados pela China. O nacionalismo também tem sido um factor igualmente importante na disputa, não estando nenhum dos lados disposto a mostrar qualquer fraqueza. No entanto, a falta de vontade da China de impulsionar a sua reivindicação fora dos limites do direito internacional, mostra o respeito pelas Forças de Autodefesa do Japão, e uma cautela quanto à estreita aliança do Japão com os Estados Unidos, sendo um exemplo de como a China ainda não atingiu o poderio suficiente para ser poder hegemónico na Ásia Oriental, mas acabará por sê-lo a seu tempo.

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27 Out 2017

O Bar do Temporal

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ano de 2017, agora a dois míseros meses de findar, fica marcado em Portugal pela tragédia dos incêndios, marcado pelo elemento do fogo. Aqui no nosso território à beira-China plantado foram outros os elementos que contribuíram para a nossa pior memória dos últimos dez meses: a água, na sua vertente transbordada, e o ar, na sua versão de ventos ciclónicos. Foi o tufão Hato, que literalmente “sacudiu a cabana”, aos mais vários níveis. Como epílogo tivemos no final da semana passada o relatório do “Bar do Temporal gate”, publicado pela ASAE local, e que nos deixou saber detalhes do que se passa um pouco pelo mundo dos comes e bebes. Alguns deles sórdidos. Mas o que é o Bar do Temporal?

Como o próprio nome indica, o Bar do Temporal é procurado pela sua clientela apenas quando chove muito, ou sopram rajadas com uma intensidade maior que o normal. Durante o resto do tempo até dá para esquecer que ele existe. A motivação é simples; o Bar do Temporal decide se a malta vai dali para casa para ouvir o vento a assobiar pela janela, ou se vai bulir, o que nesse caso costuma ser uma chatice. As críticas aparecem com frequência, nomeadamente no que diz respeito à forretice do bar, que teima servir em copinhos “de três”, enquanto a sua congénere de Hong Kong, o Stormy Weather Pub, saca muito mais facilmente dos generosos copos “de oito”. Teorias da conspiração não faltam, e entre essas há uma que fala de interferências externas, nomeadamente da parte de uns tipos que até não gostam de beber, mas mamam. E muito!

Em tempos idos, o Bar do Temporal não se apresentava como uma carreira atractiva para baristas, sommeliers e técnicos de atendimento à mesa locais, pois apesar de pagar o mesmo que outros estabelecimentos do género, era mais parco no departamento dos brindes e outras ofertas – tudo isto alegadamente, entenda-se. Contudo, e com o virar do século, o Bar do Temporal ganhou um novo élan, pois ali não se fala de política (que é sempre uma coisa muito chata), e a estabilidade do tempo meteorológico que se verifica durante grande parte do ano ajuda a passar o tempo cronológico com menos stress. Tudo estava (mais ou menos) bem até um belo (ou não) dia de Agosto, que não podia ter sido o pior para o Bar do Temporal enganar-se na dose, e servir as bebidas erradas. Com a mostarda e a água do rio a subir-lhe ao nariz, a já muito impaciente clientela chateou-se a valer, demitiu-se o manager do Bar do Temporal, e veio ao terreno a ASAE dos costumes.

E o que encontrou, esta espécie de ASAE, só que de colarinho? Muita coisa que uns já suspeitavam mas não tinham a certeza, e que outros já sabiam mas não queriam dizer. Aparentemente existiam dificuldades de comunicação entre o manager e os barmen, com o primeiro a ignorar as sugestões dos segundos, e a confeccionar os cocktails à sua maneira. Diz-se ainda que o referido manager escolhia música a tocar do bar muitas vezes da sua casa, o que não lhe permitia detectar o ambiente nocivo que isto provocava. Não despeciendo é o comportamente da sua assistente, que mantinha uma capelinha junto do balcão, e quando fazia as suas orações perturbava os empregados, que acabam a despejar os whiskeys metade no copo, metade na mesa. Um relatório contundente. Actualmente o Bar do Temporal está sob a gestão do antigo responsável pelo Bar das Tabuletas. Será que vão soprar ventos bonançosos de pequena vaga no Bar do Temporal? Só o tempo o dirá. E o tempo, também.

26 Out 2017

Liberdade de expressão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 4 o Tribunal de Apelação de Hong Kong (COFA) rejeitou por unanimidade o caso apresentado por Christine Fong Kwok Shan.

A história conta-se em poucas palavras. Christine combatia o projecto de expansão dos aterros de resíduos tóxicos da South-East New Territories. Integrou um grupo que se manifestou durante as duas sessões do Conselho Legislativo abertas ao público, nas quais o sub-comité das Obras Públicas apresentou o projecto à discussão.

Durante os protestos, Christine despiu o casaco revelando uma t-shirt que tinha escrito “Defendam Tseung Kwan O”. A seguir entregou um cartaz a um companheiro, que tinha desenhada uma suástica e onde se podia ler “Aterro – Campo de Concentração de Gases Venenosos”. O homem, na galeria pública que encima o recinto, exibiu o cartaz. A manifestação foi interrompida pela intervenção dos seguranças que de imediato lhe tentaram arrancar o cartaz, acabando um deles ferido num pulso. O incidente provocou a suspensão antecipada da sessão.

Após a retoma da reunião Christine e os companheiros entoaram vários slogans. Na altura foram avisados pelo presidente do sub-comité das Obras Públicas que seriam expulsos da sala se não se calassem. Como ignoraram o aviso e deram os braços para resistir à expulsão, a sessão voltou a ser suspensa. Os trabalhos prosseguiram passado uma hora, noutra sala de conferências, mas desta vez sem a presença do público.

Christine foi mais tarde condenada por infracção da secção 12(1) das Directrizes Administrativas do Regulamento de Admissão e Conduta Pessoal, que estipula o seguinte,

“Não é permitido a exibição de cartazes e faixas com símbolos ou mensagens, em galerias reservadas ao público ou à imprensa”.

Foi também condenada por infracção da secção 11 que determina que, quem der entrada no recinto do Conselho Legislativo, terá de o fazer de forma ordeira.

Christine foi sentenciada, após julgamento do Tribunal de Magistrados, ao pagamento de uma multa de 1.000 Hong Kong Dólares por cada acusação. Mas Christine apresentou recurso da sentença, na convicção de que o princípio da liberdade de expressão, consignado no artigo 27 da Lei Básica de Hong e no artigo 16 da lei que regula a “Declaração dos Direitos Humanos”, tornam as secções 11 e 12 anticonstitucionais, na medida em que estas disposições violam a liberdade de expressão, ao proibirem a exibição pública de símbolos e mensagens.

O COFA reiterou as decisões dos dois tribunais de instância inferior. Para tal recorreu ao artigo 39 da Lei Básica de Hong Kong e ao artigo 16 da Declaração dos Direitos Humanos, concluindo que se pode proibir manifestações de protesto nas galerias do Conselho Legislativo, desde que exista o risco de criarem desordem e interferência com os direitos dos outros observadores. As restrições impostas pela lei são necessárias para proteger a ordem pública e fazer respeitar os direitos dos outros cidadãos.

O COFA adiantou ainda que os limites da liberdade de expressão nas galerias do Conselho Legislativo são “claramente proporcionados e justificados” permitindo que a legislatura prossiga com o cumprimento das suas funções legais.

Esta argumentação demonstra o equilíbrio que é necessário entre liberdade de expressão e respeito pelos demais. Pelos motivos apontados o recurso de Christine foi rejeitado. Não poderá haver mais recursos na medida em que a decisão foi tomada pelo Tribunal da mais alta instância.

Com a implementação do Direito Comum em Hong Kong, o precedente jurídico desempenhará um papel muito importante no sistema legal. O precedente jurídico aberto pelo COFA fará parte das leis de Hong Kong. Todos os tribunais da cidade estarão obrigados a seguir a decisão. Nesta deliberação o COFA decidiu uma vez mais que a Lei Básica de Hong Kong garante vários tipos de liberdade aos seus residentes. Estes direitos serão garantidos de futuro. No entanto, deveremos ser razoáveis no exercício destes direitos. Foi declarado que “comportamentos desordeiros e exibição de cartazes de protesto” são comportamentos não aceitáveis nas galerias do Conselho Legislativo. Portanto, futuramente, se alguém tiver uma atitude semelhante, será certamente condenado em tribunal.

Os limites da liberdade de expressão foram outro dos argumentos apresentados pelo Tribunal. Estes limites têm de ser estipulados pela lei, de forma a proteger a segurança dos cidadãos, mas também a liberdade de expressão. Será sempre uma tentativa de ajuste entre estes dois direitos básicos. No Conselho Legislativo o público tem de se comportar de forma ordeira e não é permitida a exibição de cartazes de protesto, logo não é permitida qualquer manifestação. O Conselho Legislativo é um local destinado à criação de legislação, abrigo da Lei Básica da cidade. As manifestações podem originar desordem pública, e podem interferir com os deveres dos deputados. Os protestos podem ainda afectar os outros observadores da sessão. No entanto, será necessário que a lei defina o que representa exactamente transgressão a estes regulamentos. O Conselho Legislativo destina-se aos legisladores, não é local para manifestações e protestos.

Ninguém gosta de viver perto de lixeiras, sobretudo se se tratar de um aterro de resíduos tóxicos. Os sentimentos dos manifestantes são compreensíveis. Mas do ponto de vista social, expressar opiniões de forma leviana não é aceitável. Seremos todos afectados. Esperamos sinceramente que não existam mais manifestações de protestos insensatas.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
24 Out 2017

Assédio a sério

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem tem acesso à imprensa internacional provavelmente deparou-se com uma avalanche de notícias que cogitam os sentidos do assédio sexual. O que nos parece surpreendente, é que alguém de grande nome internacional e prestígio tenha sido actor de assédio e violação durante anos. A pergunta natural é de como é que esta situação nunca fora denunciada? Como é que se manteve silenciosa?

O que eu julgo que é uma explicação para este fenómeno, é a normalização do assédio. Na nossa experiência limitada pensamos que a realidade social está bem delimitada entre o certo e o errado, e por isso, (achamos que) o assédio será automaticamente reconhecido e denunciado. Contudo, somos seres complexos que contam narrativas acerca do nosso posicionamento social e daquilo que fazemos, e o assédio não é explicado de forma simples. As formas de avanço masculino muitas vezes dançam por entre as linhas ténues do que é normal ou não. E como nós nos regemos por expectativas de género fixas, até somos incapazes de reconhecer assédio sexual nos homens – porque julgamos os homens sempre predadores e as mulheres sempre as vítimas.

A primeira reacção costuma ser sempre: provavelmente isto aconteceu porque ela ou ele estava a pedi-las. E isto as pessoas à nossa volta vão ajudar a confirmar. Mas para o assédio ser levado a sério teria que ser  melhor discutido sem grandes complicações. Num mundo ideal-hipotético, o assédio poderia ser denunciado sem grandes consequências, mas não é isso que acontece. Denunciar o assédio não traz só repercussões ao agressor, mas a quem denuncia. Num outro momento já me debrucei sobre a temática da agressão sexual mais explícita, denunciando as práticas (que roçam a humilhação) a que as vítimas são normalmente sujeitas. Há sempre aquela ideia de que ‘ela/ele merecia’ e que contribuiu com alguma responsabilidade para todo o desenlace.

No caso do tal produtor de Hollywood que anda a fazer títulos de jornal com a legião de mulheres que têm denunciado o seu comportamento desapropriado, temos visto alguma justiça. O caso tem sido tão mediático que conseguiu pôr uma quantidade de mulheres à vontade de denunciar a sua conduta para com o sexo feminino. A academia de cinema quer-lhe tirar o Óscar e tudo! Isto talvez sirva de exemplo para tantos outros por aí. Mas será que vale de alguma coisa? É quase como se presenciássemos o privilégio da realeza cinematográfica que arranjou um bode expiatório numa única criatura – quando o problema continua a ser estrutural. Também não vou ser pessimista ao ponto de não ficar contente agora que várias mulheres puderam vir cá para fora, mostrando que é possível denunciar assédio e que isso traz consequências. Nada disso. Mas será  que influencia as ‘zé-ninguéns’ como eu, será que nos dá voz? Será que me vão ouvir? Será que se começa a levar o assédio a sério?

Enquanto se objectifica o sexo como uma ferramenta comercial para produzir lucros e audiências dificilmente vejo um resultado diferente. A indústria cinematográfica, essa mesmo que tem lidado com o escândalo do assédio, tem contribuído para isso mesmo: continua a utilizar o sexo como uma estratégia de audiências, continua a objectificar o corpo humano, tendencialmente feminino, mas também o masculino, exaltando o culto da juventude. No geral, continuamos a lidar com questões de género de forma extenuadamente sexualizada – já ouviram falar das empresas que obrigam as mulheres a usar saltos altos?

Para levarmos o assédio a sério precisamos de mais, muito mais do que a condenação de um produtor de Hollywood.

24 Out 2017

O Retornado

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]atéria, energia, pessoas e corpos celestes seguem um percurso que os impele a volver. Seja de uma forma cíclica ou esporádica, o retorno é quase uma inevitabilidade de tudo o que é dinâmico, de tudo o que vive. Regressar a Portugal pela primeira vez foi uma das viagens mais densas em termos emocionais e psicológicos que fiz, como se tivesse condensado um ano em três semanas de nostalgia fresca.

Macau adicionou um factor de distorção temporal e significado à minha vida, ao ponto de achar ser possível ter saudades do que nunca vi e de sentir familiaridade esvair-se de uma ferida conhecida.

Rumei para a Ásia há pouco tempo, mas parece que sempre estive cá. Por outro lado, o retorno a Lisboa trouxe reflexões novas. Talvez seja pensamento em excesso, algo curável com um trabalho braçal que não implique reflexão. O facto é que cidade onde morei nas últimas duas décadas continuava lá, alva e suja em simultâneo, paradoxal como sempre. O Largo da Severa, o Vale do Silêncio, a Almirante Reis, o Tejo a anunciar a margem sul. Mesmo o uterino Alentejo adquiriu um travo de irrealismo banhado a luz intensa.

Pode uma pessoa perder-se em lugares que conhece? Onde está o meu torrão, a minha quota-parte de terra? Nenhum pedaço de planeta é meu, porém, até a Marte me arrogo. Sou um “cosmofundiário”, tudo me pertence em parceria com todos, ao mesmo tempo que não sou dono de absolutamente nada. Vistas bem as coisas, vivemos todos este socialismo de alma territorial alargado às estrelas, tornando as fronteiras em conceitos aberrantes e contranatura, imbecilidades que ignoram a força do grande íman que nos puxa e repele.

Portugal é agora um sonho, uma terra quimérica onde a realidade se vestiu com trajes oníricos, uma colectânea de déjà-vus com origem definida, onde cada novo detalhe se agiganta e se transforma num factor de mudança de paradigmas. Aquilo que sempre conheci, as ruas que parecem ter nascido comigo, a língua falada com rispidez, o queixume que condimenta a psique nacional, tudo se tornou exótico. No fundo todos os pormenores que conheço intimamente tornaram-me num estrangeiro na minha própria casa.

O Oriente tem essa capacidade de transformar o que é familiar e íntimo numa projecção de sonho, como se estivéssemos a passear por uma outra vida dirigida por Wong Kar-wai. Por outro lado, a estranheza enigmática e incompreensível desta terra transmite um conforto indefinível, excepto talvez pela mais inspirada poesia.

A lógica de pertença esgueira-se para um local onde as pessoas são a única verdadeira âncora, indiferentes a tempo e espaço, cristalizando gargalhadas, banalidades e coisas profundas em momentos eternos.

Agora regresso para Macau, seguindo como um louco a agulha que aponta para Oriente e cumprindo o básico desígnio de regressar. Reconheço a fatal realidade e obedeço ao imperativo das leis naturais que regem coisas, bichos e o mundo invisível da física e química. É assim que funcionamos. Vamos, até onde houver mar, para onde o vento nos levar, ir é o nosso destino, ir para regressar. Vir traz o clímax de nos fazermos de novo, da reconstrução orgásmica noutra longitude, num meridiano sonhado de olhos abertos.

Quando começou este vaivém? Talvez quando o Universo iniciou a grande expansão, quando da energia se fez matéria. Quando uma estrela se esgota e colapsa, explode e cria energia, dispersa matéria, vai e retorna a aglomerar-se numa valsa desordenada de detritos do passado que formam o futuro. Assim opera o espírito humano, com revoluções e contra-revoluções, acção e reacção, buscando equilíbrio nas antípodas, tudo polarizando para encontrar o cerne, o ponto óptimo, a paz que alvejamos. Vivemos para morrer da mesma forma que partimos para regressar.

23 Out 2017

Enquadramentos e pontos de fuga

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 6ª Assembleia Legislativa iniciou os trabalhos esta segunda-feira, com a cerimónia de juramento de lealdade dos 33 deputados, que teve lugar durante a parte da manhã. A primeira reunião plenária aconteceu durante a tarde tendo-se procedido à eleição do presidente, do vice-presidente e dos 1.º e 2.º Secretários da Assembleia. A ordem de trabalhos afigurava-se simples, mas ao longo da discussão dos vários pontos percebeu-se que a questão era mais complexa. Tratava-se de um plano bem pensado para estabelecer o enquadramento político da Assembleia.

Existem 14 deputados eleitos por sufrágio directo que, se se agruparem, acabarão por vir a ter uma influência considerável no hemiciclo. No entanto, apenas três quartos actuaram em conformidade com o espírito do sufrágio universal durante a eleição do presidente da Assembleia. Os restantes agiram de acordo com o que era esperado, do que resultou uma adesão à pré-estabelecida “lista de enunciados” da Assembleia Legislativa.

Ho Iat Seng foi reeleito presidente da Assembleia Legislativa com 30 votos a favor, resultado por demais esperado. Chui Sai Cheong obteve a vice-presidência com 29 votos, revelando plenamente toda a subtileza das suas negociações com o campo Pró-Regime. No caso de Kou Hoi, a eleição para 1.º Secretário faz parte da sua carreira e do seu percurso na Assembleia Legislativa. A eleição de Chan Hong para 2.º Secretário, resulta de uma troca de favores. Como toda a sessão foi transmitida em directo pela televisão o público pôde verificar as novas disposições na Assembleia Legislativa. Para escapar a este cenário vai ser necessário muito esforço mental durante os próximos quatro anos.

Antes da votação para a presidência da Assembleia, Sou Ka Hou, o mais jovem dos deputados, solicitou a Cheung Lup Kwan, que presidia à reunião plenária, que os eventuais candidatos à presidência do plenário pudessem falar para se ficar a conhecer as suas propostas. Mas o pedido foi recusado por Cheung, que alegou falta de tempo e de precedentes. Além disso nenhum dos outros deputados apoiou o pedido de Sou. Finalmente, os 33 deputados votaram e o resultado foi o que já se esperava. O processo da eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente foi similar, mas teve dois pontos a salientar. Em primeiro lugar, Ho Iat Seng obteve mais um voto de apoio do que Chui Sai Cheong, demonstrando que um dos quatro deputados da chamada “Frente Liberal” aceitou as condições pré-estabelecidas com a condição de não oferecer qualquer resistência. Em segundo lugar, a eleição de Chui Sai Cheong para vice-presidente é uma forma de satisfazer o chamado equilíbrio de poderes entre representantes dos trabalhadores e representantes do patronato. Aliás esta é uma prática habitual desde o regresso de Macau à soberania chinesa. A escolha de Chan Hong para 2.º Secretário não passa de um arranjo de bastidores. Aparentemente, o vice-presidente da Assembleia Legislativa não tem grande autoridade nem responsabilidade, mas a alteração no enquadramento político significou uma mudança na distribuição de poderes.

Antes do Chefe do Executivo ter apontado os sete deputados nomeados, Lam Heong Sang, antigo vice-presidente da Assembleia Legislativa (que tinha declarado a intenção de não se candidatar à eleição por sufrágio indirecto em representação do sector do trabalho), afirmou numa entrevista que não se importaria de ser nomeado deputado pelo Chefe do Executivo. Este excerto da entrevista pode levar os leitores a pensar que o equilíbrio de poderes na Assembleia, entre o sector que representa os trabalhadores e o sector que representa o patronato, será mantido através da reeleição de Ho Iat Seng e de Lam Heong Sang. Mas na realidade o que se passa é bem diferente. Não faço ideia porque é que o sector do Trabalho foi persuadido a abster-se de participar, mas sei de ciência segura que, quando Chui Sai On resignar em 2019, o seu irmão mais velho, Chui Sai Cheong, irá manter-se como vice-presidente da Assembleia Legislativa até 2021. Se Ho Iat Seng se demitir do cargo de Presidente da Assembleia Legislativa, para se candidatar à eleição para Chefe do Executivo de Macau, talvez possa realizar o sonho de se retirar em 2021. Nesse caso é provável que Chui Sai Cheong assuma o cargo de presidente da Assembleia e continue a desempenhar um papel importante na cena política.

Para além dos membros da Mesa da Assembleia Legislativa, a disposição dos lugares dos deputados no parlamento também é mais uma manifestação do novo paradigma político. Alegadamente, a Assembleia Legislativa informou os deputados de que, pela primeira vez, os seus lugares seriam escolhidos por sorteio. Posteriormente poderiam trocar entre si. Mas esta decisão foi objectada pelos deputados reeleitos, pelo que apenas os novos deputados se sentaram em lugares “sorteados”. O procedimento do sorteio vem substituir a prática tradicional da escolha dos lugares por ordem de chegada, que nos parecia justa. A seguir ao sorteio, os deputados com afinidades políticas foram trocando de lugares de forma a ficarem juntos e os independentes ficaram onde lhes calhou. No fim de contas, a disposição dos deputados continua a ser determinada pela vontade da maioria.

A Assembleia Legislativa é o centro de poder da RAEM. Não poderá caber apenas aos novos deputados a criação “de pontos de fuga no enquadramento”, vai depender também da sociedade civil e da sua vontade de se fortalecer e de tomar as rédeas do próprio destino.

20 Out 2017

O Verão mais longo

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]alando dos incêndios em Portugal no último fim-de-semana – tema incontornável, que aqui à distância das monções, dos verões húmidos e chuvosos, é algo que nem passa pela cabeça das nossas gentes. Tivemos aqui no domingo um tufão a passar-nos a cerca de 200 km do território, e com ele a chuva que caiu na segunda e terça-feira. Dei por mim a suspirar, enquanto lia nas redes sociais sobre o desespero dos nossos compatriotas, que desejavam que o S. Pedro os abençoasse com o líquido que pudesse pôr termo aos fogos que se alastraram por metade do território. E esta era uma chuva que para nós atrapalha.

Foi muito triste. Já o disse aqui aquando do incêndios de Pedrógão Grande em Junho último que “um morto já seria um morto a mais”, e se nessa altura foram 64, nos incêndios de há dias foram mais 41, número provisório. Foi mais do que o normal, num país que todos os anos vê repetir-se o mesmo cenário, mas além das fatalidades a lamentar, há ainda uma vasta parte do território nacional que foi delapidado pelas chamas – a quase totalidade do secular Pinhal de Leiria foi consumido pelo fogo, e deixou-me especialmente comovido ver o estado em que ficaram as localidades de Vieira de Leiria e S. Pedro de Moel, onde passei férias no Verão de 1988 e 1989. As perdas, quer humanas quer materiais, são incalculáveis, e dificilmente tudo será como antes.

Na hora de pedir responsabilidades, tivemos quem andasse a pedir a cabeça da Ministra da Administração Interna, que hoje (quarta-feira) acabou mesmo por se demitir. Era inevitável, nem que fosse pelo facto de ter sido a face política mais visível da tragédia. Há ainda quem vá mais longe e peça a demissão do Governo, pois a culpa é também “do Estado”. Ora aqui está uma confusão que se faz muito. O Estado não é este Governo, nem o anterior, nem todos os que vieram antes desse – somos todos nós. Da mesma forma que há quem facilmente culpe “a sociedade” disto e daquilo, ignorando que ele próprio faz parte integrante dessa sociedade. Em Portugal os fogos têm imensos “culpados”; ora é o mau ordenamento do território, ora é a falta de meios, ou o fogo posto, e aponta-se o dedo a um porque comprou submarinos em vez de equipamento de combate aos fogos florestais, à outra porque permitiu o planteio desregrado de eucaliptos, enfim, disparam-se em todas as direcções. Até aos pastores e aos caçadores, imagine-se, e ao próprio clima, que permitiu que este ano tivéssemos temperaturas pouco habituais para o Outono. É o velho hábito lusitano de pôr a albarda da culpa no burro que lhe dá mais jeito.

O Presidente da República já veio a terreno afirmar que “nada poderá ser como antes”, e não vai ser, certamente. É preciso exigir mais, é lógico, e ter ainda alguma contenção na hora de se atribuir responsabilidades. Vejo pedir-se a reinstituição da “pena de morte” para os incendiários, pasme-se, ou ainda quem procure retirar dividendos políticos do número de vítimas mortais, chegando a instalar autênticos cadaverómetros, com o pretexto de os arremessar contra o Executivo. Nada disto faz sentido, e é, repito, de lamentar. Deixai pelo menos o fumo assentar e respeite-se o luto, antes de pedir contas aos vivos que as têm a prestar. É este o estado em que o Estado está, infelizmente. Mas o Estado também somos nós.

19 Out 2017

Estender a mão a quem precisa

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Governo de Hong Kong lançou em meados de Setembro um projecto de habitação social temporária, designado por “Programa de Alojamento Comunitário”. Através desta iniciativa serão entregues cerca de 340 apartamentos à organização de solidariedade social “Hong Kong Council of Social Service” (HKCSS). Os apartamentos serão distribuídos por cidadãos com baixos rendimentos, permitindo-lhes assim ter acesso a uma habitação com uma renda acessível. Será uma solução temporária para os problemas de alojamento destas pessoas.

O porta-voz desta iniciativa declarou que a renda virá a representar cerca de um quarto do rendimento dos locatários, ou mesmo menos. Desta forma, a renda da casa vai deixar de representar uma dor de cabeça para os beneficiários.

No entanto, esta solução não vai ser definitiva. Mal lhes seja atribuída uma habitação social, à qual são candidatos, vão ter de deixar os apartamentos.

Mas nem todos os apartamentos disponibilizados pelos proprietários podem ser usados pela HKCSS. Nestas circunstâncias, o ideal é a casa estar pronta a ser usada sem necessidade de reparações. Mas evidentemente, parte destes apartamentos vão precisar de obras. Caso contrário, serão inabitáveis. A HKCSS sublinha que só fará reparações simples e baratas. Não podem implicar quaisquer luxos.

A HKCSS adianta que o projecto deverá vir a expandir-se. Para além de se procurar mais senhorios dispostos a disponibilizar os apartamentos, a organização vai tentar obter a doação de terrenos baldios junto dos seus proprietários. Estes espaços deverão ser usados para colocação de contentores, onde também é previsto alojar estas pessoas. Não será permitido colocar mais de quatro contentores em fila.

Considera-se que um apartamento está desocupado quando, num determinado período de tempo, o seu dono não faz uso dele. O mesmo conceito aplica-se aos terrenos. Portanto, o projecto centra-se na ocupação temporária, por pessoas necessitadas, de casas e terrenos desocupados.

Os candidatos a este programa têm de preencher um certo e determinado número de requisitos. Em primeiro lugar, é necessário estarem à espera de habitação social há, pelo menos, três anos.

A partir desta informação podemos compreender de que forma se pode dar melhor uso à propriedade imobiliária em Hong Kong – uma região com uma carência extrema de terrenos para construção. Este plano demonstra como casas e terrenos desocupados podem servir os mais desfavorecidos. É uma situação em que todos saem a ganhar.

Esta medida recebeu o aplauso da população. É a prova de que ainda existem pessoas preocupadas com a situação dos mais pobres. Estas pessoas foram capazes de doar os seus recursos para providenciar às necessidades de quem precisa e proporcionar-lhes uma vida melhor. Embora estes benfeitores venham a receber uma renda, esta será relativamente pequena, se comparada com o preço de mercado. Este gesto significa amor ao próximo e preocupação com o bem-estar social.

Mas será que os contentores serão adequados para alojar pessoas? Até ao momento ainda não conseguimos obter uma resposta. Deverão ser feitos testes de viabilidade das instalações e em seguida poderemos pronunciar-nos. Mas, seja como for, é uma boa ideia e vale a pena ser experimentada.

Este projecto oferece uma solução a curto prazo. Se estabelecer uma sinergia entre as propriedades desocupadas e as necessidades dos mais desfavorecidos, podemos afirmar que pode vir a proporcionar uma utilização plena dos recursos imobiliários de Hong Kong. No entanto, não nos podemos esquecer que é um plano que oferece uma solução temporária. Numa perspectiva a longo prazo, se os recursos imobiliários de Hong Kong não se puderem expandir consideravelmente, o problema fundamental vai persistir.

Acrescente-se ainda que neste plano existem vários pormenores por esclarecer. Por exemplo, será que o Governo vai conceder benefícios fiscais aos doadores de casas e terrenos? Se os ocupantes danificarem as propriedades e não conseguirem pagar o prejuízo, quem assumirá a responsabilidade? Estas questões terão de ser consideradas.

Mas, a partir deste projecto, podemos concluir que Hong Kong tem espaço para os afectos. Esperamos que mais projectos desta natureza possam vir a surgir. Termos gente em Hong Kong capaz de estender a mão a quem precisa demonstra a generosidade desta cidade.

Estas acções caritativas são sempre bem-vindas em qualquer lugar.

17 Out 2017

(In)Declarados

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arece ter chegado a um aliviante impasse, a situação na Comunidade Autónoma da Catalunha, depois do seu presidente Carles Puigdemont ter vindo ontem declarar a “independência suspensa” da região, o que em termos práticos significa que se regressa a estaca zero, ao momento antes do anúncio do referendo do último 1 de Outubro. O diferendo entre Madrid e Barcelona já é novidade nenhuma para ninguém, divide as opiniões, por vezes de forma mais apaixonada do que seria normal, mas por enquanto não, não vamos ter a reprise da Guerra Civil espanhola, ninguém vai ser encostado a um paredão e fuzilado, não vão haver terrores brancos, vermelhos ou de outra cor qualquer. E ainda bem, digo eu. A tal independência fica agora “suspensa”, qual “jamon” ibérico num fumeiro da fronteira com a França (pessoalmente prefiro o salmantino). Parece que numa Europa onde as tensões ideológicas parecem subir cada vez mais de tom, este é um refrescante passo atrás no que toca à questão catalã.

De facto a questão da Catalunha é demasiado complexa para se chegar a um consenso. A região pertencia à antiga coroa de Aragão, em conjunto com actual comunidade autónoma com o mesmo nome, a comunidade valenciana, as ilhas Baleares, a Sardenha, a Córsega e o sul de Itália. Com o fim deste reino, em inícios do século XVIII, os chamados “países catalães” foram integrados na coroa de Castela, mas isto nunca foi pacífico. A última vez que a Catalunha declarou a independência foi em 1934, por Lluís Companys, uma espécie de Puigdemont da época, que seria julgado e executado seis anos mais tarde pelo regime franquista, depois do fim da Guerra Civil. A opressão exercida por Franco parece ainda bem presente na memória dos povos que compõem a Espanha actual – e porque não haveria de estar, uma vez que nem passaram 50 anos desde a morte do “caudilho” galego – e a Catalunha não foi excepção. Franco proibiu a língua catalã, entre outras medidas na tentativa de uniformizar a nação espanhola, e só a partir da constituição de 1978 os catalães voltaram a ver reconhecida a sua identidade.

Ao contrário dos bascos, que enveredaram pela luta armada, os independentistas catalães optaram antes pelo endoutrinamento, levando ao aparecimento de uma geração que pouco ou nada quer ter a ver com Madrid. O argumento económico não é também despeciendo, uma vez que a Catalunha contribui com uma boa parte do PIB de Espanha, um argumento que, e sejamos honestos, não é fácil de digerir no contexto de um território debaixo da mesma bandeira, e tão vasto como é a Espanha. O próprio parlamento catalão é o reflexo desta divisão; os independentistas do “Juntos pelo sim” ocupam 62 dos 135 assentos, e precisam da “muleta” do CUP (Candidatura de Unidade Popular), que detém 10 lugares, para formar uma maioria que lhes permita governar. Quanto ao referendo que Madrid proibiu e reprimiu, e cuja adesão e a própria forma como foi realizado não nos deixa saber realmente qual é a vontade do povo catalão, há um dado a reter: o da abstenção. É desonesto afirmar que os catalães que não participaram do referendo não estão interessados na independência, e a tal “maioria silenciosa” da qual uma parte saiu às ruas no início desta semana declarando a sua lealdade a Madrid, pode não ser uma maioria, de todo.

A muitos de nós, portugueses, encanta o romantismo da causa da independência catalã – deve ser a nossa costela da padeira de Aljubarrota a falar mais alto. Chegou-se mesmo a estabelecer um paralelo entre a actual situação na Catalunha e a restauração de 1640, pelo menos no que concerne à legalidade e à constitucionalidade da iniciativa separatista; Portugal também se declarou independente à revelia da vontade de Castela. Outros há ainda que não viam com bons olhos o nascimento de uma terceira nação ibérica, e curiosamente vi gente que esteve do lado do Brexit a manifestar-se contra a “terra lliure” catalã, como se existissem cisões que se justificam mais do que outras (a própria União Europeia opôs-se desde a primeira hora às intenções separatistas da Catalunha). Nas redes sociais as posições extremaram-se, os ânimos exaltaram-se, amigos desamigaram-se, pintaram-se os piores cenários, choveram acusações de parte a parte, enfim, uma indigesta butifarra. Não há necessidade, então? A gente pode trocar ideias e pontos de vista divergentes, sem tornar isto num Real Madrid – Barcelona…

12 Out 2017

A diplomacia do hambúrguer

“Eight months ago, Donald Trump proposed a round of burger diplomacy with North Korea’s leader Kim Jongun. He wouldn’t give him a state dinner, he said, possibly in an attempt to sound judicious, but “eating a hamburger at a conference table” would be a good way to open “a dialogue”. At the time, Mr. Trump’s words aroused much derision. Everyone with any opinion informed or not, agreed that it was simply ludicrous to propose a shared burger moment with the reclusive leader of a totalitarian state that is known for much bellicose posturing and some belligerent actions.”
“Can burger diplomacy win North Korea over?” – Rashmee Roshan Lall

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] mudança de acontecimentos incrivelmente perturbadora e muito previsível na Ásia Oriental, começou a 3 de Setembro de 2017, quando a Coreia do Norte testou com sucesso uma nova bomba nuclear. Tratou-se de um teste subterrâneo de uma bomba de hidrogénio, colocada na ponta de um míssil balístico intercontinental. O evento teve e imediatamente resposta por parte do presidente dos Estados Unidos, que condenou, afirmando que a Coreia do Norte é uma nação desonesta que se tornou uma grande ameaça e constrangimento para a China, que está a tentar ajudar, mas com pouco sucesso e qualquer ameaça para a América e seus territórios, incluindo as ilhas Guam ou os seus aliados, terá uma resposta militar maciça, eficaz e esmagadora.

O líder norte-coreano Kim Jong Un deve atender à voz unida do Conselho de Segurança da ONU, tendo todos os membros concordado unanimemente sobre a ameaça que a Coreia do Norte representa, e permanecem unânimes no seu compromisso com a desnuclearização da península coreana, não pondo sequer a hipótese da aniquilação total do país. A bomba de hidrogénio é muito mais poderosa que as bombas atómicas, ou bombas de fissão, que o país testou. A Coreia do Norte afirmou ter testado uma bomba de hidrogênio em Janeiro de 2016, mas os outros países, incluindo os Estados Unidos duvidaram.

A bomba nuclear que foi testada foi a maior e mais potente alguma vez efectuada pela Coreia do Norte. O Secretário-geral da ONU afirmou que o teste foi profundamente desestabilizador para a segurança regional, e o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se de emergência no mesmo dia para discutir a questão, sendo de total condenação. O Conselho de Segurança tinha-se reunido uma semana antes depois da Coreia do Norte ter disparado um míssil que sobrevoou a ilha japonesa do norte de Hokkaido, tendo reprovado veementemente o acontecido. O Conselho de Segurança no início de Agosto aprovou por unanimidade um novo conjunto de sanções destinadas a travar a capacidade da Coreia do Norte de obter fundos para custear o seu programa nuclear.

É de recordar que durante meses, a Coreia do Norte absteve-se de realizar qualquer teste nuclear e de lançar mísseis sobre o Japão, mas parece ter decidido acabar com essa restrição. A nova série de sanções pode não ter efeitos práticos imediatos, pelo que o Japão e a Coreia do Sul defendem uma maior pressão diplomática sobre a Coreia do Norte. A rapidez que a Coreia do Norte tem usado para desenvolver o seu programa nuclear, apanhou muitos analistas desprevenidos, pelo facto de Kim Jong Un perseguir tão obstinadamente a aquisição de um poderio militar nuclear, mas que não constitui grande surpresa. Todavia, a grande parte das notícias actuais e as teses académicas explanam sobre a forma como o ditador norte-coreano, percorreu esse caminho, simplificando o entendimento sobre o mesmo, pela sua lógica. É importante corrigir o que existe de errado nas razões que levam a Coreia do Norte a este estádio, e entender o raciocínio de Kim Jong Un, pois é essencial para encontrar uma solução viável para a actual crise de tensão que amarra a região, como resultado das suas acções.

Os mais realistas pensam que compreendem completamente a sua motivação e estão a tocar trombetas aos quatro ventos, dado que que Kim Jong Un sente-se assustado com a possibilidade de potências exteriores  invadirem a Coreia do Norte para mudarem o regime. O ditador norte- coreano deve ter assistido com horror às acções do Ocidente, quando derrubou os governos no Afeganistão, Iraque e  Líbia porque possuíam regimes tirânicos que perseguiam o povo e ameaçavam a civilização ocidental. O líder norte-coreano, quase certamente, concluiu que o seu regime poderia ser o próximo e decidiu que o aumento da sua dissuasão nuclear seria a única forma de garantir a sua sobrevivência, e consequentemente, está à procura do rápido desenvolvimento do seu programa nuclear, preferindo que o seu povo coma erva, devido às  sanções hiper-restritivas, que abandonar o caminho do poderio nuclear.

A resposta americana foi a de aumentar o seu sistema de “Defesa Terminal de Alta Altitude (THAAD na lingua inglesa)” em países viznhos, aumentar o estado de alerta das suas forças navais na região, realizar exercícios militares de alto nível de dificuldade e complexidadel com a Coreia do Sul, procurar sempre mais restritivas sanções económicas e diplomáticas e uso de retórica inflamatória, que promete fogo e fúria, o que fez aumentar a determinação de Kim Jong Un de adquirir mais armas nucleares e mísseis balísticos, criando uma espécie de corrida armamentista. Ainda que possa parecer anacrónico, para ser justo com os mais realistas, parece que estão certos.

Todavia, as suas exposições apenas capturam metade da história, pois uma parte da razão pela qual Kim Jong Un perseguiu o seu programa de mísseis nucleares e balísticos,  é  por ser uma das bases centrais da sua plataforma de política interna. Quando Kim Jong Un sucedeu ao seu pai, Kim Jong-il, em 17 de Dezembro de 2011, herdou o seu programa “Songun Chongch’i” ou modelo de política militar, como orientação para a governança interna e política externa, e que enfatizou a expansão do exército norte-coreano e a sua prioridade sobre a população civil. Esta doutrina deu imenso prestígio e poder às forças armadas e, quando Kim Jong Un tornou-se líder, ficou rapidamente preocupado com o facto da sua influência estar fora de controlo e poderia ameaçar o seu governo.

 Os seus medos, provavelmente, foram agravados por divisões devido a conflitos dentro das forças armadas, que o poderiam derrubar. O líder norte-coreano como resposta, substituiu  o programa “Songun Chongch’i” por um novo programa, denominado de “Byungjin (Desenvolvimento Paralelo na tradução para a língua inglesa).” O “Byungjin” é uma criação peculiar, que envolve o duplo avanço da economia da Coreia do Norte e o seu programa nuclear. Os militares não baixam formalmente de estatuto, mas não recebem os privilégios especiais que lhes eram concedidos pelo programa “Songun Chongch’i”. Esta ausência implica que as forças armadas não são mais os meninos bonitos, favoritos e não desafiados do regime, mas que foram substituídos pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia.

O lado económico do programa tem como objectivo ajudar a reequilibrar o poder dentro do país, para que os militares não sejam a força suprema. O lado nuclear destina-se a contentar o ânimo dos militares sobre essa mudança radical, ao sugerir que não foram destituídos de importância, mas que a visão mudou da força convencional para a nuclear, permitindo que Kim Jong Un continue a ser visto como um líder corajoso e um advogado dos militares, enquanto também extermina os elementos mais perigosos das forças armadas por questões de segurança interna e pessoal. É uma façanha dificil e Kim Jong Un não se pode arriscar a ser visto como um líder militarmente fraco, enquanto a transição do programa “Songun Chongch’i”  para “Byungjin” não estiver concluída.

A sua habilidade para abordar o confronto actual sobre o seu programa nuclear com os Estados Unidos de forma conciliadora é bastante limitada. O líder norte-coreano  sente que deve ser visto pelas suas forças armadas, como uma figura forte o suficiente para enfrentar o mundo exterior, e se recuar ou procurar um acordo, poderá ser olhado como um covarde ou mesmo um traidor do legado do pai aos olhos das forças armadas. Tal, pode aumentar a possibilidade de oficiais desencantados considerarem a realização de um golpe de estado, que tarde ou cedo, será dado. A acrescentar aos medos de Kim Jong Un é o seu conhecimento sobre o destino do ex-primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, que foi deposto em um golpe interno, dois anos depois de recuar frente à determinação americana, aquando da crise dos mísseis cubanos.

A percepção de que Khrushchev havia sido humilhado durante o conflito, contribuiu em grande parte para a decisão dos conspiradores de se moverem contra ele. A ironia para Khrushchev foi que, de facto, conseguiu disputar concessões significativas dos Estados Unidos, incluindo a remoção dos seus misseis nucleares da Turquia. Todavia, esses ganhos foram mantidos secretos que mesmo os conspiradores que o derrubaram não estavam cientes deles, e Khrushchev pareceu quer a nível  nacional, como mundial ter perdido o confronto com o presidente Kennedy.

Os esforços dos Estados Unidos para resolver a actual crise com a Coreia do Norte, deve levar em consideração o facto de que a Kim Jong Un é motivado por preocupações de segurança internas e externas, ao invés de considerarem simplesmente a última inquietação. É de ressaltar que durante a chuva de crispações que acompanharam as ameaças de Kim Jong Un contra as ilhas Guam, a administração Trump reagiu na direcção errada para que Kim Jong Un não atacasse o território insular dos Estados Unidos. Ao louvar a sua decisão, o Presidente Trump fez Kim Jong Un sentir-se como se tivesse recuado, o que arriscava a torná-lo fraco internamente. A incapacidade de Kim Jong Un de aceitar esse resultado, pode muito bem ter ajudado a alimentar a sua decisão de reactivar a situação, testando uma nova bomba nuclear em seguida, permitindo-lhe demonstrar à sua audiência militar interna que não se curvará diante das pressões estrangeiras, mas simplesmente se movia indirectamente para um confronto ainda maior e mais importante.

A resposta para os Estados Unidos não pode ser tão simples como oferecer concessões a  Kim Jong Un, pois traria os seus inerentes problemas. Primeiro, os esforços comerciais anteriores para trocar tecnologia e alimentos com a Coreia do Norte, para interromper o seu programa nuclear não alcançaram o objetivo desejado, porque o regime norte-coreano enganou descaradamente todos, e continuou a desenvolver as suas armas.  Tentar de novo a mesma situação, poderia simplesmente levar a uma repetição do ciclo, em que a Coreia do Norte obtém novas distribuições, em troca das mesmas promessas vazias de interrupcão do programa nuclear que ofereceu antes, e continuaria a desenvolver as suas capacidades bélicas.

É de considerar, em segundo lugar, que  subornar um estado hostil para travar o seu programa nuclear com presentes de ajuda e tecnologia, abriria um desagradável precedente de que qualquer Estado que quisesse extorquir benefícios similares dos Estados Unidos deveria prosseguir o seu programa nuclear. Em terceiro lugar, existe uma dimensão humanitária extremamente importante que não pode ser ignorada, que é o facto de Kim Jong Un ser um ditador totalitário horroroso, e os Estados Unidos não devem tolerar qualquer solução que o ajude a aumentar o nível de sofrimento que pode infligir ao seu povo. É improvável, por exemplo, que o presidente Trump decida o levantamento das sanções que foram impostas à Coreia do Norte, em 2016, em resposta aos seus abusos contra os direitos humanos, porque estes foram especialmente dirigidos para minar a capacidade do regime de prejudicar o seu povo.

Se os Estados Unidos realmente querem resolver a crise actual, tem que oferecer a Kim Jong Un uma saída que não só acalme os seus medos de segurança externa, mas também permita que evite perder a face internamente. Ao mesmo tempo, deve fugir da situação de ter sucumbido à chantagem nuclear aos olhos da liderança norte-coreana e do mundo em geral, evitando também ajudar a facilitar o aumento do abuso infligido à população norte-coreana pelo seu regime. Será complicado criar esta solução, mas é um caminho que é muito mais desejável do que a alternativa realista de uma corrida aos armamentos cada vez maior, e a uma guerra de palavras que poderia facilmente resultar ao uso intencional ou não de armas nucleares.

A outra opção pode ser a do presidente Trump  convidar Kim Jong Un a comer um hambúrger, como sugeriu durante as eleições presidenciais de 2016. Os dois líderes sentados para uma refeição, talvez em um pitoresco local das ilhas Guam, permitiria que Kim Jong Un  voltasse ao seu país como um líder em igualdade de poderio bélico que o presidente dos Estados Unidos, o que seria considerado como não tendo sido uma especial façanha, pois nenhum presidente americano deu a oportunidade e possibilidade de cumprimentar e falar com um líder norte-coreano. Ao mesmo tempo, esta solução impediria os Estados Unidos de oferecerem alguma coisa tangível, que pudesse ser entendida como suborno na Coreia do Norte ou no mundo, ou que poderia ser usado para intensificar o sofrimento da  população norte-coreana.

Todavia, permitiria que os dois líderes se envolvessem em um diálogo directo, o que por sua vez, poderia criar empatia e encorajá-los a resolver os seus actuais problemas e futuros através de conversações, em vez de ameaças e acções hostis. Os Estados Unidos podem não ser capazes de forçar a Coreia do Norte a abandonar o seu programa de mísseis nucleares e balísticos, mas podem, pelo menos, encorajá-los a comunicarem-se com o mundo, usando a diplomacia em vez de atiçar birras nucleares e falsas declarações de guerra. Se a  “diplomacia do hambúrguer” pudesse ajudar a alcançar esse fim, seria um esforço que valeria a pena.

11 Out 2017

Porque é que se faz sexo?

[dropcap style≠'circle']E[/dropcap]ste pedaço de texto apresentar-se-á como um desabafo – porque existem pessoas altamente competentes, i.e., com doutoramentos e essas oficializações de inteligência e de respeito, que poderiam falar das sua disciplinas de forma diferente. Tenho a impressão que a ciência e as suas várias disciplinas desenvolvem ideias bizarras sobre os humanos e o comportamento, e tentam de alguma forma comunicá-las ao mundo de forma nua e crua.

Um dos problemas teóricos nunca resolvidos é… porque é que se faz sexo? Não há respostas claras para isto, do ponto de vista da evolução. Porque aparentemente, não há vantagem em termos sexo – copular a dois para trazer filhos a este mundo. Sempre pensei que a variabilidade genética fosse a causa principal para nos termos tornado seres sexuais em vez de assexuais e de reprodução por mitoses sucessivas. Parece que não é bem assim, por isso vieram agora com a explicação que talvez seja o contacto com os micróbios e na criação de resistência a agentes estranhos. Mas também não se tem a certeza – e sobre a evolução é difícil ter a certeza porque não estávamos lá para assistir.

Estas são apenas algumas explicações de porque é que há milhões de anos atrás viemos todos de seres unicelulares que se desenvolveram em seres que nós somos hoje. Se traz alguma coisa para o sexo de hoje em dia? Tenho sérias dúvidas. Mas há quem ache que sim, e que insiste em trazer estas dúvidas teóricas de quando éramos coisas, possivelmente, sem consciência, para os problemas do sexo hoje em dia. Afinal, porque raio é que fazemos sexo? Se pensarmos no comportamento humano como resultado de impulsos meramente biológicos embrulhados em algum conteúdo social, então sim, porque é que ainda nos incomodamos com esta prática de troca de fluídos?

Os algoritmos da natureza e da evolução estão a ser utilizados para a evolução computacional e é bastante interessante ver que a nossa ‘estratégia sexual’ não é utilizada de todo. Isto é, o sexo não vale de nada para o mundo dos computadores – e se os computadores que têm o potencial para serem mais inteligentes que nós não precisam de sexo, a pergunta continua a insistir, porque é que nós ainda precisamos? Vou dar uma explicação ateórica, fruto de introspecção – é que eu fico mesmo incomodada quando explicam a nossa humanidade de forma tão mecanizada e oportunista.

Nós, ao contrário dos robots, temos uma caixa negra dentro do nosso crânio que aprendeu que o sexo é bom, prazeroso e, quiçá, romântico. Também aprendemos que o sexo é socialmente difícil de ser trabalhado, e que se rege por perspectivas e práticas muito distintas, fruto do que nós somos e gostamos de ser. Freud, o menos mecanicista de todos, envolveu o sexo em tanto mistério que lhe atribuiu a responsabilidade da nossa saúde e bem-estar. Nós já não temos sexo com a desculpa de ter bebés, nós temos sexo porque procuramos prazer e intimidade.

Para os que se identificam como sexuais – excluindo os assexuais – o sexo é um veículo pessoal e social para nos descobrirmos e ao(s) outro(s). Acho que não digo nenhum disparate quando me atrevo a julgar o sexo como quasi-transcendental, e isso os computadores nunca saberão o que é.

10 Out 2017