A Judicialização da Política e a Politização da Justiça

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o mais profundo das minhas entranhas cerebrais era – e é! – líquido e transparente, como a água cristalina, que a trave mestra do “segundo sistema”, legado de Deng Xiao Ping que nunca me canso de venerar, é o Estado de Direito.

A vida e, particularmente, os muitos amigos juristas que tenho e admiro, têm-me ensinado que, onde há dois juristas, pode haver três opiniões. Pelo menos.

O acórdão do Tribunal de Segunda Instância não pôs termo àquilo que, lamentavelmente, a ineptocracia reinante em Macau empolou desnecessária e imprudentemente e ecoa pela cidade com a designação de “caso Sulu Sou”, sem que o jovem deputado em nada tivesse querido contribuir para o estado a que as coisas chegaram.

Numa clarificação conceptual preliminar, ineptogracia é um neologismo para “governo/instituição regido por pessoas que são incapazes para a função”. Podem ser óptimos pintores, músicos, bailarinos ou empresários. Mas são um azar a que, nem as democracias mais representativas, conseguem escapar (v.g. Estados Unidos da América, Reino Unido, Brasil, etc.).

A segunda clarificação tem a ver com o julgamento de Sulu Sou (e de Scott Chiang) do crime de que estão acusados, de “desobediência qualificada”. A sentença pode ser-lhe favorável e viabilizar a retoma do mandato de deputado de que se encontra suspenso, por iniciativa da ineptocracia e para desgosto desta. Mas, pode ser condenado, de modo a perder o mandato de deputado e a ineptocracia rejublilará.

Todavia, o sentido, favorável ou desfavorável, da sentença não produzirá quaisquer efeitos que desbloqueiem o sistema judiciário da RAEM que, em minha opinião, ficou bloqueado pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 1 de Fevereiro de 2018, com fundamento em incompetência daquele Tribunal (e de todo o Sistema Judiciário da RAEM!!!), “visto que no actual panorama jurídico-normativo inexiste competência jurisdicional legalmente reconhecida aos tribunais [da] RAEM para o conhecimento do presente recurso.”

É inadmissível que a RAEM que “goza de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância”; cujos tribunais “têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região excepto “sobre actos do Estado, tais como os relativos à defesa nacional e às relações externas (Artigo 19.° da LB); são os órgãos judiciais aos quais compete na RAEM exercer o poder judicial (Artigo 82° da LB); e exercem independentemente a função judicial, sendo livres de qualquer interferência e estando apenas sujeitos à lei (Artigo 83.° da LB), um Tribunal Superior se declare incompetente, bloqueie e ponha em causa o próprio funcionamento do Sistema Judiciário da RAEM e do Estado de Direito!

É inadmissível também que tudo isso tenha sido produzido por um Tribunal Superior, sendo certo que no Estado de Direito, e da separação de poderes, são exactamente os Tribunais Superiores os órgãos judiciais que estão na linha da frente na conformação do Sistema Legal com as normas constitucionais, sua interpretação e produção de jurisprudência, nomeadamente para preenchimento de lacunas que o robusteçam e não que o alienem ou paralisem!

É inadmissível que se cubram, sob o manto pesado e opaco de “actos praticados no exercício da função política”, (Artigo 19.° – n.° 1 da LBOJ,) ilegalidades, ainda que de natureza processual, praticadas pela ineptogracia de legisladores, que não sabem acatar a lei, nem interpretá-la e, muito menos, produzi-la.

Passando em revista a doutrina produzida na generalidade dos sistemas políticos estruturados em Estado de Direito e assentes no princípio da separação de poderes, pode concluir-se que a regra é a de não intromissão do Poder Judicial nos actos políticos do Legislativo e do Executivo. Mas é óbvio que esta regra assenta no pressuposto da legalidade do acto político.

Não é suficiente a alegação de que se trata de acto político, do Legislativo ou do Executivo, para tolher o controle judicial, em consequência da regra que veda ao Poder Judicial apreciar o acto político.

Em regra, o Judicial não pode controlar tais actos em razão do princípio da separação dos poderes. Esta regra, porém, não é uma regra absoluta. O controle judicial dos actos políticos é possível e desejável no Estado de Direito e, portanto, em Macau, se esses actos políticos ofenderem direitos individuais ou colectivos, ou contiverem vícios de legalidade ou constitucionalidade.

Congratulo-me com a decisão anunciada, do jovem Deputado e do seu Advogado, de recorrer para o Tribunal de Última Instância (TUI). Não só para que, finalmente, lhe seja feita Justiça, como também para desbloquear o funcionamento do Sistema Judiciário da RAEM que o referido acórdão do Tribunal de Segunda Instância paralisou e menorizou.

No Estado de Direito, trave mestra do segundo sistema, não há uma categoria de actos políticos, como entidade ontológica autónoma na escala dos actos do Estado, nem há órgãos ou Poderes que os pratiquem com privatividade.

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