Carlos Morais José A outra face VozesA liberdade prometida [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]inte anos parecem muito tempo mas estes que passaram desde a transferência de soberania de Hong Kong até ao presente fugiram num ápice. Para isso terá contribuído certamente o desenrolar compulsivo, quase maníaco, dos factos. Estes, de tal modo se sucederam, que por vezes se atropelaram e mutuamente atiraram para o caixote do lixo da História. O século XXI tem sido fértil em acontecimentos, em momentos que, noutras eras, teriam sido incontornáveis, disruptivos. Agora não: existe esta sensação de que a vida continua igual, orientada pelos mesmos tiques pois a humanidade não consegue viver no sobressalto diário que os media hoje proporcionam. Insinuou-se a gripe das aves, eclodiu a crise asiática, a mãe pátria salvou as finanças da praça financeira. Nos EUA ruíram as torres-gémeas, semeou-se a guerra de novo pelo mundo. Cresceu desmesuradamente Macau, o fosso entre ricos e pobres alargou-se consideravelmente na ex-colónia britânica. Veio outra crise, de um tamanho tal que a Grande Depressão parecia agora ínfima. Em Hong Kong, os guarda-chuvas amarelos ocupavam durante meses as ruas e impediam o sufrágio universal condicionado. Muitas vezes me pergunto se, caso fosse realmente o interesse de Pequim controlar os assuntos de Hong Kong, Joshua Wong e outros activistas radicais não seriam seus agentes. Isto porque, de modo quase perfeito, impediram que a RAEHK desse um passo fundamental para uma realização democrática mais completa: o sufrágio universal condicionado. Como se sabe, a proposta de Pequim passava primeiro por admitir uma sufrágio universal. E, em segundo lugar, que os nomes merecessem a sua aprovação, isto porque, segundo o léxico oficial, teriam de ser patriotas. O primeiro aspecto não é de desprezar. Um sufrágio universal é algo de onde dificilmente se recua. E, correndo tudo bem, ou seja, se Hong Kong não afrontasse a China, é de admitir que a cidade poderia gozar de um sufrágio sem condicionantes dentro de uma década. Assim não o quiseram os activistas dos guarda-chuvas amarelos. Que interesses realmente defendem é difícil de saber, mas os resultados que conseguem vão pouco além de um acentuado gosto pela vitimização mediática. E, claro, de um retrocesso no processo democrático. Os activistas dos guarda-chuvas amarelos queriam, num golpe, passar de um regime colonial, onde a representação democrática eleitoral directa era mais fraca do que, por exemplo, em Macau, para uma democracia eleitoral de modelo ocidental. Não aceitaram um passo intermédio e no mesmo gesto queimaram uma série de pontes que permitiam um diálogo contínuo entre as partes. O comportamento dos deputados eleitos, quando do juramento, foi lamentável. Traíram o país ou enxovalharam-no, pois mesmo não se sentindo chineses, nem por isso deixavam de estar na China e certas atitudes não são admissíveis; mas sobretudo traíram os seus eleitores que assim se quedaram sem representantes no parlamento. Finalmente, com tanta fanfarra e pouca votação, proporcionaram a Pequim o congelamento sine die das reformas democráticas. A democracia é complicada em Hong Kong não por causa da liberdade de expressão, dos direitos humanos ou dos animais. A questão é, claramente, outra. O receio de mudança, de perda de controlo, existe mais do lado dos homens fortes da cidade, do que por parte de Pequim. Os tubarões do imobiliário e da navegação, os mestres das finanças, os donos dos grandes negócios, conluiados com interesses no continente, esses serão os que sobretudo receiam uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos dividida, resultado eventual do voto popular. Em Hong Kong, a estrutura económico-política é ainda herdeira dos impérios, chinês e inglês. O maoísmo vizinho pouco ou nada a perturbou. É certo que, apressadamente e à última da hora, os ingleses lembraram-se de inocular o vírus dos gritos pela “democracia” e “liberdade”, depois de 140 anos de feroz garra colonial sobre a população chinesa da cidade. Ainda nos 70 Bruce Lee destruía, num dos seus filmes, uma placa onde se lia “Proibida a entrada a chineses e a cães”. É também por isso revoltante ver bandeiras britânicas nos protestos do 1 de Julho… O despertar tardio dos britânicos para a democracia em Hong Kong retirar-lhes-ia a legitimidade que a China lhes concedeu com a assinatura da Declaração Conjunta. No entanto, também graças a este documento (para além, creio, da própria vontade de Pequim), a Lei Básica não deverá sofrer alterações que tornem inoperacional o segundo sistema. E o Reino Unido tem o dever de olhar para o que acontece e verificar o cumprimento dos acordos, pelo menos do que constitui o seu espírito mais íntimo. A China, como mãe-pátria, tem o dever de não assustar os seus filhos, sobretudo quando isso não parece de todo necessário, como no caso dos livreiros. Por Macau ainda nos banhamos na liberdade prometida.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCasas sem tecto [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] jornal “Exmoo” de Macau publicou recentemente um estudo onde se demonstrava que 60% dos jovens não têm intenção de comprar casa própria. O valor médio das casas ronda actualmente os 2 milhões e 125 mil patacas. Estima-se que para obter essa quantia os jovens precisem de cerca de sete anos de poupanças. Esta estimativa é feita a partir de um salário de 19.000 patacas mensais, que permitiria uma poupança de 9.500 patacas/mês (metade do salário), logo o valor da casa só poderia ser conseguido num período de sete anos. O estudo também apontava as dificuldades decorrentes de não se possuir casa. O ditado “sem casa, não há casamento” é muito antigo. No entanto, há quem rejeite esta ideia, afirmando que, se fosse verdade, só os ricos se casavam. Mas independentemente da opinião de cada um, a questão da habitação é um dos problemas sociais mais prementes de Macau. É inegável que o elevado custo das casas provoca inúmeros problemas sociais, como por exemplo o casamento tardio. O casamento tardio provoca a paternidade tardia. Se uma mulher planear ser mãe aos 35 anos, ou mais, estará a entrar num período menos fértil e a enfrentar uma gravidez de maior risco. Os problemas para a saúde da mãe e do bebé aumentam. Mas para além desta questão, temos a considerar os problemas financeiros decorrentes do elevado custo das casas. O estudo demonstra que em média as pessoas levam 17 anos a pagar a sua habitação, consumindo nesta despesa metade do seu ordenado. É evidente que se mais de 40% do rendimento familiar for gasto com os pagamentos da casa, a sua qualidade de vida será seriamente afectada. A casa passa a ser um fardo e não uma fonte de prazer. E é preciso não esquecer, que estes cálculos não incluem os juros cobrados pelo Banco. É muito fácil encontrar pessoas que levam 20 a 30 anos a pagar as prestações das suas casas. Nestes casos passam praticamente a vida inteira a despender metade dos seus rendimentos só com as despesas de habitação. Mas, mesmo depois do pagamento ter sido efectuado na íntegra, a história não chega ao fim. Se o casal tiver tido apenas um filho, depois da morte de ambos, o filho herdará a casa. Terá, portanto, a felicidade de não ter de vir a passar pelo que os pais tiveram. Mas se a família tiver mais do que um filho, aqueles que não herdarem a casa vão conhecer o mesmo calvário. O problema da habitação vai transitar para a geração seguinte. Devido à premência desta questão, o estudo sugere ao Governo algumas soluções. É preciso implementar um sistema para “facilitar a compra”. Quando o Governo decide vender um terreno, o contrato celebrado com a construtora deverá prever uma percentagem de fogos para jovens que vão comprar casa pela primeira vez. Se estas casas forem vendidas posteriormente, a venda só poderá ser feita a naturais de Macau. Obviamente que é uma boa medida porque permite que mais residentes, sobretudo jovens, possam ter casa própria. Se acreditarmos que a família é a base da sociedade é bom que façamos o possível para protegê-la. As medidas para “facilitar a compra” garantem um certo número de casas aos naturais de Macau. Mas se os preços continuarem elevados, o problema não se resolve. Disponibiliza-se a propriedade, mas não o dinheiro. Será bom que o Governo crie outras medidas para ajudar os jovens. O sistema da “Habitação Económica” é o melhor para a juventude. Este sistema permitia que o Governo vendesse casas a baixo preço. Ser-se natural de Macau era a primeira condição para a compra. A segunda condição implicava que se tratasse de uma primeira compra de casa. A terceira estabelecia o impedimento de venda durante um período de 16 anos. É uma pena que, depois de 2013, nunca mais se tenham vendido casas ao abrigo deste sistema. O estatuto que regula os rendimentos do Governo de Macau é diferente do que regula os rendimentos do Governo de Hong Kong. O segundo depende em grande parte dos lucros da venda de terrenos, ao passo que o primeiro depende sobretudo dos lucros da indústria do jogo. Assim, no caso de Hong Kong, se os preços dos terrenos baixarem, os lucros do Governo vão por igual caminho. Como em Hong Kong a margem que o Governo tem para lançar novos impostos é apertada é improvável que surjam novas taxas que contrabalancem as perdas provocadas pela eventual baixa do preço dos terrenos. Assim sendo. o custo das casas na cidade não deverá diminuir nos tempos mais próximos. No entanto, a situação em Macau é diferente. O facto de não ter na transacção de terrenos a sua principal fonte de rendimento dá ao Governo de Macau mais liberdade para fixar um preço para a venda de propriedades. O Governo de Macau tem, portanto, mais flexibilidade para criar um tecto para a venda de casas. O elevado preço da habitação em Macau é um problema que tem de começar a ser solucionado o mais breve possível. Se os jovens não tiverem casa própria, o sentimento de pertença a Macau diminui. Para além disso, sem controle dos preços, os proprietários de casas e terrenos enriquecem cada vez mais, provocando um fosso crescente entre pobres e ricos. E, obviamente, isso será péssimo para a sociedade em geral. A lei tem mecanismos que permitem a compra de casas ao abrigo do sistema da Habitação Económica e esta é uma das melhores ferramentas para resolver o problema habitacional em Macau. Não é só através de decretos que estas questões se solucionam.
Isabel Castro VozesCom uns trocos no bolso [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é difícil perdermos a noção das coisas. Vivemos numa bolha com demasiadas especificidades para conseguirmos espreitar além das paredes. Vivemos a um ritmo que não nos dá tempo para parar, escutar e atravessar para outros lados. Por isso é que andamos em círculos, muitas vezes às escorregadelas, mas sempre a acelerar. Macau é uma terra de ilusões, de sensações, de milhões, de excessos, de excessos excessivos, onde o tempo passa mais depressa do que a nossa capacidade de fazermos contas à vida. No meio deste turbilhão onde toda a gente tem tudo, achamos sempre que ainda não temos aquilo de que precisamos. Os que têm tudo também querem mais, querem o dobro do que têm, como se fosse possível duplicar o infinito. Descobrem fórmulas de multiplicação de fortunas que não vêm nos manuais de economia. Das finanças sentimentais ninguém trata, porque não há tempo e, colocando tudo o que é de relevo em perspectiva, as almas ficam tão longe que mal se vêem. Os zeros é que contam. Não é fácil mantermos os pés nesta terra, nem aterrarmos noutra qualquer. Sobrevoamos a vida sem pousarmos em nada, atarefados que estamos em afazeres que são os mais importantes, os mais decisivos, os mais inúteis também, mal o dia acaba e outro começa, com cinco minutos de intervalo para descanso dos pés cansados. Tudo mudou muito nos últimos tempos, sabemos bem, apesar de não sabermos para onde vamos nesta centrifugadora de tempo e de energia. Tudo mudou muito e mais vai mudar, sabemos bem também, nós que começamos a olhar com normalidade para tudo aquilo que os outros fazem, todas as extravagâncias, todos os inusitados pedidos, todas as estranhas exigências. Já não nos espantamos com este mundo, como se a ausência de espanto fosse a normalidade. Queiramos ou não, todos nós fomos sugados pelo dinheiro que nos paga a casa, o carro, as jóias, as refeições com estrelas e sem estrelas, os ovos estrelados, o arroz com vegetais, o peixe cru raro e a sardinha na brasa. Só no mundo da normalização da invulgaridade é que é normal comprar casas com três quartos, sem despensa, por dez milhões. Ou palácios por 70. Compram-se coisas aos milhões como quem muda de camisa. Ou de gravata. Assim como é normal mudar de roupa, também é normal tirar notas da mala, passar cheques, fazer transferências e comprar imóveis classificados em terras distantes. É tudo demasiado normal. A Fundação Macau também compreende este espírito de normalidade. E alinha nele sem qualquer problema, sem qualquer desfaçatez, com toda a sinceridade de quem tem bem assimilado este modo de vida abastado, alargado, despreocupado, por ser aos milhões. Outra coisa não conhece. Porque tem muitos milhões, mandatou um dos seus curadores para que este estudasse a aquisição de um determinado palácio lisboeta que pretendia comprar. Por coincidência, o curador é um empresário com olho para o negócio e com capacidade para cheirar a concorrência a quilómetros de distância. Por coincidência também, o mandatado anda com 65 milhões no bolso e não é pessoa para ficar à espera de convocatórias, reuniões e actas. Porque é um businessman, faz business. Compra o palácio em perspectiva, chega a casa e comunica o facto, os seus pares batem palmas ao feito, fazem-se poucas contas aos trocos, gastam-se mais uns milhões em avaliações e estudos ao que já se pretendia comprar antes de ser comprado, e está feito o negócio. Não se falou dele porque não calhou. Numa terra em que os milhões andam aos pontapés, tanto se lhe dá, como se lhe deu. E depois ninguém tem nada que ver com isso. Também já nos habituámos a que nos normalizem os passos. Como se as tecnologias não bastassem para que se saiba se vos escrevo de Macau, da Taipa ou da Papua Nova Guiné. Todos sabemos onde andam uns e outros. Mas há quem queira ir mais longe e precise de compreender o que se faz entre este passo e o seguinte, o que se lê entre este livro e o próximo, a quem se sussurra, com quem se grita, com quem se viaja, qual é o último pensamento que nos abraça antes de o sono nos apagar. Estranha normalização esta que não nos faz gritar, espernear, fugir a sete pés, agarrar a vida com as duas mãos. Não é difícil perdermos a noção das coisas quando as coisas que nos rodeiam surgem sem pré-aviso para se instalarem no meio da normalidade, disfarçadas de vulgaridades. Mas há que parar. Parar e escutar, para atravessar sempre, porque na travessia é que corre a liberdade.
António Saraiva VozesO efeito de estufa [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] “efeito de estufa” uma expressão muito em voga – consiste no aumento, ainda que até à data reduzido – desde 1975 cerca de 0,15 º C por década- da temperatura média da Terra. Tal subida, embora ligeira como dissemos, é inegável, pois resulta da média de milhares de medidas, em variados pontos do globo. Esta subida acompanha a subida constante da percentagem de anidrido carbónico na atmosfera, tendo-se assim relacionado as duas variáveis (há ainda outros gases que provocam o efeito de estufa, nomeadamente o metano (um gás combustível e explosivo, produzido nos campos de arroz, nas vacarias e nos aterros sanitários), os óxidos de azoto (produzidos pelos veículos), e os carbonetos halogenados (CFC e HCFC). Estes gases, juntamente com as poeiras, formam como que um manto que cobre a terra, impedindo a dissipação do calor, e provocando assim o aquecimento da Terra. A subida das temperaturas tem-se traduzido no degelo de gelos polares, o que por sua vez provoca uma subida das águas do mar (10 a 20 cm no século XX); a isto há que somar a expansão das águas devido ao aumento de temperatura, o, que, a continuar, fará com que algumas terras baixas fiquem alagadas; degelo das partes menos frias das montanhas geladas, subindo assim em altitude a zona ocupada pelas árvores; florações mais precoces alguns dias; da mesma forma antecipação das migrações de algumas aves; etc. As subidas de temperatura causarão maior evaporação – assim o ar será mais húmido e haverá maior precipitação (aumento de 7% da precipitação por cada grau Centígrado de aumento da temperatura); embora numas regiões passará a chover menos e noutras mais; e têm sido apontadas como causadoras de um maior número de tufões, tornados e cheias. A nível dos oceanos, haverá mais anidrido carbónico a dissolver-se na água, que ficará mais ácida; esta acidez afecta a fixação de calcário, ou seja, prejudica os corais, os bivalves (como as ameijoas), e os animais de esqueleto externo (lagostas, camarão…). Quanto ao impacto nas plantas poderá ser positivo – pois com mais calor e mais anidrido carbónico as plantas crescerão mais (já se usa a técnica de aumentar a percentagem de anidrido carbónico em estufas) – ou negativo, pois algumas plantas, nomeadamente as de longo ciclo vegetativo (árvores e arbustos) e pouca ”margem de tolerância” quanto à temperatura (ou também a outros factores, pois, como vimos, haverá alterações na quantidade de chuvas) poder-se-ão ver “fora” do seu clima preferido, e assim definhar, ou mesmo morrer. O acordo de Paris Cientes de tais problemas numerosos responsáveis das nações começaram a discutir a melhor forma de o enfrentar- do que resultou, após muitos avanços e recuos (1), o acordo de Paris. Este acordo visa limitar as emissões de anidrido carbónico, de forma a manter o aumento da temperatura média mundial em limites “aceitáveis” – abaixo dos 2 º C (preferivelmente a 1,5 º C) em relação aos valores da época pré-industrial. Embora tal acordo seja mais teórico do que efectivo – os Estados apenas têm que comunicar as suas emissões, não estando previsto qualquer mecanismo de ”punição ” para quem não cumpra, nem de ”recompensa” para os “bons alunos” (2), este acordo tem duas virtudes que importa realçar: em primeiro lugar assume o medo da humanidade face à alteração, por acção humana, de algo muito básico – visto por muitos como pertencendo à esfera do divino, o clima – assim como o medo do fogo. Em segundo lugar por ter sido um acordo que – num mundo tão dividido –- envolveu praticamente todos os Estados (talvez pelo medo a que acima nos referimos). Em todo o caso esse acordo – e aí a porca começa a “torcer o rabo” – considera que certos países já se desenvolveram o suficiente, tendo que diminuir os seus gastos energéticos, enquanto outros, menos desenvolvidos, têm direito a aumentar as suas emissões de anidrido carbónico. Mas quem deseja de boa vontade ver coartados os seus ”direitos”? Um, Dez, Cem Quando era miúdo, e andava na Escola Primária, escrevíamos numa lousa (pedra negra de xisto) com um lápis também de lousa. Uma verdadeira receita ecológica, pois apagava-se com um pano e voltava-se a escrever na mesma lousa. Havia ainda uns cadernitos, de papel de má qualidade, nos quais se escrevia com uma caneta de aparo, que era preciso molhar na tinta ao fim de cada linha. E havia alguns privilegiados que até tinham um lápis! Já em Macau, no início dos anos 90, as minhas filhas pediram-me lápis. Sabendo que havia muitos lápis em casa dediquei uma hora a junta-los numa gaveta: havia cerca de 30! Trinta lápis! Número ridículo quando comparado com as caixas cheias de lápis, uns ainda por afiar, outros de bico partido, não poucos já secos – que, vinte anos mais tarde, encontrei em caixas no quarto de uma das minhas netas. E assim vai o Mundo. Cada criança (adulto) “rica” tem hoje quilos de lápis, de brinquedos, de sapatos e sapatilhas…de facto calcula-se que hoje cada homem tenha às suas ordens cerca de 100 escravos mecânicos (número que, evidentemente, varia de país para país) …que .nos transportam de Macau para Portugal em 24 horas, nos levam aos ombros quando moramos no 20º andar, nos cozinham a comida sem fazer fumo, nos fazem ter temperaturas agradáveis em casa mesmo no Verão, nos possibilitam ter os tais 100 ou duzentos lápis, etc., etc., etc.. E vejamos: quem está disposto a dispensar o trabalho que todas essas máquinas nos fazem? Vamos por um exemplo caseiro – quem dá o sábado livre às empregadas filipinas que tem em casa? E será que não sabemos o que come essa multidão de escravos mecânicos? Matérias primas arrancadas da Terra e Energia. E dessa Energia 80%, ou mesmo mais, provem de “combustíveis fósseis” (restos de antigas florestas) – ou seja do petróleo, do carvão, e do gás natural. Que ao serem queimados produzem anidrido carbónico – o tal gás que provoca o “efeito de estufa”. E note-se que mesmo energias aparentemente “limpas” como a electricidade, foram geradas muitas vezes pela queima destes combustíveis (3). Quanto a outros gases de efeito de estufa, nomeadamente o metano, o problema é semelhante – se alguns podem dispensar o bife – quem dispensará o arroz? E assim, malgrado as numerosas declarações a favor da ecologia – todos podemos constatar que o tamanho dos automóveis aumentou (tendo não poucos as dimensões dos antigos carros funerários), o nível de iluminação das lojas aumentou, as lojas aboliram as portas para melhor chamarem clientes (aumentando-se assim os gastos energéticos para obter um ambiente fresco)… os prédios frente a Macau, no Zuhai, brilham toda a noite em festivais de cores e de formas… Alargando um pouco a discussão, todos os políticos baseiam o seu discurso em “mais bens, mais progresso”. Os investidores procuram o máximo lucro, os próprios atletas procuram bater records. Em jeito de conclusão O Acordo de Paris é mais um processo de intenções que a solução do problema –embora, como diz a minha mulher, “quem me dá um osso não quer que eu morra”. E somos NÓS que provocamos o efeito de estufa, e não políticos mais ou menos simpáticos. E embora não seja a única ameaça que pesa sobre a Humanidade – entre outras poderemos mencionar a bomba atómica – a solução deste problema – a menos que se descubram novos e revolucionários meios de obter energia, ou de captar o anidrido carbónico – implicará as mais profundas mudanças na vida dos cidadãos.
Leocardo VozesVai p’rá tu’rua [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s portugueses que chegam agora a Macau – e ainda vão sendo alguns, felizmente – poderão ficar surpreendidos com o nome de alguns dos arruamentos da RAEM. Quem se demora a observar as placas toponímicas do território diverte-se a pensar na origem do baptismo destas ruas, becos, travessas e pátios. Quando cheguei a Macau há vinte anos, ouvi falar de uma tal de “Ilha Verde”. Ilha Verde? – pensei eu – deve ser um sítio bestial, ideal para passar um fim-de-semana, umas férias, ou isso assim. Mas este tal Bairro da Ilha verde, “cheng chau” em chinês, não passa de um amontoado de barracas, habitações sociais e ferro-velho atirado lá para a zona norte da cidade. Tem muito pouco de verde, nada de ilha, e é populado por gente que pendura as cuecas nas janelas que dão para a rua. É um engodo. Mas o que seria de esperar de um sítio que fica perto de um tal Bairro do Fai Chi Kei? (fai chi significa “pauzinhos”, daqueles de comer, em chinês). Existe ainda um tal Canal dos Patos, onde não encontramos nenhuma ave daquele tipo – ou outra qualquer, para esse efeito. Outros locais como a Travessa das Janelas Verdes ou o Pátio do Jardim apresentam-se bastante cinzentões, decepcionantes. Existe aqui perto de casa uma tal Rua do Teatro, que além de não ter nenhuma sala de espectáculos visível, tem várias lojas de armazenamento e distribuição de fruta, tornando impossível a circulação de veículos e pessoas, especialmente depois das seis horas da tarde. Devia-se chamar Rua da Fruta. Perto da Igreja de S. Lourenço existe um tal Pátio das Seis Casas. Eu já lá estive e contei pelo menos oito! Existe contudo uma Travessa Curta (na imagem), que faz jus ao nome. Não tem mais de dois metros de comprimento! Isto é que é chamar os bois pelos nomes. Existe um Coloane um tal Pátio Pequeno, mas ainda não tive oportunidade de verificar a pequenez do mesmo. Como se sabe, os chineses não são adeptos de dar nomes de rua a personalidades históricas, figuras públicas ou beneméritos. Assim temos nomes muito simplistas, como a Travessa dos Ovos ou ou o Beco dos Óculos, o Pátio da Cadeira ou o Pátio do Banco. Outros mais românticos ficam sempre bem num cartão postal; a Rua da Esperança, Felicidade, Fortuna, Harmonia, Riqueza, Saúde, Prosperidade, Tranquilidade ou Virtudes, a Travessa da Glória ou da Paixão, o Beco da Sorte, o Pátio da Eterna Felicidade ou da Eterna União. Sempre é menos deprimente do que viver no Beco do Desprezo (em Coloane, e adivinho que será perto do Estabelecimento Prisional de Macau), no Pátio da Ameaça, do Desgosto ou da Indigência. Curiosamante não existem em Macau arruamentos com os nomes de desgraça, tragédia, miséria ou fome, mas bem podiam existir. Sem dúvida que é muito mais agradável ser abençoado e viver na Rua Alegre ou na Rua da Aleluia, do que viver na Rua da Cadeia ou na sua correspondente de calão, a Rua da Cana. Quem é chique sempre pode morar na Travessa do Clube dos Iates, enquanto os mais pobrezinhos ficam remetidos ao Beco das Barracas ou ao Beco das Barraquinhas. Ou ainda à Travessa do Hospital dos Gatos, onde deve ser impossível dormir devido aos miados de angústia. O evento dos Jogos da Ásia Oriental, realizados na RAEM em 2005, baptizou uma série de arruamentos, incluíndo uma Avenida, Travessa e Praça, e exactamente, “dos Jogos da Ásia Oriental”, uma Rua do Desporto, e uma tal Rua da Patinagem, em Coloane. Esta deve ser dedicada aos orçamentos para a realização de certos eventos e projectos na RAEM, que são conhecidos por “patinar” de vez em quando. Disse eu de vez em quando? Queria dizer “sempre”. Ainda em Coloane, exstem novos arruamentos com nomes bastante “floridos”: a Rua das Albízias, das Cássias Douradas, das Champacas Brancas, das Bauínias, das Árvores do Pagode, das Canforeiras, das Acácias Rubras, das Lichias, das Schimas, das Margoseiras ou das Mangueiras. Lindo, lindo, um deleite para os adeptos da floricultura e da botânica. Em contraste existe em Macau um Pátio do Pivete, onde deve ser impossível abrir uma janela. E celebremos com alegria a toponímia de Macau, provavelmente a mais rica do mundo!
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA imoralidade do terrorismo “The purpose of terrorism is to destroy the morale of a nation or a class, to undercut its solidarity; its method is the random murder of innocent people.” “Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical Illustrations” – Michael Walzer [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]emos assistido aos mais diversos eventos mundiais, desde os atentados de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos até ao último ataque terrorista em Londres, a 3 de Junho de 2017. Temos vivido acontecimentos violentos e reais, de guerras a genocídios. No entanto, quando se trata de eventos simbólicos à escala mundial, ou seja, não apenas factos que têm a atenção da comunicação social a nível mundial, mas que representam um fracasso para a globalização, não encontramos nenhum. Durante a inércia da década de 1990, os eventos entraram em greve na expressão do escritor argentino Macedonio Fernández. A greve terminou e os acontecimentos não estão mais em risco e com os ataques ao World Trade Center, em Nova Iorque, podemos até dizer que temos diante de nós o evento absoluto, a mãe de todos os eventos, o evento puro que unifica em si todos os eventos que nunca aconteceram. Todo o jogo da história e do poder é interrompido por esse evento, mas também são as condições de análise. Temos que aprisionar o nosso tempo. Enquanto os eventos estavam estagnados, tínhamos que os antecipar e movermos mais rapidamente do que eles. Mas quando aceleraram, tivemos de caminhar mais devagar, embora sem permitir enterrá-los sob uma infinidade de palavras, ou reunir nebulosas de guerra, e preservar intacta a incandescência inesquecível das imagens. Tudo o que foi dito e escrito tem sido a evidência de uma aberração gigantesca para o evento em si e do fascínio que exerce. A condenação moral e a santa aliança contra o terrorismo estão na mesma escala que o prodigioso júbilo de ver essa superpotência global destruída, ou melhor, vê-la, em certo sentido, destruindo-se e suicidando-se em uma chama de glória, pois pelo seu poder infernal, fomentou toda essa violência que é endémica a nível mundial, e, logo, essa imaginação terrorista (involuntariamente) que habita em todos nós. O facto de termos sonhado com esse evento, pois todos, sem excepção, sonharam com o mesmo, porque ninguém pode evitar sonhar com a destruição de qualquer poder que se tornou hegemónico a um nível considerado inaceitável para a consciência moral ocidental. No entanto, é um facto, e que pode ser medido pela violência emotiva de tudo o que foi dito e escrito no esforço para o dissipar. É possível dizer em simples pincelada que fizeram, o que desejávamos que fosse feito. Se tal não for levado em conta, o evento perderá qualquer dimensão simbólica. Torna-se um puro acidente, um acto puramente arbitrário, a fantasmagórica assassina de alguns fanáticos, e tudo o que restaria seria eliminá-los. Agora, sabemos muito bem que não é assim. O que explica todos os delírios contrafóbicos sobre exorcizar o mal. É porque está lá, em todos os lugares, como um objecto obscuro de desejo. Sem essa cumplicidade profunda, o evento não teria tido a ressonância e, a sua estratégia simbólica. Os terroristas, sem dúvida, sabem que podem contar com essa cumplicidade indescritível. Tal vai muito além do ódio pelo poder mundial dominante entre os deserdados e os explorados, entre aqueles que acabaram no lado errado da ordem global. Mesmo aqueles que compartilham as vantagens dessa ordem têm esse desejo malicioso nos seus corações. A alergia a qualquer ordem e poder definitivos são felizmente universal, e as duas torres do World Trade Center eram formas de realização perfeitas, nas suas dimensões, dessa ordem definitiva, não sendo necessário, um impulso de morte, um instinto destrutivo, ou mesmo de efeitos perversos e involuntários. Muito logicamente e inexoravelmente, o aumento do poder aumenta a vontade de destruí-lo. E foi parte da sua própria destruição. Quando as duas torres entraram em colapso, teve-se a impressão de que estavam a responder ao suicídio dos suicidas, com os seus próprios suicídios. Sempre foi dito que mesmo Deus não pode declarar guerra a si mesmo. O Ocidente simbolicamente, na posição de Deus (omnipotência divina e legitimidade moral absoluta), tornou-se suicida e declarou guerra a si mesmo. Os inúmeros filmes de desastres, testemunham essa fantasia, que claramente tentam exorcizar com imagens, afugentando tudo com efeitos especiais. Mas a atracção universal que exercem, que é parecido com a pornografia, mostra que a actuação nunca foi muito longe, bem como o impulso de rejeitar qualquer sistema que se torne mais forte, à medida que se aproxima da perfeição ou da omnipotência. É provável que os terroristas não tenham previsto o colapso das Torres Gémeas, mais do que os especialistas, pois muito mais do que o ataque ao Pentágono, teve um maior impacto simbólico. O colapso simbólico de todo um sistema surgiu por uma cumplicidade imprevisível, como se as torres, ao sucumbirem, cometessem suicídio, juntando-se para completar o evento. Em certo sentido, todo o sistema, pela sua fragilidade interna, deu uma mão amiga à acção inicial. Quanto mais concentrado o sistema se tornar globalmente, formando uma única rede, mais se torna vulnerável em um único ponto, pois é como o pequeno “hacker” filipino que havia gerido o mal, desde os recessos escuros do seu computador portátil, ao introduzir o vírus “Eu te amo”, que circundou o mundo devastando redes inteiras. Nos Estados Unidos foram dezoito assaltantes suicidas que, graças à arma absoluta da morte, reforçada pela eficiência tecnológica, desencadearam um processo catastrófico global. Quando o poder global monopoliza a situação desta forma, quando há uma concentração tão assombrosa de todas as funções na máquina tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, qual é a outra forma existente para além da mudança por via da prática de actos terroristas? Foi o próprio sistema que criou as condições objectivas para essa retaliação brutal. Ao usar todas as cartas do jogo, forçou o outro a mudar as regras. E as novas regras são ferozes, porque as apostas são desumanas e para um sistema que tem excesso de poder, representando um desafio insolúvel, os terroristas respondem com um acto definitivo que também não é susceptível de troca. O terrorismo é o acto que restaura uma singularidade irredutível ao núcleo de um sistema de troca generalizada. Todas as singularidades (espécies, indivíduos e culturas) que pagaram as suas mortes, pela instalação de uma circulação global governada por um único poder, estão a vingar-se através dessa transferência da situação pela via terrorista. É o terror contra o terror e não há mais nenhuma ideologia por detrás. Estamos além da ideologia e da política. Nenhuma ideologia causa e nem mesmo a islâmica pode explicar a energia que alimenta o terror. O objectivo não é mais transformar o mundo, mas (como as heresias fizeram no seus dias) radicalizar o mundo pelo sacrifício. Enquanto o sistema pretende realizá-lo pela força, o terrorismo, como vírus, está em toda parte. Existe uma perfusão global do terrorismo, que acompanha qualquer sistema de dominação, como se fosse a sua sombra, pronto para se activar em qualquer lugar, como um agente duplo. Não é possível desenhar uma linha de demarcação em torno dessa situação. É no coração desta cultura que a combate, que a fractura visível e o ódio que permeia os explorados e os subdesenvolvidos, globalmente, contra o mundo ocidental, secretamente se conecta com a fractura interna ao sistema dominante. Esse sistema pode enfrentar qualquer antagonismo visível. Mas contra o outro tipo, que é de estrutura viral, como se toda a máquina de dominação segregasse o seu contra-aparelho, o agente do seu desaparecimento, contra essa forma de reversão quase automática do seu poder, o sistema nada pode fazer. O terrorismo é a onda de choque dessa reversão silenciosa. Este não é, portanto, um choque de civilizações ou religiões, e fere muito além do Islamismo e do Ocidente, sobre os quais estão a ser feitos esforços para concentrar o conflito, criando a ilusão de um confronto visível e uma solução baseada na força. Há, de facto, um antagonismo fundamental, mas que afasta o espectro da América, que é, talvez, o epicentro, mas em nenhum sentido a única incorporação, da globalização e o espectro do Islamismo, que não é a personificação do terrorismo, mas a globalização triunfante batalhando contra si. Nesse sentido, podemos falar de uma guerra mundial, não a Terceira Guerra Mundial, mas a Quarta e a única realmente global, uma vez que o que está em jogo, é a própria globalização. As duas primeiras guerras mundiais corresponderam à imagem clássica da guerra. A Primeira Guerra Mundial acabou com a supremacia da Europa e da era colonial. A Segunda Guerra Mundial acabou com o nazismo. A Terceira Guerra Mundial, que de facto ocorreu, sob a forma de guerra fria e dissuasão, acabou com o comunismo e a cada guerra sucessiva, avançamos para uma única ordem mundial. Actualmente, essa ordem, que praticamente atingiu o seu ponto culminante, encontra-se a lutar contra forças antagónicas espalhadas por todo o mundo, em todas as convulsões actuais. Uma guerra fractal de todas as células e singularidades, repugnantes sob a forma de anticorpos. Um confronto tão impossível de definir que a ideia de guerra deve ser resgatada de tempos a tempos por situações espectaculares, como a Guerra do Golfo ou a guerra no Afeganistão. Mas a Quarta Guerra Mundial está em outro lugar. É o que assombra toda ordem mundial e dominação hegemónica e se o Islamismo dominasse o mundo, o terrorismo elevaria contra si, pois é o mundo que resiste à globalização. O evento do World Trade Center, esse desafio simbólico, é imoral e é uma resposta a uma globalização que é imoral. Teremos então de ser imorais para compreender esta dinâmica? Se quisermos ter algum entendimento de tudo o que está a acontecer em termos de terrorismo têm de ir um pouco além do bem e do mal. Quando, tivermos um evento que desafie não apenas a moral, mas qualquer forma de interpretação, devemos tentar abordá-lo com uma compreensão do mal. Este é precisamente onde se encontra o ponto crucial, no total mal-entendido por parte da filosofia ocidental e do Iluminismo da relação entre o bem e o mal. Acreditamos ingenuamente que o progresso do bem, o seu avanço em todos os campos, como nas ciências, tecnologia, democracia, direitos humanos, corresponde a uma derrota do mal. Apenas poucos parecem ter entendido que o bem e o mal caminham juntos, como parte do mesmo movimento. O triunfo de um não oculta o outro, longe disso. Em termos metafísicos, o mal é considerado um acidente, mas esse axioma, do qual derivam todas as formas maniqueístas da luta do bem contra o mal, é ilusório. O bem não conquista o mal, nem o inverso acontece, pois são ao mesmo tempo irreduzíveis entre si e inextrincavelmente inter-relacionados. Em última análise, o bem poderia frustrar o mal apenas deixando de ser bem, ao apoderar-se de um monopólio global do poder, dando origem, por esse mesmo acto, a uma reviravolta de uma violência proporcionada. O universo tradicional, continha um equilíbrio entre o bem e o mal, de acordo com uma relação dialéctica que mantinha a tensão e o equilíbrio do universo moral, não sendo diferente da forma como o confronto dos dois poderes na Guerra Fria mantiveram o equilíbrio do terror, não havendo nenhuma supremacia de um sobre o outro. Assim que houve uma extrapolação total do bem (hegemonia do positivo sobre qualquer forma de negatividade, exclusão da morte e de qualquer força adversa potencial – triunfo dos valores do bem), esse equilíbrio ficou perturbado. A partir desse momento, o equilíbrio desapareceu, e foi como se o mal recuperasse uma autonomia invisível, começando a desenvolver-se exponencialmente, tendo em termos relativos acontecido na ordem política com o desaparecimento do comunismo e o triunfo global do poder liberal, pois foi nesse ponto que emergiu um inimigo fantasmagórico, infiltrando-se em todo o planeta, deslizando por toda parte como um vírus que brota de todos os interstícios de poder que e radicado no Islamismo. Mas o Islamismo era apenas a frente móvel em que o antagonismo cristalizava. O antagonismo está em todos os lugares e em cada um de nós. Então, é o terror contra o terror. É o terror assimétrico. E é essa assimetria que deixa a omnipotência global totalmente desarmada, em desacordo consigo, só pode mergulhar na sua lógica de relações de força, mas não pode operar no terreno do desafio simbólico e da morte, algo da qual já não tem ideia, que a apagou da sua cultura. Até ao presente, este poder integrativo conseguiu em grande parte absorver e resolver qualquer crise e negatividade, criando, assim uma situação de desespero mais profundo (não só para os deserdados, mas para os privilegiados também, no seu conforto radical). A mudança fundamental agora é de que os terroristas deixaram de se suicidar sem nada em troca, pois produzem as suas mortes de forma eficaz e ofensiva, ao serviço de uma visão estratégica intuitiva que é simplesmente um senso da imensa fragilidade do oponente – uma sensação de que um sistema que chegou à sua quase perfeição pode ser inflamado pela menor faísca. Os terroristas conseguiram transformar as suas mortes em uma arma absoluta contra um sistema que opera com base na exclusão da morte, um sistema cujo ideal é o de nenhuma morte. Todo o sistema de morte zero é um sistema de jogo de soma zero. E todos os meios de dissuasão e destruição não podem fazer nada contra um inimigo que já transformou a sua morte em uma arma de contra-ataque. Os terroristas estão tão ansiosos por morrer como os demais cidadãos por viver, sendo este o espírito do terrorismo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não escolhe idades [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á diz a sabedoria popular que o amor não escolhe idades, seja isso porque o amor pode vir a qualquer fase das nossas vidas ou porque as nossas preferências amorosas não se prendem única e exclusivamente por sujeitos da mesma faixa etária. Se o amor não escolhe idades, o sexo também não escolhe idades. Não me venham cá com lenga-lengas de que relacionamentos com parceiros mais velhos ou mais novos são reflexo de ‘recalcamentos’, má resolução de processos de vinculação ou que possam ser encarados como problemas psico-emocionais. Aconselho muita calma nesses julgamentos. Todos já reparam que o mais recente presidente francês tem uma esposa com mais 24 anos do que ele. Por causa disso, o Macron já foi acusado de ter um casamento de fachada porque é um homossexual não assumido – casado com uma mulher só para satisfazer as expectativas heterossexuais. O que é que é problemático nesta discussão? Para mim, nem é a homofobia associada, mas o facto de uma mulher de 60 anos ser automaticamente cunhada como não desejável – porque raio um homem se sente amorosa e sexualmente por uma mulher com rugas? Deve ser homossexual! Pois, a assumpção social não é a regra, felizmente. Olhemos agora para o mais recente presidente brasileiro, que tem uma esposa 43 anos mais nova do que ele. Alguém acha atípico? Nem pensar. Devem pensar que o dinheiro compra esposas belas, novas e jeitosas, mas ninguém dúvida da virilidade do homem, vulgo, da heterossexualidade do homem. Porque estar com uma mulher mais nova é mais natural do que estar com uma mulher mais velha. E assim o pessoal anda a julgar relacionamentos heterossexuais de acordo com as expectativas de beleza femininas. Porque, infelizmente, as mulheres (mais do que homens) têm um prazo de validade mais precoce. O que faz com que seja normal que homens com mais de 70 anos tenham mulheres jovenzinhas, mas o contrário seja mais criticado e duvidado até (!) – talvez seja altura de pôr essas ideias em causa, para paramos de encontrar homens que digam qualquer coisa como: ‘achei uma mulher de 50 anos sexy, o que é se passa comigo?’ Não se passa nada de errado com ninguém. Acho que ninguém dúvida que o cupido possa enviar umas setinhas românticas a casais com diferenças de idades de mais de 20 anos – e que possa haver paixão, tesão e desejo. Seja ele o mais velho ou ela a mais velha, sejam casais heterossexuais ou homossexuais. Os desafios, é que são uns quantos, sim. Os julgamentos do sociedade alheia podem não ser muito simpáticos – são mais vezes reprovadores que outra coisa. Os ditos ‘especialistas’ em relacionamentos cunham certas constelações relacionais como trágicas à partida. Mas na minha humilde opinião, o que me parece desafiador num relacionamento entre dois seres com uma grande diferença de idade (quasi-geracional) não se prende tanto com questões de maturidade-imaturidade (que todos sabem que não depende da idade). Por mais que os membros de um casal possam ser feitos um para o outro e encaixem na perfeição na forma de ser e de serem, uma pessoa de 25 anos e uma pessoa de 40 anos podem perspectivar objectivos de vida diferentes – e isso pode ser problemático. Se antes era dado adquirido que todos trabalhavam para terem uma casa, puderem casar e ter filhos, hoje em dia a imagem não se pinta bem assim, e a panóplia de possibilidades e de estilos de vida multiplicam-se. E as constelações, até as mais perfeitas, podem partir-se, por não estarem em sintonia com o que um e o outro querem fazer. Imaginem lá uma mulher de 35 anos a querer ter filhos com um homem de 25, que se calhar não se sente tão capaz de se aventurar na paternidade? O amor não escolhe idades, mesmo. E o amor também não escolhe tão acertadamente trajectórias de vida semelhantes e/ou momentos que possam estar em mais sintonia. Para além disso não há mais nada, nem daddy issues, nem complexos de Édipo mal resolvidos. Descompliquem!
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA Torre do Inferno [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 14 deste mês, o website da BBC divulgava uma notícia sobre um incêndio que tinha acabado de deflagrar em Londres. A Torre Grenfell, situada no Norte de Kensington, estava a arder. No dia 19, um porta voz do Governo veio comunicar que se presumia que o número de vítimas mortais ascendesse a 79, 74 das quais estavam desaparecidas, estando 5 cadáveres já identificados. Este incêndio já é considerado o mais grave de sempre no Reino Unido desde que há registos conhecidos, ou seja, desde o início do séc. XX. A Torre Grenfell foi renovada em 2016. Foram instaladas novas janelas e foi colocado um revestimento de alumínio sobre as placas de isolamento térmico que, supostamente, se destinava a embelezar o edifício. Os peritos afirmaram que este revestimento pode ter estado na origem da propagação muito rápida do incêndio. O espaço que existia entre o revestimento e as placas de isolamento criou uma espécie de chaminé por onde o fogo alastrou. A cobertura ardeu e derreteu, o que prova que era feita de material inflamável. No dia 23, a Superintendente Fiona McCormack comunicou que a polícia tinha provas de que o incêndio não tinha origem criminosa e que teria começado com a combustão de um frigorífico, modelo Hotpoint FF175BP. McCormack acrescentou que, “As amostras do revestimento recolhidas para análise chumbaram em todos os testes de segurança.” A investigação prossegue para a apurar responsabilidades pelos crimes de homicídio por quebra de normas de segurança. Por enquanto ainda é cedo para apontar culpados. No entanto, se se vier a provar de forma inequívoca que o revestimento de alumínio esteve na origem da propagação incontrolável do incêndio, os seus fabricantes virão a ser acusados. Será também acusado de cumplicidade quem contratou esta empresa e decidiu revestir o edifício com o referido material. É sabido que essa responsabilidade pende sobre a construtora. Neste caso poderá a construtora ser acusada de homicídio? À luz da lei do Reino Unido, a resposta é “sim”. No Reino Unido, e não só, um homicídio pode ser considerado voluntário ou involuntário. Considera-se homicídio involuntário quando as mortes são provocadas por irresponsabilidade ou negligência. Neste caso é muito provável que se estabeleça uma acusação de homicídio involuntário, devido à utilização de materiais altamente inflamáveis para o revestimento do edifício. Segundo a lei inglesa, o responsável directo e o indirecto respondem pela mesma acusação. Ou seja, quer o fabricante quer o construtor estão sujeitos à mesma pena. O responsável da construtora estará pessoalmente sujeito a acusação idêntica. A figura jurídica que suporta esta acusação é designada por “desconsideração da personalidade jurídica empresarial” e permite responsabilizar as pessoas que estão por trás da empresa e, desta forma, obrigá-las a cumprir a lei. Se uma empresa for acusada de um crime, mas os seus responsáveis não forem, a punição não fará sentido porque a empresa não é uma pessoa real; responsabilizar as pessoas que a dirigem é a única forma de prevenir o crime. Esta tragédia é um aviso claro para Macau e para Hong Kong quanto ao perigo do uso dos revestimentos de alumínio em edifícios. Ninguém quer assistir a casos idênticos. A prevenção é sempre o melhor remédio. É necessário tomar medidas imediatas para garantir que este material não venha a ser usado. Macau é uma cidade pequena. Se uma situação destas aqui viesse a ocorrer, é fácil imaginar as consequências que teria. Sabe-se que no edifício Wing On em Hong Kong foram usados estes materiais. Será bom que o seu proprietário e quem o administra tomem medidas para evitar uma tragédia. No entanto, parece que ainda não é chegada a altura de legislar sobre a utilização de revestimentos de alumínio na construção. Teremos de escutar as opiniões dos peritos em segurança, das construtoras e do público em geral antes de ser tomada a decisão final. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Blog:https://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog E mail:legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
António Saraiva VozesCozinhando com carne de segunda [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente relataram os “media” que o antigo chefe do Instituto Cultural de Macau, Ung Vai Meng, estava sujeito a um processo disciplinar por irregularidades na admissão de pessoal. É sempre delicado comentar processos em curso. De facto, embora tenha a ideia que Ung Vai Meng é um homem sério, que serviu com brilho a RAEM não posso afirmar com absoluta certeza que não possa ter infringido um ou outro artigo da lei. Menos delicado é no entanto discutir na generalidade as normas que regulam a Admissão de Pessoal. De facto, a partir de 2012 que foi alterado o regime de recrutamento – este, que até aí feito por cada serviço, passou, no caso dos técnicos, a ser feito por um serviço centralizado – âmbito que foi alargado em 2016 a todas as carreiras (salvo com algumas excepções) (Regulamento Administrativo nº 14/2016). Um método de recrutamento que tem quanto a mim numerosos e graves inconvenientes. Os “candidatos adequados” O primeiro, e facilmente compreensível, é o do desconhecimento de um serviço central das reais necessidades do serviço para onde o trabalhador irá prestar serviço. De facto, e embora a lei preveja que o serviço que necessita de pessoal tenha de enviar aos serviços centrais de recrutamento (Serviços de Administração e Função Pública, SAFP) o “perfil” dos candidatos a admitir, facilmente se compreende que uma tarefa tão importante como a admissão de pessoal não se deverá limitar a dados “objectivos”: a expressão facial, a postura, a vivacidade, a forma de andar, a forma de responder às questões, são características importantes que essa suposta objectividade ignora. E isto supondo que o serviço sabe definir com precisão as características dos candidatos a admitir. Note-se que o serviço central de recrutamento, que irá influir directamente, pelas escolhas que faz, na qualidade dos vários serviços da administração – não tem responsabilidade nessas escolhas, passando a “batata quente” para os outros. As chefias intermédias podem ver-se assim na posição do cozinheiro que tem de apresentar pratos de boa qualidade com carne de segunda. Chefias sem face O segundo é o da perda de face do chefe, e as consequências na disciplina do pessoal. Se o chefe nem teve o poder de me escolher (e também não pode adquirir artigos, função também desviada para uma “central de compras”) – pensará o novo funcionário – será que o tenho mesmo de respeitar? Devo respeitar é quem me escolheu! Para mais sabendo-se que a cultura chinesa é muito baseada no “face to face”. E que pensará o chefe? Salvo os casos em que o ou os escolhidos correspondam às expectativas da chefia, restará ao chefe puxar os cabelos (felizmente que em Macau a calvície é rara) – queria uma pessoa com estas e estas qualidades (ou mesmo, em casos específicos, queria Fulano) — e mandam-me para aqui este mastronço! Isto é o primeiro passo para o desmotivar. E fruto desta desmotivação baixa o empenho na tomada de decisões e no instruir, disciplinar, e ajudar nas dificuldades o pessoal. O chefe é um como os outros, as coisas são para se “ir fazendo”. Para mandar executar as suas ordens mais facilmente é muito possível cair-se no “são ordens de cima”. Ora ao não assumir uma ordem como sua a chefia está a equiparar as suas funções às de um secretário, ou telefonista. As “queixas” De perto relacionado com esta questão está o trabalho de disciplinar o pessoal. Se o chefe não admitiu o funcionário, terá que se queixar às chefias superiores, dos seus subordinados – o que também é sinal de fraqueza e fonte de conflitos. Suponhamos que alguém convida um amigo para jantar em sua casa mas, no dia aprazado, o amigo verifica que não há jantar. O dono da casa “explica” que a mulher não fez o jantar. Que pensará o convidado? Corrupção e Justiça Um dos argumentos para justificar um sistema de admissões centralizado é o de evitar a corrupção e colocar todos os cidadãos em pé de igualdade para concorrer aos lugares públicos. Mas como, infelizmente, sabemos a defesa contra a corrupção não está nas leis – existem leis punindo a corrupção em todos os países, mas o nível da corrupção varia muito sensivelmente de país para país, e de região para região – mas na melhoria do nível moral geral da população. Nunca se descobriu uma fechadura que não pudesse ser violada. Por outro lado, numa cidade pequena como Macau, em que quase todos se conhecem, é por vezes difícil ignorar pedidos de familiares e amigos ou simples conhecidos (ou inversamente esquecer certas antipatias antigas). O ego Sinceramente penso que o actual sistema apenas enche o ego das “chefias ao mais alto nível” que assim pensam melhor controlar a admissão de pessoal; enquanto descredibiliza as chefias a nível de serviços e departamentos – as que ao fim e ao cabo, são as que têm de apresentar resultados visíveis; sem esquecer que justifica a especialidade de “recursos humanos” (como se, desde que somos bebés, não tivéssemos que ter conhecimentos aprofundados nessa área para poder sobreviver). Ora é pelos resultados que um serviço deve ser julgado, e não pelo cumprimento de um mar de regulamentos feitos por vezes por quem não tem a experiência de se debater com problemas concretos.
Rui Flores VozesDa dessacralização do poder [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m grupo de alunos da Universidade de Macau foi recentemente recebido pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, no âmbito de uma visita de estudo à Europa, organizada pelo European Union Academic Programme in Macao. O facto de um grupo de alunos de Macau, na sua grande maioria da China continental (integravam também a delegação uma aluna “local”, uma italiana e um butanês), ter sido recebido por um chefe de Estado é, naturalmente, notícia, e diz bem da importância estratégica que Portugal dá à China, particularmente à Região Administrativa Especial. Mas mais do que a mera nota da visita, o contexto do encontro e a forma como Marcelo recebeu os alunos (sobretudo mulheres, num claro sinal de que o género feminino domina a academia – e isso não acontece apenas na Europa) merecem reflexão. Marcelo é desarmante. Põe todos à vontade. A visita à Europa dos alunos da Universidade de Macau incluiu, entre outras, reuniões na Comissão Europeia e no Serviço de Acção Externa da União Europeia, em Bruxelas, ou encontros na Assembleia da República, com deputados da comissão parlamentar de amizade Portugal-China, e no Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, em Lisboa, ou o presidente da Câmara Municipal do Porto. O encontro menos formal terá sido aquele que decorreu em Belém. Marcelo está na moda. E ele sabe-o bem. Primeiro, arruma com qualquer formalismo (ou esvazia qualquer nervosismo que pudesse afectar a delegação) logo no início do encontro. Cumprimenta todas as mulheres da delegação, e são 11, com um beijo. Na cultura chinesa, o beijo é um contacto físico muito íntimo e por isso apenas reservado aos mais próximos. Não era algo com o qual as alunas estivessem à espera. Sobretudo vindo de um Chefe de Estado. É evidente que após as três ou quatro primeiras alunas terem sido “corridas” com um ósculo presidencial, as seguintes já se preparam para ele de um modo mais natural. (No final, para as selfies da praxe, são elas que vão a correr para ele, de beijo e abraço prontos, para se despedirem, como se tivessem acabado de visitar o avô.) Depois, o discurso. Numa altura em que as universidades chinesas se fecham sobre si próprias – com declarações públicas de altos quadros chineses, inclusive do ministro da Educação, contra os valores ocidentais nas universidades chinesas –, Marcelo fala da importância dos estudos europeus, das instituições europeias, da solidariedade europeia e dos valores europeus no actual contexto internacional de interdependência e globalização. A forma como o faz não poderia ser mais directa, simples. Para que todos o compreendam. Depois de perguntar aos alunos se lhe querem colocar questões, salienta que esteve na região a dar aulas, na mesma Universidade de Macau, no final da década de 1980, e que se recorda bem da qualidade dos alunos. Tudo de um modo informal, sorridente, cheio de apartes. Marcelo é um exímio comunicador. É com essa mesma simplicidade, por exemplo, que pega no telefone, dois dias depois da reunião com os alunos de Macau, em pleno centro de operações da proteçcão civil, para convencer uma velhota de uma aldeia ameaçada por um dos incêndios florestais, que então lavravam na região centro, a abandonar a sua casa. Com a sua presidência dos afectos, Marcelo Rebelo de Sousa tem feito mais pela aproximação dos portugueses das instituições do que qualquer política de inserção social. Marcelo não é apenas um professor culto e experiente, que consegue traduzir conceitos complexos por palavras simples, apreensíveis por quase todos. Ele é também o comentador político, que durante anos partilhou o serão de domingo com as famílias portuguesas, comentando a actualidade, sugerindo caminhos, identificando os bons e os maus, dando notas aos políticos (como se ele próprio estivesse acima disso), e foi aperfeiçoando a sua forma de comunicar aos tempos contemporâneos. Outros políticos, noutros países, tentam transformar a política numa coisa natural; dessacralizá-la. Não é fácil. Muitos acabam por cair na esparrela da contradição ou são vítimas de um mau desempenho de actor medíocre. Marcelo é um homem numa missão. Os alunos de Macau assistiram na primeira fila a essa missão. A de por palavras simples, com uma capacidade ímpar de ouvir, mostrar que os assuntos de Estado podem ser conduzidos de uma forma mais aberta, menos dramática, com resultados, porventura, mais eficazes. Uma espécie de alternativa a que não estamos muito habituados. Algo que os alunos não irão seguramente esquecer.
Carlos Morais José A outra face VozesA ausência como centro Pablo Picasso – “Auto-retrato” [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde o exilado se debate com as questões do abandono e da ausência. Situado na posição ambivalente de quem abandonou e se sentiu abandonado, é na experiência da ausência que, finalmente, a sua desterritorialização se constrói e edifica. É à volta desse vazio, tomado quantas vezes por absoluto, que o exilado alicerça novas identidades e se redescobre, enquanto humano e errante. Não se tratará de uma ausência particular mas de um conjunto intrincado, parte inconsciente ou com dificuldade denotado, que constitui uma espécie de vórtice — Maelstrom — em cada singularidade, impregnando-a de um movimento centrípeto, alucinado, mas cujo centro se afasta, ao invés de se aproximar. É por isso que encaramos essa ausência com uma estranha tranquilidade, como se estivéssemos a assistir à nossa morte, no momento em que ela consiste claramente numa metamorfose. Concretamente, não conseguimos deixar de girar em torno dessa ausência, mas ela não exerce uma atracção fatal: pelo contrário, erige-se como um horizonte que contemplamos com uma doçura cada vez mais açucarada, à medida que paulatinamente nos afastamos. Contudo, bem o sabemos, nenhuma distância realmente apagará esse sentimento de ausência que nos assombra. Seja ele fantasmático ou não, faça ele parte de uma qualquer realidade ou meramente se ancore numa imaginação perturbada, a verdade é que esse sentimento resiste ao tempo como se de um mal genético se tratasse. Nunca definitivamente se esvai, nunca de todo se apagará. É mal incurável e bem supremo que singularmente nos distingue. Espécie de maldição irrevogável e bendita, caminho sem retorno para o celeste inferno de uma percepção distanciada do mundo. Procurei sempre esse olhar. Encontrei-o num título de Claude Lévi-Strauss e nas tropelias poéticas de Rimbaud. Fiz um curso para o compreender. Mas nunca, de facto, em mim o experimentara até me deslocar aos confins da minha civilização e nas suas margens ele em mim se entranhar. Percebi que esse olhar distanciado não se aprende de outra maneira que não seja pelo exercício da ausência, pela intimidade solitária do pensamento, nas volutas espantadas de raciocínios bárbaros, nas delícias de concretos paradoxos, excrescências de logos, numa palavra, no exercício diário do exilado. Porque nunca algo se torna tão presente, tão importante, como quando é marcado pela ausência. Como se esta admitisse a presentificação de forma suave, quase ternurenta, do que mantemos encerrado nas caves desse seu castelo, cedendo-lhe espaço para contemplar, analisar, criticar, julgar; finalmente, capazes de entender e amar. Ele há exilados na distância, na geografia, mas também os há que nunca saíram do mesmo lugar. Eles sabem do que estou a falar. De uma saudade de infinitamente abraçar, de amorosamente compreender. Dessa percepção distanciada do mundo, da certeza de não lhe pertencermos por há muito o termos abandonado. Primeiro, a medo… depois, por força das circunstâncias… doutras vezes, a maior parte delas, por sermos mesmo assim e tal carregarmos como destino ou maldição. O exilado não se contorce, nem desespera: há muito que o desespero é seu fiel companheiro e a angústia noiva eterna, à sua espera num altar. É-lhe ridícula a esperança pois, intimamente, sabe que os outros dias não hão-de voltar. Esses dias que nunca realmente aconteceram, o vinho que nunca foi doce e as raparigas que nunca foram disponíveis e amáveis. O exílio é um estranho banho de realidade, na qual todos os dias mergulhamos sem a reconhecermos e dotados de míseras pistas de leitura. É então que se abre o universo e fazem sentido as facetas múltiplas que o compõem. É então que advém um amaciado entendimento, não discursivo, das coisas. Das que tenuemente existem e das que não existem de todo. E é então que o exílio se transforma numa espécie de cidadania de um mundo belo, cruel e indiferente.
Isabel Castro VozesA perda [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]heguei a Macau num contraciclo de viagens. Ainda se contavam os amigos e colegas que tinham ido logo depois da meia-noite, os que tinham partido nos dias seguintes, os que tinham deixado os carros no aeroporto, com as chaves na ignição. Cheguei quando pouca gente chegava. Isso foi um enorme azar e uma sorte também. Aterrei sozinha, com tudo o que a solidão implica, mas não cheguei no meio da multidão, o que pode ser uma vantagem. Houve quem tivesse tempo para mim e eu tive de ter tempo para os outros, para os outros que eram diferentes e que não tinham chegado comigo. Cheguei pouco tempo depois das eleições legislativas de 2001. Macau ainda era todo transferência: vivia-se da comparação, politicamente falando, como se fosse possível comparar séculos a dois anos incompletos. Aterrei na Assembleia Legislativa e por ali fiquei uma legislatura completa, a mais completa de todas as legislaturas que acompanhei. Passei horas na sala de imprensa a aguardar o fim de reuniões de comissões permanentes. Ali consumi muita literatura. Passei horas e horas em plenários, alguns agressivos, em que a palavra ‘portugueses’ vinha à baila mais do que estaria à espera. Como se eu estivesse à espera de alguma coisa. Eu que não percebia nada daquilo. Eu que fui percebendo alguma coisa lentamente, com a ajuda de quem se interessa por quem não chega no meio da multidão. Eu que agora percebo cada vez menos daquilo. Naqueles tempos as preocupações políticas eram outras. A dignidade do órgão também. Aprendi a ler os silêncios e os ruídos, o que uns e outros queriam dizer. Aprendi que há mais, muito mais, do que se faz e diz publicamente. Tentei ler os bastidores, na leitura possível de quem aterra de fora, sozinha, sem a multidão por perto. Quis perceber o que se estava ali a construir. Cheguei à conclusão, naqueles meus primeiros anos, que também são os primeiros anos disto que aqui temos, que a preocupação principal era impedir a destruição. As pessoas eram outras. Não todas, mas muitas delas. Todas elas tinham memória, apesar de algumas dizerem que não, que não tinham. As pessoas que eram outras foram sendo substituídas e o processo nem sempre correu da melhor forma. Houve um declínio da preparação técnica, uma quebra no discurso político, um crescente aumento da falta de pudor, que é coisa que cai bem nestas instâncias. O discurso da comparação morreu, para aparecer apenas pontualmente, mas não deu lugar a algo substancialmente melhor. A agressividade pontual serve apenas as freguesias. Ou os bairros. Ou as origens, sobretudo as origens. Ninguém anda ali para grandes pensamentos. Quer-se estar naquele sítio porque o cargo dá a dignidade que não se conquistou cá fora. Esta semana, ficámos a saber que Leonel Alves está de partida. Não se recandidata em Setembro. Há teorias que correm por aí que em nada me interessam. São 33 anos daquilo, os anos todos da mudança, os anos todos da mudança pós-mudança. É o deputado com mais anos de exercício de funções, um homem que há muito entrou para a história política do território, se um dia alguém se interessar por ela e se os outros deixarem que seja feita. A Assembleia Legislativa ficará mais pobre. Nas ideias, na capacidade técnica, na diversidade, no Q.I.. Nós, comunidade de língua portuguesa, também ficamos mais pobres. Leonel Alves falou sempre em português, à excepção de raríssimas situações em que mudou de registo linguístico para evitar que os seus interlocutores se escudassem nas traduções. Ficamos mais pobres porque a língua diz muito e ele era o único a defendê-la verdadeiramente. A língua não é só a língua, é muito mais. Não sei o que virá depois de Setembro, mas sei que não será certamente melhor. Este Verão é o início do fim de qualquer coisa. Daqui a dois anos saberemos todos melhor o que acabou.
Leocardo VozesInflamáveis infames [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ortugal esteve três dias de luto nacional, decretados no Domingo após o terrível incêndio que lavrou (e lavrava, até terça-feira à noite) nos distritos de Leiria e Coimbra. Esta figura do “luto nacional” não implica mais que colocar a bandeira a meia-haste, ou observar um minuto de silêncio no início de alguma cerimónia nacional ou evento desportivo. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa veio de imediato apelar à união e à contenção, pedindo a todos que se combatesse aquele foco de incêndio, em vez de “se acenderem novos focos”, referindo-se à imprensa e redes sociais, onde se começou imediatamente a montar o circo. O prof. Marcelo é óptima pessoa e tem sido um presidente de consensos, mas por vezes dá a entender que conhece mal o povo que o elegeu. Não há tempo seco nem temperaturas de mais de 40º que impeçam o bom povo de sair à rua de tocha acesa, pronto para acender mais uma ou várias piras inquisitoriais. O país e mundo acordaram em sobressalto no Domingo ao deparar com as notícias que davam conta de quase setenta mortos nos concelhos de Pedrógão Grande e Castanheira de Pêra, mortes essas em circunstâncias macabras e aterradoras, que deixaram para segundo plano as perdas materiais próprias desta estação. Em termos de área florestal ardida todos os anos nos incêndios de Verão, pode-se dizer que este foi só um “aperitivo”. As imagens de devastação e de morte falavam por si, e dispensavam qualquer tipo de comentário. Isto não impediu que uma escola muito “avant-garde” de jornalismo mandasse uma das suas mais celebradas profissionais fazer uma reportagem ao vivo junto de um cadáver que se encontrava na floresta, dentro de um saco próprio para o efeito. “Onde já se viu?”, bradava aos céus o povo incrédulo. Na CMTV, respondo eu, quando aqui há uns tempos transmitiram ao vivo o velório de uma criança que havia sido assassinada pela mãe. Foi aí que ficou a barra da decência. Mas não vamos abrir só um foco de incêndio nos valores de ética jornalística, não. Sabiam que a companhia que gere as contribuições telefónicas para a ajuda das vítimas fica com 1/6 do valor das doações? Ah pois, isto é indecente, “fazer dinheiro com os mortos”, desta vez houve mortos à brava para poder fazer valer qualquer um destes argumentos. Mas alto e pára o baile, que a ministra da Administração Interna impediu a entrada de bombeiros espanhóis, carregadinhos de água, e nós ali sem saber fazer a dança da chuva. Ai alegou questões de logística? Incompetente! Demita-se e já! Ai a notícia “não foi bem verdade”? Demita-se na mesma – demitam-se todos! O que nos vai levar ao principal foco de incêndio, esse ainda maior que o de Pedrógão: de quem é a culpa? Agora é que o lixaram, ó sr. presidente Marcelo. O incêndio foi causado por um raio de trovoada seca que, por culpa das temperaturas altas e dos ventos, se espalhou rapidamente pela floresta. Houve inicialmente quem tivesse colocado a possibilidade de fogo posto mas, havendo mão criminosa, era mais complicado aos ordenadores do território feitos à pressão nas redes sociais darem o inevitável veredicto: a culpa é do Governo. De qual? De todos, e ainda se estava longe de saber ao perto a dimensão real da tragédia, e já “xuxas” e “pafiosos” apareciam de fósforo em riste, prontinhos a acender fogo na palhota da culpa alheia. Isto é tudo sem dúvida de uma relevância assombrosa. Com toda a certeza que a última coisa que passou pela cabeça das pobres pessoas que se viram subitamente rodeadas pelo fogo da morte não foi arrependimente de ter votado ou deixado de votar em A ou em B. Talvez eu não esteja a abordar a situação da forma mais apropriada, sem a sensibilidade necessária. É que aqui em Macau (que já contribuiu para o alívio da tragédia, sem fazer perguntas ou tecer comentários, o que é de louvar) tem chovido todos os dias desde o fim-de-semana, e o calor é húmido e não há incêndios florestais – torna-se mais difícil relacionar-se com o drama. Ou talvez porque na China dá-se o abatimento de uma mina e morrem 200 operários, ou uma cheia custa a vida e as casas a milhares de pessoas de uma assentada, e não se faz da notícia um vendaval especulativo, não “vale tudo” para vender papel ou ter audiências, e não se atira a carniça aos abutres para que estes desatem a fazer campanha eleitoral. Em Portugal o luto terminou ontem (terça-feira), e agora já não fica mal falar-se à vontade de responsabilidades, de culpas e de todo o resto. Mas será que ainda ficou alguma coisa por dizer, bem ou mal.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesMás práticas públicas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado dia 14, o South China Morning Post de Hong Kong fez notícia das declarações de Adam Kwok Kai-fai, filho do magnata Thomas Kwok Ping-kwong. Thomas Kwok, proprietário do império Hong Kong Sun Hung Kai Properties, viu recentemente o seu recurso recusado pelo Tribunal e terá de cumprir os cinco anos de prisão a que foi condenado. O filho Adam prestou declarações à saída do Tribunal, afirmando que o pai não é corrupto nem é culpado das acusações de instigação a más prácticas em exercício de cargo público e insistiu que só é culpado de falta de cuidado e de ingenuidade. Thomas Kwok foi preso em 2014, acusado de conspiração e de indução a más prácticas no exercício de cargo público. Foram também sentenciados por cumplicidade Rafael Hui Si-yan, antigo nº 2 de Hong Kong, Thomas Chan Kui-yuen, ex-colaborador de Sun Hung Kai, e Francis Hung-sang, corretor da bolsa. O Tribunal de Recurso recusou os quatro apelos. O magnata, ex-co-Presidente da Sun Hung Kai, ofereceu a Rafael Hui, através dos outros dois réus, 8,5 milhões de HK dólares, pouco antes deste ter assumido funções como Secretário Chefe, em 2005. Os advogados de acusação viram nesta entrega de dinheiro uma forma de Thomas Kwok comprar favorecimentos para os seus negócios a um alto representante do Governo. No entanto, o advogado de defesa argumentou que Rafael Hui nunca favoreceu a Sun Hung Kai Properties, apesar de ter aceitado o dinheiro. Adam Kwok avançou ainda que respeita o Tribunal, mas que acredita que o júri falhou por apenas ter tido em conta as provas da entrega de dinheiro e não ter considerado o facto de posteriormente não ter havido qualquer acto que indicasse corrupção. “Dissemos-lhe que declarasse o dinheiro, mas quando soubemos que não o fez ficámos sem palavras.” Agora, vejamos o que se passou no Tribunal. Os réus foram julgados à luz da lei que condena as más práticas no exercício de cargo público e o suborno. O objectivo dos actos de corrupção é a criação de influência imprópria ou a garantia de posições vantajosas. Existe um vasto leque de actos e omissões que a lei considera indicadores destas más práticas. A essência deste tipo de crime é o abuso da confiança do público. Hui era Secretário Chefe do Governo de Hong Kong. Fazendo parte do Conselho do Executivo, tinha acesso a informação confidencial sobre matérias nas quais a Sun Hung Kai tinha interesses substanciais. Na posição de membro do Governo estava sujeito às normas de conduta e de regulação de conflito de interesses. Enquanto Secretário Chefe, Hui recebeu 8,5 milhões de HK dólares para pagamento de favorecimento. Este negócio é claramente corrupto. Almejava obter a preferência de Hui em relação aos negócios das outras partes envolvidas. Este tipo de actuação está em clara contradição com os deveres de Secretário Chefe e significa um abuso grave das prerrogativas do cargo e da confiança do público. O facto de o pagamento ter sido feito imediatamente antes de Hui ter assumido o cargo não quer dizer que os actos de abuso tenham sido cometidos nessa altura. O pagamento foi feito para vir a assegurar um favorecimento continuado dos empreendimentos Sun Hung Kai após a tomada de posse. O “pacto de sangue” estabelecido com este pagamento é o suficiente para estabelecer a existência de crime de más prácticas no exercício de cargo público. Os recursos foram por isso indeferidos. Este caso demonstra claramente uma situação de crime de más práticas no exercício de cargo público cometido por um alto funcionário governamental e os seus cúmplices. Não foi necessário ter havido uma acção de favorecimento comprovada, bastou ter-se estabelecido o elo de comprometimento para se provar o crime. Aqui a questão relevante foi o abuso da confiança do público. A questão do abuso da confiança do público é vital. Este critério pode ser aplicado a todos as acções desenvolvidas pelos servidores do Estado, independentemente dos benefícios que tenham atribuído a outrem. Em alguns casos, os favorecimentos são muito difíceis de provar. Se a lei mencionar “favorecimento efectivo”, a saber, a presença de dinheiro terá de ser provada para que exista crime, e negligenciar as atitudes de favorecimento, pode ser criada uma “falha de segurança”. Se os servidores do Estado puderem receber dinheiro em troca de favores, é fácil imaginar o que virá a acontecer à nossa sociedade. Este caso veio provar que o suborno de servidores do Estado é um crime grave e que todas as partes envolvidas serão castigadas. Na altura em que este artigo foi escrito, ficou a saber-se que os réus terão de suportar as custas do processo de recurso, que deverão montar aos 4 milhões de HK dólares.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo a longo-prazo [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando um casal já tem muitos anos de convivência, o sexo vai sofrendo algumas alterações. Se no início da relação o sexo é gozado durante horas e com frequência, quando uma relação já tem uns anos, é normal que a frequência sexual se reduza. São nestes momentos que comuns mortais tendem a debruçar-se acerca do segredo para um relacionamento duradouro e uma vida sexual feliz. Há livros, filmes e conversas que tentam auxiliar na (re)descoberta do sexo quando o casamento já tem mais do que 30 anos. A reflexão pode ser geracional, social, relacional ou familiar: há várias formas de olharmos este caleidoscópio dos relacionamentos duradouros e do sexo. Podem pensar no envelhecimento, e na tendência de se julgar que o sexo deve ser gozado por um grupo etário somente. Podem pensar nas dinâmicas familiares e na vinda de uma criança, que afecta o estilo de vida e a disponibilidade para nos sentirmos sexy e querermos mais e bom sexo. A Esther Perel, no seu livro que se intitula ‘Mating in Captivity’ – versão Brasileira ‘Sexo no Cativeiro’/versão Portuguesa ‘Amor e Desejo na Relação Conjugal’ – tenta ir mais além ao explorar o paradoxo do amor e do sexo. A proposta vai contra a forma que normalmente achamos que o amor e o sexo se relacionam. O amor e o sexo não são necessariamente duas faces da mesma moeda, são duas necessidades relacionais, sim, que apesar de estarem interligadas, precisam de um equilíbrio que tem que ser trabalhado – como um malabarista. Se o amor vive da intimidade e da familiaridade, o sexo vive da descoberta, do entusiasmo e do imprevisível. A proposta para manter um relacionamento saudável é de manter vivo o paradoxo de que a intimidade e a paixão não são resolúveis, e que fazem parte de uma aventura que tem que ser abraçada. Aviso-vos de antemão que o erotismo e a intimidade não conseguem sobreviver com base em ‘prescrições’. Ou seja: a razão pela qual não é possível arranjar soluções fáceis e práticas para o paradoxo intimidade/erotismo é porque nem uma, nem outra, pode ser facilmente resolvida. A intimidade não se desenvolve porque se tem uma conversa sobre isso, nem o erotismo é fabricado. Não que queira desvalorizar o nossos esforços de manter uma relação íntima e erótica, porque eles são válidos (e.g. fazer jantares românticos semanais, falar sobre fantasias sexuais e tentar concretizá-las, etc.), mas um relacionamento é feito a dois, com as nossas emoções, desejos e dificuldades, que complica a dinâmica. O que precisamos de ter em mente é que a aventura tem que ser tida como uma aventura, e não como um problema a ser eficazmente resolvido. Isto sugere que o modus operandi de qualquer relacionamento é exactamente este – tentar lidar/articular ideias e desejos totalmente opostos. Mas a Esther, no livro supracitado, sugere uma forma de abordar a questão. Visto que temos dois valores em conflito, a familiaridade/intimidade versus o desconhecido/excitante, ela sugere que por mais próximos que nos sintamos com o nosso parceiro, temos que manter algo (um estado de ser) que também seja só nosso. O casal não pode ser uma amalgama sobreposta e única. Em culturas mais individualizadas, diz a Esther, é preciso criar limites do ‘nós’, do ‘eu’ e do ‘tu’ para que o casal funcione. O que é que isto quer dizer na prática é muito mais complexo do que isso, mas é assim explicado no abstracto: para que o sexo e os sentimentos eróticos ainda estejam a ‘bombar’ após 30 anos de convivência é preciso manter um estado descomplicado individual, para além do casal. Assim o sexo é alimentado pelo nosso sentido de mistério/individualidade e melhorado pela nossa proximidade como casal. Não consigo fazer justiça aos conceitos e ideias explorados pela Esther Perel em tão curto espaço de escrita, mas queria convidar o leitor a reflectir sobre esta dinâmica da relação conjugal e a procurar maior teorização acerca do que somos como pessoas e como parelha (ou família poliamorosa, como quiserem). A sujeita também tem muitas palestras online para melhor reflectir acerca do relacionamento – e de que formas podemos redefini-lo e entendê-lo. Mas também sugiro cautela, porque quando opinamos sobre determinado tópico, fazemo-lo com base num registo/referência sócio-cultural que não se aplica a todos. Mas no que toca ao amor e ao prazer do sexo, do que custa reflectir?
Carlos Morais José A outra face VozesAs eleições do nosso contentamento [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos em ano de eleições e a coisa promete alguma confusão. Trata-se de um momento especial na RAEM, não tanto por causa do acto eleitoral em si mas por desvelar algumas das características nem sempre à superfície deste território à beira do Rio das Pérolas pespegado. Começaremos então, porque assim nos arrasta a mão, por desvalorizar as eleições enquanto tal, ou seja, como eleições cujo objectivo é, normalmente, a escolha dos representantes que nos governam. Aqui é precisamente o contrário. O povo escolhe os representantes que o desgoverna. Na realidade – pura, crua e fedorenta – quem governa serão outros ou, pelo menos, assim parece. Os nossos ilustres deputados, quando muito, na maior parte dos casos, governam-se a si mesmo. E isto que poderia parecer estranho ou até despropositado, aqui faz todo o sentido. É que em Macau é difícil implantar o conceito de bem comum. Cada um puxa a brasa à sua sardinha e a ver se fica com o fogareiro. Cada família, cada clã, cada etnia, está fundamentalmente preocupada consigo e os outros pouco existem. A teoria (selvagem e não dita) é que cada um tome conta de si e ninguém de todos que isso – grunhem – é o comunismo e isso é lá para o continente e não serve para estes exemplares capitalistas que por aqui pululam e fazem fortuna entre o imobiliário e os derivados do jogo. No acto eleitoral, a populaça vai votar para uma dúzia de lugares eleitos de forma directa (mais ou menos um terço da coisa), a ver se se entretém. Mas, nesta realidade de antanho, as pessoas só vão realmente votar porque são arrebanhadas, conduzidas, alimentadas e, finalmente, despejadas junto às urnas com indicações precisas e irrevogáveis. Por elas ficavam em casa ou no trabalhinho que é muito bonito. Mas o melhor é ir botar o voto, não vá o chefe zangar-se. Depois os resultados são o que se sabe. Enfim, adiante. O que realmente interessa neste acto – nos preliminares que tanta discussão acendem – é o que vem à tona, assim como que empurrado por anos ou décadas de omissão. É ver, por exemplo, a reacção impulsiva de Pereira Coutinho perante o discurso de Jorge Valente no jantar anual do Gabinete de Ligação. O homem forte da ATFPM não resistiu ao protesto, tal como o jovem empresário não resistiu ao apelo do palco e do microfone, ainda que certamente sabendo estar a cometer um acto passível de crítica. Ambos fizeram bem: a política é mesmo assim. Contudo, se pensarmos estrategicamente no assunto, o que Pereira Coutinho fez foi algo contrário aos seus interesses, na medida em que Jorge Valente é praticamente um desconhecido nestas andanças e o protesto do deputado emprestou-lhe pública notoriedade. Aquele que era um jovem macaense, parceiro de Melinda Chan, transformou-se num político de futuro interessante, de quem se fala, que Coutinho teme (?!), eventualmente bem visto no Gabinete de Ligação, e até ficámos a saber que fala mandarim! Mas o que é interessante neste caso é a emergência de um potencial debate, a esperança que luza uma ideia, que se destaque uma opinião, que se revele uma estratégia, quiçá uma visão. Sim, queremos sangue e queremos pombas. Queremos a comunidade dividida nas opiniões mas unida num óbvio rumo. Queremos que se esgadanhem por nós. Que se empenhem na demonstração da extrema utilidade do nosso voto. E, acima de tudo, que nos falem ao coração. É disso que a malta gosta… quando não desgosta que esta gente é muito difícil… Outro canto deste micro-universo eleitoral é aquele onde se desenrola o combate de boxe entre velhos e novos “democratas”. Ng Kuok Cheong e Au Kam San partiram definitivamente a bilha onde se acumulavam pessoas com agendas muito diferentes. Pelos vistos, pretender “directas já!” não chega para juntar os cacos. Poder-se-ia argumentar que o choque é geracional, mas o argumento cai por terra quando damos por homens como Paul Chan Wai Chi, um sexagenário, do lado dos jovens e os “tradicionais” do lado dos outros. A questão é certamente outra. Os problemas de Hong Kong, as ligações específicas de cada membro e mesmo uma ideia diferente de sociedade estarão por detrás desta implosão da Novo Macau. É com alguma curiosidade que se aguarda por eventuais debates entre Scott Chiang, o homem a quem maltrataram o coração, e a dupla Ng-Au, de modo a compreendermos a dimensão da ruptura e o sentido de novas filiações. Enfim, isto promete. Não o que devia prometer, mas promete. Dá para escolher o lugar, preparar o lanche e esperar para ver. O espectáculo promete ser divertido.
Fa Seong A Canhota VozesUma viagem incompreensível [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ronto. A medida de acesso livre de iates entre Macau e a cidade chinesa de Zhongshan está lançada, e o novo terminal marítimo da Taipa foi, finalmente, inaugurado. Macau parece ter ganho novas faces marítimas para mostrar ao mundo, em termos de sistemas e infra-estruturas. Mas há que questionar: e depois? O número de pedidos para a entrada de iates é tão pouco, que até Maio deste ano apenas três iates chegaram ao território vindos de Zhongshan. A Direcção dos Serviços de Turismo admitiu que esta medida é dirigida para turistas com maiores capacidades económicas, pelo que o número de visitantes desta categoria não deve registar um grande aumento. É incompreensível que, apesar de saber que os turistas serão, à partida, poucos, os Serviços de Turismo continuem a afirmar que vão fazer estudos sobre as “características de consumo” dos clientes nesse segmento, mas não estudam como podem atrair mais visitantes ou melhorar essa medida. Este caso faz-me lembrar o comentário feito por um analista que referiu que o Governo sofre de uma espécie de doença de Parkinson, que estará a aparecer novamente. Assim que descobre um problema, o Executivo limita-se a encomendar estudos a diversas entidades, pois considera que são os melhores medicamentos para as suas doenças. Fazer estudos não é, de todo, uma medida errada, mas deve ser adequado e ter efeitos práticos. Nesta iniciativa sobre a entrada livre de iates, o ponto essencial é como é que se podem diminuir as exigências a quem tem um iate, para que a medida possa beneficiar mais pessoas. Levanta muitas dúvidas o facto dos Serviços de Turismo e a Direcção dos Serviços dos Assuntos Marítimos e da Água implementarem medidas sem terem uma comunicação permanente. Este é um velho problema de incoerência que existe nos diversos departamentos do Governo. Para além da burocracia, há ainda a dificuldade relacionada com o facto do interior da China cobrar quase um milhão de renmimbi para que um iate fique estacionado na marina. Isso não ajuda os proprietários de iates que sejam, digamos, da classe média, ou classe média alta. Além disso, as taxas de inspecção nas alfândegas são altas, e é algo que o Governo de Macau já disse que precisa de coordenador com as autoridades de Guangdong. Também foi falada a existência de um mecanismo de cooperação entre os dois territórios, mas será que está a ter efeitos? Quando os iates chegam a Macau, podem ficar estacionados no cais de Coloane ou na marina da Doca dos Pescadores, mas as instalações em Coloane não são simples. Não há sampanas (embarcações asiáticas, com fundo de bambu) que façam a ligação para embarcações de recreio mais específicas. Os iates só podem atracar numa zona a cem metros de distância em relação ao cais, e os turistas precisam de usar o batel para fazer a ligação ao cais. Não deixa de ser uma viagem com um quê de assustador. Quando os iates de Zhongshan chegam a Macau, não podem passear nas suas águas. Se eu fosse dona de um iate e chegasse ao território, e percebesse que não podia dar uma volta de barco, então ia pensar para que estava eu aqui com o meu iate. O Governo Central já atribuiu à RAEM quilómetros de águas marítimas, mas é estranho que os iates ainda não possam fazer visitas aqui à volta. Não me assumo especialista. Mas tendo em conta que o terminal marítimo da Taipa já entrou em funcionamento, e tendo em conta a sua enorme dimensão (quatro vezes superior à do aeroporto), devem existir zonas por ocupar ali à volta. As autoridades deveriam pensar em aproveitar esses espaços para o embarque de iates provenientes da China, e isso iria permitir um melhor acesso dos turistas ao Cotai, Taipa ou Coloane. Talvez fossem proporcionadas melhores condições do que o Cais de Coloane.
Isabel Castro VozesOs coelhinhos [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ensar sobre coisa nenhuma é um exercício tramado. Assim como é difícil escrever sobre coisa nenhuma, mesmo para quem está habituado à folha em branco e às ideias no vazio. Anos de desertos ideológicos não nos habituam necessariamente ao nada, à inexistência. Temos esta mania insuportável de querermos pensar em algo, de precisarmos de um objecto para inventarmos outro, de necessitarmos de um conceito para o podermos avaliar. Somos uns tontos. Pois bem. Esta semana, o Governo de Chui Sai On lançou à população um desafio metafísico de elevado grau de dificuldade: quer o Executivo que a gente pense no que deverá ser a presença do território no megalómano plano da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. Sucede, porém, que não foi dado ao povo um ponto de partida para tamanha reflexão. Na apresentação da consulta pública, que dura apenas 15 dias, não foi divulgado um plano, uma proposta ou meia dúzia de ideias. Foi lida a lista de chavões que todos conhecemos e que inclui palavras tipo plataforma, lazer, centro, mundial, lusófonos e afins. Ideias concretas: zero. Pensem vocês, dizem eles. Penso eu, respondo. Se tiver tempo, porém. Reconheçam, senhores que mandam, que 15 dias é coisa nenhuma para se pensar sobre coisa nenhuma. Não chega para se sair da abstracção para a realidade. Quando nos encontramos mergulhados no alheamento colectivo, encontrar uma ideia por semana é tarefa árdua. O objecto da consulta é vasto, extraordinariamente gigante no tamanho e de natureza ultra-diversificada. Vós pedis o impossível. Mas eu tento, dentro das minhas limitações. E isto apesar de não saber sequer se sou destinatário deste vosso pedido. Por certo quereis, senhores que mandam, que as opiniões a serem enviadas em correio rápido sejam redigidas por ilustres cabeças, cérebros mais iluminados do que o meu, uma humilde jornalista. São as elites pensantes do território que, em 15 dias, conseguem conceber um plano de integração económica, outro ao nível das infra-estruturas viárias, um terceiro sobre infra-estruturas rodoviárias e outro ainda sobre questões de harmonização jurídica, isto sem descurar, claro está, a sintonização das mais diversas manifestações culturais e linguísticas das três jurisdições em análise, os negócios, os negociantes e os negociadores. Não obstante saber que há quem tenha disponíveis 15 vezes 24 horas pela frente para vos fornecer ideias a preço de desconto – que por aqui é caro, porque tudo custa os olhos da cara e outras partes do corpo –, agradeço o facto de me terem incluído, a mim e aos meus semelhantes, em tão nobre tarefa. Há dias em que sabe bem sentirmos que somos parte da engrenagem, e não a pedra que se afasta com a biqueira pontiaguda do sapato italiano. Apesar de nos ser pedido o impossível e de, muito sinceramente, saber que não estais à espera do meu inútil contributo, aqui fica ele: há alturas em que mais vale estar calado do que atirar areia para os olhos de quem ainda vê para além do capacete local. O projecto em análise é de nível nacional. Pequim, sabe quem lê os jornais, incumbiu as partes de dizerem o que pensam. Aqui ao lado, naquela China que achamos ser densa e opaca, há já algumas semanas que se fala publicamente dos estudos que foram encomendados e das propostas concretas que contêm. Aqui dentro, nada. Os senhores que mandam sentam-se a uma mesa e dizem: povo, pensai por nós, pecadores, para Pequim ver que estamos aqui todos ouvidos, todos olhos, todos receptivos às vossas ideias sobre coisa nenhuma. Entretanto, os amigos de sempre sacam da cartola um rolo com propostas e estudos preparados de anteontem para ontem, de tão geniais que são. Eu quero uma grande baía cor-de-rosa. Uma Hello Kitty gigante que se visse da lua, mais expressiva do que a muralha. Cheia de ouro e diamantes, para respeitar a cultura transversal da província e das duas regiões. Macau deve afirmar-se pela diferença: passeios rolantes com ventoinhas penduradas em nuvens por causa do suor e dos maus cheiros, estradas revestidas a material fofo e absorvente para reduzir o barulho e amortecer as quedas em caso de acidente, hordas de turistas nipónicos com os telemóveis no silêncio e as gargantas em ‘mute’, livros a nascerem das árvores, árvores a nascerem dos livros, sofás imaculados espalhados pela cidade com música conforme o meu estado de espírito, crianças de uniformes brancos, bem-comportadas, velhinhos sorridentes a saltar à corda e coelhinhos aos pulos nos imensos jardins relvados do Leal Senado. E também me apetece que 2049 não seja amanhã, porque amanhã é um sábado de 2017, e pode ser que, nos anos que faltam, apareça alguém que não queira apenas brincar aos políticos.
Leocardo VozesSantos da casa [dropcap style≠’circle’]1)[/dropcap] Junho é o mês de Portugal na RAEM – bestial. Faz todo o sentido também; é o mês dos Santos Populares, das marchas, das sardinhadas, da farra, tudo coisas que fazem bem à alma. Há dias comemorámos aqui em Macau o 10 de Junho, e se onde há um português faz-se sempre a festa, nesta antigo território ultramarino não faltam alternativas para se exercer a lusitanidade, mesmo que à distância. Mas comezaina e beberrice à parte, fico um pouco apreensivo quanto ao nosso futuro papel neste território agora chinês. Todos os anos se repetem as declarações de boas intenções. O cônsul-geral cumprimenta o Chefe do Executivo, e agradece a disponibilidade, este retribui destacando a contribuição da nossa comunidade (verdade, verdadinha, diga-se de passagem), tudo isto entre juras de amor eterno que se renovam ano após ano. Depois há a vertente comercial da coisa, e repetem-se as palavras que ficam bem quando se trata de negócios; ora é a plataforma, a faixa, arrota, perdão, a rota. Ora se atira com um “entreposto de produtos portugueses” em Zhuhai, ora se muda de discurso e se aponta a Shenzhen. E na prática, o que quer isto dizer? O que é que tem sido feito, realmente, além das visitas, dos apertos de “bacalhau”, e depois lá vai cada um à sua vida? Contexto histórico à parte, a verdade é que o futuro de cada residente de Macau está nas suas mãos, independente de ter nascido em Macau, Portugal, França ou outro sítio qualquer, e tudo depende da prosperidade do território, e já agora da estabilidade política na própria China. E é isto que temos que colocar no topo da lista de prioridades. E por falar nisso… 2) Vamos ter eleições legislativas em Setembro próximo, e a coisa começou já a “aquecer”. Sem me referir a nomes (sabem de quem estou a falar), tivemos esta semana polémicas declarações de um deputado, que acusou o Gabinete de Ligação de favorecer outro candidato. Repito, o Grupo de Ligação. Isto para quem não acredita em bruxas, mas considera que as há, há (não, não me estou a rir) pode ter algum cabimento, mas eu duvido. Perdoem-me por não ter o dom da fé, mas quer-me parecer que o tal candidato deu um tiro no pé – no outro, que está bom, se é que entendem onde quero chegar. Onde se pode chegar levantando uma suspeita destas? E mesmo sendo legítima, quanto votos valem o tal convite para o jantar, o discurso que foi ali feito, e tudo mais? Mas a campanha eleitoral promete, pois além dos habituais pássaros que normalmente ocupam o poleiro da Praia Grande, temos este ano uma lista composta pelos “lesados do Pearl Horizon”. O nome não lhes podia ficar melhor. São aqueles tipos que pensaram que compraram uma “pérola”, mas foram a ver e à frente só tinham o horizonte. Em Setembro há mais.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesSaúde e justiça ambiental “Environmental pollution is an incurable disease. It can only be prevented.” “Making Peace With the Planet” – Barry Commoner [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e está a ler um livro, pare de o ler. Feche-o, apenas por um momento. Levante os olhos e olhe ao redor. Onde se encontra? O que vê? Talvez esteja na biblioteca da universidade, cercado de prateleiras de livros, com tapetes debaixo dos pés e o ar condicionado a cantarolar com ruído suave. Talvez esteja em casa, em um dormitório, um quarto de apartamento ou uma suite de um hotel, ou quiçá na sua cozinha. Talvez esteja deitado debaixo de uma árvore, em um parque, ou talvez esteja em um autocarro ou mesmo em um avião. Como é? Como se sente por estar onde está? A luz é adequada à leitura? A temperatura é confortável? Existe ar fresco para respirar? Existem poluentes no ar, à excepção dos resultantes de um tapete colocado ou de uma parede recentemente pintada? A cadeira encaixa-se perfeitamente ao seu corpo? Se estiver dentro de uma sala olhe para fora. O que vê pela janela? Existem árvores? Edifícios? O local onde vive é ruidoso ou tranquilo? Existem outras pessoas? Existem ruas movimentadas, com carros, motociclos e autocarros a lançarem nuvens de poluentes pelos escapes e produzindo ruído? Agora imagine que pode ver ainda mais longe, para um restaurante perto do mar, para a rede rodoviária em torno do local onde vive, para as poucas fábricas e instalações em parques industriais, para a central eléctrica e de resíduos sólidos à distância, fornecendo electricidade e incinerando resíduos, para a sala em que está, para o mar a poucos quilómetros de distância. O que veria no restaurante? A cozinha está limpa? Os alimentos são armazenados com segurança? Existem baratas ou ratos na sala dos fundos? E o rio? O sistema municipal de esgotos despeja resíduos sem serem tratados ou o resultante de defeituoso tratamento no rio e mar, ou existem estações de tratamento de águas residuais que descarregam efluentes tratados e limpos? Existem produtos químicos nas águas do rio e mar? E quanto ao peixes? Pode comê-los? Pode nadar no rio e mar? Pode beber a água do rio? Quanto às estradas, fábricas, central eléctrica e de resíduos sólidos estão a poluir o ar? As estradas estão obstruídas com o tráfego? As pessoas são rotineiramente feridas nas estradas? Os trabalhadores da construção civil e fábricas estão expostos a produtos químicos perigosos, ao ruído ou a máquinas que os podem ferir ou criar ansiedade? Existe poluição transfronteiriça? Como é tratada? Os alimentos que consome provêm de terrenos agrícolas que aplicam pesticidas, ou estão a controlar os insectos de outras formas? Está confiante de que está seguro de comer os vegetais que aí nascem e crescem? As áreas agrícolas de onde provêm os alimentos que consome, como os vegetais, estão a diminuir à medida que o desenvolvimento urbano se expande? Imagine que tem uma visão ainda mais ampla com linhas flutuantes acima da terra, e olha para baixo e vê as centenas de milhões de pessoas que vivem em circunstâncias extremamente diferentes? Vê vastas megacidades com milhões e milhões de pessoas, e vê aldeias rurais isoladas a três dias de caminho da estrada mais próxima. Vê as florestas a serem limpas em alguns lugares, rios e lagos a secar em outros? Dá-se conta que a temperatura da superfície terrestre é um pouco mais quente do que era há um século? Vê ciclones formando-se em regiões tropicais, geleiras e cascatas que se derretem perto dos pólos? Pare e volte de novo ao livro. Tudo o que acabou de ver, da sala e no mundo em que está, fazem parte do seu ambiente. E muitos aspectos desse ambiente, do ar que respira, da água que bebe, das estradas que transita, dos resíduos que produz, podem afectar o que sente. Podem determinar o risco de se contundir antes do final do dia, o risco de ficar com disenteria ou falta de ar ou uma dor nas costas, o risco de desenvolver uma doença crónica nas próximas décadas, mesmo o risco dos seus filhos ou netos sofrerem deficiências de crescimento, asma, doenças coronárias ou cancro. O que é saúde ambiental? Qualquer dicionário define o ambiente primeiro, de forma directa como sendo as circunstâncias, objectos ou condições pelas quais o ser humano está rodeado. A segunda definição que oferece é mais intrigante, sendo o complexo de introdução física, como factores químicos e bióticos (clima, solo e seres vivos) que agem sobre um organismo ou uma comunidade ecológica e, em última instância, determinam a sua forma e sobrevivência. Se o nosso foco é sobre a saúde humana, podemos considerar o meio ambiente, como sendo todos os factores externos ou não genéticos, físicos, nutricionais, sociais, comportamentais e outros, que actuam nos seres humanos. Uma definição amplamente aceite de saúde vem da constituição, criada em 1948, da Organização Mundial da Saúde, como sendo um estado de bem-estar físico, mental e social completo, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade. Esta ampla definição, vai muito além da visão bastante mecanicista que prevalece em algumas configurações médicas para incluir muitas dimensões de conforto e bem-estar. A saúde ambiental foi definida de muitas maneiras. Algumas definições fazem referência à relação entre as pessoas e o meio ambiente, evocando um conceito de ecossistema, e outras concentram-se mais estreitamente no tratamento de condições ambientais específicas. Alguns preocupam-se em reduzir os riscos, e outros focam-se na promoção de ambientes que melhoram a saúde. Alguns direccionam-se para perigos físicos e químicos, e outros estendem-se mais amplamente, a aspectos dos ambientes sociais e construídos. Uma das definições deixa claro, que a saúde ambiental são muitas coisas, um campo académico interdisciplinar, uma área de pesquisa e anfiteatro de práticas de saúde pública aplicada. Outra definição, afirma que a saúde ambiental representa os aspectos da saúde humana, incluindo a qualidade de vida, que são determinados por factores físicos, químicos, biológicos, sociais e psicossociais no meio ambiente, também se referindo à teoria e prática de avaliar, corrigir, controlar e prevenir esses factores no ambiente, que potencialmente podem afectar negativamente a saúde das gerações presentes e futuras. A saúde ambiental é o ramo da saúde pública que protege contra os efeitos de riscos ambientais, que podem prejudicar a saúde ou os equilíbrios ecológicos essenciais para a saúde humana e a qualidade ambiental. A saúde ambiental compreende os aspectos da saúde humana e doenças, que são determinados por factores no meio ambiente, referindo-se ainda à teoria e prática de avaliar e controlar factores no ambiente, que podem afectar a saúde. Inclui os efeitos patológicos directos dos produtos químicos, a radiação e alguns agentes biológicos, e os efeitos muitas vezes indirectos na saúde e no bem-estar do amplo ambiente físico, psicológico, social e estético, que inclui a habitação, desenvolvimento urbano, uso do solo e transportes, tal como preconiza a “Carta Europeia de Ambiente e Saúde”. A saúde ambiental é a disciplina que se concentra nas inter-relações entre as pessoas e seu meio ambiente, promove a saúde e o bem-estar humano e bem como um ambiente seguro e saudável. A preocupação humana com a saúde ambiental data dos tempos antigos, e evoluiu e expandiu-se ao longo dos séculos. A noção de que o ambiente poderia ter um impacto no conforto e no bem-estar, a ideia central da saúde ambiental, deve ter sido evidente nos primeiros dias da existência humana. Os elementos podem ser difíceis, e sabemos que os nossos antepassados procuraram abrigo em cavernas ou sob árvores, em abrigos existentes ou que construíram. Os elementos ainda podem ser resistentes, tanto diariamente como durante eventos extraordinários, como o tsunami de 2004 nos lembrou. Os nossos antepassados enfrentaram outros desafios, que agora identificaríamos com a saúde ambiental. Um era segurança alimentar. Deve ter havido procedimentos para preservar alimentos, e as pessoas devem ter ficado doentes e morreram por comer comida estragada. As restrições dietéticas na antiga lei judaica e islâmica, como a proibição de comer carne de porco, provavelmente evoluíram a partir do reconhecimento de que certos alimentos podem causar doenças. O outro desafio foi a água limpa, e podemos assumir que os primeiros povos aprenderam a não defecar perto, ou de outra forma, contaminavam as suas fontes de águas subterrâneas. Nas ruínas das antigas civilizações da Índia a Roma, da Grécia ao Egipto e à América do Sul, os arqueólogos encontraram os restos de canos de água, sanitários e linhas de esgoto, alguns com mais de quatro mil anos. Ainda outro risco ambiental era o ar poluído. Há evidências nas cavidades dos “sinus” dos antigos habitantes das cavernas de altos níveis de fumo, antecipando preocupações modernas de ar interior, em casas que queimam combustíveis de biomassa ou carvão. Uma passagem intrigante no livro bíblico de Levítico (14:33-45) refere-se a um problema de saúde ambiental bem reconhecido como mofo, míldio ou fungo em edifícios, pois quando uma casa tem uma “doença leprosa”, o dono da casa diria ao sacerdote: “Parece-me que sou uma espécie de doença na minha casa”. Então o sacerdote ordenava que fosse esvaziada a casa antes de examinar a doença, para que tudo o que estivesse nela fosse declarado impuro e só depois entraria na casa e examinaria a doença. Se a doença estivesse nas paredes da casa com manchas esverdeadas ou avermelhadas, e se parecesse ser mais profunda que a superfície, o sacerdote deve sair da casa e fechá-la por sete dias, voltando ao sétimo dia e examinaria de novo. Se a doença se tivesse espalhado pelas paredes da casa, ordenaria que tirassem as pedras, na qual se encontrava a doença, e as colocassem em um lugar imundo fora da cidade, e faria que o interior da casa fosse raspado, e o gesso raspado, fosse derramado em um lugar imundo fora da cidade, e então tomariam outras pedras e as colocariam no lugar das retiradas e assim como novo gesso na casa. Se a doença aparecesse novamente na casa, depois de terem sido retiradas as pedras e raspado o gesso e colocado a nova argamassa, o sacerdote deveria ir de novo ver. Se a doença se tivesse espalhado pela casa, era uma lepra maligna e o local impuro. Então, seria derrubada a casa, as suas pedras e a madeira e todo o emplastro, e tudo seria levado para fora da cidade para um lugar imundo. É extremamente interessante especular sobre se as habitações antigas sofreram um crescimento excessivo de mofo, como também é interessante considerar o lugar impuro fora da cidade, como um local de despejo perigoso. Quem retirou os resíduos desse local e qual o impacto na sua saúde é biblicamente desconhecido. O outro antigo desafio de saúde ambiental, especialmente nas cidades, eram os roedores. A história europeia mudou para sempre, quando as infestações de ratos nas cidades do século XIV levaram à peste negra, pois era transmitida por pulgas encontradas em roedores, principalmente nos ratos. As cidades modernas, continuam a lutar periodicamente com infestações de ratos e outras pragas. A saúde ambiental é um campo dinâmico e evolutivo. À medida que o século XXI se desenrola, as funções sanitárias tradicionais continuam criticamente importantes, e os riscos químicos continuarão a ser um foco de atenção científica e reguladora. Olhando mais adiante, podemos identificar pelo menos cinco tendências que irão moldar a saúde ambiental, que são a justiça ambiental, centralização em grupos sensíveis às questões ambientais, avanços científicos, mudanças globais e movimentos em direcção à sustentabilidade. A partir de 1980, as comunidades afro-americanas identificaram exposições a resíduos perigosos e emissões industriais como questões de justiça racial e económica. Os pesquisadores documentaram que essas exposições, afectaram desproporcionalmente as comunidades pobres e minoritárias, um problema que foi agravado por disparidades na aplicação de lei ambientais. O movimento moderno da justiça ambiental nasceu, de uma fusão do ambientalismo, saúde pública e do movimento dos direitos civis. Os historiadores observaram que a justiça ambiental representa uma mudança profunda na história do ambientalismo Esta história é comummente dividida em vagas. A primeira vaga foi o movimento de conservação do início do século XX, a segunda vaga foi o activismo militante que floresceu no “Dia da Terra, 1970”, e a terceira vaga foi o surgimento de organizações ambientais grandes, “internas”, como a “Sierra Club”, a “Liga de Eleitores em favor da Conservação do Meio Ambiente (LCV, na sigla em inglês)” e o “Conselho de Defesa dos Recursos Naturais (NRDC, na sigla em Inglês)”, que adquiriram considerável influência política na década de 1980. A justiça ambiental, então, representa uma quarta vaga, que se distingue pela sua liderança descentralizada, diversidade demográfica e a sua ênfase nos direitos humanos e na justiça. A visão da justiça ambiental, eliminando disparidades em oportunidades económicas, ambientes saudáveis e saúde, é aquela que ressoa com as prioridades de saúde pública, enfatizando que a saúde ambiental se estende muito além das soluções técnicas de exposições perigosas para incluir direitos humanos e a equidade. É provável que esta visão seja uma parte cada vez mais central da saúde ambiental nas próximas décadas. Um dos grandes comprometimentos em termos de combate às alterações climáticas pondo também em risco a almejada justiça ambiental, é a decisão tresloucada e eleitoralista do presidente americano de retirar o seu país do “Acordo de Paris”, mesmo que seja temporariamente, como é de acreditar. Essa saída breve a dar-se, não deixará por certo os Estados Unidos de cumprir as metas acordadas, de forma a não perder o passo, aquando da sua futura readmissão.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPés de Lótus [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s pés de Lótus já são difíceis de encontrar. Em 2015 ainda se encontravam as últimas 50 mulheres na China com pés de Lótus, mas em 2017 já ninguém sabe quantas são ao certo. Estas são mulheres com idades avançadas, muitas delas com uma centena de anos. A aspiração por uns pés de lótus (felizmente) caiu em desuso, e ninguém das gerações chinesas mais recentes, que se saiba, desenvolveram a prática. Aliás, é uma prática proibida, durante o período de Mao, nos seus desejos de libertação de uma China feudal antiga, as mulheres foram proibidas de continuar tradição de reduzir os seus pés aos desejos masculinos. Na altura houve uma campanha de censura, onde os polícias faziam questão de pendurar as ligaduras dos pés nas janelas das pessoas que ainda continuassem com a prática – para que fossem publicamente humilhadas. Estas são mulheres que quando tinham cinco e seis anos começaram a amarrar os pés para encaixar nas expectativas de beleza e sensualidade que persistiram na China durante muitos séculos. Um pé de 7,62 cm era considerado uma flor de lótus de ouro, outros tamanhos maiores recebiam medalhas de prata ou de latão. A competição era feroz. As mulheres podiam assim usar os famosos sapatinhos, de tamanhos pequenos, mas de grande beleza. Como podem calcular a locomoção não era o seu grande forte. Há quem considere que esta exigência estética servia para reduzir as mulheres a um papel imóvel, dependente e estritamente sexual. Contudo, os poucos passos que estas mulheres conseguiam fazer sinalizavam alto estatuto social. Só quem não trabalhava é que se podia dar ao luxo de não poder andar. Mas quando andavam, dizem certas fontes, estes pequenos e meticulosos passos permitiam uma dança de ancas altamente erótica, parte integrante do imaginário sensual chinês. Há quem diga também que esta forma particular de exercitar o sistema locomotor permitia um reforço sem precedentes da área pélvica e dos músculos da vagina, garantindo o prazer durante o coito. Portanto, esta tradição não era respeitada por uma questão puramente estética, havia uma expectativa sexual associada. O esforço certamente que não valia a pena: esta era uma prática que envolvia muitas dores, maus-cheiros, cuidados extremos, e potenciais consequências extremas, como gangrena. Mas na altura esta tradição permitia que as mulheres tivessem mais controlo sobre as suas vidas, e assim encontrar um bom marido e subir para classes mais dignas. E isto envolvia partir os ossos dos pés, vezes e vezes sem conta, de forma sistemática e cruel. O alívio é geral quando pensamos que já ninguém se envolve nestas práticas, mesmo que tenham sido outrora uma norma social respeitável. A última fábrica de sapatos-mini fechou no final dos anos 90, simbolizando um fim de uma era de tortura. Porque é que esta forma de lidar com os pés femininos se tornou uma tradição é que ninguém sabe ao certo. A teoria mais mencionada tem que ver com uma dançarina da corte, Yao Niang, que dançava para o seu imperador com os pés atados em forma de meia lua, ornamentados com fitas e pedras preciosas. A partir daí provavelmente pegou por entre outros membros da corte, e virou moda. Mas não nos podemos iludir em pensar que as mulheres já não têm certas pressões para aparecerem de certo modo ou falarem de certo modo nos dias que correm. Há algum orgulho em pensar que já ultrapassámos práticas violentas contra mulheres, como é o caso de partir os ossinhos dos pés, mas ainda estamos longe de chegar a uma fase livre de exigências. Se não são os pés, são outras coisas, que levam as mulheres a desenvolverem certas práticas ou a irem a cirurgiões plásticos – desde muita tenra idade – porque querem o corpo de certa forma, para ir ao encontro do que os outros esperam que ela seja.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesReforma Imperial [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] notícia da abdicação do Imperador japonês Akihito fez sensação esta semana. A 19 de Maio o Governo preparou um decreto lei excepcional, aprovado pelo congresso no dia 8 deste mês, que permite que o Imperador Akihito abdique. O Governo tem agora em mãos os preparativos para a sucessão do Príncipe Naruhito. A resignação do Imperador ocorrerá oficialmente entre 31 de Dezembro de 2018 e 1 de Janeiro de 2019. Actualmente, a monarquia japonesa é a única a deter o título Imperial. A Casa Imperial do Japão é a mais longa monarquia em funções no mundo. No Japão, o nome de baptismo do Imperador nunca pode ser mencionado, podendo apenas ser representado como “Sua Majestade o Imperador”, ou apenas por “Sua Majestade”. Nos textos escritos o Imperador é por vezes designado por “Imperador Reinante”. O reinado de Akihito foi apelidado de “Heisei” e, em conformidade com a tradição, depois da sua morte receberá o nome de “Imperador Heisei”. Nessa altura será decidido o nome do próximo reinado. O Imperador Akihito nasceu a 23 de Dezembro de 1933 e foi o 125º Imperador da sua Dinastia. Akihito sucedeu ao seu pai, o Imperador Hirohito, e ascendeu ao Trono do Crisântemo a 7 de Janeiro de 1989. Depois de resignar, Akihito receberá o título de Imperador Retirado. O Imperador Akihito abdicou por razões de saúde. O monarca já foi submetido a uma cirurgia ao coração e, em 2003, recebeu tratamento a um cancro na próstata. O anúncio da intenção de resignar e de entregar o trono ao filho, o Príncipe Naruhito, foi feito a 13 de Julho do ano passado, pelo canal de televisão nacional NHK. O último monarca japonês a abdicar tinha sido o Imperador Kōkaku, em 1817. Os porta-vozes da Casa Imperial negaram que tenha havido qualquer plano que levasse a esta decisão do Imperador. A abdicação do Imperador não está prevista no corpo legislativo que regula a Casa Imperial e, como tal, requer a criação especial uma emenda à lei. A 8 de Agosto de 2016 o Imperador fez uma das suas raras aparições na televisão, para comunicar a debilidade do seu estado de saúde; este comunicado foi interpretado como uma forma de dar a entender a sua intenção de vir a abdicar em breve. Segundo fontes governamentais, para evitar modificar a lei que regula a Casa Imperial, foi criada uma lei de excepção para permitir a resignação. O Imperador do Japão não é responsável pela governação do país. O artigo 65 da Constituição atribui explicitamente o poder ao Executivo governamental, liderado pelo primeiro-ministro. O Imperador também não é o Comandante Supremo das Forças Armadas, esse papel está atribuído ao primeiro-ministro, através do Acto 1954. Os poderes imperiais são limitados pela Constituição japonesa. O artigo 4 estipula que o Imperador só desempenhará funções dentro do quadro da Constituição e que não terá poderes de governação. No entanto, o artigo 3 prevê que as decisões do Governo terão de ser aprovadas pelo Imperador. Os outros deveres do Imperador estão descritos no artigo 7 da Constituição. Mediante conselho e aprovação do Governo, o Imperador desempenhará funções de Estado a bem do povo, particularmente no que respeita a, promulgações, emendas à Constituição, leis, decisões do Governo e Tratados. É possivelmente por causa dos poderes de promulgar leis e emendas à lei, que teve de ser criada uma regulamentação excepcional para sancionar a abdicação. É sabido que no passado o Imperador detinha um enorme poder. A palavra do Imperador ditava a lei. Não se admitia qualquer tipo de contestação. Tinha o poder de declarar guerra sempre que quisesse. Com o avançar dos tempos estas prerrogativas foram sendo alteradas e hoje em dia o Imperador desfruta de funções e de poderes muito mais limitados. O Imperador abdicou legalmente por via da lei excepcional. Podemos considerar fenomenal o momento em que as acções de um Imperador necessitam da caução da lei. Os princípios do Estado de Direito são, não só, aplicados ao cidadão comum, mas também ao Imperador. A lei é aplicada a todos sem excepção. A lei dá-nos as balizas dos nossos comportamentos. Se o Imperador é o primeiro a obedecer à lei, não existem motivos para que o cidadão comum não lhe siga o exemplo. Daqui decorre que todos passam a respeitar a lei. Quando este caso se verifica, o Estado de Direito está definitivamente implantado. Os privilégios perante a lei deixam de existir. O Direito aplica-se a todos por igual. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Rui Flores VozesLições de uma eleição [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há volta a dar. Nestes tempos da informação instantânea, político que é político deve evitar eleições. (As derivas autoritárias aliás vão nesse caminho). A imprevisibilidade dos resultados é cada vez maior, como os institutos de sondagens sentem cada vez mais a cada eleição que passa. No caso britânico, no entanto, as sondagens, apesar de tudo, foram dando conta, nas duas últimas semanas, de que a vantagem do Partido Conservador estava a ficar curta. E diminuiu ao ponto de os Tories terem perdido a maioria no Parlamento. A “vitória” de Theresa May (assim, com aspas, porque os conservadores queriam ver o povo legitimar a sua estratégia de saída da União Europeia e acabaram a noite eleitoral a contar os círculos eleitorais que se aguentaram e à procura de quem lhes pudesse dar uma maioria estável no Parlamento) acabou por não surpreender. Mas os números alcançados pelos conservadores deixam-na de mãos atadas. De facto, o que este resultado determina é a incapacidade de o Reino Unido negociar com Bruxelas um entendimento que não preveja as quatro liberdades de movimento. Depois de David Cameron ter alcançado o seu lugar na história como o político que levou o Reino Unido para a porta de saída da União Europeia, agora, um outro líder conservador, leva o partido para uma “derrota” (assim, com aspas, porque, de facto, os conservadores continuam a ter mais deputados no Parlamento do que qualquer outra formação política). É a segunda derrota nas urnas para os conservadores em 12 meses (no referendo que determinou a saída do Reino Unido, no ano passado, e agora nestas legislativas antecipadas). Isto depois de terem obtido uma maioria absoluta extraordinária há apenas… dois anos. Todo esse capital foi deitado por terra assim, como quem queima um fósforo. Na sequência do resultado, Theresa May demitiu os seus dois chefes de gabinete, acusados, pelos que contestam May nos Tories, de serem os principais responsáveis pela definição da estratégia perdedora da líder conservadora. A contestação não fica, no entanto, por aqui e os pedidos para a sua demissão vão continuar a ouvir-se. O fim da maioria dos conservadores levou, uma vez mais, à queda da libra e à incerteza dos mercados, coisas que a City não gosta… Se May queria com estas eleições obter uma posição de força para as negociações com Bruxelas e reforçar a maioria no Parlamento, tudo lhe saiu ao contrário. E, agora, ainda vai ter de negociar um governo com os unionistas da Irlanda do Norte, que têm como cartão-de-visita uma visão do aquecimento global parecida com Donald Trump e opõem-se ao casamento homossexual. Mas, ao mesmo tempo, os conservadores da mesma Irlanda do Norte dizem-lhe que o “hard Brexit” não é o caminho. A imprevisibilidade é a norma agora na política internacional. Os tempos são de incerteza, como sublinhava Paulo Portas na semana passada em Macau, no âmbito da conferência internacional sobre a iniciativa chinesa da “Uma faixa, uma rota”. Uma imprevisibilidade e incerteza que, devido à voragem da informação, têm premissas novas a cada dia que passa. Nos tempos de hoje, ontem é uma eternidade. Amanhã, um futuro muito distante. É neste tempo de excesso de informação, de notícias falsas, de comunicação não mediada entre líderes, instituições e público, que torna a vida dos políticos ainda mais difícil. Prever a reacção do público a novas iniciativas, antecipar o que os eleitores vão querer e em que candidatos vão votar, está a tornar-se num exercício muito difícil. Para quem acredita, a bola de cristal pode ser um bom investimento.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesSuicídios políticos à beira rio [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me de há quatro anos atrás ter escrito um artigo durante o Festival Duanwu (Festival do Barco do Dragão). Quatro anos volvidos, a história repete-se por causa das eleições para a 6ª. Assembleia Legislativa, com data marcada para 17 de Setembro próximo. Não tive oportunidade de aprender História com o Padre jesuíta Benjamim Videira Pires, mas dou aulas numa escola fundada por ele. Tendo sido historiador e director de um colégio, surpreendi-me quando soube que vestia roupas muito usadas. Levou uma vida modesta, marcada pela procura da Verdade, precisamente o oposto do que acontece com os políticos. De todos os suicídios cometidos por causa da política, o mais surpreendente é sem dúvida o de Qu Yuan, que se atirou ao Rio Miluo. Qu foi governador do Estado Chu, mas perdeu os favores do Rei devido a intrigas urdidas por outros ministros. Vendo que o seu Estado estava à beira do declínio, e não conseguindo encontrar forma de o salvar, Qu optou por se suicidar o que, bem vistas as coisas, não é forma de salvar um país. Uma outra história ocorreu dezenas de anos depois desta. Xiang Yu, que ficou do lado dos derrotados durante o Conflito Chu–Han, lançou-se ao Rio Wu. Na guerra, Xiang não tinha rival. Desenhou uma estratégia e levou a cabo um ataque muito ofensivo que o fez vencer o combate. Mas, apesar da vitória pessoal a sua facção foi derrotada e, com vergonha de enfrentar a corte imperial, decidiu matar-se em vez de aceitar o convite do barqueiro que se ofereceu para o levar para a outra margem do rio. Há quem diga que se ele tivesse atravessado o rio, talvez tivesse vencido a batalha. Na minha opinião e, baseado no que ele fez nas horas que antecederam o seu suicídio, acho que nunca teria conseguido aceitar a derrota. E, mesmo que tivesse atravessado o rio, a derrota dar-se-ia mais cedo ou mais tarde. Quando as pessoas não assumem as consequências das suas acções e decidem suicidar-se para fugir ao fracasso, serão dignas da nossa compreensão? A última história passa-se em “Hou Kong” (Rio Hou)”, antigo nome de Macau. A vida é realmente enigmática. Um suicídio por razões políticas acontece em Macau, uma cidade sem rio. A duração de uma vida política depende da capacidade de se saber lidar e valorizar as circunstâncias. Dois provérbios chineses, “tem a sabedoria de te retirares quando os problemas te submergem” e “retira-te quando tiveres conquistado o reconhecimento”, são adágios reconhecidos pelo valor das verdades que encerram. Eles ajudam as pessoas a lembrar-se que há um tempo para seguir em frente e lutar e um tempo para nos afastarmos. Só quando sabemos abrir mão de certas coisas é que podemos conservar o mais importante. Quando alguém se quer manter na mesma posição por demasiado tempo, sem aceitar avanços ou inovações, fica cada vez mais conservador e a sua carreira política termina mais cedo ou mais tarde. Acabará por perecer, às suas mãos ou às mãos de terceiros. Quem gosta de História tem de conhecer o passado e antever o futuro. Macau está mergulhado em contradições devido ao seu rápido desenvolvimento económico, que se irão reflectir no processo eleitoral para a Assembleia Legislativa.