Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO populismo étnico em marcha “Populist leaders like Donald Trump, Marine Le Pen, Norbert Hoffer, Nigel Farage, and Geert Wilders are prominent today in many countries, altering established patterns of party competition in contemporary Western societies. Cas Mudde argues that the impact of populist parties has been exaggerated. But these parties have gained votes and seats in many countries, and entered government coalitions in eleven Western democracies, including in Austria, Italy and Switzerland. Across Europe, their average share of the vote in national and European parliamentary elections has more than doubled since the 1960s, from around 5.1% to 13.2%, at the expense of center parties. During the same era, their share of seats has tripled, from 3.8% to 12.8%. Even in countries without many elected populist representatives, these parties can still exert tremendous ‘blackmail’ pressure on mainstream parties, public discourse, and the policy agenda, as is illustrated by the UKIP’s role in catalyzing the British exit from the European Union, with massive consequences.” “Trump, Brexit, and the Rise of Populism: Economic Have-Nots and Cultural Backlash” / Harvard Kennedy School – Ronald F. Inglehart and Pippa Norris [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] voto britânico para abandonar a União Europeia (UE) e a eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos deixou muitos surpreendidos no passado ano. O economista e comentarista irlandês, David McWilliams, denominou 2016, como “o ano do outsider”. As previsões apontam que 2017 não será diferente, com eleições importantes que irão ocorrer por toda a Europa e muitos viram as eleições holandesas de 15 de Março de 2017, como “o primeiro grande teste” do que está por vir. O líder do Partido para a Liberdade (PVV, na sigla em língua holandesa) de extrema-direita Geert Wilders tinha proclamado uma “primavera patriótica” que podia aumentar as pressões sobre uma sitiada UE. O político holandês islamofóbico viveu sempre rodeado por fortes medidas de segurança, tendo por mais de uma década, passado a maior parte do tempo num refúgio desconhecido, ou em uma ala do Parlamento fortemente guardada. Este esquema de segurança, durante vinte e quatro horas, que raramente permitia a saída à rua, e para assistir a alguns eventos da campanha eleitoral, teve de deslocar-se em uma caravana de veículos blindados, devidos às constantes ameaças de morte, que recebe de extremistas enfurecidos pelas suas declarações contra o Islão, comparando o “Alcorão” ao livro “A Minha Luta” de Adolfo Hitler. O grande tema é de questionar a ideia de que as eleições holandesas marcaram o início de uma “primavera patriótica”, ou seja, a de que o povo retomará o controlo da elite a nível nacional e europeu. Até agora, a Europa dificilmente desempenhou qualquer papel na campanha eleitoral holandesa. Mesmo Geert Wilders pareceu afastar-se da questão. O co-investigador Stijn van Kessel no “projecto 28+perspectivas sobre o Brexit: um guia para as negociações com múltiplos intervenientes” da Universidade de Loughborough elaborou os dados que mostravam que os holandeses não queriam um “Nexit”. Além disso, outras questões prevaleceram na campanha. O tema mais dominante foi a economia holandesa e, em particular, a questão de saber que política prosseguir em tempos de superavit orçamental e baixa taxa desemprego. A economia é tipicamente, um tema que os políticos holandeses gostam de ligar à UE, acrescentados dos motes de “muita burocracia”, “somos pagadores líquidos” e “não mais dinheiro para a Grécia”. Mas, nesta campanha, os políticos ligaram-se à questão do que é importante para a sociedade holandesa, como o do dinheiro extra que deveria ter uma maior taxa de participação para a criação de mais empregos, reforma do sistema de saúde, investimento nas políticas de alterações climáticas e melhoria do sistema educacional. O outro tema abrangente é o que constitui a identidade holandesa no modelo da globalização. Uma “primavera patriótica” pressupunha debates sobre a identidade nacional, ameaçada por elites cosmopolitas e pressões externas. No entanto, na actual campanha eleitoral, a discussão pareceu ter sido mais matizada, centrada na redefinição da identidade nacional, sem necessariamente rejeitar a imigração e a integração europeia. Por exemplo, o líder do Partido Democrata Cristão (CDA, na sigla em língua holandesa) enfatizou os símbolos nacionais, trazendo a ideia dos alunos cantarem o hino nacional nas escolas. O líder do Partido de Esquerda Verde (GL, na sigla em língua holandesa), enfatizou uma cultura inclusiva de tolerância e diversidade. Além disso, é muito provável que Geert Wilders seja marginalizado após a derrota sofrida nas eleições. Primeiro, a maioria dos partidos declarou que não quer cooperar com o seu partido e pessoa. Em segundo lugar, uma semana antes das eleições, as últimas sondagens, também sugeriam que não iria ter o número elevado de votos que foi previsto algumas semanas antes, e que se veio a confirmar. Isso não significa que as suas ideias estejam a ser ignoradas, tal como aconteceu com frequência na história política holandesa, em que os partidos tradicionais já haviam adoptado alguns dos seus discursos populistas, e até mesmo nacionalistas sobre questões como a imigração e a integração europeia. A título de exemplo, em termos de valor nominal, as suas ideias parecem ser menos dignas, apesar de a identidade ter sido uma questão fundamental durante a campanha eleitoral, e que lhe pode ser atribuída, curiosamente, na trilha da alegada “primavera patriótica”, um contra-movimento que parece estar a surgir. A ascensão da direita populista é muitas vezes vista como um processo linear, começado com o Brexit e a eleição de Donald Trump, e continuado durante as eleições no continente europeu. Mas confrontados com as ideias populistas de direita de Geert Wilders, são um conjunto de crenças que realçam a diversidade e a abertura para influências externas, sendo mais visivelmente ilustrado, pelo crescente apoio ao Partido Democratas 66 (D66, na sigla em língua holandesa), que é progressista, liberal-social e radical democrata e o GL. A tendência semelhante na França e na Alemanha é notória, onde, respectivamente, o pro-europeu Emmanuel Macron e o ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, estão a ter ganhos inesperados nas sondagens. Ambos, também sublinham as ideias de abertura e de tolerância, e a necessidade de cooperar a nível europeu. As urnas confirmaram a vitória do actual primeiro-ministro, o liberal de direita Mark Rutte, e revelaram que Geert Wilders, o candidato racista e antieuropeu que chegou a liderar as sondagens, não obteve tanto apoio como se esperava. Depois do Brexit e do êxito que representou a vitória de Donald Trump, o populismo xenófobo enfrenta, assim, a sua primeira derrota no Ocidente. As eleições holandesas não conduziram ao início de uma “primavera patriótica” da extrema-direita populista europeia, mas sim a um reequilíbrio da política europeia. Todavia analisadas mais profundamente as eleições holandesas, vimos que ao entardecer do dia das eleições, os meios de comunicação social de todo o mundo, anteciparam uma vitória não apenas para o Partido Popular para a Liberdade e Democracia (VVD, na sigla em língua holandesa) liderado pelo actual primeiro-ministro Mark Rutte, mas uma vitória para a política racional, liberal, enquanto elogiavam a derrota esmagadora dos nacionalistas étnicos de Geert Wilders. O líder do VVD, de uma forma mais sóbria, em um discurso proferido depois de aparentemente o seu partido ter ostensivamente triunfado, declarou que os holandeses disseram não ao tipo errado de populismo. Mas esta é uma interpretação equivocada. Neste ano de eleições, que indicará se a UE pode sobreviver num futuro próximo, a eleição holandesa recebeu uma atenção indevida da imprensa mundial. Na sequência do Brexit, da vitória de Donald Trump, um referendo holandês e a quase um ano da eleição presidencial austríaca e meses do referendo constitucional italiano, o foco dos meios de comunicação sobre a Holanda tem sido compreensível, mas também tem sido distorcido pelos eventos de 2016. O Brexit, a vitória presidencial de Donald Trump e os referendos foram escolhas binárias do “Candidato A” versus “Candidato B”, ou simplesmente “Sim” versus “Não”, e conjuntamente com o crescente domínio anglo-americano dos meios de comunicação internacional, ou pelo menos dos meios de comunicação transatlânticos, no seguimento de Donald Trump e da caótica política do Reino Unido, isso resultou no facto da comunicação social estrangeira, examinar as eleições holandesas através de uma lente distorcida. A eleição holandesa não era binária, mas multipolar. A comunicação social na análise política e no sistema de dois partidos e dualismo de Sim/Não, enfatizaram a possibilidade do PVV vencer as eleições. Os mesmos meios de comunicação, em segundo lugar, apresentaram a eleição como uma derrota para o PVV e o seu líder. No entanto, nada poderia estar mais longe da verdade. O líder do PVV não perdeu em um sistema binário, anglo-americano, antes ganhou em um sistema multipolar europeu. Os dois partidos governamentais da Holanda perderam. O VVD do primeiro-ministro, Mark Rutte, perdeu oito assentos, enquanto o Partido Trabalhista (PvdA, na sigla em língua holandesa) de Lodewijk Asscher, vice-primeiro-ministro, passou de 38 assentos para 9 assentos, perdendo de forma assombrosa 29 assentos. No rescaldo do tropeço do VVD e da derrota do PvdA, o partido que estava mais preeminente era o PVV. Apenas onze anos após a sua criação, o PVV é o segundo maior partido na Holanda. Não voltou ao seu auge de 2010, mas o desafio para a VVD de outros partidos e a derrota do PvdA, levaram a menor margem eleitoral do PVV a uma posição muito mais evidente. A ascensão do GL desafia o apelo do PVV, especialmente entre os jovens eleitores urbanos que, na Holanda, país altamente urbanizado, formam uma parcela substancial do eleitorado. Mas, ao mesmo tempo, o GL suprimiu o suporte do VVD. Enquanto o PVV e o GL, conjuntamente com o D66, não poderiam ser mais distintos em termos de políticas, mas compartilham uma característica comum que preocupou o líder do VVD, pois eram evidências do mesmo fenómeno visto nos Estados Unidos e no Reino Unido, em que os eleitores se sentem desiludidos com os principais partidos formados no rescaldo da II Guerra Mundial, e voltam-se para os partidos mais novos, que oferecem uma lufada de ar fresco, em relação a uma ordem política, ideológica e económica estabelecida e aparentemente estagnada. O motivo adicional de preocupação é que nas grandes áreas metropolitanas da Holanda o PVV apresenta-se como o partido que reunia as maiores preferências, ou o segundo partido a nível nacional, e de forma preocupante, próximo do VVD. O surgimento do PVV, como partido dominante em Roterdão, põe uma séria questão quanto à ilusão dos meios de comunicação social, nas cidades holandesas como bastiões do liberalismo racional. O político que ganhou mais em termos de derrota dos seus inimigos, foi Geert Wilders. A maior causa de preocupação, é os complexos mecanismos de formação de uma coligação. O governo anterior VVD – PvdA viu apenas duas partes a lutar para apaziguar uma população holandesa que está cada vez mais cansada de austeridade e diminuição dos benefícios sociais. A nova coligação liderada pelo VVD deve ser formada por quatro, talvez até cinco, partidos, que até agora se uniram principalmente na sua oposição ao PVV, e tendo ganho, é apenas uma questão de tempo, antes de enfrentar as duras realidades que representam os entendimentos políticos e da aparente derrota do inimigo comum, que cria brechas entre os diferentes partidos. O período da lua-de-mel terminará rápido. A formação e gestão de uma coligação multipartidária será um desafio significativo para o líder do VVD, e não é de forma alguma claro como um governo tão diferente em ideologia, prioridades políticas e opiniões de uma UE em apuros, seja capaz de reagir à economia, com uma potencial vitória da Front Nationale na França, uma possível mudança para a direita na Alemanha, em Agosto, ou outra crise da zona do euro ou crise migratória, após a ruptura das relações UE – Turquia, mais acentuada depois da vitória do “SIM” no referendo turco de 16 de Abril de 2017. As crises cada vez mais parecem não só inevitáveis como iminentes.Enquanto a ténue coligação do líder do VVD luta para lidar com os problemas da Holanda e responder a forças económicas externas, Geert Wilders encontrar-se-á em uma posição política forte, e como nenhum outro partido trabalhará com o PVV terá um papel desprezível face à nova coligação, destacando toda a sua inépcia e disputas, enquanto se banha na imunidade das críticas inevitáveis do governo, ou seja, uma imunidade concedida pelo seu isolamento da formulação de políticas. O líder do PVV, em uma ironia sombria, ainda que tenha perdido assentos, continua com uma base eleitoral sólida, que o torna mais seguro que o líder do VVD e os seus aliados de coligação, sendo capaz de defender uma insatisfação anti ordem estabelecida, enquanto se autentica mais na ordem estabelecida. Até ao final de 2017, é provável que vejamos o líder do VVD e os aliados de coligação a enfrentarem uma crescente hostilidade por parte de uma população holandesa decepcionada e frustrada por politiquices, enquanto Geert Wilders prega a mensagem repetitiva mas mediática dos eternamente marginalizados e de hipócrita mártir político. É certo que isso está longe de ser certo. Os holandeses não vão entrar numa “primavera patriótica” e Geert Wilders cometeu sérios erros, especialmente na sua recusa em se envolver com os meios de comunicação de massa.Mas se aprender com esses erros, irá garantir uma enorme posição como figura popular de proa, canalizando a frustração e a decepção pública para uma coligação de rangedores.E porque é altamente provável que uma disputa em curso entre a Holanda a Turquia, caracterizada por invocações repetidas dos dias mais sombrios da “Nova Ordem”, só vai aumentar ainda mais, depois do referendo de 16 de Abril de 2017, e Geert Wilders terá mais condições de aproveitar o desapego e a desilusão holandesas. para atrair o esquecido, o desapontado, o contrariado e o temeroso com sua bandeira. A eleição holandesa não representou a derrota do populismo étnico. Na melhor das hipóteses, é uma vitória pírrica para o último bastião da ordem estabelecida. Na pior das hipóteses, é um sinal de um eleitorado desencantado que expressou a sua infelicidade com o “status quo”. A esse respeito, as eleições holandesas não são diferentes do Brexit e das eleições americanas. Não são uma vitória para o liberalismo, nem uma vitória para o racismo, mas uma vitória para a frustração, raiva, ansiedade e ressentimento. É uma vitória que não merece um elogio, mas um lamento ao contrário do afirmado pelos líderes europeus, com o Presidente da Comissão Europeia, como porta-voz de tão peregrina ideia.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDia de beijos [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ia 13 de Abril foi o dia internacional do beijo! Há quem diga que na verdade é no dia 6 de Julho, mas que raio interessa? Não precisamos de muitas desculpas para celebrar os beijos uma, duas, três, as vezes que quisermos por ano. Durante estes dias houve uma divulgação das fantásticas razões pelas quais deveríamos beijar cada vez mais. Há beijos para todos os gostos e vantagens de saúde para todos os gostos também. Incentivamos espalha-beijos (se consentidos!) para dias de primavera mais felizes e um sistema imunitário mais forte. Aliás, um estudo de 2003 mostra que beijar o vosso mais que tudo durante 30 minutos poderá ajudar a diminuir os sintomas de renites alérgicas. Alguém sofre de alergias de primavera? E mais, beijar queima calorias (poucas, umas 4 ou 5 calorias) e obriga o movimento de muitos músculos faciais. As trocas de saliva previnem as cáries e estimulam o sistema imunitário (a troca de bactérias põem o sistema a funcionar). Beijar também faz com o nosso sistema endócrino liberte aquelas hormonas felizes que nos relaxam e que melhoram a nossa vida. Este dia foi criado para não nos esquecermos que o beijo, para além da sua formalidade social e de muitas vezes ser considerado um pró-forma de sexo, pode ser apreciado por si só, na sua simplicidade e singularidade. Um momento de intimidade que poderia ser igual a um outro qualquer, mas que se caracteriza pela proximidade dos lábios e das línguas. Os bons beijos são longos – fazem parar o tempo, o espaço e prendem-nos a uma realidade única de proximidade com o outro. Claro que pode sempre continuar por actividades de trocas (ainda) mais marotas. Sexo sem beijos é possível mas acho que concordarão que não é o melhor. Consciente ou inconscientemente sabemos das vantagens das trocas de saliva e do toque de línguas sedosas e húmidas. A origem do beijo ainda não é clara e os antropólogos atiram com várias teorias. Uma delas é de que o beijo veio de alguma coisa parecida ao que os pássaros fazem aos filhos, passar a comida através da boca, outros dizem que desenvolveu-se através de um ‘snifar’ social que rapidamente se tornou num toque de boca, porque deve saber muito melhor enrolar a boca no outro do que o nariz (será que isso explica o beijo à esquimó aka inuit?). Outros falam em instinto, na naturalidade do acto, como se estivéssemos programados para beijar. Toda a normalidade que é o amor e a intimidade passa por descobrirmos o beijo e de o explorarmos a nosso bel-prazer. Claro que o beijo é um bom cartão de visita para conhecermos o outro melhor. Se os olhos são a janela da alma, o beijo na boca é uma ponte para entrarmos num mundo partilhado pelos dois. Por mais ou menos romântico que o vosso primeiro beijo tenha sido, de certeza que se lembram dele com alguma clareza. A surpresa que será sentir o toque das línguas pela primeira vez, e gozar uma ligação etérea de prazer. Na esfera pública, os beijos têm uma visibilidade mais reduzida (daí a importância dos dias internacionais) e nem sempre foram bem aceites. Os beijos podem ser considerados perversos. Já foram proibidos em vários países e em várias épocas e até foram censurados nos tempos áureos do cinema. O beijo do ecrã não podia durar mais do que x tempo, não poderia envolver língua e não poderia ser dado na horizontal. Agora já assistimos de tudo, e cada vez mais o beijo na boca começa a ser bem recebido, até em público. Porque se na China era difícil identificar um casal de apaixonados, já vemos, ainda com alguma timidez, alguns sinais de carinho em público, ainda que a norma seja deixar os beijos (e a intimidade) em privado.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA poluição atmosférica como agente mortal “The economy is a wholly owned subsidiary of the environment. All economic activity is dependent upon that environment with its underlying resource base.” US Senator Gaylord Nelson on first Earth Day [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] poluição do ar, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, é actualmente a principal causa de morte, mas trata-se de uma mensagem que ainda não foi captada, conscientemente, pelas mentes dos decisores políticos em todo o mundo. O movimento de poluentes não respeita fronteiras políticas, e mata inocentes. O mais doloroso é as alterações climáticas que estão a colocar um enorme desafio para prever o movimento de poluentes. As decisões tomadas com base em estudos de modelos e legislações não estão a produzir o resultado desejado, pois existe sempre uma lacuna entre teoria e a prática. As questões ambientais mudam de um lugar a outro, e de tempo a tempo. As questões ambientais são de cariz local e global. A compreensão das questões ambientais é necessária para se encontrarem soluções. Os problemas de poluição atmosférica mudaram ao longo de um período de tempo. As questões como a nuvem marrom atmosférica, as alterações climáticas, os poluentes atmosféricos perigosos, a neve preta/lamacenta, que não foram discutidas durante algumas décadas, ganham actualmente, importância. A poluição é originária da palavra latina “Pollutus”, que significa “sujo ou pouco claro”. A poluição do ar pode ser definida, como a condição atmosférica, em que as substâncias estão presentes em concentrações superiores às normais, para produzir efeitos significativos nos seres humanos, animais, vegetação ou matéria. O ar que respiramos é o recurso natural mais importante, e que nos permite sobreviver. A composição do ar continua a mudar constantemente, devido às emissões naturais, bem como às produzidas pelo homem para a atmosfera. A atmosfera terrestre é uma camada de gases retida pela gravidade. O ar seco, em média, consiste em 78,09 por cento de azoto, 20,95 por cento de oxigénio, 0,93 por cento de árgon e 0,039 por cento de dióxido de carbono, em volume. Também estão presentes constituintes menores como o metano (CH4), ozónio (O3), dióxido de enxofre (SO2), dióxido de azoto (NO2), óxido nitroso (N2O), monóxido de carbono (CO), amoníaco (NH3) etc. Estes constituintes variam de lugar para lugar devido à mudança nas condições atmosféricas. Os constituintes do ar sobre o mar não são iguais aos do litoral. O ar da litoral mar pode não ter as mesmas concentrações de constituintes como o ar do deserto. O ar da costa será dominado pelo vapor de água e o ar do deserto terá mais poeira suspensa. A espessura da floresta amazónica, da mesma forma, terá mais vapor de água e compostos orgânicos voláteis enquanto o ar acima do depósito de resíduos sólidos é provável que tenha mais metano e amoníaco. A baixa concentração de poluentes atmosféricos não significa que possa haver negligência, se considerarmos o exemplo do chumbo, que está presente na atmosfera em camadas, tendo sido a quantidade total em 1983 e na década de 1990, estimada em cerca de trezentas e trinta mil toneladas e cento e vinte mil toneladas, respectivamente. As emissões totais de fontes naturais foram de cerca de duzentas e vinte mil a quatro milhões e noventas mil toneladas por ano. Quando o sistema solar se condensou a partir da “nebulosa primordial”, que não é mais que nuvens interestelares de gás e poeira, a situação não era tão complexa como actualmente, e a poluição do ar não era um problema. Acreditava-se que a atmosfera primitiva do planeta era uma mistura de dióxido de carbono, nitrogénio, vapor de água e hidrogénio. A atmosfera inicial do planeta reduziu ligeiramente a mistura química, em comparação com a atmosfera presente, que é fortemente oxidante e com o lapso de tempo, camadas distintas da atmosfera foram formadas com características distintas. A troposfera é a camada mais baixa de atmosfera que se estende da superfície da terra até dez a quinze quilómetros de altitude, dependendo do tempo e latitude. A estratosfera está posicionada apenas, acima da troposfera, e estende-se entre onze e cinquenta quilómetros. Na estratosfera, a temperatura aumenta com a altitude, de sessenta graus negativos na base até zero graus no topo. A mesosfera, situa-se justamente acima da estratosfera, estendendo-se entre cinquenta e oitenta quilómetros de altitude. Os vaivéns espaciais orbitam nesta camada da atmosfera. Devido à diminuição do aquecimento solar, a temperatura diminui com a altitude na mesosfera, sendo zero graus na base, e noventa e cinco graus negativos no topo. O topo da mesosfera é a região mais fria da atmosfera. A termosfera é a última camada da atmosfera, situando-se a oitenta quilómetros acima da exosfera. Na termosfera, a temperatura aumenta com a altitude, à medida que os átomos dessa camada são acelerados pela radiação solar. A temperatura na base da termosfera é de noventa e cinco graus negativos, sendo de cem graus a cento e vinte quilómetros, e de mil e quinhentos graus na parte superior. A ionosfera estende-se entre cinquenta e cem quilómetros cobrindo parcialmente a mesosfera e a termosfera. Tem variação diurna e sazonal, pois a ionização depende do Sol e da sua actividade. A poluição do ar, desde a sua descoberta, tem sido um problema. O “Ar pesado de Roma”, em 61 A.D. foi registado pelo filósofo romano Séneca. O rei Eduardo I, em 1273, proibiu a combustão de carvão em Londres. Na década de 1280, as pessoas usavam carvão como combustível em processos como o calcário e metalurgia, levando à poluição do ar que continha fumo preto, bem como óxidos de enxofre. O final do século XVIII e início do século XIX viram mudanças dramáticas no fabrico, agricultura, mineração, produção, bem como nos transportes. A invenção da energia eléctrica no século XIX, resultou na sua distribuição em 1880, despedindo-se do carvão. O exemplo muito famoso de poluição do ar, foi a formação de poluição em torno da cidade de Los Angeles durante a década de 1940, que levou à aprovação da primeira legislação ambiental estadual nos Estados Unidos. A “Lei de Controlo da Poluição do Ar”, foi promulgada nos Estados Unidos, em 1955, sendo a primeira legislação ambiental federal do país. O petróleo, mais tarde, na década de 1960, ultrapassou o carvão como fonte de energia primária. O uso extensivo do óleo conduziu às emissões, onde quer que os veículos circulassem. A revolução industrial do pós-século XVIII, fez a economia mudar para a fabricação baseada em máquinas, em muitos dos países desenvolvidos. A mecanização das indústrias têxteis e das técnicas de fabrico de ferro aumentou a procura de combustível, e a sua poluição atmosférica nas áreas de tais actividades. Os desenvolvimentos no século XIX levaram à segunda revolução industrial. A actividade da construção civil viu também a mudança no material, assim como, na tecnologia. A invenção do cimento, substituiu as paredes de barro, e o aumento da procura de cimento levou a emissões desse sector. Os mercados europeus e americanos estavam saturados, abrindo-se os mercados asiáticos aos veículos, apesar de existir um enorme desequilíbrio, pois as pessoas pobres viajam em cima de autocarros ou camiões, enquanto as pessoas ricas circulam em carros individuais, como acontece na Índia, Paquistão e muitos outros países. Enquanto a crise económica na Grécia teve como resultado a redução da poluição do ar, a China testemunhou uma dramática explosão da qualidade do ar na última década. A análise dos dados da rede de monitorização criada pela OMS e pelo PNUMA, em cinquenta cidades, e trinta e tinta e cinco países desenvolvidos e em desenvolvimento, mostra que nos últimos quinze a vinte anos, as lições de experiências anteriores nos países agora desenvolvidos, ainda necessitam de ser assimiladas. A poluição do ar em vinte das vinte e quatro megacidades, apresenta níveis que têm graves efeitos sobre a saúde. O aumento da população nos países em desenvolvimento no futuro, com a falta de controlo da poluição do ar, irá piorar em muitas outras cidades. No início da década de 1970, quando o rápido crescimento na Europa, levou a poluição ambiental a níveis inusitados, apesar de em 1952 a poluição de Londres, ter sido a causa de cerca de quatro mil pessoas, estava fresco na memória a “Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano” realizada em Estocolmo, em 1972, que tinha por objecto a fundação da cooperação internacional neste domínio, seguida de um conjunto de medidas que visavam reduzir a poluição do ar. A “Convenção sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiriça a Longa Distância”, foi assinada pelos países da “Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (CEE-ONU, ou UNECE, na sigla inglesa) ”, a 13 de Novembro de 1979. A UNECE é uma das cinco comissões regionais da ONU, dependentes do “Conselho Económico e Social (ECOSOC) ”. A UNECE é um fórum, em que os cinquenta e seis países da Europa, Ásia central e a América do Norte se reúnem, para elaborar as ferramentas da sua cooperação económica. O “Protocolo de Helsínquia” de 5 de Julho 1985, tinha por objectivo reduzir as emissões de enxofre ou dos seus fluxos transfronteiriços, em pelo menos 30 por cento nos países da UNECE. Todas as decisões de negócios afectam o ar e a atmosfera. Tal como a água que é purificada, embalada e o preço fixado, o ar puro igualmente, será fixado um preço. Há bares de oxigénio, desde 1990, abertos em muitas partes do mundo para fornecer oxigénio aos clientes. No entanto, apesar da necessidade urgente de políticas e legislação rigorosas sobre a poluição do ar em várias partes do mundo, o controlo da poluição do ar ainda não é uma prioridade política, em comparação com os negócios e a economia em muitas partes do mundo, e como resultado, a poluição é continuada de uma forma ou outra, e muitas das formas nem sequer são monitorizadas e controladas. Ao longo dos anos, apenas alguns poluentes atmosféricos convencionais tais como o SO2, NO2, partículas, O3 etc., são monitorizados pelos investigadores e pelas autoridades de controlo da poluição. Os poluentes, como os “Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs)” foram negligenciados no passado, mas recentemente são monitorizados continuamente, devido aos seus graves efeitos sobre a saúde. Os poluentes orgânicos, bem como os poluentes inorgânicos do ar causam doenças mortais, e a sua monitorização é muito importante para os seres humanos e meio ambiente. Enquanto muitos países em desenvolvimento levaram a questão a sério, outros só quiseram satisfazer a comunidade internacional. Ainda que as legislações ambientais tenham entrado em vigor em todo o mundo, a capacidade das instituições competentes para a sua monitorização foi limitada, principalmente devido à insuficiência de conhecimentos e capacidade de pesquisa e de aplicação da lei.Muitas instituições tinham muito poucos recursos humanos e orçamentos limitados para monitorizar. A ausência de especialização, levavam a uma monitorização inadequada, selecção imprópria do local e metodologia de amostragem, bem como efectuavam uma análise pobre.Muitas instituições continuam a deparar-se com recursos humanos insuficientes e sem preparação técnica, sendo a média de um a dez técnicos e cientistas para um milhão de habitantes. O que torna a poluição atmosférica mais difícil em comparação com outras formas de poluição é a sua complexidade, pois ao contrário da água que pode ser contida num recipiente para um estudo fácil, é difícil simular a configuração atmosférica num laboratório. Além disso, a aerodinâmica na superfície da terra não pode ser facilmente explicada pela matemática, como ocorre na natureza. Uma variedade de factores como a radiação, atrito, fluxo padrão, reacção química, influência por configuração biológica, alterações climáticas, mudança de estilo de vida, novas invenções, modificações sociais, direito da terra, atitude do povo, fisiologia das pessoas, transformações económicas da região em conjunto, são responsáveis pelo cenário em um determinado momento e por uma determinada razão. A poluição do ar, devido à complexidade do problema, não foi completamente compreendida por muitos países em desenvolvimento e não é uma prioridade. As questões como a má governação, baixa capacidade de pesquisa, analfabetismo, corrupção, conflitos nacionais/internacionais e a instabilidade política, têm muitas vezes causado a fraca atenção à poluição do ar, apesar de sete milhões de pessoas morrerem anualmente, segundo a OMS, devido à poluição do ar em todo o mundo. Apesar da magnitude do problema, a perda de vidas e riqueza devido à poluição do ar é invisível para muitos governos. O analfabetismo entre os cidadãos, também é motivo para não se queixarem da poluição. O uso de recursos humanos para outras funções como eleição/recenseamento/desporto, também é uma das muitas razões para a má implementação da legislação ambiental. Muitas instituições de aplicação da legislação ambiental em grande número de países, estão mais preocupadas com as despesas em termos financeiros, ao invés do controlo de poluição, como seja a apropriação indevida de recursos financeiros que pode levar o funcionário responsável a ser punido com uma pena de prisão. Por outro lado, a poluição não contabilizada não é de modo algum tão grave, como a apropriação financeira indevida. As leis ambientais também podem ser usadas de forma abusiva para arrecadar fundos ou causar prejuízos aos adversários das pessoas no poder. As questões, causas, factores de influência e impactos da poluição do ar podem ser atribuídos a muitos agentes que não são quantificáveis. A corrupção entre os governantes, baixa ética entre as indústrias, falta de disponibilidade de tecnologia, incapacidade de adoptar novas tecnologias e a baixa capacidade de pesquisa afligem muitos países. Apesar do entusiasmo demonstrado por muitas organizações internacionais para apoiar a causa, muitas vezes é negado ou mal adoptado pelos países beneficiários. As principais fontes de poluição são o processo de combustão, indústria, transportes, eliminação de resíduos, uso de agro químicos e a respiração de organismos vivos, e nenhuma dessas fontes pode ser evitada, uma vez que se destinam à sobrevivência dos seres humanos. Para além destas fontes, outras como o incêndio acidental, tempestades de vento, desastres naturais, educação/pesquisa, decomposição de matéria morta, guerras, explosões, utilização de explosivos, eventos desportivos, testar/praticar o uso de armas de guerra, lançamento de satélites, erupções vulcânicas, construção, produção de metano em campos de arroz devido à biodegradação, demolição de edifícios, metano gerado por animais ruminantes durante a digestão dos alimentos, pintura, processamento de grãos, erosão do solo e desintegração de rochas/minerais, aumentam a poluição. Os sectores de serviços como saúde, informática e subcontratação de processos de negócios, também contribuem com poluentes atmosféricos ao usar equipamentos, ar condicionado e transportes. A libertação de agentes patogénicos dos estabelecimentos de cuidados de saúde, criação de animais, abate e pesquisa pode ser muito mais prejudicial, em comparação com os poluentes convencionais. Ao contrário da guerra e do crime, a poluição do ar geralmente ocorre de forma lenta, levando anos até que o impacto real seja visível, como os desastres de Chernobil e Bhopal, que foram amortecidos pela memória de pessoas devido a outras questões quentes de maior interesse individual.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesObsessão pelo telemóvel e outras faltas de respeito [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 30 de Março o website “Ming Pao” anunciou que Alvin Cheng Kam-mum tinha sido preso por desacatos em tribunal. Recebeu uma pena de três meses. Alvin é vice-presidente de um dos partidos políticos de Hong Kong, o Civic Passion. Inicialmente Alvin tinha comparecido em tribunal por não ter respeitado uma Ordem de Injunção emitida em 2014, que proibia a ocupação ilegal de Mongkok. Mesmo depois da proibição, Alvin permaneceu em Mongkok a liderar os manifestantes. Alvin foi representado por Gerord McCoy, dirigente da Ordem dos Advogados. Durante o julgamento, o juiz Andrew Chan interrompeu subitamente McCoy e dirigiu-se a Alvin nos seguintes termos, “Não se importa de parar de jogar no telemóvel enquanto está no tribunal? O tribunal tem autoridade para lhe apreender o telemóvel. Acha que tem liberdade para entrar e sair quando lhe apetece? Como é que eu posso acreditar na sinceridade do seu arrependimento pelas infracções que cometeu?” O juiz acabou por condenar Alvin a três meses de prisão após ter proferido estas palavras. Este caso é insignificante, mas tem grandes implicações. Hoje em dia os telemóveis tornaram-se parte da vida de todos nós, sobretudo dos mais novos. Todos os jovens, tenham a idade que tiverem, jogam nos telemóveis. É absolutamente invulgar ver um jovem sem telemóvel. Os telemóveis foram concebidos para comunicarmos, mas actualmente as suas funções excedem largamente a simples comunicação. Podemos ver vídeos, jogar jogos electrónicos e até trabalhar através do telemóvel. Mas se virmos bem, quantos jovens usarão estas plataformas para estudar ou trabalhar? Há duas semanas tiveram lugar em Macau os Exames de Admissão Conjunta. Foi um dos maiores acontecimentos no campo da educação, porque foi a primeira vez que se realizaram em simultâneo nesta cidade exames para admissão em quatro universidades, com o programa do ensino secundário muito mais unificado. É previsível que num futuro próximo o exame de admissão dê acesso a mais universidades e que o programa do ensino secundário conheça mais etapas de unificação. Esta unificação irá combater os programas individuais de cada escola, uma situação que deve ser evitada. Analisemos agora os comportamentos dos estudantes submetidos a este exame. Não vamos falar de resultados, mas sim de atitudes e expectativas. Estariam entusiasmados? Aparentemente, não. É fácil de verificar que os telemóveis foram um problema. A maior parte dos alunos não desligou o telemóvel depois de entrar na sala de exame. Sempre que o telefone tocava atendiam. Também se podia ver alguns a jogarem nestes aparelhos. Parte dos alunos falava com amigos através do Wechat ou de outras aplicações. No entanto, tinham à sua frente a folha de exame. Não pareciam dar-se conta de que os examinadores podiam desconfiar que estavam a falar sobre as perguntas do exame. Esta situação pode conduzir a uma desclassificação e ao impedimento de entrar numa sala de exames. Mas mesmo assim os jovens insistem nestes comportamentos. Será que não se apercebem que estão a desrespeitar a instituição escolar? Alguns estudantes mascavam pastilha elástica durante o exame e recusavam-se a deitá-la fora. Outros iam à casa de banho logo a seguir a terem entrado na sala de exame. Aparentemente não faziam ideia que, devido ao secretismo do exame, é proibido ir à casa de banho depois da entrada na sala. Este género de comportamentos parece indiciar que a nova geração não sabe respeitar o próximo. O relacionamento normal com os outros é um problema sério para estes jovens. O telemóvel deixou de ser uma ferramenta de comunicação e passou a ser uma plataforma de jogos. Torna os jovens mais auto-centrados e aprisionados no seu próprio mundo. Se isto continuar, não vão aprender a relacionar-se com as outras pessoas. Mas a questão do telemóvel também passa pelo local de trabalho. Alguns empregadores reportaram alguns casos curiosos que passo a descrever: Temos o caso de uma pessoa que se ia candidatar a um emprego. No entanto, antes da entrevista, pediu que lhe enviassem fotos do escritório para ver se as condições lhe agradavam. Se fosse o caso, ia à entrevista, se não fosse não ia. Vejamos ainda a história do empregado que se despediu através duma mensagem para o telemóvel do patrão. Ou seja, não se deu ao trabalho de ir ao escritório cumprir as formalidades necessárias ao despedimento, nem passar trabalho aos colegas. Em vez disso pediu ao patrão que lhe enviasse os documentos de rescisão. Outro exemplo: o patrão pede ao empregado para resolver um problema informático. O empregado responde que o assunto se resolve descarregando umas aplicações no telemóvel. Mas não pensa que alguns dos seus colegas podem não estar familiarizados com o uso do telemóvel nestas situações. Esta forma de resolver o problema só iria beneficiar alguns, não resolvia o problema de todos. Face a estas situações, é fácil compreender porque é que o juiz condenou Alvin a três meses de prisão. Se não ensinarmos os jovens a usar os telemóveis de forma adequada, os problemas vão continuar a acontecer. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO sexo dos insectos [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo dos insectos ensina-nos que não podemos confundir o que é normal do que é natural. Se o natural é o biológico e lógico do mundo animal, parece que os insectos estão a desafiar alguns conceitos de género, e a praticar tipos de sexo muito particulares. Parece que o normal para as criaturas de seis pernas não é o que uma mente pouco reflexiva pudesse assumir – porque está presa em conceitos de ‘naturalidade’ ocas. Há alguma facilidade por parte dos biólogos em estudar estas criaturas (são baratas, de fácil acesso) e de tomar algumas conclusões relativamente ao funcionamento humano. Aliás, para os mais aficionados na matéria, estas criaturas apresentam aquilo que seriam comportamentos de amor, zanga ou reconciliação, com um cérebro minúsculo e com a ausência de hormonas como as nossas – alguma coisa faz com que estas miniaturas consigam funcionar de uma forma tão organizada. Mas como os insectos são feios e como temos muito medo deles, temos alguma dificuldade em antropomorfizarmo-los e aprender o que quer que seja com eles. A proposta de Marlene Zuk no seu livro Sex on Six Legs: Lessons on Life, Love, and Language from the Insect World é de que temos que parar de recusar o que são propostas de normalidade dos insectos, e quiçá aprender alguma coisa com eles. As moscas, as abelhas, os louva-deus, os gafanhotos, as joaninhas ou os escaravelhos têm estilos de vida diferentes do que a nossa visão antropocêntrica poderá esperar – ao ponto de confundir muitos pensadores (e isto aconteceu durante a antiguidade clássica) com a ambiguidade dos papéis de género que os insectos apresentavam. Todos já sabem que uma colmeia é uma monarquia matriarcal, com uma chefe de estado feminina. O que o senso comum e as visões populares preconizam é que as abelhas trabalhadoras são machos – quem faz o trabalho, e desenvolve a vida da colmeia – quando na verdade são fêmeas. A autora do livro, bióloga, tem a sensibilidade de uma cientista social ao pensar porque raio é que a assumpção primária é de que as abelhas trabalhadoras são machos? E ninguém se informa, ou corrige, que as abelhas são na verdade, fêmeas (e responsáveis pela criação de um terço da nossa comida)? Também é o caso das formigas onde os soldados são as fêmeas, para grande surpresa do mundo em geral. Mundo geral esse que cresceu com filmes e series de animação onde as abelhas e formigas eram traduzidas a um mundo antropomórfico masculino (a excepção será talvez os que viveram a sua juventude nos anos 80 e que cresceram com a ideia d’A Abelha Maia). Claro que este tipo de confusão não é o fim do mundo, e provavelmente não passa de pura ignorância. Conseguimos, contudo, ter alguma noção sobre o nosso desconhecimento dos nossos companheiros invertebrados e do nosso viés em assumir que certas ideias são masculinas, quando que não deveriam haver receios em vê-las como femininas. Os insectos-fêmea têm poderes extraordinários na forma como procriam. Imaginem: estas criaturinhas podem copular com múltiplos machos e escolher o esperma que desejam de facto fecundar – aliás, podem guardá-lo para depois. O esperma só é utilizado quando ela quiser pôr ovos, seja isso daqui a uma hora, semanas ou meses depois do contacto sexual. Os machos tiveram que desenvolver mecanismos evolutivos para se protegerem destas estratégias que dão poucas garantias que a sua carga genética seja passada a outras gerações. Por isso é que os insectos têm pénis com picos, ganchos, i.e., mais parecem um canivete suíço, para certificar que o seu esperma se torne no vencedor. Estas curiosidades e outros detalhes da vida sexual dos insectos podem ser pesquisadas e analisadas no livro que foi a minha inspiração da semana, e também por essa internet fora. Podem deixar-se levar pelo mundo verdadeiramente fascinante do que são formas naturais de envolvimento e desenvolvimento sexual, que compõem uma possibilidade infinita de formas sexuais alternativas. É óbvio que não me pus a escrever a pensar que os homens deveriam ter um pénis a assemelhar um instrumento de guerra, não acho que exista uma lição de facto para ser aprendida – nada do que os insectos fazem poderíamos repetir em casa! Mas, quer queriam quer não, toda a investigação à volta do sexo dos insectos ensinam-nos acerca dos seus mecanismos evolutivos, e das tão criativas formas de desenvolvimento – e de inclusão! Porque no mundo fantástico dos insectos temos colónias compostas por maiorias arrebatadoras femininas, observamos comportamento homossexual e temos exemplares hermofroditas. Tudo de forma normal e muito natural.
Rui Flores VozesO regresso dos neo-cons [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] ataque norte-americano à base aérea de Shayrat na Síria, como retaliação a um alegado ataque químico que terá morto um número indeterminado de civis, é um sinal de que a política externa norte-americana, ao contrário do que havia prometido o candidato presidencial Donald Trump, vai ser interventiva. Mais do que imprevisível, a Presidência Trump está a tornar o mundo um local mais perigoso. Após parecer que, afinal, Bashar Al-Assad seria tolerado pelo novo inquilino da Casa Branca, Donald Trump faz uma reviravolta e deixa claro que o governo sírio pisou o risco ao recorrer alegadamente a armamento químico. Ora, sem verificação independente sobre o que verdadeiramente terá ocorrido na passada terça-feira em Khan Sheikhoun, território sírio controlado por rebeldes, em que um alegado ataque químico terá provocado a morte a dezenas de civis – alguns relatos falam em 89 vítimas, incluindo 33 crianças e 18 mulheres –, as diferentes partes do conflito foram construído a sua própria narrativa. Afinal, a guerra faz-se também pela forma como se comunica. E cada qual aproveitou o ataque para reforçar a sua posição contra o outro. Se, por um lado, Trump justificou o ataque levado a cabo pelas forças norte-americanas como uma medida retaliatória justa, o governo sírio diz que não recorreu a armamento químico contra a sua própria população, que se tratou apenas da libertação de um produto químico armazenado pelos rebeldes, após um ataque aéreo específico a um arsenal rebelde. Por outro lado, se a Rússia – principal aliado de Assad – apareceu ao lado do governo sírio, validando a construção da realidade apresentada por Damasco, já o Reino Unido apontou o dedo a Moscovo, acusando-o de ser também responsável pela morte de civis. Acto contínuo, Boris Johnson cancelou a visita à Rússia. A narrativa construída passou – naturalmente, sublinhe-se – pelo “uso” do chamado mainstream media. A CNN, por exemplo, não deixou de salientar que a maior parte dos líderes europeus e mesmo “caseiros” apoiavam a decisão unilateral norte-americana. A cereja no topo do bolo era o apoio declarado de Hillary Clinton. A Russia Today (RT) procurou contra-atacar recorrendo a Ron Paul, antigo candidato presidencial norte-americano, que sublinhou que o realismo dos neo-conservadores está de volta a Washington. O momento da resposta também tem de fazer parte da análise. Ao proceder ao bombardeamento da base aérea de Shayrat, nos arredores de Homs, quando estava a decorrer a cimeira com Xi Jinping, Donald Trump não quis deixar grande espaço para imaginação sobre o que pode fazer com a Coreia do Norte. Aliás, caso analistas mais distraídos não tenham percebido o alcance da nova política externa norte-americana, neste fim-de-semana, a marinha norte-americana fez avançar vários navios de guerra, incluindo o porta-aviões Carl Vinson, para a península coreana. O que é facto é que o Conselho de Segurança das Nações Unidas está bloqueado no que à guerra na Síria diz respeito. Apelar a uma reforma do órgão da ONU responsável pela paz e segurança no mundo não parece que vá contribuir para um termo imediato do conflito sírio. Não é possível imaginar-se que num futuro próximo China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia aceitem que outros possam bloquear decisões do Conselho de Segurança. É difícil imaginar, por exemplo, que a China, embora mantenha uma relação estreita com a Índia no âmbito dos BRICS, aceite um dia que Nova Deli venha a fazer parte do grupo dos P5. As dúvidas sobre o conteúdo dessa reforma são imensas. Por exemplo, perguntar-se-ia, além do Brasil, que outro país deveria aceder ao estatuto de todo-poderoso no Conselho de Segurança? A África do Sul, outros dos BRICS, ou a Nigéria, país que há muito é um dos grandes contribuintes para o departamento de manutenção de paz da ONU? Aos olhos daqueles que vêem que, após mais de seis anos de conflito, a ONU não conseguiu chegar a um consenso para a paz na Síria, a decisão de atacar agora o regime de Assad poderia – tendo em conta o número de vítimas civis – ser uma acção justificada. Mas com o envolvimento russo na Síria, forçar a saída de Assad poderá ter consequências muito mais vastas do que apenas contribuir para uma possível solução para um conflito no Médio Oriente. Por tudo isto, na reunião de urgência do Conselho de Segurança da passada sexta-feira, o representante permanente da Bolívia lembrou a ida àquele mesmo órgão, em 2003, de Colin Powell, apelando ao apoio dos outros 14 estados-membros para a intervenção no Iraque e apresentando “provas” que depois se revelaram falsas. Por tudo isso, e com os neo-cons a dominarem a agenda, fica a dúvida sobre a efectiva intenção de Trump. Ao fim de três meses no poder, longe estão já as declarações de não envolvimento americano nos conflitos do mundo.
Isabel Castro VozesManifesto [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso. Há alturas em que apetece atirar o teclado contra a parede. Não que seja dada a violências. Nada disso. Apetece-me, isso sim, ter um pretexto para não escrever – a falta de teclas, a falta de letras –, pegar no casaco e na mala, bater com a porta. A senhora tem de compreender que. Cansa-me o discurso de apelo à compreensão. Não há nada para compreender. Presumo que noutras profissões em que haja uma relação directa com a função pública, as coisas se processem mais ou menos da mesma forma. O senhor tem de compreender que. Mas não sei de outras profissões, só sei da minha que é a que tenho todos os dias e que, paradoxalmente, diz respeito, de forma mais ou menos directa, a toda a gente. Nos outros sítios do mundo que não Macau, os jornalistas existem porque as pessoas têm o direito a serem informadas. Se querem ser informadas, isso já é outra conversa, são as opções de cada um. Em Macau, os jornalistas existem porque são uns chatos, umas pessoas que decidem ir trabalhar ao cair da noite e escrevem assim uns textos ou dizem umas coisas em frente a umas câmaras. No essencial, os jornalistas são uns chatos. Fazem tantas perguntas. Os senhores têm de que compreender que. Não temos de compreender nada mais além do que temos de saber para que os outros também saibam. Desabafo. Desculpe-me o desabafo, mas diz-lhe respeito. É para si que escrevo, mesmo que não me queira ler. É uma estranha insistência, eu sei, achar-se que há um assunto que merece ser estudado, descodificado, clarificado. E escrito. Porque ainda não atirei o teclado contra a parede, o teclado branco na parede branca, tudo branco, continuo a escrever a preto. Inventou-se há uns anos que cada serviço público devia ter funcionários com a missão de aturar os jornalistas. A ideia era boa. Era mesmo. Mas são esses que me pedem paciência. Alguns nem isso fazem, porque não respondem, ignoram-me. Os pobres aturam os jornalistas sem perceberem porque é que aturam os jornalistas. Ninguém lhes explicou que está constitucionalmente consagrado o direito à informação. Ninguém lhes disse que informar é um dever, não um favor que se faz. Às tantas alguém lhes disse qualquer coisa do género, no meio de muitas outras coisas como folhas a preencher por causa de horas extraordinárias e outros assuntos mais importantes, muitas burocracias e códigos e folhas e tretas do género. Escapou-se-lhes a parte do dever. A senhora tem de compreender. Não compreendo nada, porque não trabalho para um arquivo. As notícias escrevem-se hoje, não daqui a um mês. Há uns tempos, a propósito da dificuldade que a Administração tem em perceber a importância dos timings da comunicação, ofereci-me para, na condição de jornalista, explicar a quem tem a missão de aturar a imprensa como é que as coisas se fazem deste lado. Para que tivessem a ideia que nunca ninguém lhes deu. Para que percebessem que os apelos à compreensão são contraproducentes. A minha oferta era em regime pro bono, uma coisa informal, sem powerpoints, nem discursos. Talvez ganhassem eles e talvez ganhasse eu, talvez ficássemos todos a ganhar. O meu interlocutor riu-se. Olha que engraçada que ela é, tem cada ideia mais peregrina, onde é que já se viu numa terra cheia de gente inteligente e culta e cheia de experiências, e de MBAs e PhDs e canudos de várias formas e feitios, vir agora uma jornalista, um ser que acorda tarda, toca viola durante o dia e escreve uns textitos à noite, querer partilhar o que quer que seja com a elite de mui oficiais relações públicas. Passaram-se uns bons anos desde a minha extravagante proposta e continua tudo mais ou menos na mesma. A senhora tem de compreender. E eu não compreendo coisa alguma, que pecados e omissões não são a minha área vocacional. Não compreendo que se fechem as portas a quem informa e procura fazê-lo na posse do maior número de dados, da forma mais correcta. Não compreendo também que se feche a porta a uma associação de jornalistas que pediu esclarecimentos sobre a lei eleitoral, diploma que levou com alterações que alguém decidiu que também se aplicam aos jornalistas. Não compreendo que se diga que não há tempo. Gente tão ocupada esta. Pior, não compreendo que se tente passar um atestado de estupidez a quem fez o pedido de esclarecimentos. De cada vez que se fala no assunto, dizem-nos que já houve uma sessão para o efeito. Ora, foi essa sessão que deu origem às dúvidas. Mas já houve uma sessão. Mas há dúvidas. Mas já houve uma sessão. Mas há dúvidas. Não interessa. Os senhores têm de compreender. Há dias em que apetece atirar com o teclado contra a parede. Branco no branco, letras no chão, pedaços de plástico finamente desenhados que deixarão de ser produtivos, transformados em lixo. Não sosseguem, não respirem de alívio. Teclados é o que não falta.
Leocardo VozesOs B.P.S. [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ostumava o meu pai dizer que “à mesa não se fala de religião ou política”. Mas de futebol tudo bem, falava-se pelos cotovelos. Na ressaca de mais um “derby”, disputado no último Sábado entre o Benfica e o Porto, resolvi hoje de um mal que afecta os portugueses de um modo geral: a clubite. Se os benfiquistas são seis milhões (é bem possível, a julgar pela quantidade de gente deprimida no país), os restantes quatro milhões são do Porto e do Sporting. São os BPS (benfiquistas, portistas e sportinguistas), que constituem 99.9% da população portuguesa – os outros 0.1% são uma margem de erro. Mesmo os que se dizem adeptos dos outros clubes, do Guimarães, do Braga, do Belenenses, e mesmo os orgulhosamente insulares da Madeira, são uns enormíssimos BPS camuflados. Basta ver os jogos do tipo Braga-Benfica, ou Penafiel-Porto, se acabam 2-2, metade dos adeptos no Estádio festejam os quatro golos, sendo que a outra metade pertence a um BPS inimigo – os BPS são os expeditores da glória desportiva. Um adepto de Setúbal que garanta a pés juntos que só gosta do seu “Vitórria”, é lá no fundo um BPS recalcado que sofre com um deles todos os fins-de-semana. A Taça de Portugal é um bom exemplo disso. Lembro-me há uns anos um dirigente de um clube dos escalões secundários ter dito em vésperas de receber um dos grandes que “queria vencer para ajudar o Benfica”. O clubismo é um cancro nacional. Separa os melhores dos amigos, gera discussões bacocas entre colegas, é só do que se fala quando não há nada para falar (e quase sempre não há!). Qualquer BPS mais pacato começa a levantar a voz e o dedo quando fala de futebol com um BPS rival. Ao contrário das religiões, que não se enfrentam todos os fins-de-semana em busca de um troféu (pelo menos não nos mesmos moldes), aqui a rivalidade é renovada a cada jogo, a cada semana, a cada título. Cada um dos BPS é especial na sua maneira de ser. O benfiquista é o mais orgulhoso. Há benfiquistas de toda a espécie e feitio: ministros, advogados, trolhas, domésticas, beatas, arrumadores, tudo. Há benfiquistas alentejanos, beirãos, portuenses, do Minho até Timor, como dizia o outro. O Benfica é a United Colors of Benetton do clubismo lusitano. Podem ser óptimas pessoas, boazinhas, porreiríssimas, mas passam-se dos carretos quando alguém fala mal do seu clube. Todos sabem de cor os hinos do Benfica, têm em casa um pratinho que diz “quem não é do Benfica não é bom pai de família”, arrepiam-se quando revêm imagens do Eusébio e do Rui Costa a chorar. Produzem resmas de poesia e prosa de casca grossa para definir “o que é ser benfiquista”, que começa quase sempre por “é uma chama imensa”. São tão agressivos quanto os portistas, têm ambos mau perder, e isto porque ambos pensam que existe uma guerra norte-sul, em que a deslocação para cada um dos campos de batalha se faz de carro em pouco mais de duas horas. Os portistas são gente desconfiada (“este morcone não é do Norte, carago), orgulhosa, que um dia arregaçou as mangas e resolveu pôr um fim ao domínio da capital. São os anti-imperialistas do clubismo. Olham para o Benfica de cima, e riem com tom sarcástico das coisas que os acusam. Para o portista, que ri na cara do perigo, “as contas fazem-se no fim”. E têm sabido fazer bem as contas. Pinto da Costa aparece assim numa aura estranha, de santidade como o Papa, de revolucionário como Che, de padrinho como Vito Corleone com um culto da personalidade a fazer lembrar Mao. Orgulham-se do terreno que foram conquistando nas últimas décadas, e estão convencidos que “até em Lisboa há portistas”. Enganam-se. Haver há, os que emigraram. Os outros são sportinguistas arrependidos, uns BPS à parte, que são anti-Benfica. Os sportinguistas são, dos três, os mais simpáticos. Têm orgulho de ser do Sporting, consideram-se uma elite. São os tais “netos de visconde” de que o Octávio Machado falava. Quando penso num sportinguista tipo vem-me à ideia um indivíduo calvo, sorridente, técnico de informática, com um autocolante “salvem as baleias” no PC e outro “Bebé a bordo” no Fiat. São os BPS que mais filosoficamente aceitam a derrota, e não entram em grandes euforias quando ganham, porque afinal, “é normal”. São uma malta que sabe estar na vida. Sendo os mais simpáticos, são também os mais permissivos, e talvez por isso nunca ganham, coitados. Simpatizam com o Porto “quando ganha títulos em vez do Benfica”. Para eles ver o Benfica perder é um prazer indiscritível. Dizem com a maior das calmas e com um desportivismo latente que “o Porto é melhor clube português dos últimos 30 anos”, mas secretamente desejam que os BP (Benfica/Porto) se matem, esfolem e auto-destruam. O seu mote é “quem espera sempre alcança”. Outra palermice que os adeptos gostam de reafirmar é que “são BPS, mas são portugueses e querem que os outros ganhem na Europa”. Mentira. Na hora da verdade o visceral ódio vem logo ao de cima. Basta observar este ano a novela entre Porto e Benfica por um lugar na Liga dos Campeões. Mas nos outros países é assim, porque havia Portugal de ser diferente? Na Espanha os adeptos do Barça ficam furiosos quando o Real Madrid vence um troféu europeu, e vice-versa. Mesmo na selecção nacional o clubismo dita as suas regras. São os BPS cada um a puxar a brasa à sua sardinha, a achar que devem ter mais jogadores do seu clube na selecção de todos nós. Culpam árbitros, dirigentes, políticos e outros pelas derrotas. Têm uma lista negra de responsáveis pelos seus fracassos, e não se importavam de ver “toda a gente na cadeia” para poder festejar as vitórias para que, afinal, muitos nada contribuíram.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBi [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] M. é uma mulher especial como todas as outras – porque toda a gente é especial de alguma forma. A M. tem um corpo bonito, uns olhos penetrantes e um sorriso honesto. Ela faz parte da normalidade que é a média da curva normal da beleza contemporânea. A M. também orgulhosamente se assume como bissexual e já teve namorados e namoradas. Poder-se-ia pensar que se ela se sente atraída pelos dois géneros (ou mais, para não cairmos no binário) e por isso tem a vida muitíssimo facilitada – tem muito por onde escolher! Mas claro que é uma assumpção ridícula. Na verdade, a bissexualidade ainda é discutida e apresentada de uma forma polémica. Se a aceitação total da homossexualidade ainda está para acontecer, a bissexualidade está a uns passos atrás. Isto deve-se porque as pessoas acreditam que ser bissexual trata-se de uma confusão identitária e que é ‘uma fase’. Uma fase de transição para a homossexualidade, ou vice-versa. A insistência em ignorar esta categoria sugere que há uma dupla estigmatização porque há hetero e homossexuais que acham que a bissexualidade não faz sentido. M. discordaria, a bissexualidade é uma etiqueta digna de ser utilizada – não é uma fase nem é uma confusão, é a forma como ela vive a sua vida. Foi assim que a M. explicou aos pais dela, quando uma vez apareceu em casa com um namorado, e passado uns meses apareceu com uma namorada. Como as pessoas julgam esta caracterização confusa, facilmente julgam que é igualmente uma fase confusa, e é preciso parar de o fazer. Há uma série de mitos associados à bissexualidade e um deles é de que é uma orientação sexual que sente atracção sexual pelos dois géneros, de igual forma. Não quer dizer que possa não acontecer, sentir exactamente o mesmo desejo, afecto e amor por um homem e uma mulher. Mas isso é tão difícil de afirmar! Ninguém anda com um barómetro de atracção no bolso para avaliar estas diferenças. Pode-se gostar mais de uma pessoa do que de outra, mas não quer dizer que está associado a todo um grupo de género. A M. diz-nos que ser bissexual não é sinónimo de infidelidade. Nem que as suas relações são laissez-faire – porque ‘nada’ interessa – nem os genitais. Não pensem que é como ‘tudo o que vem à rede é peixe’. Pensem assim, da mesma forma como vocês, caros leitores, preferem morenas/os, um bissexual tem preferências também. Não se esqueçam que um relacionamento depende de algum nível de intimidade, atracção e ligação, só que os heterossexuais e os homossexuais põem o género na lista de critérios, e os bissexuais não. A M. diria que devemos ter cuidado com estas tentativas de definir a bissexualidade por quem não se identifica como bissexual. Há uma tendência de meter o bedelho em assuntos que não nos afectam directamente, e por isso, automaticamente, não deveríamos ter legitimidade para defender o que quer que seja. Quem sou eu para dizer o que a bissexualidade é ou não é? A M. é que me tem que dizer a mim e a todos os interessados em ouvir. É certo que questões relacionadas com as identidades, comportamentos e atracções são complexas – por isso não esperem uma resposta totalmente clara e/ou congruente. Alguém pode identificar-se como bissexual sem nunca de facto ter praticado o seu desejo, ou pode acontecer que alguém tenha tido relacionamentos com homens e mulheres mas não identificar-se com a bissexualidade. A permeabilidade destas categorias de formas sexuais não deverão ser vistas como confusas – nem devem ser usadas para defender a contestação. Vejam-nas como possíveis fontes de inspiração para desenvolver aquilo que deverá ser o respeito mútuo. Há uma hostilidade constante sobre aquilo que não conhecemos, i.e., aquilo que não nos é apresentado no nosso dia-a-dia social. Há que lutar contra a nossa tendência para julgar e de ‘racionalizar’ aquilo que já é racional. Perdemos muito tempo das nossas vidas a tentar perceber quem somos, para descobrir que não encaixamos perfeitamente nas expectativas das pessoas à nossa volta e às vezes isso parece-nos estranho. A M., que tem as suas preferências e que tenta ser ela própria (num mundo que gosta de colocar tudo em caixinhas pré-definidas), vive experiências de expressão pessoal que ressoarão com outras pessoas, seja pela orientação sexual ou por outra coisa qualquer.
Paul Chan Wai Chi Macau Visto de Hong Kong VozesOs milagres dependem de nós [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] história de David e Golias que a Bíblia nos conta é sempre citada como um exemplo do triunfo dos fracos sobe os fortes. Mas será que esta história nos fala de um milagre? Depois de a lermos com atenção, reparamos que não foi tarefa fácil para David. David precisou de espírito, bravura e bastante preparação porque sabia muito bem que não tinha hipóteses de vencer Golias num confronto físico. Por isso recorreu aos jogos psicológicos e ao ataque surpresa. Golias subestimou as capacidades de David, deixou para trás o soldado que lhe transportava o escudo e lançou-se no ataque a David, que o ia provocando verbalmente. Esta reacção foi a que David esperava. Nessa altura, David usou a sua funda para atacar Golias. Lançou-o por terra e a seguir decapitou-o. A funda, usada na caça pelos pastores, lança a pedra a uma grande velocidade contra o alvo, fazendo dela uma arma letal. Há cerca de dez anos fiz uma peregrinação à Terra Santa e vi alguns locais a demonstrarem o seu funcionamento, com o objectivo de as vender aos turistas. Foi uma pena não ter comprado uma nessa altura. Mais tarde pedi a um amigo que também lá foi, para me comprar uma funda se as visse à venda. Mas possivelmente devido ao conflito israelo-palestiniano, foram retiradas do mercado. Carrie Lam venceu as eleições do passado domingo para Chefe do Executivo de Hong Kong, derrotando John Tsang que não conseguiu operar milagres junto da opinião pública. Mas, pessoalmente, penso que Carrie Lam conseguiu vencer devido à diferença de condições entre as campanhas, e não por falta de capacidade de mobilização e de entusiasmo de John Tsang. Uma das condições que marcou a diferença foi sem dúvida o apoio do Governo Central a Lam. A candidata (Carrie Lam) foi alcunhada por um adversário de “três-poucos”: pouca popularidade, pouca energia e pouca legitimidade, e mesmo assim conseguir ganhar a eleição. Este cenário terá algum paralelismo com a história de David que derrubou Golias? Na edição de sexta-feira do jornal “Sing Tao Daily”, vinha um artigo intitulado “Porque é que o Governo Central não apoiou John Tsang na corrida à liderança do Executivo?” Se isto se tivesse passado em Macau alguém teria apresentado queixa ao Comité Eleitoral, por causa do conteúdo do artigo e pelos possíveis impactos no acto eleitoral. O artigo explanava sobre o facto de John Tsang, que já foi um homem de confiança do Governo Central, ter concorrido às eleições sem esse apoio. Ou seja, John Tsang agiu de uma forma que não serviu os arranjos e as disposições do Governo Central. Foi esperto, mas no fim a sua esperteza acabou por se virar contra ele. Foi o contrário do que aconteceu, quando o ainda Chefe do Executivo Leung Chun-ying se pretendeu recandidatar. CY Leung tinha sido “encaminhado” para a vice-presidência do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CPPCC sigla em inglês). Logo a seguir a estes “arranjos”, anunciou a retirada da recandidatura devido a problemas familiares. Este anúncio foi feito três dias antes da demissão oficial de John Tsang de Secretário das Finanças, o que o colocou num dilema. Poderia dizer-se que Carrie Lam tinha sido encarregada num momento crítico da missão de substituir Leung Chun-ying, que não goza de popularidade junto do Comité Eleitoral. A atitude abnegada de Carrie Lam, no sentido de cooperar com as disposições do governo Central, foi a chave para a sua vitória. A “esperteza” e um certo sentido de humor de John Tsang, acabaram por lhe retirar a confiança do Governo Central. Foi-lhe permitido ocupar-se dos assuntos financeiros enquanto Secretário das Finanças, mas se se tivesse tornado Chefe do Executivo, poderia ficar demasiado poderoso e o Governo Central teria mais dificuldade em controlá-lo. É uma prática tradicional de manipulação na política chinesa. Olhemos agora para as eleições para a Assembleia Legislativa de Macau marcadas para Setembro. Se a orientação da “Estabilidade Acima de Tudo” se mantiver, o resultado será uma vitória desequilibrada, já que as fraudes e a corrupção eleitoral continuam a subsistir apesar do reforço da lei. A Democracia irá continuar a desempenhar o seu papel “decorativo” na Assembleia e os que combatem em seu nome irão enfrentar uma extinção sem precedentes. Passaram-se alguns dias sobre a eleição de Carrie Lam e, depois da poeira ter assentado, algumas pessoas já estão convencidas de que o resultado desta eleição não foi o pior possível. Carrie tem reafirmado que a resolução das cisões sociais é uma das suas prioridades enquanto Chefe do Executivo. Demos-lhe tempo para mostrar o que vale.
Isabel Castro VozesNão mexe [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]ouve uma altura em que deixou de se perceber o que se estava a passar, o que é mau, porque dá azo a especulações. De um lado, dizia-se que era para ir abaixo, porque se não fosse pela força das máquinas, o vento iria tratar do assunto, com consequências imprevisivelmente más. Do outro, falava-se em conservação, na preservação de não se sabia bem o quê, se era um apenas, dois, cinco, todos ou metade. Houve muita confusão numa matéria sensível, o que não é bom. Há dias, as coisas tornaram-se mais claras: afinal, Lai Chi Vun não vai ser demolido, depois de já ter sido ligeiramente demolido. Não vai tudo abaixo por enquanto, para se estudar o valor patrimonial dos estaleiros, para se pensar na classificação das estruturas que ali estão. Com sorte, e a concretizarem-se os desejos de alguns, a vila vai ficar mesmo como está. Mas arranjada e mais bonita, mais segura também, para que ninguém leve com teca na cabeça. Estranho processo este o da povoação de Coloane. De um lado, os Assuntos Marítimos que, a dada altura, tinham invariavelmente a mesma resposta para dar: é para demolir, a segurança e coisa e tal. Todas as questões que se foram colocando mereceram a mesma resposta, como se, do outro lado do email, estivesse uma máquina e não uma pessoa. Pergunta-se se é branco; na réplica diz-se que é o ano do galo. Irritante hábito este, o de as pessoas fingirem que não entendem o que se lhes pergunta. Irritante hábito este, o de as pessoas fingirem que não estão a ouvir, impávidas e serenas, mesmo quando há alguém que lhes grita ao ouvido. Mas adiante. Lai Chi Vun correu politicamente mal. Emenda-se agora a mão e ainda bem, que isto da face tem muito que se lhe diga, mas não importa nada quando em causa estão valores mais altos do que as bochechas de uns e de outros. Lai Chi Vun correu politicamente mal porque quem decidiu que era para ir abaixo não foi capaz de perceber o que está ali em jogo. Não foi capaz de compreender o que querem as pessoas de Macau. Não é preciso ter-se um doutoramento em Sociologia, nem um mestrado em História para se perceber que os estaleiros têm um significado especial para muita gente – não só para quem ali vive, mas para muitas mais pessoas do território. Basta ler duas páginas sobre o assunto num jornal qualquer, escolhidas de forma aleatória entre o muito que se escreveu acerca da matéria, para se perceber que Lai Chi Vun tem uma característica especial: ao contrário da calçada à portuguesa, das Ruínas de São Paulo ou da Igreja de São Domingos, os estaleiros representam uma história que é só das pessoas de Macau, independentemente das influências externas nas embarcações que ali foram sendo construídas. É um passado de pessoas daqui, de gente que nasceu, viveu e morreu nos barcos e para os barcos. É um passado que tem que ver com a subsistência, com o saber fazer, com a possibilidade de se construir e também com a ideia da partida, porque é um passado virado para o mar, para a hipótese de liberdade. Lai Chi Vun representa ainda uma forma diferente de contar os minutos. Ali, o tempo passa mais devagar do que no reboliço que alguém inventou para esta cidade, que nos consome os anos e a vida. De algum modo, mais do que ser a última testemunha de uma actividade desenvolvida em Macau, Lai Chi Vun é também do pouco que resta de um território que muitos gostariam de ter visto evoluir a uma escala humana. Ainda bem que se foi a tempo. Sabe bem dar boas notícias e ter a ilusão de que, nesta terra, não contam só os interesses de quem destrói o que é autêntico para construir o que é pastiche. Conforta a alma pensar que ainda se pensa em quem quer apenas continuar, por entre a teca, a ver o dia desaparecer na água.
Leocardo VozesEibar [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] cinco de Agosto último passei a maior parte do dia em Donostia (San Sebastián), aproveitei para visitar Irun, e para a terminar em beleza fui jantar a Eibar, onde cheguei ao final da tarde. Parecia uma excelente ideia fazer tudo em apenas um dia, uma vez que de Irun a Eibar a distância é de 74 km, que de carro fazem-se bem em menos de uma hora. O que eu estava longe de imaginar é que a linha férrea do Euskotrain parava em todas as estações e apeadeiros, e a viagem acabou por demorar mais de duas horas. Mas posso dizer que valeu a pena a viagem, apesar de no fim do dia ter sido obrigado a despender 70 euros num táxi de regresso à minha sede em Bilbau, mas posso dizer que fiquei a conhecer a província de Gipuzkoa, uma das três que compõem o País Basco espanhol, juntamente com Viscaya e Aláva. O que mais posso dizer, quando durante todo o percurso tinha o mar do lado direito, e do esquerdo bosques, alternados com pastagens e campos a perder de vista, com montanhas ao fundo? Pontualmente parávamos numa ou outra pequena localidade, e deparava com alguma indústria pesada. Nada que destoasse da idílica paisagem – por cada metalurgia, estaleiro ou ferro velho, vi centenas de ovelhas, praia e mar a perder de vista. E foi já perto da hora de jantar que cheguei à estação de Eibar, e em menos de dez minutos a pé estava em plena Plaza Untzaga, no centro da cidade. Parecia uma daquelas praças em estilo espanhol, quadrada com uma fonte ao centro, mas nem por isso menos digna de registar em fotografia. Enquanto o fazia um senhor, penso que um eibarrés, abanava a cabeça em sinal de aprovação, e de seguida disse-me que “foi nesta praça que se declarou pela primeira vez a república”. E de facto foi – a segunda república, em 1931. A população de Eibar alinhou com os liberais nas guerras Carlistas, e da então Praça Afonso XIII fizeram a Praça da República. Durante a Guerra Civil Espanhola a audácia foi severamente castigada, e a cidade de Eibar ficou quase totalmente destruída. Vieram os anos 70 e Eibar ganhou um impulso económico e populacional, e depois da crise da década, estabilizou e hoje vive da indústria e serviços. Jantei por lá – pintxos, o que mais? – e além da enorme afabilidade dos locais, algo mais me chamou a atenção; por todo o lado, quer nos cafés, nas varandas e nas praças se viam bandeiras da S.D. Eibar, o clube de futebol local que em 2014 disputou pela primeira vez na sua história o escalão principal do futebol espanhol. Um feito espantoso, para uma cidade com 27 mil habitantes, e desportivamente na sombra dos gigantes Athletic Bilbau e Real Sociedad. O problema é que o pequeno Eibar não tinha o dinheiro para cobrir as exigências da liga, nem se queria endividar, e foi aí que surgiu uma ideia pioneira: formar uma sociedade desportiva e vender acções em todo o mundo. E assim graças a uma bem elaborada campanha pela internet, existe desde a Austrália aos Estados Unidos quem seja proprietário do clube, que é o orgulho da cidade que tanto passou para poder ter pão, e agora tem direito ao seu “circo”. Amei Eibar, e vou um dia lá voltar.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA incontida gestão da raiva “Donald Trump’s US election win is America’s Brexit – voted for by people angry with the status quo.” Daily Mirror, 09 NOV 2016 – Jack Blanchard [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e tivermos de expressar em uma frase a grande característica da psicopolítica da actual situação mundial, deve soar como a da entrada em uma era com uma visão do mundo, sem sinais de gestão da ira. A raiva é a chave para compreender e descrever a psicologia política do mundo, após o fim do comunismo e da era bipolar. A partir da ira de Aquiles, o mundo nunca soube gerir a energia da raiva na história. O termo grego “thymos” significa a vontade, o desejo, luxúria e ira. O “thymos” é o motor das acções do herói homérico. Mais tarde, torna-se a sede da aspiração de reconhecimento, e a falta de reconhecimento desperta a raiva e com as religiões monoteístas o património é impelido na outra vida, onde vai realizar a justiça divina. O ressentimento terreno será satisfeito no final dos tempos. A situação muda completamente com a Revolução Francesa. A possibilidade de igualdade mudou-se para um mundo futuro, que é a base da “thymotica” dos oprimidos. O líder do partido e da militância revolucionária marcou a acumulação da ira até ao colapso da União Soviética. O mundo actual é um sistema pós-histórico em que desapareceram os pontos tradicionais de gestão da ira e das energias “thymoticas”. Foi a raiva mal gerida que permitiu a vitória de Donald Trump e o sucesso dos movimentos populistas e de extrema-direita e dos seus líderes. Os novos tempos exigem paciência aos cidadãos globais e humildade aos economistas. Ambas as qualidades são necessárias porque a incerteza que reina desde Setembro de 2008 acentuou-se, embora não tenha atingido os níveis críticos desse tempo. O presidente americano surpreendeu ao concentrar a sua enorme energia sobre a questão dos imigrantes, e em menor medida, na agenda de protecção às indústrias do país e a última das muitas das suas ameaças, foi a da aplicação de uma taxa alfandegária de 20 por cento às importações, especialmente as provenientes do México, bem como a suspensão por sessenta dias das importações de limões tucumanos, que o ex-presidente Obama, depois de mais de quinze anos de proibição, tinha aprovado e, finalmente, a acusação à Alemanha de manter o euro subvalorizado. O presidente americano, surpreendentemente, acusou a Alemanha, que durante a presidência de Trichet no Banco Central Europeu, apoiou as políticas monetárias que levaram o euro ao recorde de 1,60 dólares americanos e, por outro lado, não mostrou qualquer contentamento com as políticas do actual presidente Mario Draghi, de emissão monetária e taxas de juro de zero por cento e inclusive negativas. Tudo evidencia que o presidente americano ignora as questões básicas da economia, mas mais preocupante é que da mesma doença padecem os seus principais colaboradores, sendo as suas intervenções marcadas pela ausência de políticas detalhadas, por outro lado, fazem referências às insistentes promessas eleitorais, entre elas, as de baixar impostos aos mais ricos e ambiciosos planos de infra-estruturas. É muito cedo para prever qual dos cenários acabará por prevalecer na malfada política do presidente americano cuja ignorância pelos assuntos de Estado raia o absurdo e das suas tresloucadas decisões. Os três cenários perceptíveis continham uma tendência ao proteccionismo, o aumento do deficit fiscal e a consequente queda dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos. O primeiro cenário seria acompanhado por um rápido aumento nas taxas da Reserva Federal, valorização do dólar, maior crescimento, fuga de capitais dos países emergentes, um pouco mais de inflação e, por fim, uma queda nos preços das matérias-primas à excepção do ouro. Seria, mas não necessariamente, a perspectiva negativa e dramática para os países emergentes. O segundo cenário é semelhante ao primeiro mas mais acentuado. O mundo viveu entre 1979 e 1981 um tempo delicado, quando a inflação nos Estados Unidos foi superior a 13 por cento, os rendimentos dos títulos chegaram a cair 16 por cento e a taxa da Reserva Federal foi de 20 por cento, tendo levado ao super dólar do presidente Donald Reagan, e que se traduziu numa década perdida para os países emergentes, sobretudo, na América do Sul com incumprimento financeiro de muitos países. Este cenário é de considerar como o menos provável. O terceiro cenário é quase o oposto do primeiro e assemelha-se ao acontecido entre 2004 e a crise de 2008, com o dólar no seu mínimo histórico e as matérias-primas a preços recordes, apesar de uma subida sustentada das taxas da Reserva Federal até ao máximo de 5 por cento, com a consequente subida dos rendimentos dos títulos do Tesouro e uma inflação do índice de preços ao consumidor, que atingiu um máximo de 3,8 por cento em 2008. Este seria o melhor cenário para os países emergentes e parece ser o mais provável. Existem alguns sinais desde as eleições americanas. Os mercados financeiros, em especial os bolsistas, são tanto ou mais optimistas que antes do triunfo do de Donald Trump, pois prevalece uma expectativa de crescimento da economia global, que se reflecte também na subida dos preços dos seus activos e das matérias-primas, e que não sofreu interferência até ao momento por uma moderada valorização do dólar, com excepção do peso mexicano que foi a moeda que mais se depreciou. Os indícios favoráveis ao primeiro cenário, prevaleceram nas semanas seguintes às eleições americanas, sobretudo pela subida dos rendimentos dos títulos do Tesouro, a valorização do dólar, um aumento do risco dos países emergentes e matérias-primas mais baratas, à excepção do cobre, devido ao suposto plano de infra-estruturas de Donald Trump e do petróleo pela OPEP. As valorizações do dólar e os rendimentos dos títulos do Tesouro, em contraste, no último mês de Dezembro de 2016, retrocederam, tendo ganho as matérias-primas e as bolsas e diminuído o risco emergente, apresentando uma maior semelhança com o terceiro cenário, considerado como sendo sem margem para dúvidas, o melhor para os países emergentes. Isto deve-se também ao facto de se poder observar como mais factível uma economia americana com maior inflação, não esquecendo que o desemprego é de apenas 4.8 por cento, e os aumentos do deficit e da dívida pública. O valor internacional do dólar dependerá em parte de um provável braço de ferro entre a Reserva Federal que quererá subir mais rapidamente as taxas e o presidente Trump que quer um dólar fraco. Pelo que se continuará a assistir a uma situação complexa, mas que não é de alto risco para os países emergentes. Assim se observa, por exemplo, a colocação bem sucedida de títulos da dívida pública, na solidez dos preços da soja e da tendência de recuperação do Brasil, incluindo a valorização do real. O discurso do presidente Donald Trump no Congresso a 28 de Fevereiro de 2017, impressionou favoravelmente a quem o questionava pelo seu tom moderado e conciliador, mas desencantou os que esperavam detalhes sobre a anunciada reforma impositiva ou o grande plano de obras públicas que iria pôr em prática. Foi num tom muito contido e distinto do primeiro discurso no Congresso, pronunciado a 20 de Janeiro de 2017. Inclusivamente apelou à unidade política e assinalou a urgência de substituir com uma lei, o “Obamacare”, que tem grandes fissuras, e para os seus opositores foi gratificante ver a mudança de atitude, ainda que se mantenham preventivamente atentos, de que rapidamente aparecerá o Donald Trump de sempre. Os seus seguidores aplaudiram-no como um estadista. O poder financeiro e económico do país que tinha grandes expectativas quanto à prometida orientação económica sentiram-se defraudados pela falta de anúncio de medidas reais. Foi um discurso civilizado, tranquilo, sem os usuais ataques brutais. Poderá mesmo existir a possibilidade de uma pequena mudança em algumas das matérias mais sensíveis, tendo sugerido que poderia existir um novo regime legal para os indocumentados, ao invés de os deportar a todos do país, sem vacilar. Mas há que esperar para saber se é apenas uma simples artimanha ou uma verdadeira mudança. A nova atitude não é ainda o bastante para que seus opositores acreditem, em especial os milhões de pessoas que se sentem ameaçadas pelas políticas que se cansou de anunciar, durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas como inquilino da Casa Branca. Se analisarmos bem, o conteúdo do discurso foi o mesmo de sempre, revestido de cuidadas expressões para não soar como mais uma intimidação. Todavia é certo que houve uma aberta condenação do anti-semitismo e um chamado à unidade política. Este inesperado ramo de oliveira alcançou também os aliados e organizações que antes tinham sido colocados no pelourinho. Acerca da NATO assegurou que esse pacto militar, que foi forjado com a guerra mundial e através da Guerra Fria, derrotou o comunismo, aclarando que os parceiros deste selecto grupo deveriam cumprir com as suas obrigações financeiras, quase abrindo um conflito diplomático com a Alemanha, ao exigir os pagamentos que esta deve aos Estados Unidos, pelas obrigações no quadro da Organização. Todavia, declarou que os Estados Unidos estavam dispostos a liderar novamente a Organização. Mas existiu uma ideia digna de realçar, que é facto de não querer liderar o mundo livre, como afirmavam os anteriores presidentes, pois afirmou que o seu trabalho, era apenas o de representar os Estados Unidos, o que ajudou a acalmar os ânimos nas fileiras republicanas, alarmadas pelo caótico movimento da Casa Branca, durante os primeiros quarenta dias de mandato. A impressão que deixou nesse discurso é que Donald Trump amadureceu, e que a sua intervenção no Congresso, foi mais presidencial e menos recheada de manhas de um político difícil de classificar, como se a intenção fosse atrair para a sua órbita os sectores mais moderados. O discurso foi mais sóbrio, até surpreender, mas não houve revelações relevantes nem sequer insinuou intenções sobre o que realmente pensa fazer no futuro. Tal como disse um senador democrata, chegou-se a um ponto, onde o discurso presidencial é um êxito, porque quem o pronuncia nada disse de embaraçoso ou abertamente ofensivo. O presidente Trump, em matéria de política externa não mencionou a China ou a Rússia, ainda que tenha ratificado as metas proteccionistas prometidas na sua campanha eleitoral.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesMeter a colher [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre marido e mulher não se mete a colher, como se dizia antigamente. Agora mete-se – e somos incentivados a meter. Não é porque as pessoas envolvidas não sejam capazes de identificar a violência doméstica que as aflige. Formalmente toda a gente consegue definir violência doméstica. O que acontece é que há muitos factores que podem influenciar o processo de denúncia. Por exemplo, na Rússia, a violência doméstica nem é um conceito per se, é simplesmente encarado com normalidade e inevitabilidade. Ao ponto do estado não criminalizar (se isolada) uma acção abusiva. Há, por isso, muitas definições diferentes (ou ausência de definições) para relacionamentos abusivos/violência doméstica, seja na prescrição legal, como nas nossas concepções mundanas de como um relacionamento funciona. Na definição mais pura e singela do amor não fará sentido enquadrá-lo nestes moldes da violência. Contudo, esta ligação existe, como se a polimorfia do amor fosse capaz de justificar um chapa na cara ou um comentário ofensivo do nosso mais que tudo. Há pouco tempo surgiu um hashtag (lá estou eu a referir-me a modernices) onde se tentou criar alguma sensibilização ao tema. É um relacionamento abusivo quando (#erelacionamentoabusivoquando) há desconsideração pessoal de qualquer forma e feitio. Isto porque normalmente considera-se a violência física como a única forma de manifestação de violência na relação. O senso comum percebe um relacionamento abusivo somente quando vê nódoas negras no corpo – mas essa é só a ponta do iceberg. Quando tentamos perceber o limiar de abuso nas palavras, percebemos que temos uma tendência natural para desculparmos os outros pelos comentários menos simpáticos. ‘Ele estava mal disposto – tinha tido um mau dia’. Justifica-se circunstancialmente as palavras que nos magoam porque é muito mais fácil assim fazê-lo. De que outra forma justificamos que a pessoa que nós amamos trata-nos mal? Estes são recursos/ defesas que criamos para dar sentido a uma história que não deveria fazer sentido. Se um estranho chegar ao pé de mim e me der um estalo – eu percebo que foi abuso. Se foi o meu namorado, é legítimo eu sentir-me confusa sobre a absurdidade da situação. A denúncia é sempre difícil – já para não falar do medo de represálias que as vítimas e as testemunhas possam sentir se o fizerem. Viram o que aconteceu numa terrinha em Portugal esta semana? Quatro pessoas foram mortas porque não quiseram testemunhar a favor de um homem que era violento com a sua ex-mulher. Aliás, em situações mais dramáticas, os abusos podem acabar em crimes, ditos, passionais, e essa denominação incomoda-me. Fazer mal a alguém não deverá ser posto no mesmo saco etimológico da paixão. Não se mata a mulher e os filhos porque um homem viu-se cheio de paixão. Parem de o chamar assim – porque a paixão não tem nada a ver com nada. É claro que podemos focarmo-nos na psicopatologia que leva estes actos a vias de facto, mas não consigo deixar de pensar que vivemos num mundo que não quer constatar um facto – a violência contra as mulheres está, de forma muito perversa, enraizada nas nossas expectativas societais. Estes cenários de violência são urgentes de serem tratados e percebidos, mas ao invés, são banalizados. Querem uns exemplos? Uma história que me incomodou especialmente foi de uma rapariga de 17 anos que foi assassinada pelo ex-namorado, depois de já ter tido feito queixa dele à polícia – ao que a polícia passou-lhe uma multa por julgarem que ela estava a desperdiçar o tempo deles com uma queixa que não lhes fazia sentido. Portanto, não só a polícia descredibilizou a preocupação da rapariga, como ela ainda teve que pagar uma multa, e mais tarde pagou com a vida. Querem mais? Uma mulher, mãe de três filhos decide pedir o divórcio porque já não aguenta o relacionamento com marido e ele mata-a e aos miúdos – e este marido nunca antes tinha mostrado um comportamento fisicamente violento e por isso esta mulher nunca teve o apoio formal (nem a protecção) para poder pedir o divórcio sem este desfecho. Podemos pensar que o problema está na cabeça destes homens, por fazerem estes disparates, mas essa é uma explicação demasiado simplista. Não, o problema não está na cabeça só de alguns homens. Há uma cultura de desculpabilização que tende a ignorar – sistematicamente – tentativas de denúncia daquilo que será a violência de género. As estatísticas confirmam que só por seres mulher, sofrerás algum tipo de violência de género durante a tua vida. Não sou o tipo de pessoa que aceita que o género possa determinar o que quer que seja (leram o artigo da semana passada?). Por isso precisamos das mensagens de ânimo, dos hashtags, do apoio formal às sobreviventes de violência doméstica, de conversas, de abertura ao tema e de consciencialização. Precisamos de condições para que, mais do que denunciar a violência, possamos não correr riscos, só por sermos mulheres.
Rui Flores VozesDijsselbloem não fez Erasmus [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s declarações infelizes sobre os países do sul da Europa proferidas pelo presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, a poucos dias da cimeira de Roma, mostram que as divisões no interior da União Europeia (UE) continuam tão vivas, agora, 60 anos após a assinatura dos Tratados de Roma, como quando a Comunidade Económica Europeia foi estabelecida. Os líderes de 27 dos 28 países da União Europeia – o Reino Unido já não faz parte da festa – acorreram a Roma, no sábado passado, para assinalar as virtudes de um projecto que levou a paz e a prosperidade à Europa por um período e a níveis nunca antes vistos. Ainda assim, diferenças, desconfianças e preconceitos continuam a marcar os povos da Europa. No caso em concreto, em que Dijsselbloem acusou os povos dos países que têm recebido apoio internacional às suas depauperadas economias, de não fazerem um esforço sério de consolidação das suas finanças, e de gastarem parte desse apoio internacional em bebida e mulheres, expressa uma visão comum entre alguns povos da Europa. Se se quiser, é como se Dijsselbloem tivesse verbalizado o que muitos europeus do norte pensam. Há uma divisão profundamente marcada entre os povos do norte da Europa e os do sul da Europa. Essa divisão norte-sul afecta muito o modo de nos vermos uns aos outros. E mesmo quando um político experiente dá uma entrevista acaba por saltar à vista. É como a parte de cima do leite-creme queimado, tão apreciado no sul da Europa. Estala com facilidade. A UE representa hoje para 27 países europeus uma conjugação de interesses, baseada em objectivos comuns, de valores idênticos e princípios semelhantes. Cooperação pacífica, respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, solidariedade são a espinha dorsal desta união. São estes valores – a par da economia de mercado – que fizeram da União o que ela é hoje: o maior mercado do mundo, onde pessoas, bens, serviços e capitais circulam livremente. Um espaço de liberdade, onde o respeito pelos direitos humanos, solidariedade e igualdade, são, não obstante algumas dificuldades de percurso, uma realidade. Apesar de tudo aquilo que a UE e os povos europeus alcançaram – e, convém sempre sublinhá-lo, não foi pouco – as diferenças culturais são ainda hoje profundas. É um facto que o programa Erasmus e a sua nova versão, o Erasmus+, tem contribuído para um certo esbatimento das diferenças. É talvez o programa da UE que mais tem feito para aproximar os diversos povos europeus. O intercâmbio de alunos por toda a Europa evidenciou o que temos em comum. Mas as divergências persistem. Sobretudo em tempos, exponenciados por actos eleitorais, em que os povos têm de escolher entre diferentes opções. A opção por um ou outro caminho leva a que as pessoas mostrem a sua verdadeira natureza – veja-se o que acontece com o discurso fácil dos populistas. É certo que no caso de Dijsselbloem a campanha eleitoral já passou e o seu partido foi um dos mais penalizados pelos eleitores holandeses. Também isso deveria tê-lo feito ver a importância da tolerância democrática. As diferenças culturais são, pois, muito difíceis de ultrapassar. Um chinês que vai estudar para os Estados Unidos, por exemplo, não deixa de ser culturalmente chinês, ainda que coma ocasionalmente no McDonald’s. Quando sai de casa para jantar vai mais frequentemente aos restaurantes chineses do que aos estabelecimentos de comida ocidental. Usa pauzinhos às refeições, vive em bairros predominantemente chineses. Algo semelhante acontece, dê-se mais um exemplo, com a comunidade portuguesa de Macau. Aqui, continue-se a generalização, uma vasta maioria de portugueses só vai a restaurantes portugueses; lê todos os dias os jornais em língua portuguesa; não perde o “jornal da Tarde” da RTPi; aplica no trabalho os valores que trouxe do outro lado do mundo e não os da comunidade de acolhimento. No caso da divisão norte-sul europeia, essas diferenças culturais têm ainda uma componente religiosa muito marcada. O norte europeu é protestante; o sul é católico. E a religião, como sabemos, imiscui-se em tudo. As diferenças não são, pois, meramente indicativas. São operativas. Formatam-nos. Nós construímos a nossa identidade por oposição aos outros. Eu sou aquilo que o outro, à minha frente, meu vizinho, não é. Os da minha tribo não fazem aquilo que os das outras fazem. Depois de a festa dos 60 anos de Roma, em que os líderes europeus voltaram a afirmar o seu empenho na unidade, o esforço principal que falta fazer para o avanço da Europa, agora formalmente a várias velocidades, é na “unidade” de que falava Donald Tusk. Essa unidade tem um nome: solidariedade. Uma solidariedade que passa por tratar as diferenças culturais não como um factor de afastamento mas de diversidade.
Fa Seong A Canhota VozesOs antigos inacessíveis [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]arece-me que existe uma tendência para as coisas antigas desaparecerem devagar, sem deixar qualquer vestígio, ou apenas poucos indícios. Se olharmos para Macau, temos um caso exemplar dessa realidade. A sua evolução e desenvolvimento nas últimas décadas fizeram com que este território se tenha virado para outra fase. Aquilo que os idosos e os que vivem em Macau há mais tempo viveram e observaram já será totalmente diferente do que as novas gerações pensam e vivenciam. Essa grande mudança não permite aos que nasceram nos anos 80 e 90 observar a terra ligada ao sector da pesca que Macau foi, pois não sabem onde trabalharam os pescadores e os construtores de barcos. Não compreendem o início da indústria, nem o seu fim. Num ambiente onde já existem casinos, hotéis e restaurantes, só podemos ter acesso a estas informações através dos museus, livros e fotografias. Será que os jovens sabem que Coloane não se chamava, na verdade, Coloane? E que no espaço da Ponte Cais de Coloane se fabricava sal, o que levou ao verdadeiro nome de Coloane, “Baía do Sal”? Eu própria não sabia até participar numa visita a Coloane. Penso que os jovens, na sua maioria, também não sabem, e nem querem saber, porque prestam mais atenção ao último modelo de smartphone à venda no mercado, ou quais os filmes disponíveis no cinema. É pena quando vemos que muitas escolas em Macau têm poucos materiais sobre a história de Macau. Como a maioria usa livros publicados em Hong Kong ou no interior da China, os alunos de Macau apenas sabem que os portugueses chegaram a este território e que o começaram a administrar há muitos séculos, que se proibiu o comércio do ópio pelo comissário imperial Lin Zexu no final da dinastia Qing, ou conhecem as relações entre Sun Yat-Sen e Macau (momentos históricos mais importantes). Há algumas semanas li uma história de um velho carpinteiro de Macau, uma profissão também já em extinção por causa da mudança do ambiente económico. Ele disse: “antigamente sobreviver já era uma forma de vida para muitas pessoas”. A partir do momento em que um trabalho deixou de dar dinheiro, deixou-se algumas indústrias morrerem lentamente. Com o progresso da sociedade, há cada vez mais pessoas que se preocupam com o património, os bens históricos e as memórias. Muitos esperam não se arrepender de, um dia, as coisas antigas não poderem passar para as novas gerações. É este ponto de vista que temos de olhar quando falamos da questão dos estaleiros de Lai Chi Vun. O Governo decidiu demoli-los por questões de segurança, sem ter pensado em recorrer à tecnologia para a sua reparação ou levar a cabo algum tipo de planeamento. Alguns estaleiros estão nas mãos do Governo sem que se tenham feitos avanços nos últimos anos. Quem defende a preservação de Lai Chi Vun tem o mesmo pensamento: se os antepassados não conseguiram manter a história e revitalizar um sector, cabe-nos a nós, novas gerações, que temos mais capacidade financeira, fazê-lo. Temos de fazer o máximo para deixar este legado às futuras gerações, manter a história viva e não deixarmos apenas registos espalhados em pedaços de papéis e documentos.
Isabel Castro VozesAs sombras [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hegam de mansinho e fecham-se, bem fechados, como se as ruas lhes fizessem mal. A clausura que procuram não deve, nem pode, ser confundida com vontade de transmitir humildade. É o contrário. O isolamento que os rodeia tem características de redoma, uma redoma que julgam pintada a ouro, pintada com ouro, condicente com a sonância dos apelidos que acompanham o nome próprio, pelo que já foram e agora são. Chegam com pompa e circunstância, dentro das circunstâncias possíveis da pompa de quem já não sabe – talvez nunca tenham sabido – onde está. Comportam-se como príncipes de um reino que nunca lhes pertenceu, seres que não se confundem com a plebe, eles é que tiveram importância, sem os seus actos e omissões nada seria como é. O passado assalta-nos porque eles são o passado. Chegam com silêncios. Fecham-se em copas e espadas, ases na fuga aos microfones, para os quais não são capazes de olhar sem uma certa altivez a roçar o desprezo, ou com um certo desprezo que gostaria de ser altivo, mas que não consegue sê-lo por falta manifesta de pedigree. Mas eles estão aí. Vêm em excursão, não obstante detestarem excursionistas e autocarros, e paragens nas estações de serviço para abastecer e desabastecer. Andam aí não se sabe bem onde, nem a fazer o quê. Reúnem-se e discutem o futuro dos outros, como se pudessem decidir o futuro dos outros, trocam elogios comedidos e beijinhos contidos, gostam imenso de se verem uns aos outros enquanto se vêem uns aos outros, depois é melhor nem falarmos nisso. O resto? O resto nem paisagem consegue ser. Não quero ficar no passado, neste passado de palácios e adjuntos e transferências e tricas e o que não se disse e o que não se fez. O passado interessa-me numa perspectiva histórica, sociológica e política, mas nada me diz como forma de vida, de pensar e de estar. Há uma certa Macau que, do nada, aparece para dizer que ela é que era, porque a Macau de hoje não existe. Eles desconhecem-na, propositadamente, abafam-na com o cheiro a naftalina que imagino que sempre tiveram, pelo que me dizem os livros de história que fui lendo. Essa Macau do passado que, de vez em quando, nos assalta, ignora a realidade, é incapaz de ver a mudança, não tem capacidade de perceber que os anos têm 365 dias e que passam uns atrás dos outros, os dias e os anos, e que com eles tudo muda. Houve gente que morreu desde que foram embora. Houve gente a nascer desde que foram embora. Há gente a chegar todos os dias, a comunidade já não é a mesma, é outra, tem outras preocupações que não os desentendimentos de há duas décadas, tem os problemas de hoje para gerir e não tem culpa – nem quer ter – do passado ao qual pertence apenas por herança nacional. Esta mudança não se põe em bicos de pés. Não tem por que o fazer. Por não se pôr em pontas, passa despercebida neste bailado lento, com um ligeiro cheiro a mofo, que se dança quando a população provisoriamente se altera, por via das visitas que se sentam, lado a lado, em confortáveis poltronas, debaixo do ar condicionado que lhes seca o suor e desfaz a maquilhagem. Ainda assim, apesar de terem os pés completamente colados ao chão, os que cá estão, os que ficaram e os que entretanto chegaram, vivem e têm direito a viver sem sombras. Sem terem de levar, de modo excessivo, com as balas que se atiram lá de longe, de há 20 ou 30 anos. Chegou a altura de o retrato ser diferente, porque a fotografia de família não representa ninguém.
Hoje Macau VozesAs propinas do Senhor Reitor Manuel Gouveia Pai [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Escola Portuguesa de Macau (EPM) impõe um valor de propina sem qualquer fundamentação e contextualização que permita aos encarregados de educação alcançarem a necessidade, legalidade e adequação do mesmo. Ora, Considerando que: 1.º A EPM está inserida no sistema educativo de Macau como instituição educativa particular sem fins lucrativos, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 38/93/M, de 26 de Julho; 2.º Nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 89/B/98, de 9 de Abril – artigo 3º/1 a) dos Estatutos da Fundação EPM – foi constituído um fundo financeiro, no valor mínimo de 25 milhões de patacas, constituído pelo Estado português. 3.º “Para além das contribuições para o património inicial da Fundação estabelecidas no número anterior, o Estado, através do Ministério da Educação, e a Fundação Oriente obrigam-se a garantir, nas percentagens previstas na alínea a) do número anterior, os meios financeiros necessários ao funcionamento anual da Escola Portuguesa de Macau, transferindo até 31 de Agosto de cada ano os fundos financeiros previstos no orçamento anual da Escola que tenha sido proposto pela Direcção da Escola e aprovado pelo Conselho de Administração da Fundação.” 4.º Os alunos cidadãos da RAEM e com nacionalidade portuguesa têm um duplo direito à escolaridade obrigatória, universal e gratuita, nos termos da legislação da RAEM e da República Portuguesa (Cf artigo 21.º da Lei n.º 9/2006 da RAEM e pelas disposições conjugadas pela Constituição e leis da República Portuguesa: CRP, artigo 74.º, n.os 1 e 2, a) e b), Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, Lei n.º 85/2009[1], de 27 de Agosto, Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de Janeiro e Decreto-Lei n.º 176/2012, de 2 de Agosto. 5.º Conforme resulta do ponto 4.º, a Escola Portuguesa de Macau recebe múltiplos subsídios do Governo da RAEM, através da DSEJ e da Fundação Macau, designadamente os valores relativos a regime do subsídio de escolaridade gratuita, decorrente da Lei n.º 9/2006 e Regulamento Administrativo n.º 19/2006 e 9/2013. 6.º A EPM vive exclusivamente de financiamento público e tem cobrado propinas aos encarregados de educação dos alunos matriculados, sem que tenha fundamentado a necessidade das mesmas, comunicando todos os elementos e opções que demonstram essa necessidade. 7.º Como tal é devedora de “Accountability”[2], “Answerability” e “Responsiveness”[3], em respeito pelos “stakeholders”, que postula que o acto que determinou a cobrança das propinas deve ser comunicado previamente aos destinatários da mesma, explicitando todas as opções gestionárias geradoras de despesa extra, não cobertas pelos subsídios públicos recebidos do Governo da República Portuguesa, bem como de todos os subsídios e financiamento público recebidos do Governo da RAEM, seja pela DSEJ, seja pela Fundação Macau ou pelo Fundo de Desenvolvimento Educativo. 8.º A EPM está obrigada, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 63/93/M, à prestação de contas através do Plano de Contabilidade das Instituições Educativas Particulares Sem Fins Lucrativos, deve publicitá-lo de forma transparente e voluntária à comunidade escolar, juntamente com todos os instrumentos de gestão em que baseia a sua actividade – plano anual de actividades, relatório anual de actividades, balanço social, balanço e contas de exercício. Em face do que antecede, e não constando nem do portal da EPM, nem tendo sido notificado enquanto encarregado de educação da deliberação do Conselho de Administração da Fundação Escola Portuguesa de Macau, nem de qualquer acto ou deliberação da Direcção da Escola Portuguesa de Macau, decidi RECLAMAR da nota de liquidação das propinas para o ano lectivo de 2016/2017, requerendo que sejam prestadas todas as informações adequadas, conforme supra explicitado, à demonstração da legalidade[4], da necessidade e adequação do montante definido. A comunidade escolar é hoje, volvidos quase 18 anos da transferência de Administração, de qualidade muito diferente da que se pautou durante a “era colonial”: Somos hoje cidadãos mais conscientes dos nossos direitos e deveres cívicos, e não nos devemos conformar com uma eventual gestão autofágica de um serviço eminentemente de interesse e com fundos públicos, como se de uma mercearia ou de um feudo corporativo se tratasse. “A Pátria Honrai que a Pátria vos contempla” deve ser a divisa da EPM, até porque hoje não estamos só a ser contemplados pela pátria da nossa nacionalidade, mas também pelos concidadãos e pela pátria onde se integra a Região Administrativa Especial de Macau, onde nos sentimos bem integrados, queridos e respeitados. Devem em conformidade a EPM e a Fundação EPM: Dar voluntariamente pública fé publicitando[5] os montantes que recebem e como os administram à comunidade escolar (seus “stakeholders” preferenciais). Assegurar um ensino obrigatório gratuito, gerindo bem, segundo os princípios da eficácia, eficiência e economia os recursos públicos de que é beneficiária. [1] A Lei 85/2009, de 27 de agosto, veio estabelecer o alargamento da idade de cumprimento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos. [2] Cf Merriam-Webster’s Collegiate Dictionary (1996:08): “Accountability: the quality or state of being accountable; an obligation or willingness to accept responsibility or to account for one’s actions”. Sublinhamos neste conceito as ideias de responsabilidade, de responsabilização e de obrigação de prestação de contas dos actos praticados que o termo traduz. A accountability é uma das dimensões fundamentais da boa-governança (CANOTILHO, 2007:17). E, como tal, a sua importância releva-se na sua existência, fundamentalmente para a preservação do processo democrático, combate à corrupção e promoção da transparência na vida pública (NOGUEIRA DA COSTA, 2014:281). [3] A answerability traduz a ideia de prestação de contas que a Administração deve fazer na gestão da ‘coisa pública’ (NOGUEIRA DA COSTA, 2014:278). Podemos definir responsiveness como o dever que a Administração tem de procurar satisfazer as necessidades públicas (NOGUEIRA DA COSTA, 2014:278). (DUBNICK & ROMZECH, 1987:227) sustentam que a accountability, enquanto conceito, reflecte valores democráticos, sociais, morais e de justiça, valores estes garantidores do fim público que a Administração prossegue ao atender expectativas legítimas das populações. [4] De acordo com o disposto no n.º1, do artigo 32.º, do Dec.-Lei n.º 38/93/M, de 26 de Julho, o funcionamento das instituições educativas particulares obedece às normas legais e regulamentares aplicáveis, bem como às directivas da DSEJ. “Lei de Bases do Sistema Educativo Não Superior”, as escolas integradas no sistema da escolaridade gratuita não devem cobrar, aos alunos que frequentam a escolaridade gratuita, propinas, despesas de serviços complementares (outras despesas). [5] Plano de contabilidade (balanço, demonstração dos resultados) e demais instrumentos de gestão.
Leocardo VozesFake & Fake Pedir a Macau casinos sem fumo é o mesmo que pedir a uma gelataria que abandone o uso da lactose. [dropcap style=’circle’]1[/dropcap] Dissipou-se o fumo à volta da famigerada proibição total do tabagismo nos casinos de Macau – pasme-se. Não que eu seja a favor do fumo em locais fechados, à revelia dos direitos dos não-fumadores, mas pedir a Macau casinos sem fumo é o mesmo que pedir a uma gelataria que abandone o uso da lactose. Tudo bem, há convenções internacionais disto e daquilo a respeitar, e há que colocar a RAEM ombro a ombro com as jurisdições mais evoluídas e progressistas, mas convém não usar a mesma medida para coisas diferentes – para coisas que nem têm comparação! A equação é muito simples: 1) a economia de Macau depende quase inteiramente das receitas do jogo; 2) o mercado de jogadores é na esmagadora maioria oriundo do continente chinês; 3) os jogadores do continente chinês fumam desalmadamente (porque gostam). É somar 1+2+3 e temos “Não, obrigado: eu fumo”. É preciso ter em conta ainda que Macau é um caso único (até nisto) no mundo, e que não se aplica aqui o mesmo remédio para uma tosse diferente. Que se salvaguarde quem não estiver disposto a levar com o fumo dos outros, ou em alternativa criem, sei lá, casinos “verdes”? Só para não fumadores, para toda a família e onde tudo decorra dentro das regras da boa etiqueta? Isso é que eu duvido que se levantasse do chão. [dropcap style=’circle’]2[/dropcap] Fake news. Seria já a palavra da década, não fossem duas palavras. O director de uma publicação da compita manifestou um dia destes num editorial seu o desagrado pelas “fake news” em geral, e nomeadamente uma de muito mau gosto que andou a circular pelas redes sociais no último fim-de-semana, e que dava conta do falecimento do actor Rowan Atkinson (vulgo Mr. Bean) num acidente de viação. De facto é de lamentar que se espalhem estes rumores infundados que acabam sempre por colher de surpresa os mais desatentos. Ou será mesmo assim? Neste caso em particular, o “Mr. Bean” é um personagem querido do imaginário de todas as idades, e certamente que se lamentaria profundamente a sua morte. Por outro lado, não merecerá ele estima quanto baste para CONFIRMAR a veracidade da notícia, antes de desatar com RIPs, e a adiantar-lhe a missa de corpo presente? É só olhar para a notícia, procurar o nome do sujeito num motor de busca qualquer, e se os primeiros dez resultados não disserem que ele morreu, é porque ainda está vivinho da silva, a sofrer como todos nós. E peço desculpa se ofendi alguém com o meu tom, mas não creio que seja só a “lamentar” que se vão combater as tais “fake news”.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDesrespeito à autoridade [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] desrespeito à autoridade, ou “desprezo pela polícia” para seguir o jargão americano (contempt of cop), tem sido ultimamente um dos tópicos de discussão em Hong Kong, no seguimento da prisão de sete agentes condenados a prisão por assalto. Há quem ache que a polícia pode ser insultada durante o cumprimento do dever. A “Wikipedia” define o “desprezo pela polícia” nos seguintes termos: “Desprezo pela polícia é o termo usado nos Estados Unidos para descrever comportamentos que os agentes considerem ofensivos à sua autoridade…. Quando se discute esta questão associa-se muitas vezes a detenções arbitrárias e ilegais, que frequentemente ocorrem na sequência da expressão e do exercício de direitos garantidos pela Constituição dos Estados Unidos. A reacção dos agentes ao “desprezo pela polícia” aparece muitas vezes relacionada com más condutas policiais, como o uso de força excessiva ou mesmo violência policial, e não como uma resposta legítima para impor a Lei. As prisões motivadas por desrespeito à autoridade podem ter origem em certos tipos de comportamento “arrogante” que, segundo o agente em questão, põe a sua autoridade em causa. Na perspectiva destes agentes o “desprezo pela polícia” implica desrespeito e falta de deferência (desobediência a instruções, manifestação da vontade de participar do agente). Fugir à polícia também é considerado uma forma de desprezo pela autoridade. Estas situações podem ser potenciadas se estes comportamentos alegadamente desrespeitadores forem presenciados por outros agentes.” Mas o desrespeito à autoridade não está apenas previsto nos EUA, em Macau também é considerado na lei. Se repararmos nos artigos 129 (2) (h), 175, 176 e 178 do Código Penal, constataremos que uma ofensa a um agente da autoridade, que se encontre no exercício das suas funções, tem uma penalização 1,5 vezes superior ao normal. A legislação sobre os actos de desrespeito à autoridade pode dar mais protecção à polícia e vir a evitar que os agentes sejam insultados durante o cumprimento do dever. Como podemos ver pelas notícias, actualmente em Hong Kong as relações entre aqueles que exercem o direito de associação e assembleia e a polícia não são as melhores. E isto porque a força pode estar envolvida. Mas mesmo que essa força não se faça sentir, os comportamentos dos manifestantes envolvem habitualmente gritos e insultos à polícia. Estas atitudes podem despertar ressentimentos nas autoridades. Depois da Fish Ball Riot (Revolta das Bolinhas de Peixe), no ano passado, e da recente condenação de sete polícias, não é de admirar que estas questões sejam assunto de conversa em Hong Kong. Se o Governo de Hong Kong quiser manter este tipo de legislação as seguintes questões terão de ser consideradas. Em primeiro lugar, é importante que os residentes de Hong Kong saibam o que cabe exactamente no conceito de “Desrespeito pela Autoridade”. Que tipo de acções podem ser consideradas insultuosas para agentes no exercício das suas funções? Por exemplo, utilizar uma linguagem vulgar pode ser considerado desrespeito pela autoridade? Gritar com o agente pode significar desprezo pela polícia? É preciso não esquecer que, de acordo com as normas da Força Policial de Hong Kong, mesmo que um agente esteja fora de serviço é sempre considerado um agente e terá de ser tratado como tal. Se usar uma linguagem vulgar e gritar com um agente pode significar desprezo pela polícia, então será sempre necessário dirigirmo-nos às autoridades de forma educada. Em segundo lugar, se a legislação sobre esta matéria for aprovada, é preciso saber a que força disciplinar caberá a responsabilidade da sua aplicação. A resposta é: à Força Policial de Hong Kong. Se alguém se dirigir a um polícia de forma rude, este pode prende-lo por desrespeito à autoridade. Nesse caso que atitude deve a pessoa adoptar? Pode manter a atitude insultuosa, pois já que quebrou a lei uma vez, pode quebrar meia dúzia que vai dar ao mesmo. Saliente-se que, se a pessoa for presa por insultar um polícia, pode oferecer mais resistência. A legislação em casos de desrespeito à autoridade pode colocar numa posição injusta quer o agente quer o cidadão. Podem sair ambos a perder. Em terceiro lugar é preciso perguntar porque é que esta legislação só contempla a polícia. E os outros funcionários públicos? É forçoso que nos lembremos que muitos funcionários do governo desempenham funções de atendimento ao público. Se a polícia precisa de protecção, porque é que os outros funcionários públicos não beneficiam de igual apoio? Parece ser um pouco injusto. A ideia de penalizar o desrespeito à autoridade é boa. Dará mais protecção à polícia, sobretudo se algumas pessoas se portarem de forma irracional. Este tipo de legislação pode, em certa medida, travar os comportamentos desajustados. Mas como actualmente em Hong Kong os conflitos entre os residentes a polícia tendem a aumentar, não vai ser tarefa fácil. Se desta vez o projecto de lei for rejeitado pelo Conselho Legislativo, não parece que algum dia venha a passar. Neste sentido, é bom que o Governo de Hong Kong pese todas estas questões cuidadosamente antes de tomar qualquer decisão. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Tânia dos Santos Sexanálise VozesOs pronomes importam-se [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque é que os pronomes haveriam de se importar? Os pronomes, com a sua capacidade limitada de reflexão, ainda assim, importam-se com o género das pessoas. Na língua inglesa os pronomes estão em especial destaque porque é das poucas ocasiões em que reflectimos sobre a identidade de género da pessoa com quem comunicamos. Pois ora bem, os pronomes importam porque, se usados incorrectamente, podem ser entendidos como ofensivos. É claro que ninguém se chateia com a criatura que está a aprender uma língua nova e troca os géneros de tudo e todos. Mas para os proficientes que comunicam de forma adequada com o mundo, confundir um ele com uma ela, não é muito simpático. De uma forma silenciosa reforçam-se pré-concepções de sexo e de género, reforçam-se exigências que todos nós, de uma forma ou de outra, estamos constantemente a prescrever. Começa logo desde muito cedo, com as roupas cor-de-rosa para as meninas e azul para os rapazes, ou com as histórias que lemos aos nossos filhos antes de dormir – estive no outro dia a ver um exercício onde mostravam a percentagem de livros infantis onde há meninas-guerreiras-fortes-heroínas: sem grandes surpresas, a quantidade era pequeníssima. As mulheres têm que vestir certas roupas, têm que entrar nas casas de banho com o bonequinho de saias, têm de uma data de coisas – tal como os rapazes. O que dificulta a criação de um espaço intermédio, que não seja ‘carne, nem peixe’, vá. As pessoas que não se identificam com um género ou outro (não quer dizer necessariamente que queiram ser do género oposto, podem simplesmente não se identificar com nenhum dos dois) vêm-se despojados de um apoio formal, e de um apoio linguístico. Como vivemos num mundo ainda mais consciente da identidade trans e do espectro (flexível) de género, os pronomes começam a importar(-se) cada vez mais. E para as cabeças que julgam que a identidade trans é uma modernice, as provas não são poucas de que sempre existiu, desde o início dos tempos. Parece que estou a bater no ceguinho com estas coisas de género, sempre a repetir-me a mim própria, mas não me canso: o género não é determinado biologicamente. Não vou apontar o dedo às pessoas que se confundem com as identidades de género, porque até os mais conscientes e sensíveis ao tópico podem enganar-se (os famosos viéses, já falei disso?). Contudo, temos que saber lidar com o engano e temos que aprender a escutar e a observar as necessidades identitárias dos outros. Se tens dúvidas, pergunta. Se te enganas, pedes desculpa e pedes que te expliquem. Simples. Difícil é viver num mundo que reconhece pouco esta diversidade. A complexificação para fora do binarismo sempre existiu, e foi reprimida durante demasiado tempo. Tabu? Sermos nós próprios pode algum dia ser considerado tabu? Infelizmente, os pronomes (ou o género dos vocábulos) não têm acompanhado a nossa consciência libertária de que a biologia não explica tudo, muito menos o sexo. Por isso é que há movimentos que apoiam e divulgam formas de como lidar com os pronomes (esses diabinhos linguísticos). Há propostas para formas de escrita, para uma linguagem mais inclusiva – certamente já viram Car@s, Car*s, Carxs ou Cares. Há quem identifique à cabeça os pronomes pelos quais desejam ser tratados, seja feminino, masculino ou neutro. Em português ainda não temos um pronome oficialmente neutro, mas em inglês há tentativas de implementar o pronome they/them na forma singular para quem não se identifique com nenhuma das formas disponíveis – feminina ou masculina. A Suécia já foi um passo à frente e oficializou a existência do pronome pessoal neutro – usando o ‘e’. Agora disponível na nova edição do dicionário de Sueco, é correcto (e incentivado) usar o género neutro quando nos dirigimos a quem não se identifica com este mundo aborrecido do binarismo. Os pronomes importam-se, as pessoas que sentem os desafios da diferença diariamente, ainda mais.
Sérgio de Almeida Correia VozesO ardina viajou [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u estava hospedado no central Metrópole. Já nos conhecíamos, mas naquele dia quente e húmido de Junho de 1993, ele veio buscar-me ao hotel para irmos jantar, no belíssimo Saab 900 turbo, azul escuro, com os estofos de cor creme, que me ficaria na retina e viria a ser o meu carro nos anos seguintes. Tratava-se de acertar os termos da minha contratação, qual mini-estrela do universo da advocacia lisboeta, com experiência anterior da Administração de Macau, referências de boa vizinhança nos anos em que cá residira, quando era apanhado logo pela manhã à porta do elevador com a sua mulher a dizer-me que a música era boa. E eu envergonhadíssimo pelo volume de som que saía das sinfónicas ou das vozes, então de Brel, Ferré e Brassens, que tomava conta do patamar de acesso aos elevadores, ali na Rodrigo Rodrigues. Sempre impecável na simpatia e na afabilidade do trato, acertámos o pouco que havia, verbalmente, como é timbre entre homens de bem, e passados dois meses eu desembarcava de novo em Macau para me atirar de corpo e alma ao escritório que nessa época ficava no edifício da Nam Kwong, na Almeida Ribeiro, onde éramos vizinhos do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês. Macau dera o salto da pequena vilória colonial da era pré-Almeidista, com pretensões a cidade, para a metrópole consolidada do final do século XX que crescera fora do espaço que lhe estava destinado, espremida entre a zona de aterros do porto exterior, mais a dos novos aterros e os que haveriam de vir a sê-lo mais alguns anos volvidos. Nesse tempo, a Assembleia Legislativa (AL) era uma máquina de produção legislativa, atenta, rigorosa e eficiente que causava problemas à inércia governativa, aos amanuenses da Praia Grande e gelava os paninhos quentes com que alguns queriam tratar dos assuntos que interessavam a Macau e aos seus cidadãos. Aqui demandavam os melhores e mais pragmáticos homens do direito. Não havia tempo a perder, nem lugar para protagonismos. Era tempo de combate. Era preciso tomar conta das acções em curso, preparar novas petições, analisar contratos, acompanhar as questões do aeroporto e da AL, ler os pareceres, formular uma opinião sobre os caminhos a seguir. E depois começaram as escrituras e impunha-se tomar conta daquilo tudo. Não me perdi. Com o apoio de uma querida amiga, com o beneplácito do Rui, fui tratando de desempenhar as minhas tarefas com a competência e o brio de quem, acabado de chegar depois de um interregno de três anos, vinha disposto ao trabalho no escritório do parceiro contratante para que ele se pudesse dedicar por inteiro às questões da transição. Anos antes, depois de uma reunião no Palácio do Governo, onde também funcionava a AL, discutíramos as primeiras questões do bilinguismo e as perspectivas do Prof. Heuser (Heidelberg), e quando em Novembro de 1989 me predispusera a regressar à pátria, ele teve a gentileza de nos convidar – à saudosa Lurdes, ao meu amigo Pedro Horta e Costa e a mim, para almoçarmos na Galera, em jeito de despedida. Nesse primeiro interregno da minha vida macaense continuei a contactar com o Rui, com o Frederico e o com o Francisco, prestando alguns serviços avulsos para uma pequena sociedade que tinham em Portugal. Foi pouco no volume e no valor, muito na solidariedade e no apoio a quem queria ingressar, sozinho, no complicado mundo da advocacia lisboeta, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas. Creio que nunca lhes agradeci devidamente o que então por mim fizeram. O regresso em 1993 foi, pois, mais fácil. Todas as questões se resolviam com uma aparente facilidade graças às referências que o Rui possuía e ao extenso conhecimento que tinha de leis, regulamentos, fontes e tudo o mais que era necessário num dia-a-dia onde não nos podíamos dar ao luxo de perder demasiado tempo com rodriguinhos. Havia o trabalho na AL, os actos notariais, os tribunais, o acompanhamento da imprensa, os contratos do aeroporto, as tertúlias e os tempos de descanso, que nisso o Rui tratava os trabalhadores como príncipes. Ninguém se queixava e ainda havia a sua eterna boa disposição. O pior era lá fora, na selva, onde o tráfico de influências, as negociatas, o compadrio, o clientelismo, os generais, os coronéis, os seus avençados e as seitas campeavam. Sabendo que o mundo não iria terminar no dia seguinte, e que a 1999 se seguiria 2000, a tudo isso o Rui resistiu. Com a maior das facilidades e sorrindo com desdém aos merceeiros que se deixavam vender por pataca e meia e uma quota num terreno. Depois, quando foi necessário assegurar informação credível e transparente lá surgiu o Futuro de Macau. Cumpriu a sua missão como seriedade. Outra coisa não seria de esperar. Preocupado como estava com esse mesmo futuro, o Rui não se poupou a esforços. Eram leis e relatórios, múltiplas reuniões, mais o Conselho Superior de Justiça e até, por pouco tempo, a presença no Conselho Superior de Advocacia. Durou pouco a sua presença em tal órgão, de onde se demitiu. Fazer de corpo presente não era com ele. Hoje, alguns do que lamentam o seu trágico e prematuro fim foram os mesmos que ao melhor jeito estalinista eliminaram as suas referências na AAM. Como se ele não tivesse sido um dos primeiros, como se não tivesse, também ali, dado o seu melhor e não tivesse sido fundamental para que a AAM tivesse adquirido o estatuto que teve e, entretanto, tem vindo a perder. O Rui nunca ligou a essa desfeita que lhe fizeram. Eu protestei, sem sucesso, com os vários pastores que por lá passaram, mas estes nunca me deram resposta, e aquele rebanho seguiu pastando para onde o mandavam. Por isso, hoje, os tribunais estão como estão e o português assume cabisbaixo, não fora o esforço de alguns magistrados na sua preservação, o estatuto de língua morta perante a horda de ruminantes que dele tomou conta. Chorai, pois, que lenços não faltarão e sempre sobrarão as mangas das camisas quando aqueles forem levados pela corrente. O agravo não ficará com quem já partiu. Como director dos SAFP deu o pontapé de saída para a reforma da administração, para dotar Macau de quadros capazes, competentes e bilingues. Foi acima de tudo um homem preocupado com os problemas da localização e autonomização jurídicas de Macau. Para o Rui, seria impensável deixar um sistema à mercê do que viesse de Cantão ou Fuquien, ou sujeito aos humores de um qualquer serventuário do poder ou do partido. Macau e as suas gentes, de qualquer origem ou etnia, e a dignidade de Portugal e dos portugueses que aqui vivem e trabalham deviam ser os únicos referentes, a marca indelével dos séculos e dos que aqui nos precederam entrando e saindo de cabeça erguida. A revisão de 1990 do Estatuto Orgânico, a lei de imprensa, toda a legislação penal avulsa, dos animais às associações criminosas, a defesa intransigente dos direitos e garantias dos cidadãos de Macau, que se dúvidas houvesse ficou plasmada no relatório do financiamento da Fundação Oriente e, pouco depois, em 2000, quando nos estúdios da TDM sugeriu a devolução do dinheiro da Fundação Jorge Álvares à RAEM como única saída decente para o esbulho feito às gentes de Macau. Da pouca vergonha do Instituto Internacional de Macau e do caminho seguido pela Escola Portuguesa é escusado falar agora. Também a Fundação D. Belchior Carneiro lhe deve hoje o belíssimo lar-residência de Oeiras, depois dele, do João Frazão e de eu próprio desbloquearmos o imbróglio do terreno que havia sido impingido aos irmãos da Santa Casa pelo belga, em leito de cheia e com o “aval”, como sempre, da Administração de Macau. É bom recordar tudo isto agora que o último figurante da administração portuguesa, o reservista ao serviço da EDP, aqui desembarcou, iniciando nova romaria para rever a sua pandilha local a pretexto da Escola Portuguesa. Já se adivinha, de novo, o cheiro a barbecue. Enfim, que hei-de eu dizer nesta hora triste em que vejo partir um amigo que me acompanhou ao logo de trinta anos, que me ajudou na vida e na carreira, que contribuiu com as suas ideias e achegas para o meu sucesso académico e que me abriu sempre as portas de sua casa como se fosse a minha. O legado de um homem cujo sentido da honra e da dignidade estão acima dos circunstancialismos de conjuntura é sempre de difícil avaliação. Mas foram esses mesmos valores que o impediram de dobrar a cerviz a troco de medalhas, de tostões ou de milhões, como fez quando recusou ser advogado em regime de avença dos interesses do jogo. O Rui não estava para aturar tipos que acham que os milhões que ganham lhes dão o direito de pedir favores e de telefonar às 3 ou 4 da manhã de um spa em Las Vegas para insultarem o advogado que não lhes reconheceu as assinaturas nuns contratos manhosos num inglês mal redigido e destinados a uma terra onde se fala em português e chinês. Negociatas de bordel, golpadas e moscambilhas nunca foi com ele. A gente anda na rua e fala com as pessoas. Quando se demitiu da AL, em ruptura com o soba colonial, estava preocupado com as questões da segurança, embora soubesse que Portugal se afundava em negociatas de sanitas, aquisições de quadros com dinheiros públicos por troca com facturas de livros e restauros de peças antigas que nunca regressaram, mas fê-lo com a lealdade de sempre. O Rui dispensava o comprometimento do seu nome e a reputação do escritório nos cambalachos de fim de ciclo do império. Por a CNN ou a imprensa estrangeira que vinha a Macau queriam conversar com ele. Da falta de alinhamento com as negociatas nos ressentimos todos lá no escritório, quando o trabalho escasseou à laia de represália. E também aí, nessa altura, não lhe foi ouvido um ai. Um senhor. Como também não foi ouvido quando numa auto-estrada, depois de um acidente, foi em auxílio dos outros, suportando a explosão de um outro carro em chamas para ver as mãos e a cara queimarem-se-lhe, sofrendo depois enxertos vários em Coimbra, para poder salvar uma mulher inconsciente que estava dentro de um veículo acidentado. Antes dos bombeiros chegarem. Ou agora, como ainda há dias o vi, lutando estoicamente, lutando como só um herói sabe fazer, mantendo sempre a compostura, a dignidade e o sorriso apesar de ver ali o seu próprio corpo ser corroído pela dor e a ingrata antecipação do fim a chegar. O Rui nunca foi de fazer fretes porque era um homem sério e honesto como poucos. Porque teve a consciência em todo o seu percurso da necessidade de se preservarem princípios e valores, porque sabia que estes, ao longo da vida, não necessitam de segurança pessoal, e dispensam a pertença a igrejas, a seitas, a partidos ou a associação discretas. Em rigor, o Rui comportava-se sempre como o verdadeiro anarquista que nunca foi mas que no íntimo lhe espreitava. Devo-lhe a amizade, a camaradagem, a confiança sem limite no meu trabalho, o estímulo e a palavra amiga na hora certa. E também o trabalho diário de ardina digital junto dos seus amigos, trabalho a que nem a doença retirava o humor após meses de sofrimento. Na primeira aberta, mesmo depois de doente e entre tratamentos, lá chegava o e-mail com o anexo e uma única frase: “o ardina está de volta”. Até ao fim, o Rui teve sentido de humor. O Rui foi um dos poucos duros que conheci em toda a vida, que sorria e inspirava qualquer que fosse o combate e o estado das tropas. Até a um céptico como eu. Três décadas de convívio depois, vendo-o partir assim, desta forma apressada, inacabada, sem jeito, com tantos livros para lermos e discutirmos (o último que aqui tenho é “O que resta da esquerda?”, do Nick Cohen), tantos filmes para comentarmos (irei ver o “Silêncio” logo que possa) sem tempo para ele poder assistir à discussão do trabalho que me consumiu, envelheceu e roubou horas ao nosso convívio dos últimos anos, torna-se mais imperioso do que nunca assegurar-lhe que iremos todos continuar a discutir os milhões que vão para a Universidade de Jinan, os que à custa do desinvestimento na saúde pública de Macau contribuem para dinamizar a incompetência grosseira, encher os bolsos de clínicas e hospitais privados de onde um dia começarão a nascer os cogumelos dos novos casinos. Esses e todos os outros. Enquanto os grilos locais tecem loas em seu nome e agitam a casaca negra entre missas, nós continuaremos a resistir. E a olhar por esse imenso legado. Na língua em que nos deixarem. Sem receio de perdermos alguns amendoins. Porque no fim, o que verdadeiramente importa, como sempre nos importou, são os nossos. Os nossos valores, os nossos princípios, a nossa gente, que são aqueles com quem nos cruzamos no dia-a-dia, os que nos vêm bater à porta com um pedido de ajuda, os injustiçados desta vida, os que todas as manhã nos dizem bom dia olhando-nos nos olhos. Até ao fim, sans Dieu ni maître, como cantou o Ferré, cá estaremos, Rui. Honrando a memória e o legado. Com os que estiverem connosco às sextas-feiras. E nos outros dias. À alvorada, se necessário. Continuando a percorrer os trilhos e as veredas incertas da vida com o mesmo à-vontade. Como homens livres que sempre fomos. Até ao fim. Resistindo sem quebrar. Como o bambu. Como tu fizeste, como só tu soubeste ser. O melhor dos ardinas. Até ao fim, sorrindo, sorrindo sempre.
Rui Flores VozesPorta fechada [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] recente aumento de tensão entre a União Europeia e a Turquia, a propósito de acções de campanha que alguns ministros de Erdogan queriam efectuar junto de comunidades turcas na Alemanha, Áustria e Holanda, e que foram travadas pelos governos europeus, veio pôr em evidência a impossibilidade de um acordo de adesão da Turquia à União Europeia. Isso ficou ainda mais acentuado, quando, neste fim-de-semana, o governo alemão autorizou uma manifestação de curdos anti-Erdogan em Frankfurt. O tom da retaliação de Ancara, que acusou os governos de Berlim, Haia e Viena de nazismo, é um sinal de que, nem no curto nem no médio prazos, o processo negocial sofrerá avanços. Desde que a Turquia requereu formalmente a entrada na União Europeia, em 1987, e a União Europeia lhe permitiu adquirir o estatuto de país-candidato, pouco ou nada tem avançado. É um facto que a União e Ancara estabeleceram um acordo aduaneiro, que está em vigor desde 1995. Mas dos 16 dossiers abertos (de um total de 33!) sobre as matérias respeitantes ao processo de adesão, as áreas de trabalho nas quais a Turquia teria de se aproximar aos padrões europeus para ser aceite no clube dos 28, apenas um chegou a bom porto. A questão dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da qualidade da democracia, sofreram um enorme revés com o golpe de estado do ano passado. A tentativa de golpe de 15 de Julho de 2016, abortada no dia seguinte, fez 241 mortos e perto de 2200 feridos, segundo os dados oficiais, e foi atribuída pelas autoridades ao movimento Fethullah Gülen. Gülen é um antigo imã, que se encontra radicado nos Estados Unidos, e que preside a uma rede global de escolas turcas. É considerado por alguns como “um dos rostos mais encorajadores do Islão hoje em dia” – escreveu-o, por exemplo, no Huffington Post, Graham Fuller, um destacado dirigente do National Intelligence Council norte-americano, um think tank que apoia as agências de informação americanas, com análise e tendências. É evidente que esta visão das coisas olha para o Islão como algo que deve ser dividido entre o radical e o moderado. A tentativa de golpe de estado e tudo o que se seguiu seriam episódios de um conflito interno turco, de uma aparente divisão transversal da sociedade entre duas forças antagónicas: de um lado, encontrar-se-ia uma visão mais liberal do Estado e, do outro, estaria uma visão mais autoritária da causa pública. Com os desvios autoritários de Erdogan cada vez mais visíveis – a Freedom House coloca a democracia turca no grupo de países “parcialmente livres”, que tem, no entanto, uma imprensa “não livre” –, Güllen, sob protecção norte-americana (assim decreta a narrativa turca oficial), estaria a travar uma luta com Erdogan. Segundo alguns autores, acima de tudo, isto seria um ataque ao chamado “modelo de governo turco”, que combina o Islão com democracia e economia de mercado (um modelo que estaria na base das genericamente falhadas primaveras árabes). A resposta de Erdogan aos eventos do ano passado não deixa, de facto, dúvidas sobre o caminho que quer trilhar o presidente turco: a União Europeia, no seu relatório anual sobre a Turquia, publicado no final de Setembro, indica que a purga conduzida pelo presidente turco levou à detenção de cerca de 40 mil pessoas, 31 mil das quais permanecerão presas, incluindo 81 jornalistas. Na administração do Estado, 66 mil funcionários públicos continuavam suspensos e 63 mil tinham sido despedidos. Mais de 4.000 instituições e empresas foram encerradas e os seus bens apreendidos ou transferidos para instituições públicas. A tentativa de purga chegou mesmo à Europa, com Ancara a pedir a vários Estados-membros da União Europeia o encerramento de escolas ou instituições alegadamente ligadas ao movimento Gülen. Neste contexto, há relatos de que membros da diáspora turca que vivem na Europa estão sob pressão para relatar outros membros destas comunidades. Tal como Putin, Erdogan tem demonstrado um certo apego ao poder. Está na chefia do Estado turco há apenas três anos, mas serviu como primeiro-ministro de 2003 a 2014, após três rotundas vitórias eleitorais à frente do Partido da Justiça e do Desenvolvimento, que criou em 2001. Mais do que a comparação em termos de estilo, deve salientar-se a aproximação entre os dois líderes políticos. Depois de a Turquia ter pedido desculpas por ter abatido um caça russo no âmbito do conflito sírio, as relações Ancara-Moscovo foram normalizadas um mês antes do golpe de estado; numa altura, em que os turcos criticavam fortemente os Estados Unidos, seu aliado da NATO, pela falta de assistência na luta contra as forças curdas na Síria. Com os desvios autoritários de Erdogan cada vez mais visíveis, consubstanciados pela consulta popular de 16 de Abril, não espanta que outros Estados-membros venham, nesta Europa de 2017, das posições extremadas e da cedência fácil ao populismo, juntar a sua à voz da Áustria, que, que na sequência da purga de Erdogan requereu o fim do processo de adesão da Turquia à União Europeia. Mesmo com a União Europeia a pagar à Turquia para manter nas suas fronteiras cerca de 3 milhões refugiados sírios nas suas fronteiras.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO crescimento sustentável “The triple bottom line (TBL) thus consists of three Ps: profit, people and planet. It aims to measure the financial, social and environmental performance of the corporation over a period of time. Only a company that produces a TBL is taking account of the full cost involved in doing business. In some senses the TBL is a particular manifestation of the balanced scorecard. Behind it lies the same fundamental principle: what you measure is what you get, because what you measure is what you are likely to pay attention to. Only when companies measure their social and environmental impact will we have socially and environmentally responsible organisations.” “The Economist Guide to Management Ideas and Gurus” – Tim Hindle [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] grande tema revisitado do capitalismo nos velhos países industrializados, é reduzir os funcionários, aumentar o impacto da tecnologia e percentagem das pessoas idosas, sem um rendimento que lhes permita uma vida digna, o que por si deve ser a mola suficiente para promover um plano de reformas ao capitalismo, que faça que a economia crescer de forma sustentável. O historiador inglês, Eric Hobsbawm, no seu livro “The Age of Extremes: The Short Twentieth Century, 1914 -1991”, referia-se à história do século XX, como sendo o século curto, porque tinha começado em 1914, com a I Guerra Mundial e terminado em 1989, com o colapso da União Soviética. Afirmava Hobsbawm que a versão oposta à soviética também estava falida, pois a fé teológica em uma economia que afectava totalmente os recursos à economia, através de um mercado sem restrições, em uma situação de concorrência ilimitada; um estado de coisas que se acreditava que não só produzia o máximo de bens e serviços, mas também o auge de felicidade era o único tipo de sociedade que merecia o epíteto de livre. Os seus críticos reagiram imediatamente, considerando uma vingança do velho marxista, aludindo ao pensamento político do historiador. Passados mais de vinte anos, damos conta que o capítulo desse livro intitulado de “Rumo ao milénio”, tem alusões proféticas, e que teria sido excelente ter levado em consideração. O livro assinala os problemas fundamentais da actualidade, como o demográfico e o ecológico. Era essencial determinar como alimentar-se-ia uma população mundial dez anos maior em número, com cerca de nove a dez mil milhões de pessoas em 2050, sabendo que um quinto será de idosos, ou seja, cerca de dois mil milhões de pessoas. Os países ricos enfrentarão a imigração em massa, que iriam causar graves problemas políticos internos, o que soa familiar, ou munir-se de barricadas inúteis para protegerem-se dos imigrantes. Quanto aos problemas ecológicos entendia como cruciais, mas não tão explosivos a curto prazo. Se o indicador de crescimento económico se mantivesse indefinidamente nos níveis da segunda metade do século passado, teria consequências irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural do planeta. O que obrigaria a ter uma política ecológica radical e realista por sua vez. Tudo o que reforça o conceito de economia sustentável é ferramenta importante para a abertura do caminho almejado. Enquanto isso, o progresso tecnológico incessante continuou a deslocar e a transformar empregos. A globalização fez mudar as indústrias do centro para a periferia à procura de custos mais baixos e enfraqueceu mecanismos estatais para gerir as consequências sociais dos novos processos económicos e houve uma enorme transferência de indústrias procurando mão-de-obra barata, desde os países mais ricos aos mais pobres, com todas as suas indesejáveis consequências sociais. O mesmo ocorreu, também, no interior de cada país rico e esta é uma boa explicação para entender a reacção dos ingleses ao votar a saída da Grã-Bretanha da União Europeia (UE). Até agora não existia nenhuma ameaça credível que impulsionasse o capitalismo e os seus principais actores, a procurar reformas rápidas e eficientes e em certa medida, o Brexit, ou abandono britânico da UE, pode comparar-se com a queda da União Soviética, não importando apenas o que aconteça no Reino Unido, pois mais grave seria a fractura e a desintegração do velho projecto de unidade continental. As organizações supranacionais enfraqueceram a noção de Estado-Nação, mas também o fizeram as forças internas com movimentos autonómicos, como a Escócia na Grã-Bretanha, ou a Catalunha em Espanha. O que se divisa com claridade, é que muitas pessoas não estão de acordo com a globalização, porque não entendem a sua utilidade ou conveniência na sua vida diária. Sentem-se assustadas pelos avisos, acrescidos de ameaças, e sobretudo, estão com ira. É o que se observa no momento de votarem, e com transparência afirmam, que votam contra as elites dirigentes, governantes, teóricos, empresários e em especial bancos que os submetem a uma vida pior que a prometida, e para se libertarem sentem necessidade de resgatar o poder entregue a essas elites, ainda que seja, para cair nas mãos de uma nova burocracia. A situação real observada apresenta matizes graves do jogo perigoso político e societário em este momento da história. Os autores e consultores defendem que as empresas devem assumir a liderança de uma das batalhas mais concretas que se tem travado em matéria de protecção ambiental. Não é uma opinião unânime. Muitos críticos defendem que não é uma boa estratégia, pôr a raposa em frente do galinheiro, pois o que dizem, e existe alguma razão é de que não se pode omitir o facto de a história revelar os danos e negligências das empresas em matéria ambiental. Há que fazer muito mais e rapidamente para alterar essas práticas prejudiciais. É certo que pela primeira vez, os países se uniram com solenidade, para atingirem metas como as de travar ou reverter a deterioração climática e combater o efeito dos gases de estufa, que o Presidente Donald Trump afirma serem de mera falácia, apregoando o abandono do Acordo de Paris pelos Estados Unidos. Todavia, existe um longo caminho a percorrer das palavras às acções, mesmo com os prazos a reduzir. Os principais países em processo de industrialização aderem às metas de modo estridente, mas pouco fazem para as cumprir. Primeiro, querem obter um nível de desenvolvimento que detém os países industrializados. Até há pouco tempo as preocupações conservacionistas eram cheias de boas intenções. O sociólogo inglês John Elkington introduziu o conceito de “Triple Bottom Line (TBL)”, pela primeira vez, em 1994, e usado mais tarde no seu livro “Cannibals With Forks: The Triple Bottom Line Of 21st Century Business,” publicado em 1997, demonstrando como todas as empresas podem e devem ajudar a sociedade a alcançar três objectivos interligados, que são a prosperidade económica, protecção ambiental e equidade social, questões que estão no topo da agenda corporativa. O TBL mede o grau de responsabilidade social de uma empresa, o seu valor económico e o impacto ambiental. O desafio é representado pela dificuldade de medir os objectivos social e ambiental, o que exige que os três objectivos sejam avaliados pelos seus méritos. O empresário alemão Jochen Zeitz, que usa a sua fortuna para alterar as opiniões mundiais sobre as alterações climáticas, publicou o primeiro relatório no âmbito do TBL concluindo que para realizar uma economia sustentável, os líderes das empresas devem assumir os três objectivos definidos como metas. O livro “The Breakthrough Challenge: 10 Ways to Connect Today’s Profits with Tomorrow’s Bottom Line”, que tem como autores John Elkington e Jochen Zeitz, publicado em 2015, defende a ideia de que o ataque crescente à globalização, o maior poder das empresas multinacionais e a incidência de uma recessão generalizada tornam mais difícil a acção dos governos. O argumento tem sentido. Se há catástrofes naturais e deterioração do ambiente e, se as pessoas não têm emprego e não tem recursos, e se o sistema financeiro entra em colapso, estão em sério perigo os lucros das empresas. As empresas devem tentar, pelo menos, uma economia sustentável não pela filantropia, mas na procura dos seus interesses. Todavia, em momento algum subestimam os referidos autores, o esforço a realizar. Os trabalhos pendentes incluem o impulso de novas estruturas como as Empresas B que reinvestem todos os seus lucros no crescimento da firma, princípios contáveis sólidos e verdadeiros, cálculo real dos verdadeiros retornos, alcançar benefícios no plano humano, social e do planeta, eliminação de subsídios ou incentivos com efeitos destrutivos, transparência plena, alterar a forma como se educam e formam os líderes empresariais do futuro e eliminar o curto prazo. Esses são os requisitos a cumprir. O uso generalizado das mídias sociais e da análise de dados torna cada vez mais fácil seguir e observar o comportamento de uma empresa. A grande parte das pessoas declara que suportam as suas decisões de compra neste tipo de informação que recolhem, e que é designado por “transparência radical”, conforme alcunhou Allen Hammond, um dos ex-Chefe do Departamento de Comunicação do World Resources Institute. A informação obtida na Internet permitiria aos ambientalistas procurar maiores padrões éticos das empresas, mas tudo indica que a grande alteração não é a nova ferramenta que dispõem os activistas para exercer maior pressão. É especialmente efectiva entre os clientes e compradores, sobretudo, os geracionalmente que fazem parte da geração do milénio, ou seja, os nascidos entre 1980 e 2000. A expectativa dos consumidores é de que as marcas sejam totalmente transparentes nas suas práticas comerciais, pois fazem um uso intenso das mídias sociais, permitindo que um potencial cliente se torne amigo da marca, e a expectativa é que a marca se comporte como uma amiga. Este novo conceito de “transparência radical”, onde todos sabem tudo, o que todos fazem, apresenta uma dificuldade, pois existem muitas empresas que não estão preparadas para fazer as alterações que esta nova situação exige. As empresas que prefiram ganhar confiança junto dos seus clientes, têm que aceitar e facilitar o escrutínio público, que é algo mais que melhorar as práticas habituais. É mostrar sem reservas o que ocorre dentro da empresa. A economia global, começa lentamente a recuperar e a melhorar, em algumas áreas geográficas, de forma mais clara que outras, pois durante a recessão, a situação válida foi sobreviver. A atenção, actualmente, concentra-se no crescimento, um motor moldado por forças externas com capacidade para transformar a sociedade e os negócios. O novo cenário é definido pelo trabalho de cinco tendências globais, como os avanços tecnológicos, alterações na demografia, ciclos económicos globais, urbanização, escassez de recursos e alterações climáticas. O impacto que podem ter essas tendências está a mudar de forma drástica as expectativas que a sociedade tem sobre o mundo dos negócios. Quando uma empresa funciona de forma coerente com essas tendências, adquire fiabilidade que é a base de toda a relação e transacção em qualquer mercado. É como se adquire a famosa licença para exercer a actividade. O curto prazo por mais tentador que seja, não funciona. Não existe medicação para se voltar ao inicio e todos os líderes empresariais devem concentrar-se no TBL. É essencial saber que a forma de fazer negócios incide sobre o nível de utilidades, a comunidade onde está inserida e o impacto sobre o ambiente e planeta, apesar de nos últimos anos, as sondagens terem revelado que aumentou de forma sustentável a fé e confiança que o público tem nas empresas, e muitos líderes do sector continuam empenhados em reduzir o que entendem como sendo a ausência da verdade.