Tânia dos Santos Sexanálise VozesO sexo gosta do oculto [dropcap]O[/dropcap] lado inocente e puro desta humanidade mostrou-se não ter espaço para o sexo. O sexo é diabólico e veste-se de vermelho, a cor do pecado, e o inferno está cheio de fornicadores que se regozijam com os corpos nus de prazeres incompreensíveis. A dicotomia do bem e do mal – de uma história já muito antiga – reforça a ligação íntima entre o sexo, o oculto e as suas bruxas diabólicas. Mulheres que sabiam demais para o seu próprio bem – da cura, do cuidado e do prazer. Ainda que a bíblia não fale explicitamente sobre a sexualidade, o sexo ainda perpetua uma rigidez estupidamente simples com anos de tradição religiosa. Foram estas as ideias que levaram a queimar mulheres vivas na fogueira. E o sexo alimentou-se da premissa de que há algo de errado em saber mais sobre sexo. As bruxas mantiveram-se, até de forma bem literal. Em tempos em que o sexo já é mais banal e menos demoníaco, o sexo continua a adorar ultrapassar os limites do razoável – dentro e fora de subjectividades. Há, por exemplo, a ‘magia sexual’ que é a arte de utilizar a energia sexual para lançar feitiços durante a lua cheia, ou noutras luas que achem relevantes. A prática passa por ouvir a música que desperta erotismo necessário, acender uma vela, masturbar com o auxílio de um dildo de cristal (ou qualquer outro dildo), lançar um feitiço com o poder do orgasmo e esperar os resultados. As bruxas contemporâneas são versadas nestas práticas e partilham a sua sabedoria pelos canais de informação comuns – para os curiosos que queiram saber mais sobre sexual magic ou magick. Eu diria até que no lado oculto do sexo explora-se bem mais do que a magia. Vejo-o como a plataforma onde se desafia a vergonha e a humilhação do prazer. Os fetiches, e tantas outras fantasias, vivem do oculto, do desconhecido e do incompreensível. Vão além do sexo heterossexual de fazer bebés (a única forma aceitável de fazer sexo, aos olhos de muitos) e encontram-se na criatividade, no inexplorado. Aliás, não é por acaso que os fetiches e as práticas mais kinky fazem uso de apetrechos que poderiam ser de bruxas ou de agentes do mal. O látex preto, o chicote, as botas altas e os corpetes completam a representação do lado ‘negro’. O sexo adora o imaginário do dominador e do dominado, e para muitos, até da vergonha e da humilhação. Estas dinâmicas existem para contestar quem diz que o sexo deve ser assim ou assado, para contestar os mecanismos de opressão do sexo, fazendo uso deles mesmos. O sexo que gosta do oculto poderia ser só mais uma confirmação que que é no oculto que ele deve permanecer. Mas a proposta é de que haja reinterpretação de conceitos e práticas. O sexo no oculto e a magia do sexo é só mais uma desculpa, como tantas outras, para forçarmo-nos a olhar o sexo dentro e fora das nossas relações, das nossas subjectividades e das nossas expectativas. O voyeur e o exibicionista gozam com a possibilidade de fazer o que é errado. O senso comum de que o fruto proibido é o mais apetecido é uma explicação limitada, mas ainda importante, para algum dos padrões do sexo – os limites existem para serem quebrados e contestados. O oculto nasce da forma como se vê o passado e a nossa contemporaneidade e do que, deliberadamente ou não, deixámos por explorar e escondido. Os persistentes tabus do sexo são o combustível para a reinvenção e exploração. Se o sexo gosta do oculto, nós também vamos gostar.
Carlos Morais José VozesQuando o frio desce [dropcap]Q[/dropcap]uando o frio desce, como se viesse de um lugar impossível, e nos envolve num manto de solidão e nos encolhe o corpo e trespassa sem remissão, é como se outro personagem, num repente, emergisse. Chama-se o nosso inverno e obriga-nos ao recolhimento. Não há sentimento que o combata, nem teimosia capaz de o afugentar. Nada existe de enunciável nesse inverno mas uma quietude mortal acima dos dias e das noites. Realço então a chama que insiste em dançar no interior de um bloco de gelo, um resto de pensamento, sóbrio mas reticente, por vezes indecente, na busca do fogo, da fogueira extinta na paisagem. A própria memória parece ter partido, imersa nesse frio omnipresente, capaz de congelar uma alma caso ela se desse ao trabalho de existir. O que fica então dessa miséria a que temos o hábito de chamar eu? Talvez nada, num acesso de lucidez insuportável. É o frio que se afigura eterno e nos desmonta e remonta como se o caos tivesse afinal um sentido. Não tem mas sonho com ele nas margens de uma lareira. À partida derrotado, a deslizar devagar no rio da morte: frio, gélido, inoperante, inconsequente. Mas agora quente, finalmente quente, ainda que exaustivamente só. Como se houvesse verdade e eu estivesse contigo, meu amor.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesA grande balbúrdia [dropcap]E[/dropcap]m Novembro, soube-se através da comunicação social, que a deputada Song Pek Kei tinha entregado ao Governo uma interpelação escrita, onde recomendava que não se deveria trabalhar nos dias úteis em que se realiza o Grande Prémio de Macau, de forma a evitar o congestionamento do trânsito e toda a confusão que daí advém. Estes feriados deveriam ser extensíveis às escolas. Poderia ainda ponderar-se a implementação do trabalho por turnos nos departamentos oficiais. No dia 8 de Janeiro foi publicada a resposta do Governo. O Gabinete para o Desenvolvimento do Desporto, reiterou que o Executivo tem investido de forma empenhada no melhoramento das infra-estruturas e da logística do Grande Prémio, de forma a reduzir os inconvenientes para a população. Futuramente, far-se-ão estudos para encontrar soluções que optimizem a questão da mobilidade. O Grande Prémio costuma realizar-se de Quinta a Domingo. Quinta e Sexta são dias úteis. Os adultos vão trabalhar e as crianças vão para a escola. Macau tem muita população e pouco espaço. As medidas que envolvem a realização desta prova resultam num enorme congestionamento do trânsito. Aos Sábados a situação já melhora um pouco e aos Domingos ainda melhora mais. É evidente que o facto das pessoas não terem de se deslocar alivia o tráfego. Quando o Governo apresenta uma proposta deve apoiar-se nos factos. Sem uma pesquisa séria e uma recolha de dados exaustiva, é difícil convencer a população da qualidade da proposta. Talvez esteja na altura de levar a cabo estudos estatísticos que demonstrem que, durante o Grande Prémio, o grau de congestionamento do trânsito durante as Quintas e as Sextas é superior àquele que ocorre aos Sábados e aos Domingos, devido às deslocações para os locais de trabalho e para as escolas nos dias de semana. Se este estudo for feito, dar-se-á mais força à argumentação que defende que os dias úteis em que se realiza o Grande Prémio deveriam ser declarados feriado, ou que, pelo menos, fosse possível um acordo de isenção de serviço, efectuado entre os trabalhadores e as entidades patronais, isenção essa que seria compensada posteriormente e desta forma a interpelação de Song Pek Kei passaria mais facilmente. O problema dos transportes afecta Macau em larga escala. Tendo isso em mente, é razoável esperar que o Governa responda de forma positiva à interpelação de Song, já que está em causa o interesse público e um indispensável consenso social. Uma pesquisa em profundidade e uma análise detalhada serão incontornáveis. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José VozesA era do pós-indivíduo [dropcap]Q[/dropcap]uando hoje passeamos pelas chamadas redes sociais reparamos num fenómeno sintomático: seja qual for a ideia, opinião ou evento rapidamente se formam dois lados, dois partidos, duas facções, que mutuamente se insultam e destilam ódio como se em causa estivesse realmente um futuro qualquer. Ao contrário do que se poderia pensar, depois das experiências do século XX, nomeadamente da crítica das metanarrativas, o mundo voltou a ser a preto e branco. A “verdade” voltou e vingativa. Afinal, qual de nós não é hoje o detentor da “verdade”, pura, crua e sem remissão? Ter dúvidas, hesitar, reflectir, pensar, não está na moda. É mesmo horrível, coisa de gente fraca, pouco digna de guerreiros de teclado. A coisa agora é mais insultar, excruciar, reclamar, excluir. Ao contrário do que seria esperado, parece haver uma compulsão para se pertencer a algo, habitar num grupo de “amigos” cujos valores estão previamente formatados, tudo pronto e embrulhado para consumo rápido e certeiro. Não se trocam ideias, insulta-se o que discorda de nós. No fundo, é um descanso, um torvelinho parado, um remoinho que não sai do mesmo sítio e por isso deve ter um efeito hipnótico e calmante. E lá vamos: cantando o que nos fazem cantar, recitando o que nos fazem recitar. Orgulhosos de pertencer e de não ser. Entrámos, seguramente, na era do pós-indivíduo.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA 25.ª Conferência Internacional do Clima (I) “Pour ce qui est de l’avenir, il ne s’agit pas de le prévoir, mais de le rendre possible.” Antoine de Saint Exupéry, Citadelle, 1948 [dropcap]A[/dropcap] “24.ª Conferência Internacional do Clima (COP24)” que se realizou em Katowice, Polónia, de 2 a 14 de Dezembro de 2018, foi uma grande conquista na resposta multilateral às mudanças climáticas, tendo mais de cento e noventa países, conseguido chegar a acordo sobre quase todos os elementos de um livro de regras abrangente que coloca “carne no esqueleto” do “Acordo de Paris” de 2015. As regras exigem, pela primeira vez, que todos os países forneçam informações detalhadas sobre as suas metas de mitigação das mudanças climáticas e relatem regularmente os seus progressos em implementá-las e alcançá-las. Todavia, ainda falta um capítulo importante que é as regras para os mercados internacionais de carbono discutidas no artigo 6 do “Acordo de Paris”. As visões conflituantes sobre como evitar a “dupla contagem”, contando a mesma redução de emissão mais de uma vez para atingir as metas de mitigação climática, foram um grande obstáculo ao consenso. A conclusão do capítulo ausente do artigo 6 era uma das tarefas principais para os países resolverem na “25.ª Conferência Internacional do Clima (COP25)”, sob a Presidência do Chile e que se realizou em Madrid entre 2 e 15 de Dezembro de 2019. A resolução da contagem dupla é fundamental para alcançar os objectivos do “Acordo de Paris” e estão identificados os ingredientes essenciais para que fosse atingido um resultado robusto que garantisse a eficácia ambiental e facilitasse a mitigação económica. A COP25 teve um começo difícil, quando o presidente do Chile, anunciou no final de Outubro que o seu país não podia mais sediar o evento dado as “circunstâncias difíceis”, como os violentos protestos contra o governo na capital do país. Faltando apenas um mês para o evento a Espanha interveio e concordou em realizar o evento em Madrid. O Chile manteve a presidência, com o evento renomeado como “COP25 Chile-Madrid”. Apesar dessa mudança de local de última hora, o evento ocorreu da mesma forma que as anteriores COPs, caracterizadas por debates prolongados e sessões nocturnas nas quais os negociadores e ministros discutiam textos cheios de jargões. No início da reunião, a presidente da COP25 e secretária chilena do meio ambiente, afirmou que a conferência “devia mudar o curso das acções e ambições climáticas”. O secretário-geral da ONU, na primeira das várias intervenções, perguntou aos participantes se “realmente queriam ser lembrados como a geração que enterrou a cabeça na areia?” A COP25, tornou-se a mais longa já registada quando foi concluída, depois do almoço do dia 15 de Dezembro de 2019, após mais de duas semanas de negociações difíceis. Estava programada para terminar na no dia 13 de Dezembro de 2019 e cerca de vinte e sete mil delegados iniciaram os trabalhos com o objectivo de finalizar o “livro de regras” do “Acordo de Paris”, que é o manual operacional necessário quando entrar em vigor em 2020, que estabelece regras para os mercados de carbono e outras formas de cooperação internacional nos termos do dito Artigo 6. Os delegados também esperavam enviar uma mensagem de intenção, sinalizando ao mundo que o processo climático da ONU permanece vivo e relevante, e que reconhece a enorme lacuna entre o progresso actual e as metas globais para limitar o aquecimento. Tal desconexão foi destacada por uma enorme marcha de protesto no coração da capital espanhola com a presença de Greta Thunberg. As negociações não conseguiram chegar a um consenso em muitas áreas, levando as decisões a serem adiadas para 2020 sob a “Regra 16” do processo climático da ONU. Os assuntos como o do Artigo 6, requisitos do relatório para transparência e “prazos comuns” para compromissos climáticos serão transpostos igualmente para 2020, quando os países aumentarem a ambição dos seus esforços. O secretário-geral da ONU mostrou-se “decepcionado” com os resultados da COP25 e “a comunidade internacional perdeu uma importante oportunidade de mostrar uma maior ambição em mitigação, adaptação e financiamento para enfrentar a crise climática”. Ainda que nunca se esperasse que os principais emissores do mundo anunciassem promessas climáticas novas na COP25, havia a esperança de que pudessem enviar colectivamente uma forte mensagem de intenção para 2020. No entanto, as negociações rapidamente ficaram atoladas em questões técnicas, como as regras para os mecanismos de mercado de carbono, que esperam por uma conclusão há anos. Havia um sentimento crescente entre muitos participantes de uma desconexão entre esses processos lentos e impenetráveis da ONU e a acção exigida por manifestantes em todo o mundo, pois segundo a Greenpeace o “novo momento” proporcionado pelo crescente movimento global do clima, ainda estava para penetrar nos “salões do poder” e nos vinte e cincos anos de realização das COP nunca houve uma tão grande diferença entre o interior e exterior das COP. Quando Greta Thunberg, a adolescente sueca que tem sido usada por políticos e industriais e que desconhece tecnicamente o que se passa com as mudanças climáticas chegou a esses salões de poder, após uma viagem transatlântica de vela, foi instantaneamente a figura de destaque no centro do circo da média da COP25 e no final da primeira semana, a jovem sueca uniu-se a uma marcha pelo centro de Madrid que, segundo os organizadores, atraiu meio milhão de pessoas, ainda que a polícia tenha oferecido, uma estimativa muito mais modesta de quinze mil pessoas. A frase mais comum dos manifestantes e observadores foi a discrepância entre o ritmo lento das negociações e a urgência sugerida pela ciência mais recente. O relatório de 26 de Novembro de 2019, “Meta climática 1.5.ºC” está fora do alcance do “Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA na sigla inglesa) ” e mostra que a meta de 1,5.ºC do “Acordo de Paris” está mais longínqua de atingir, mesmo se as promessas climáticas existentes como as “Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla inglesa)” dos países forem cumpridas. As emissões em 2030 serão 38 por cento mais altas do que o necessário para atingir essa meta. Este ponto foi enfatizado por um novo relatório do “Projecto Global de Carbono (GCP na sigla inglesa) que integra o conhecimento de gases de efeito estufa para actividades humanas e o sistema da Terra. O GCP, alguns dias depois, mostrou que as emissões de combustíveis fósseis e da indústria devem continuar a aumentar em 2019 e 2020. A aparente desconexão foi destacada ainda mais pelo idioma usado para descrever os relatórios mais recentes do “Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla inglesa)”, o primeiro dos quais teve como tema a “Terra”, publicado a 8 de Agosto de 2019 e o segundo sobre o “Oceano e a Criosfera”, publicado a 25 de Setembro de 2019. Os relatórios foram apenas “citados”, em oposição a “bem-vindos”, no texto final do “Projecto de Conclusões” proposto pelo Presidente da Cimeira, a 7 de Dezembro de 2019, embora também “expressassem a sua gratidão” aos cientistas que realizaram o trabalho (Na cúpula da COP24 de 2018, a recusa dos Estados Unidos, Arábia Saudita, Rússia e Kuwait em linguagem de “boas-vindas” ao relatório do IPCC 1.5.ºC foi uma fonte de tensão significativa.). Houve iniciativas para aumentar a ambição de alguns actores não estatais na COP25, com, por exemplo, cento e setenta e sete empresas comprometeram-se a reduzir as emissões de acordo com a meta de 1,5.°C como parte da “Aliança da Ambição pelo Clima” e tal aconteceu depois de um grupo de quatrocentos e setenta e sete investidores, que controlam trinta e quatro triliões de dólares em activos, pedirem aos líderes mundiais que actualizassem os seus NDCs e aumentassem a sua ambição. Pela localização do Chile, um país com cerca de seis mil quilómetros de costa, a liderança apelidou o evento de “COP azul”, estabelecendo a sua intenção de dar atenção aos oceanos. O relatório “Os Impactos Esperados das Mudanças Climáticas sobre a Economia Oceânica”, divulgado na primeira semana da COP25 pelo “Painel de Alto Nível para uma Economia Oceânica Sustentável”, que é um grupo único de líderes mundiais de todo o mundo empenhado em desenvolver, catalisar e apoiar soluções para a saúde e riqueza dos oceanos nas políticas, governança, tecnologia e finanças, trouxe “um forte lembrete das sérias consequências económicas das mudanças climáticas para as indústrias oceânicas. Ainda que a maior atenção da COP25 tenha sido focada nas negociações tensas e necessitasse de enviar um sinal claro aos países para aumentar a sua ambição climática, o presidente da Cimeira anunciou a 12 de Dezembro de 2019, que trinta e nove países se comprometeram a incluir os oceanos nas suas futuras NDCs. É de considerar que um dos textos finais da decisão também solicitou a convocação de um “diálogo” na próxima reunião do processo climático da ONU em Bona, em Junho de 2020 sobre o oceano e as mudanças climáticas para considerar como fortalecimento das acções de mitigação e adaptação. Foi solicitado igualmente, um diálogo semelhante para a COP 26 que se realizará em Glasgow, de 9 a 19 de Novembro de 2020, sob a presidência do governo do Reino Unido, sobre a relação entre questões relacionadas à adaptação à “Terra” e as mudanças climáticas”, depois de o Brasil ter afastado as suas objecções no último minuto. O Chile, desde o início afirmou que se tratava de uma “ambição COP25”, reflectindo a lacuna significativa entre as promessas actuais e o que seria necessário para cumprir as metas globais de temperatura. A “hashtag #TimeForAction” foi estampada no centro de conferências e a presidência lançou uma “Aliança da Ambição pelo Clima ” para acelerar o progresso em direcção às metas de Paris, tendo o Secretário-Geral da ONU enfatizado no seu discurso de abertura da conferência, apelando às partes “para avançar no próximo ano”, acrescentando que “os maiores emissores do mundo precisam de fazer muito mais”. Nos termos do “Acordo de Paris”, todas as partes comprometeram-se não apenas a enviar NDCs para reduzir as emissões, mas também para comunicar ou actualizar as suas promessas até ao final de 2020. Além disso, as NDCs sucessivas devem representar uma progressão e reflectir a ambição mais alta possível de cada país e conjuntamente com as avaliações quinquenais acerca do progresso, essas rondas regulares de novas NDCs estão no centro do mecanismo de catraca de aumento de ambição no “Acordo de Paris”, projectado para aumentar a ambição ao longo do tempo. Todavia, para a maioria das NDCs, que já cobrem o período até 2030, o texto de Paris não exige explicitamente que novos compromissos sejam apresentados no próximo ano, podendo as partes simplesmente (re) comunicar a mesma oferta que fizeram em 2015 ou 2016. Dado que as NDCs actuais não estão perto o suficiente para limitar o aquecimento a 1,5.°C, houve esforços nas sucessivas COPs para concordar com o texto pedindo uma maior ambição de todas as partes. Na COP24, algumas partes tentaram, mas finalmente não conseguiram inserir uma linguagem forte para aumentar a ambição, e com a COP25 sendo a cúpula final antes que termine o prazo final de 2020, foi vista por muitos como uma última oportunidade de garantir maior ambição. É de recordar que a ambição não estava oficialmente na agenda da COP25, mas que muitos viam como essencial enviar uma mensagem clara ao mundo e na primeira semana, a presidência chilena iniciou consultas sobre um conjunto de textos que, colectivamente, deveriam transmitir essa mensagem, e designados por “Decisão 1/CP.25”, “Decisão 1/CMA.2” e “Decisão 1/CMP.15”. Os países terão que anunciar contribuições mais ambiciosas em 2020, que é o ano em que todos se comprometeram a anunciar estratégias coesas a longo prazo para alcançar a neutralidade climática até 2050. Actualmente, apenas oitenta países, principalmente os países pequenos e em desenvolvimento, declararam a sua intenção de melhorar as suas NDCs até 2020, representando apenas 10,5 por cento das emissões mundiais. Todos os maiores emissores estão ausentes dessa lista e embora o Chile tenha adiado os seus planos para melhorar a sua NDC na COP25, alguns sinais promissores surgiram ao longo da conferência, principalmente o da União Europeia (UE). Os chefes de Estado e de Governo da UE, reuniram-se nos dias 12 e 13 de Dezembro de 2019, em Bruxelas e concordaram tornar o bloco “neutro em termos climáticos” até 2050. Apesar da resistência da Polónia, a Comissão Europeia revelou um ” Acordo Verde Europeu”, que, se for lei, comprometerá pelo menos 25 por cento do orçamento de longo prazo da UE à acção climática, tendo a Presidente da Comissão Europeia descrito como um momento tipo “homem na lua” da Europa. O acordo também inclui um cronograma proposto para aumentar a meta de NDC da UE para 2030, desde o seu actual objectivo de reduzir as emissões para pelo menos 40 por cento abaixo dos níveis de 1990, até uma meta mais alta de pelo menos 50 por cento e 55 por cento. No entanto, havia uma preocupação expressa por ONGs na COP25 de que essa promessa deve ser assinada com bastante antecedência antes da “Cimeira UE-China” em Leipzig, em Setembro de 2020, argumentando que é necessário tempo diplomático suficiente e, portanto, alavancar o uso da NDC aprimorada para convencer a China a melhorar a sua promessa climática e para manter esse cronograma, a nova meta deve passar por uma avaliação formal de impacto até o final da primavera de 2020. As ONGs temem que não haverá tempo suficiente para na reunião de Leipzig pressionar a China a aumentar a sua oferta e com emissores importantes, como os Estados Unidos, Austrália e o Brasil, a demonstrar hostilidade em relação à acção climática internacional, depende muito da China e da UE, actuando como uma só para manter a dinâmica do “Acordo de Paris”. É de recordar que outro momento de optimismo na COP 25 ocorreu quando o parlamento dinamarquês adoptou uma nova lei climática, que estabelece uma meta juridicamente vinculativa de reduzir as emissões para 70 por cento abaixo dos níveis de 1990 até 2030. No entanto, uma falta geral de progresso nas negociações levou a tensões ferventes no centro de conferências da COP25, com o “texto da ambição” no centro da tempestade. Em parte, essa tensão reflectiu diferentes interpretações da palavra “ambição”. Muitos países desenvolvidos e estados vulneráveis encararam a “ambição” principalmente como um meio de aumentar os esforços para reduzir as emissões após 2020, de modo a fechar a lacuna no cumprimento das metas climáticas. A Índia e países seus parceiros no “Grupo de países em desenvolvimento com pensamento alinhado (LMDCs na sigla inglesa)”, defenderam uma interpretação mais ampla que também cobria a prometida provisão de financiamento climático, bem como esforços para aumentar a adaptação e criar capacidade nos países mais pobres. Esses países pediram uma atenção particular no fracasso de muitos países desenvolvidos em cumprir as suas promessas climáticas no período pré-2020, argumentando que foi esse fracasso que deixou o mundo tão longe de cumprir o seu objectivo de evitar o aquecimento perigoso.
Carlos Morais José VozesHá coisas que devem ser copiadas [dropcap]U[/dropcap]m das áreas que este novo Governo devia prestar uma cuidada atenção é a dos transportes públicos. O metro ligeiro, além dos problemas detectados, é irrelevante para a população. Um brinquedo em que se gastaram rios de dinheiro e pouco mais que isso. Já os autocarros constituem o mais importante meio de transporte público da cidade. Daí que talvez fosse boa ideia voltar a estudar as rotas de modo a racionalizar o sistema. Quem os utiliza sabe muito bem que primam pela irracionalidade, do tipo passam três seguidos com o mesmo destino e depois só voltam a aparecer 40 minutos depois. Existem linhas em que os condutores guiam como loucos, abusando das travagens bruscas. Seria urgente cursos de condução especializados e aulas de civismo, em que seriam colocadas situações e a sua resolução racional. A dimensão da cidade torna muito fácil a criação de uma rede de autocarros totalmente eficaz e tal só ainda não foi feito porque certamente iria contra os interesses enraizados. Talvez este Governo não tenha de se curvar a esses mesmos interesses e pense no interesse da população. E, sobretudo, na sua satisfação. São problemas como este e a habitação, entre outros, que motivam mais revolta entre as pessoas. E aqui ninguém quer isso. E já agora esforcem-se por comprar autocarros não-poluentes. Como os que vemos nas cidades da China. Há coisas que devem ser copiadas.
João Romão VozesPobres de nós [dropcap]O[/dropcap] relatório sobre o desenvolvimento humano que as Nações Unidas publicaram recentemente (Human Development Report 2019) mostra com a evidência necessária a brutalidade das injustiças do capitalismo global contemporâneo. O exaustivo trabalha documenta com precisão diferentes aspectos e determinantes das desigualdades atuais, incluindo detalhadas análises de estruturas económicas e sociais, suas particularidades geográficas, diferenças ainda marcantes entre homens e mulheres, impactos díspares das alterações climáticas ou preocupações crescentes para o futuro relacionadas com o desenvolvimento tecnológico e a educação. Em todo o caso, só o parágrafo de abertura é suficiente para se perceber a dimensão dos problemas que enquanto comunidade não conseguimos, sequer remotamente, resolver: “em cada país, muita gente tem limitadas perspectivas de um futuro melhor. À falta de esperança, objectivos ou dignidade, observam desde as margens da sociedade como outros progridem para ainda maior prosperidade. Em todo o mundo, muitas pessoas escaparam à pobreza extrema, mas ainda mais são as que não têm nem as oportunidades nem os recursos para assumir o controle das suas vidas. Muito frequentemente, género, etnia ou a riqueza dos pais ainda determina o lugar de cada pessoa na sociedade”. É minha a tradução livre do inglês e o documento está acessível na página de internet do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Talvez fosse momento para se pensar melhor o que queremos enquanto comunidade que habita este precário planeta, quando se chega a este momento histórico de extraordinária capacidade tecnológica, magníficas fortunas acumuladas em tantos lugares, tamanha capacidade de produzir riqueza a partir dos mais variados recursos, e ainda assim não somos capazes de assegurar um nível de vida minimamente decente para uma tão larga parte da população global. Nem se trata de uma qualquer reivindicação de radicalidade revolucionária: é tão só o cumprimento básico do ideário liberal, tão hegemonicamente aceite em todo o mundo como referência normativa para uma sociedade livre e democrática, que também não deixa de exigir (ou pressupor) que toda a gente deve ter acesso em condições adequadas aos instrumentos que permitam o exercício efetivo dessa liberdade, autonomia e suficiência. Analisar em detalhe toda a importante informação que o relatório revela seria inadequado para esta singela coluna, mas socorro-me de ilustrativo exemplo apresentado logo no início: o de duas crianças nascidas no ano 2000, uma num país muito desenvolvido e outra num país pouco desenvolvido, seguindo os critérios de desenvolvimento humano da ONU, que vão muito para além da riqueza produzida – o famigerado PIB per capita, que tanto entusiasma a generalidade dos economistas. Enquanto a pessoa nascida no país desenvolvido tem 50% de hipóteses de estar na Universidade aos 20 anos, a que nasceu no país menos desenvolvido tem 17% de hipóteses de estar morta. Pelo contrário, 3% das pessoas nascidas em países pouco desenvolvidos estão na Universidade aos 20 anos, enquanto que apenas 1% das nascidas nos países mais desenvolvidos terão morrido. Caminhos amplamente divergentes, portanto, com desigualdades que o género ou a etnia tendem a amplificar. O relatório analisa com detalhe diferentes aspetos que conduzem a estas divergências: desde logo há as questões tradicionais ligadas à educação, qualificações e tecnologia, com as suas manifestas implicações sobre a produtividade, a racionalidade na utilização de recursos limitados ou a eficácia dos sistemas económicos, mas também há novos problemas globais com impactos geográfica e socialmente diferenciados – as maiores vítimas das inundações e cheias resultantes das alterações climáticas em curso são populações pobres que vivem em zonas de maior risco e menor desenvolvimento das infra-estruturas. Na realidade, ainda que se salientem progressos manifestos em aspetos que tradicionalmente caracterizam a pobreza extrema (défices de rendimentos, carências alimentares, escassez de habitação), os dados também mostram que são crescentes as desigualdades no acesso a infra-estruturas e serviços avançados ou à educação e conhecimento, que a prazo condicionam irremediavelmente o acesso à representatividade política e ao dinamismo económico que inevitavelmente continuarão a demarcar territórios de exclusão. Não se trata de um relatório produzido por uma organização que se posicione com particular radicalismo crítico no atual sistema político e económico – e até podia ser, que não faltam razões para isso. Trata-se, pelo contrário, da mais consensual das organizações internacionais, onde todos os países têm voz e assento, mesmo que uns melhor sentados que outros. É, também, a voz dos governos, e não dos povos ou de organizações independentes dos poderes políticos. E quando estas vozes falam assim, talvez seja mais evidente a urgência de serem ouvidas. E mais do que isso: de contribuírem para abrir caminhos novos para problemas velhos que se vão agravando à medida que enriquecemos. Valem pouco as celebrações de paz e amor inerentes à quadra vigente e os desejos de novidade para o ano que agora chegou ao nosso calendário quando afinal se vai fazendo tão pouco para mudar o essencial. Em todo o caso, o relatório também traz um sinal de otimismo: em todo o mundo aumenta o número de pessoas que defendem uma distribuição mais igualitária da riqueza produzida. Já não é mau de todo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA vagina precisa de um museu [dropcap]N[/dropcap]esta nova década, a vagina precisa de um museu. As vaginas sempre foram muito mal compreendidas, e é preciso esclarecer as estórias mal contadas pelas quais as vaginas vivem e, infelizmente, ainda sobrevivem. Os museus têm o dever pedagógico de preencher os espaços do imaginário histórico-social que estão mal preenchidos. Em Londres, aparentemente, tal museu existe. Um espaço de inspiração, pensei eu. Um espaço de verdadeira compreensão, pensei eu. Só que o museu da vagina não é o museu da vagina como se quer. Grandioso, extenso, artístico, sensorial e de grande profundidade. É um pequeníssimo espaço na zona mais comercial da cidade, com uns painéis informativos – engraçados e úteis, mas simples – e uma loja anexada estilo ode da vagina: com brincos, colares ou decorações de natal inspirados no formato da vulva. Se numa cidade como Londres – que se diz sexualmente progressiva – não encontramos o museu da vagina como deve ser, não sei onde poderemos encontrá-lo. A esperança é de que este projecto se estenda para outras formas maiores – e que este seja só um começo. Se perguntarem a quem anda com uma vagina por aí, não faltam ideias para a expressar uma história de repressão vaginal de séculos, ainda actual e ainda pertinente. O museu da vagina mostraria as várias realidades da vagina. Os mitos que persistem porque existiram décadas anteriores que os justificassem. Uma história de violência ginecológica, de abortos realizados em casas duvidosas por enfermeiras que talvez soubessem o que estavam a fazer. Uma história onde o prazer nunca foi entendido como legítimo ou verdadeiro – o prazer da vagina, claro está. A contracepção como a rainha da emancipação das vaginas, da libertação da gravidez que o prazer por vezes implica. Mostrar-se-ia como a vagina se tornou detentora de direitos ao prazer. Como se lhe soltassem as amarras da religião, do casamento, ou dos ideais conservadores de uma maneira geral. Mas não quer dizer que tivessem deixado de existir por completo. O museu serviria esse propósito de reflexão, de onde as vaginas vieram e para onde querem ir. Para além da educação básica: que a coca-cola não é, nem nunca foi, um espermicida (não a ponham dentro da vagina!); que é normal as cuecas ficaram manchadas com corrimento; que os produtos de higiene íntima proliferam da pouca consciência dos cheiros e lubrificações vaginais. Um lugar onde se pusesse em causa os conceitos de virgindade e do que é o sexo. Mostraria as vítimas e as heroínas das vaginas guerreiras. No museu da vagina encontraríamos desejos para a vagina da nova década. Faz tanto sentido como o museu do sexo, o museu do pénis ou o museu queer. Precisamos é de museus que falem do sexo, e da história do sexo para desconstruir a tendência essencialista de que o sexo tem dicotomias redutoras. A heterogeneidade do sexo e dos seus prazeres terá que ser celebrada de alguma forma. Com uma parede de vulvas e as suas múltiplas formas e assim mostrar vaginas felizes, bem-informadas e capazes de se entenderem – com os seus ciclos, as suas menstruações; a naturalidade do sangue que ainda é complicada e incompreendida. Desejos de prazer que implicam tantas formas de sexo, na nova década que é para as vaginas e para um sexo que é simples e complexo, nestas coreografias de género, desejo, educação, intimidade e possibilidade para abertura.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesBons auspícios para 2020 [dropcap]N[/dropcapa]este primeiro artigo de 2020, desejo um feliz Ano Novo a todos os meus leitores e a concretização de todas as suas aspirações. Rezo também pela paz mundial e para que todos tenham saúde e sejam felizes. Para Hong Kong, que tem vivido períodos conturbados, espero que seja possível reencontrar a paz neste ano que agora começa. No dia 2, a Hong Kong TVB transmitiu uma notícia sobre quatro casos que estão a decorrer em tribunal. No primeiro, o réu está a ser julgado pela destruição do anúncio luminoso colocado na entrada da Hongkong and Shanghai Banking Corporation. O réu também terá entrado no edifício da administração central financeira do Banco e destruído uma máquina de depósito de cheques, duas máquinas de depósito de dinheiro e quatro ATMs. O réu foi acusado e considerado culpado desta ofensas. O juíz não aceitou a fiança e pediu que cumprisse a pena num centro de desintoxicação. O segundo caso é conhecido de todos. Um indivíduo encapuçado agrediu, com uma grelha de drenagem, um trabalhador que se encontrava a desimpedir o acesso a uma rua bloqueda por barricadas. O agressor foi acusado de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança e encaminhou o caso para julgamento. O terceiro caso foi muito falado na comunicação social. Umas pessoas que estavam a tirar fotografias foram atacadas por um casal que usava máscaras. O agressor atacou as vítimas com um pau, enquanto a mulher abria um guarda chuva para impedir que o ataque fosse visto. Foram ambos acusados de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança. O quarto caso está relacionado com cocktails molotov. O réu foi encontrado com dois cocktail molotov, duas latas de gás butano e um martelo. Foi acusado de posse de armas ofensivas. Foi considerado culpado e condenado a 12 meses de prisão. Para além destes quatro casos, a Hong Kong TVB também noticiou no dia seguinte mais três situações. Na primeira, várias pessoas foram encontradas na posse de armas ofensivas. Um dos réus, a quem chamaremos Mr. A, já tinha sido julgado em Setembro por um caso similar. Por ser reincidente, Mr. A não teve direito a fiança. O outro réu, a quem chamaremos Mr. B, era professor assistente numa Universidade de Hong Kong. O réu foi encontrado com 22 paus, dos quais 20 estavam afiados. Foi acusado de posse de armas ofensivas. O juíz concedeu-lhe fiança e o caso foi agendado para julgamento. No caso seguinte, o réu tinha escrito “bestas” nas barreiras policiais, um insulto à polícia. Foi preso e acusado de danos criminosos. Foi condenado ao pagamento de uma multa de HK$2.000. O ultimo caso refere-se a um homem que atacou um carro da polícia com uma mala com rodas, durante uma manifestação. O réu foi acusado de atentado à propriedade publica. Foi condenado a uma pena suspensa de 15 meses. Todos estes relatos indicam que ultimamente a polícia de Hong Kong não tem estado apenas focada nos distúrbios provocados pelos manifestantes. Só combatendo o crime se lhe pode pôr fim. Espero que este início auspicioso indicie que Hong Kong está voltar gradualmente à normalidade no ano que acabou de entrar. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Institto Politénico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesA harmonia [dropcap]H[/dropcap]armonia é uma das palavras mais ouvidas nos discursos políticos da região. Procurar e atingir harmonia social! Ahhh, refastelem-se nesta chaise-longue conceptual, soa tão bem, como um desígnio celestial, uma aspiração ao divino. Uma forma quase holística de designar paz social. Na humilde opinião deste vosso escriba, a paz e a concórdia são algo que deve nascer de dentro de uma sociedade, tendo o Estado apenas a vocação de a proteger, não deve partir de cima, da supra-estrutura para a sociedade. Harmonia sob ameaça não é harmonia, é sequestro, branqueamento, uma fantasia política que mascara o autoritarismo. Se quisermos viver nesta aparência, olhemos para a Coreia do Norte. Nunca vi fotografias com tão rasgados sorrisos, esgares de pura felicidade. Nunca ouvi falar numa greve, manifestação, contestação popular. Será que isso faz de Pyongyang uma cidade harmoniosa? Em contrapartida, dou um rebuçado a quem encontrar fotos com carantonhas mais sisudas do que as que retratam cidadãos do norte da Europa, onde prolifera a contestação social. Tal como o amor, a harmonia não se impõe e importa distinguir harmonia do conceito de ordem de Estado imposta com punho-de-ferro. E não me venham dizer que para ter uma opinião, para abrir a boca, tenho de frequentar 50 licenciaturas e mais três vidas de pesquisa histórica, se não querem bater o recorde do elitismo de polichinelo. Isso não é um argumento, não se aproxima de uma réplica, mas é, apenas, um escapismo infantil que procura o silêncio apaziguador do poder alérgico ao ruído da rua. Uma rua silenciosa é uma rua morta, jamais harmoniosa.
João Luz VozesO crente [dropcap]N[/dropcap]ão precisa fazer sentido, aliás, apenas funciona sem cabimento, desprovida de razoabilidade. A fé continua a dominar os homens, nas suas instâncias mais primárias, nos recessos da condição humana, substituindo a luz nos recantos mais escuros onde nem um raio de razão brilha. Na ausência de resposta, o crente não se contenta com a digna e edificante ignorância, com o ponto de partida. O conhecimento virá de cima e de forma imediata, a rendição total é o preço a pagar. A ideologia funciona através de mecanismos semelhantes. Fundada em asserções sobre o indivíduo, o grupo social, o mundo e o além, a ideologia é um corpo musculado por doutrinas orientadoras. Tal como a sua mística irmã, a fé, os ideários políticos impõem-se de cima para baixo, numa verticalidade esmagadora da razão e do bom-senso, na aniquilação da máxima de Descartes “penso, logo existo”. Neste domínio, “sigo, logo existo” é a essência do crente e do ideólogo. A subjugação às palavras do líder funda a sua existência. Até o homem mais temperado, sob a influência alucinogénica da ideologia acredita nas mais bárbaras monstruosidades. Precisa delas, precisa do sentimento de pertença a algo maior que si. Precisa da redenção gnóstica dos crentes. Ambas as irmãs (fé e ideologia) actuam perversamente no mais belo e inexplorado enigma que a natureza nos ofereceu: a consciência. Algo que está muito para além da compreensão, que seduz os místicos, que confunde a ciência e que é um empecilho aos líderes espirituais e políticos. Só com fervoroso dogma se pode acreditar nas mais estapafúrdias teorias, um intoxicante tão poderoso ao ponto de mascarar a mais óbvia e assumida propaganda numa verdade inabalável. Hoje não quero sujar as mãos nesse lodaçal que é a política local/regional, mas apenas dirigir-me aos factores entorpecedores da razão que poluem os nossos dias. A polarização política chegou a um ponto tão extremo que as intenções e acções de grupos antagónicos se confundem em alianças magnéticas, como dois imãs esquizofrénicos que se abraçam repudiando-se ao mesmo tempo. Sem nuance de teatralização política, vemos teorias de neonazis que lutam por representação democrática, teses de comunistas que defendem com unhas e dentes cartelizações capitalistas rebentando recordes de pequena-burguesia, moderados a salivar por infinitas penas de morte por infrações de trânsito, pacifistas a encher os bolsos nos mercados do armamento pesado, vampiros a limpar o sangue dos queixos enquanto gritam slogans vegans. O mundo virou-se de pantanas e a crença voltou a predominar lançando-nos, outra vez, para uma idade de trevas. Nada de bom pode surgir daqui, apenas ganância desmedida, sangue e morte. Até chegarmos a um novo iluminismo, será feita farinha dos ossos esmagados dos mais pequenos. Nada sobreviverá à autofagia deste monstro místico de duas cabeças. Polos sul e norte magnéticos unidos num abraço homicida/suicida. Este é o fruto da era da ultra-ideologia, a atracção entre extremos e a asfixia de tudo o que está no meio. A minha postura hoje é de niilista contemplação. Que se esmaguem, “que esta quilha rompa e me engula o oceano”, que ateiem todos os fogos e nos sepultem em mil sarcófagos de estrelas. Sinceramente, não me interessa. Se não posso viver em verdade, viverei feliz em alucinação, livre de amarras, sem dogmas ou crenças a ditar sabedoria suprema ou pertença tribal. Se querem acreditar no que vos dizem, força nisso, fiem-se na supremacia da vossa verdade, na superioridade do dogma que habita debaixo da vossa pele, no mundo bipolar do irmão Karamazov caído em desgraça porque na ausência de Deus tudo é permitido. Vivam nesse sistema binário de 0s e 1s, preto e branco, norte e sul e multipliquem-se na demência de serem 0 e 1 ao mesmo tempo. Por mim, tudo bem. Mas façam-me um favor: poupem-me a evangelizações, projeções absurdas e limpezas encefálicas. Há muito que deixaram de ter piada.
Carlos Morais José VozesAi, o Irão! [dropcap]A[/dropcap]i, o Irão. Tudo aflito com Hão Cão mas, afinal, quem está mal é o Irão. Até onde é que irão?, é a pergunta nas mentes e que faz tinir os dentes. E a Rússia, meu deus, e a China, gentil Confúcio, até onde é que eles irão? Dar-se-á uma explosão? Vem aí o apocalipse, pse, pse? Ou talvez não? É perguntar ao Irão, à capital Teerão e, porque não, a Hão Cão? E já agora ao vizinho, ao que chamam Paquistão, cujas armas são das boas e estão ali mesmo à mão. Isto é uma maravilha: nada se passa, tudo se enrodilha. A massa vai p’rá pandilha, a do costume, que das gentes faz curtume. E depois, perguntam os bois? E depois nada, a mesma e triste maçada, até me tocar na pele. Aí é dor a granel, ai que queima, ai que se vai o papel. Não era nada comigo, menos com o meu umbigo, esta guerra de alto-ar: américas vermelhuscos, iranianos patuscos, tudo de pernas pr’ó ar. Vem daí, anda brindar, é tempo de alvorecer. Que neste mundo aziago já só nos falta morrer. Então para espairecer que esteja o copo na mão. Bota acima e bota abaixo. Quero lá saber do Irão! Vou mas é para Hão Cão!
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO adeus a 2019 [dropcap]E[/dropcap]m Hong Kong, 2019 marcou a transição da paz para a turbulência. A forma eficaz de “parar a violência e a curva ascendente de tumultos”, será através da criação de uma comissão de inquérito independente, uma aspiração da maioria dos residentes de Hong Kong, e não através do estabelecimento de um “comité de análise independente”. Mas porque é que a criação desta comissão de inquérito parece gerar tantos receios? Se estes problemas forem ultrapassados, os tumultos em que Hong Kong se encontra imerso irão acabando, as relações entre a polícia e a população vão melhorar e vai ser possível amenizar as clivagens sociais. As situações devem ser consideradas no seu todo, quem não consegue ter um perspectiva geral dos acontecimentos não merece ser líder de Hong Kong. E em Macau, que balanço podemos fazer? A cidade acabou de celebrar o 20º aniversário do estabelecimento da RAEM e o Presidente Xi Jinping passou aqui três dias, durante os quais efectou diversas visitas e presidiu à cerimónia da tomada de posse do V Governo. Numa primeira análise, Macau apresenta-se próspero e estável, tendo sido louvado como um modelo do princípio “Um país, dois sistemas”, mas, na realidade, subsistem muitos problemas por resolver. Mesmo antes da vinda do Presidente Xi, a classificação da agência de crédito Fitch Group sobre Macau passou de “estável” a “negativa”. A classificação baixou devido à erosão da autonomia do Governo da RAEM na cena política, à continuada perda de receitas da indústria do jogo, das quais o Governo local depende em larga escala, e à crescente ligação económica, financeira e sócio-política à China continental. Durante a visita de três dias do Presidente Xi a Macau, considerou-se que o controlo de segurança tinha sido efectuado com sucesso, porque todos os seus encontros e percursos tinham sido cuidadosamente verificados e preparados com antecedência. O controlo de segurança é necessário sem sombra de dúvida, mas isolar o Presidente da população retira-lhe a oportunidade de ter contacto com a realidadede. Por essa altura, vi uma foto tirada em frente ao Largo do Senado, que estava a circular online. Na foto, vê-se uma pessoa que parece ser o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, vestido informalmente, com diversos homens à sua volta a andar em direcção à Praia Grande. Depois de ter visto esta imagem, lembrei-me de um artigo intitulado “Após regressar a Xingyi, tive saudades de Hu Yaobang”, escrito em 2010 pelo antigo Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao. No artigo, Wen falava dos ensinamentos de Hu Yaobang, que defendia que os líderes e os quadros superiores devem ir ao encontro das bases, para, pessoalmente “experienciarem e observarem as dificuldades do povo, escutar a sua voz e conhecer em primeira mão a sua realidade”. O maior risco que qualquer líder corre é distanciar-se da realidade. Em lugar algum do mundo existem controlos de segurança 100% eficazes. A calma e harmonia que o Presidente Xi testemunhou em Macau deriva do facto de a maioria dos residentes da cidade não ter qualquer intenção de se manifestar contra ele, isto, para lá dos múltiplos controlos de segurança implementados. Em relação à situação actual de Macau, não se vislumbra qualquer possibilidade de mudança, “as coisas são como são”. Os novos líderes da RAEM, que tomaram posse em Dezembro de 2019, são no seu conjunto um grupo de novos dirigentes designados para os cargos de Secretários e membros do Conselho Executivo. No entanto, uma renovação das equipas não significa necessariamente um estilo novo de administração, o qual depende das competências e da experiência dos seus elementos. Experimentar novas jogadas com uma certa relutância pode ter efeitos adversos. Apesar de tudo, Macau tem recursos escassos e poucos técnicos qualificados e continua a depender das receitas do jogo e do turismo. A cultura social assente na tradição ancestral das múltiplas associações locais, moldou uma certa morfologia social e travou o desenvolvimento. Num local sem competitividade como Macau, a inacção é a escolha mais fácil. Para me despedir de 2019, decidi desfazer-me de muitas coisas. Enquanto arrumava, deparei-me um um artigo retirado do Hong Kong Economic Journal, datado de 12 de Janeiro de 2019, que fazia uma previsão da situação de Hong Kong para esse ano, a partir da perspectiva do “Yi Jing” (“O Livro das Mudanças” – um clássico da antiga filosofia chinesa). Embora seja cristão, tenho um profundo interesse pela filosofia tradicional chinesa. Após uma análise das normas sociais e da natureza humana, o artigo concluia que “Não nos devemos impôr aos acontecimentos”. Quando fazemos algo, devemos primeiro avaliar a situação, analisar os prós e os contras, não agir de forma precipitada, de forma a termos campo de manobra”. Hong Kong e Macau têm de ter noção dos seus posicionamenros, vantagens e limitações. É preciso aprender com os mais fortes para contrabalançar as nossas fraquezas, de forma a invocar a sorte e esconjurar o infortúnio. Quanto ao que espera as duas cidades em 2020, apenas posso dizer que vai depender da forma como os seus dirigentes souberem conduzir os actuais acontecimentos.
Olavo Rasquinho VozesCosta Malheiro – Meteorologista em quatro continentes [dropcap]E[/dropcap]stou certo que muitos dos portugueses que vivem ou viveram em Macau nos primeiros seis anos da década de noventa do século passado se lembram da figura popular que foi o director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG), António Pedro Fernandes da Costa Malheiro. Costa Malheiro, a quem podemos apelidar de um verdadeiro meteorologista dos quatro costados, desenvolveu a sua atividade profissional em quatro continentes. Homem de grande honestidade, competência, dinamismo e capacidade de trabalho, pai de seis filhos, foi não só uma figura popular da meteorologia, mas também um cidadão de mão-cheia que se dedicou a outras actividades como autarca no bairro onde vivia, Olivais (onde nasceu em 10 de julho de 1933), contribuindo para que muitos jovens ocupassem os tempos livres a praticar desporto, encaminhando-os para uma vida mais sã do que eventualmente seguiriam se não se dedicassem a esta actividade. Com muita dignidade e competência desempenhou altas funções em Portugal, Brasil e Macau, onde pelo seu dinamismo e simpatia granjeou numerosos amigos entre os colegas, instruendos e pessoal sob a sua direcção. Antes, ainda muito jovem, desempenhou funções de meteorologista em Angola, onde se familiarizou com a meteorologia tropical, o que lhe viria a ser muito útil mais tarde, como professor de meteorologia no Brasil. Em Portugal as funções mais relevantes que desempenhou foram as de instrutor de meteorologia, em estágios no Serviço Meteorológico Nacional (SMN), juntamente com o Professor Pinto Peixoto (mundialmente conhecido nas áreas da meteorologia e Climatologia), de coordenador da Divisão de Instrução e de Chefe do Centro de Análise e Previsão do Tempo do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG). Mais tarde, após o regresso de Macau, foi presidente do Instituto de Meteorologia (1996-1998), lugar que ocupou por mérito e não por qualquer influência político-partidária. Na Divisão de Instrução do INMG desenvolveu actividade meritória pondo em prática as recomendações da Organização Meteorológica Mundial (OMM) no que se refere aos curricula para a formação de profissionais de meteorologia. O nível atingido na preparação do pessoal foi tal que alguns colegas, com um certo ar jocoso, se referiam àquela divisão como a “Universidade do Malheiro”. Com pouco mais de trinta anos foi contratado como perito da OMM para lançar o Curso de Meteorologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, onde foi docente de 1967 a 1973. Neste último ano, em sua homenagem, uma das salas desta universidade foi designada com o seu nome. Após o seu regresso do Brasil foi um popular apresentador do Boletim Meteorológico na RTP, tendo colaborado com esta estação durante alguns anos. Como director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau, o penúltimo sob administração portuguesa, de 1991 a 1996, teve papel preponderante na modernização destes serviços, apetrechando-os de equipamento moderno e preparando o pessoal para a transição do território para a administração chinesa. Também em Macau, já após o seu falecimento, foi alvo de uma homenagem com o descerramento de uma placa numa sala dos SMG a que foi dado o seu nome. Durante a sua vigência como diretor dos SMG desenvolveu grande actividade no sentido de que Macau fosse admitido como membro de pleno direito do Comité dos Tufões (ESCAP/WMO Typhoon Committee – organização intergovernamental cuja atividade se desenrola no sentido de minimizar as consequências dos ciclones tropicais no noroeste do Pacífico e Mar do Sul da China), em 1992, e território membro da OMM, em 1996. Foi presidente do Comité dos Tufões durante o ano 1995. Tendo havido decisão irrevogável do Governo de Macau de construir de raiz o Museu de Macau no local das instalações da antiga sede dos SMG, na Fortaleza do Monte, Costa Malheiro foi intransigente na negociação, exigindo como contrapartida a construção de um edifício moderno e bem apetrechado na Ilha da Taipa, inaugurado em 1996. Costa Malheiro, enquanto director dos SMG usufruiu de grande prestígio no meio da meteorologia não só em Macau e China, mas também nos outros países e regiões membros do Comité dos Tufões (catorze ao todo – Camboja, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Estados Unidos da América, Filipinas, Hong Kong, Japão, Laos, Macau, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietname). Por onde passou desenvolveu actividade merecedora do reconhecimento do pessoal com quem trabalhou, tendo sido alvo de homenagens que ficaram para sempre a marcar a sua presença. Para ilustrar a faceta humana de Costa Malheiro relembro o conselho que me deu quando me apresentou, como subdirector, ao pessoal dos SMG: “quando cumprimentares o pessoal começa por apertares a mão ao pessoal menos classificado profissionalmente”. Devido à sua contribuição para a meteorologia e à obra em prol dos jovens de Olivais, a Câmara de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua da capital, conforme o Edital da edilidade de Lisboa de 26/12/2001. Nesta ocasião, em que se celebraram recentemente os vinte anos da integração de Macau na China, é de toda a justiça relembrar Costa Malheiro, que muito contribuiu para o prestígio internacional de Macau na área da meteorologia.
João Luz VozesBom ano novo [dropcap]A[/dropcap] passagem de testemunho do poder executivo em Macau transmitiu por contágio os mesmos vícios de sempre. Ainda com os dias de governação no dígito único é impossível fugir ao sentimento de déjà vu. Já vimos este filme nesta vida. Macau é a terra onde se coloca em perigo um projecto de sucesso – a Cinemateca Paixão – por aparente negligência. Depois é ver a mesma sucessão de acontecimentos. A situação é noticiada e daí gera-se consternação social, um burburinho que aviva o desdém jocoso dos governados. Vai daí, soam alarmes para arrepiar caminho, prolonga-se por seis meses o prazo da concessão à entidade que geria o espaço e lança-se um novo concurso público na esperança de que já ninguém se lembre deste filme a meio dos créditos finais. Fica na boca um travo amargo a marosca, a coisa pública gerida com badalhoquice. Por outro lado, inaugura-se um sistema bilionário de transportes públicos para cumprir calendário político, expondo a cidade inteira ao ridículo e a desculpas esfarrapadas que doem só de ouvir. Claro, esta foi a primeira vez na virginal Lótus, nunca antes neste terceiro calhau a contar do Sol se tentou esta coisa futurista do transporte por carris. Mas não faz mal. Herda-se do chefe deposto a habilidade de comprar complacência. Mais um mês de bilhetes grátis para o povo e mil vivas às indulgências governativas, ao silêncio e a apatia política comprados nos saldos do civismo. Enfim, lamúrias surdas de fim de calendário. Não liguem. Feliz 2020!
Andreia Sofia Silva VozesQuem gastou mais? [dropcap]H[/dropcap]o Iat Seng começa o seu primeiro mandato como Chefe do Executivo a lançar farpas a Alexis Tam por ter gasto demasiado enquanto secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Ho Iat Seng vai mais longe e diz que o excesso de despesas na Administração também pode ser equiparado ao crime de corrupção, deixando no ar algo que ainda não percebemos exactamente o que é. Convém lembrar que, antes dos gastos de Alexis Tam, já o Governo havia esbanjado imensas patacas em empresas de capitais públicos, aquelas que ninguém percebe exactamente o que fazem ou onde investem, ou em derrapagens orçamentais de obras públicas. Não faltam exemplos na Administração de despesismo. Acusar agora Alexis Tam de gastar muito, tendo em conta que este teve a tutela da saúde, da educação, da cultura e do turismo é deveras estranho. Convém lembrar que só as áreas da saúde e da educação representam enormes gastos em qualquer orçamento, de qualquer país ou região. Macau continua a não ter um novo hospital público, mas mesmo assim Alexis Tam fez por contratar mais médicos e inaugurar novas infra-estruturas. Além do mais, se Alexis Tam esbanjou tanto dinheiro, porquê escolhê-lo para a Delegação Económica e Comercial de Macau em Lisboa e Bruxelas?
Carlos Morais José Editorial VozesIsto começa bem… [dropcap]O[/dropcap] ataque de Ho Iat Seng a Alexis Tam foi tão inesperado quanto violento, fugindo e muito ao tom habitualmente usado pelos políticos de Macau. A coisa é de tal modo assim que muitos se interrogam se o alvo de Ho Iat Seng era mesmo Alexis Tam ou se pretendia atingir mais acima, isto é, a gestão de Chui Sai On. Afinal, Tam foi chefe de gabinete de Chui e depois o seu Secretário. Neste caso, a ser assim, será que o novo Chefe do Executivo estava criticar o “despesismo” relacionado com o Hospital Kiang Wu e a falta de investimento no hospital público? Será que Ho Iat Seng estava a pensar no “despesismo” com a universidade conhecida por MUST? Ora estas são as áreas de Alexis Tam, embora todos saibam que o Secretário nelas pouco riscava, pois que nos lembramos ter o director dos Serviços de Saúde sempre despachado directamente com Chui Sai On, deixando Alexis Tam a pregar no deserto. Uma coisa é, porém, certa: Ho Iat Seng não se devia estar a referir à área da Cultura, já que o investimento do Governo nesta área, com a excepção dos grandes eventos, tem sido ridículo. O Alexis leva para o tabaco, mas será que o ataque tão incisivo lhe era mesmo dirigido? Isto começa bem…
Carlos Morais José VozesDescubra as diferenças [dropcap]A[/dropcap]gora que acabou a festa e se limparam os confetes, é tempo de passar a outra fase. E a fase poderá chamar-se “descubra as diferenças” entre este Governo, ontem empossado, e o Governo cessante. Claro que no discurso nunca se deixará de sublinhar a continuidade. Afinal, o princípio “um país, dois sistemas, com características de Macau” foi elevado a sucesso nacional e (com referência a Portugal) a sucesso mundial. O que resgata a governação de Chui Sai On. Mas a roda não pára e as pessoas não são iguais. Certamente que vamos, aos poucos ou de repente, notar diferenças de estilo nos novos ocupantes das cadeiras do poder. E, numa terra em que a política é feita em lume muito brando e geralmente longe do alcance dos olhos do vulgo, pouco mais temos a fazer do que ir detectando as diferenças, falando sobre isso e, por vezes, fazer mesmo umas piadas. Assim pode queimar tempo, quem tem tempo para queimar. E nós não temos de nosso senão tempo. Por isso, não se esqueça: descubra as diferenças.
Pedro Arede VozesOlhos no caminho [dropcap]N[/dropcap]ão chegámos a nenhuma encruzilhada, nem hoje é o fim ou o princípio de alguma coisa. Houve um caminho que nos trouxe até um dia redondo onde se comemora o 20º aniversário da RAEM e para alguém como eu, que ainda está a apalpar terreno numa nova realidade, penso que nunca é demais fixar os olhos no caminho. Não no objectivo. Pois, no limite, este pode até nem existir. Há quem chegue, há quem vá e há quem fique retido no caminho. E houve caminhos também que nos últimos dias terminaram em postos fronteiriços ou jornalistas que tiveram de caminhar de volta para onde vieram. Não me cabe dizer se está certo ou errado mas acredito que nunca é demais apostar naquilo que retiramos quando estamos dispostos a pecorrê-lo e, abstraindo-nos do resto (e do objectivo prático), tal como aqueles dias que antecedem uma grande viagem que nos vai levar, por exemplo, ao nosso destino de férias, continuar. Sem esquecer que, mesmo que não cheguemos, o caminho em si nunca nos pode ser retirado e tem de valer a pena por si só. Porque é o nosso e ainda há muito para percorrer. O resultado será o melhor possível.
João Luz VozesSistema de amor [dropcap]M[/dropcap]acau tem sido citado múltiplas vezes como o exemplo a seguir no que toca à implementação do princípio “Um País, Dois Sistemas”. Visto como o território bem-comportado, que não tuge nem muge, dócil e agradecido pelas oportunidades concedidas e que, por isso mesmo, tem acesso a liberdades que não existem no resto da China. Deixem-me repetir mais uma vez. Macau faz parte da China! Macau é China, mas não é, ainda, um território como Zhuhai. Tem um estatuto administrativo especial, como atesta o E em RAEM. Dizer que Macau é um exemplo da boa implementação de “Um País, Dois Sistemas” enquanto se persegue, ameaça e condiciona a vida de jornalistas e dissidentes políticos é antagónico. Além de ser uma terrível mensagem para Hong Kong e principalmente para Taiwan, é uma postura política que se coaduna mais com o princípio “Um Só País”. Não é por se repetir muito uma coisa que ela se torna realidade. Mas, enfim, estes exemplos de ditadura repressiva vão ser relativizados como um exagero securitário circunstancial, sem repercussões no segundo sistema. Apenas um conjunto de dias em que os direitos, liberdades e garantias foram suspensos, como que por magia. É assim que se aplica o Segundo Sistema escrupulosamente? Perseguindo pessoas, ameaçando, dizendo para “serem bons meninos”? Sem querer, a mensagem transmitida para Hong Kong e Taiwan é a oposta da pretendida. A posição política e administrativa de Macau é o resultado de uma negociação e do consenso que levou a esta bela experiência que é a RAEM, à vida que se tem nesta cidade que todos amamos. Será muito pedir respeito pelo acordado? Pedir o cumprimento de compromissos assumidos com honra e respeito não é uma posição radical, mas um imperativo de amor.
Carlos Morais José VozesAs perspectivas ridículas [dropcap]C[/dropcap]omparar Macau a Hong Kong é a última moda, derivada das comemorações dos 20 anos da RAEM. E nestas comparações ressaltam, sobretudo, a miopia quando não a ignorância de quem as produz, normalmente com o fito de nos diminuir face à ex-colónia britânica. Que HK tem uma sociedade civil vibrante e Macau não. Que HK luta pela democracia, enquanto aqui se luta para enriquecer. Que HK resiste à investida de Pequim, enquanto Macau obedece como um bom filho. Que os portugueses deixaram aqui um caos, enquanto os ingleses entregaram uma cidade arranjadinha. E muitos outros disparates a que estamos habituados desde o século XIX, momento em que os britânicos assentaram arraiais na China, com o intuito de vender droga. Sim, porque nada disto é novo, tudo isto é fado. E os fadistas vão ocupando o lugar deixado por outros, sempre com o mesmo objectivo de menosprezar Macau e incensar os tristes restos da colónia da pérfida Albion. Contudo, estes disparates têm sempre algo em comum, algo de ridículo, que nem quem os emite talvez compreenda. É que são construídos com base numa perspectiva do mundo radicalmente fundada nos valores do Ocidente, que surgem como divinos e incontornáveis, como se para eles não existisse alternativa, muito enquadrados no pensamento do fim da História de Fukuyama (que ele, por acaso, já abandonou, mas parece que não deram por isso…) e na superioridade inequívoca do homem branco, capaz de levar a salvação ao resto do mundo, ainda que o resto do mundo não esteja interessado. Dantes era o Cristianismo pelas goelas abaixo, agora é o que chamam de democracia. São, por isso, perspectivas ridículas. Neste movimento, o importante para esta gente é sentir-se de algum modo superior ao que a rodeia, ainda que não o compreenda, nem faça um verdadeiro esforço para o compreender. Orientalistas do acaso, mas avessos à cultura alheia, impantes de certezas fundadas em artigos de propaganda, despejam opiniões e insultos como se eles não fossem apenas provas do exercício da sua iniquidade. Ou então chineses cuja visão da História, infectada pelos britânicos, procuram na diferença de Macau razões para se julgarem alguém melhor. O facto é que habitam numa terra ilegalmente conquistada no passado, brutalmente injusta no presente e socialmente desesperante em termos de futuro. Em Macau, 20 anos depois, salvo alguns maus momentos, respeitou-se o princípio “um país, dois sistemas”, conservou-se a liberdade, os direitos civis e políticos, e só não demos mais passos para uma maior representatividade democrática por causa dos acontecimentos de Hong Kong. A comparação é simples: aqui estiveram portugueses, ali ingleses. E quase tudo deriva disto. Sim, ingleses, esses que não sabem estar em lado nenhum.
João Santos Filipe VozesPara a população [dropcap]U[/dropcap]ma das grandes vantagens da História face ao Jornalismo é o distanciamento temporal. Ao contrário de quem está próximo dos acontecimentos, quem faz a análise mais à frente no tempo tem outros dados e consegue ver a floresta, por oposição com o jornalista que está atrás todos os dias atrás de uma árvore diferente. Tal não significa que o jornalista não veja pontualmente a floresta, também vê, só que na maior parte das ocasiões as copas das árvores são mesmo demasiado altas. Dito isto, não faço a mínima ideia do que vai acontecer nos próximos 30 anos da RAEM, não tenho experiência para analisar os últimos 20 e falta-me o distanciamento para uma boa análise. Por isso, espero apenas que o que está para vir faça a população feliz.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesMacau, um modelo a seguir? [dropcap]U[/dropcap]m amigo enviou-me há pouco do seu telemóvel a foto de uma grande fila de carros junto a uma bomba de gasolina. Esta afluência deve-se à visita do Presidente Xi Jinping, que vai estar em Macau de 18 a 20 de Dezembro e, por este motivo, as bombas só podem ser abastecidas entre a meia-noite e as 6.00 da manhã. Como já enchi o depósito do meu carro, não vou ter de ir para as filas e enfrentar a confusão. Segundo os comunicados do Governo de Macau, o Corpo de Polícia de Segurança Pública e os Serviços de Alfândega vão inspeccionar em conjunto todos os veículos que circulem nas estradas que fazem a ligação aos postos fronteiriços terrestres de Macau, no período compreendido entre 17 e 21 de Dezembro. Os pontos assinalados são a Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, as Portas do Cerco, Cotai e o Parque Industrial Transfronteiriço Zhuhai-Macau. Porque é que estas inspecções conjuntas não são feitas todos os dias, mas apenas durante a visita do Presidente Xi? Será que as autoridades tiveram acesso a alguma informação privilegiada que indicasse que segurança do Presidente poderia vir a estar em risco? Faz sentido intensificar a inspecção dos veículos nos postos fronteiriços terrestres para aumentar a segurança, dado que, nesta altura, o volume do tráfego aumentou imenso. Mas porque é que foi suspenso o serviço de passageiros do Metro Ligeiro entre 18 e 20 deste mês, quando se encontrava no período experimental apenas há uma semana? Será que a manutenção deste período experimental iria afectar de alguma forma a segurança do Presidente Xi? Como é que o funcionamento do Metro Ligeiro de Macau ia pôr em risco a integridade do líder nacional? Será que Macau não é uma cidade segura? Saliente-se ainda que, a este propósito, o Governo da RAEM anunciou “devido à realização de Actividades Comemorativas do 20º Aniversário do Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, entre 18 a 20 de Dezembro de 2019, serão aplicadas medidas de controlo e de interdição à navegação no Canal do Porto Exterior, no Canal da Taipa, no Canal de Acesso ao Porto Interior e Canal de Acesso ao Porto de Ká-Hó”. Relativamente ao controle do espaço aéreo, penso que as entidades competentes também já tomaram medidas nesse sentido. Todas estas medidas de segurança criam instabilidade na população. Devíamos estar a viver um momento de festa e de alegria, durante a visita do líder nacional a Macau para presidir à inauguração da cerimónia do estabelecimento do novo mandato do Governo da RAEM. Porque é que o Governo lida com esta situação como se houvesse um perigo em cada esquina? Desde quando é que Macau passou a ser uma cidade hostil? Mas além de Macau, as autoridades de Zhuhai também criaram pontos de controle na Ilha articifual de Leste da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, para que quem atravessa a ponte de Hong Kong para Macau possa ser inspeccionado. Pelo menos uma pessoa já foi detida nesta operação. O secretário para a Administração da Região Administrativa da RAEHK, Cheung Kin-chung, declarou que o exercício de jurisdição na Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, por parte da China continental é, não só razoável como legal. A afirmação de Cheung é correcta. Mas o que está aqui em causa é a brevidade deste posto de controle e o facto da sua existência se ter ficado a dever apenas à visita do Presidente Xi. É sabido que “o modelo de controle fronteiriço da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau, será adoptado o modelo de construção em separado por cada Governo de três postos fronteiriços individuais”. É certo que a Ponte se encontra sobre a jurisdição da China continental na sua totalidade, mas todos os condutores sabem que não é permitido parar um veículo que a esteja a atravessar, porque a ponte é um ponto de ligação entre as três RAEs. É possível exercer jurisdição sobre a Ponte, desde que se recorra ao tacto e à inteligência. Não é necessário inspeccionar todos os passageiros, porque só lhes poderá dar a sensação que podem vir a ser “extraditados para a China”. Se a China continental tivesse criado logo de início um posto de controle de segurança na Ilha artificial de Leste, penso que as pessoas teriam compreendido e cooperado. Mas de facto o controle de segurança é só uma medida temporária, que só funciona durante o período da visita do Presidente Xi a Macau. Esta actuação demonstra claramente uma falta de confiança por parte das autoridades. Recentemente Macau foi elogiada como um modelo de sucesso do conceito “Um País, Dois Sistemas”, por comparação com o que se passa em Hong Kong. Macau promulgou legislação sobre segurança nacional, de acordo com o Artigo 23 da Lei Básica, no início de 2009. Para além da “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado”, Macau fez em 2017 uma emenda à Lei n.º 5/1999 (Utilização e Protecção da Bandeira, Emblema e Hino Nacionais) em consonância com a “Lei do Hino Nacional da República Popular da China”. Mesmo uma “cidade modelo” como Macau, teve de ser tão monitorizada e controlada! Bom, será que Macau é verdadeiramente um “modelo” de cidade? Para tornar Macau um verdadeiro modelo do ideal “Um País, Dois Sistemas”, além de vir a promulgar com sucesso leis que não passaram em Hong Kong, também será necessário levar por diante a reforma política que Hong Kong não conseguiu alcançar. Desta forma, a população de Hong Kong vai poder constatar que Macau irá eleger o seu Chefe do Executivo por sufrágio universal, sob condições específicas, e que a reforma da Assembleia Legislativa irá gradualmente garantir que todos os deputados ocuparão o seu lugar por via da eleição directa, ou seja “uma pessoa, um voto”. Quando Macau conseguir alcançar o que Hong Kong não conseguiu, será um verdadeiro modelo do ideal “Um País, Dois Sistemas”.
José Simões Morais Vozes同人 A Comunidade de Macau [dropcap]P[/drocpap]ara tentar não repetir o que se vem escrevendo sobre os 20 Anos da RAEM, fiz a pergunta ao Yi Jing [Livro das Mutações] e a resposta dada foi o hexagrama Tongren, 同人 Comunidade com os Homens, cuja imagem é o trigrama Céu sobre o trigrama Fogo. Pela natureza do fogo a chama arde em direcção ao Céu e tal sugere a ideia de comunidade. Este hexagrama é o oposto do hexagrama Shi, que significa Exército e simboliza Terra sobre Água, tendo como Imagem algo perigoso no interior e obediência no exterior a exigir disciplina, assim como a necessidade de um homem forte entre muitos fracos. Já para Macau, “a clareza encontra-se no interior e a força no exterior, o que caracteriza uma pacífica união entre os Homens, que para manter sua coesão necessita de uma pessoa suave entre muitas firmes”, em tradução de Richard Wilhelm, que segue para o Julgamento: “A comunidade com os Homens em espaço aberto tem sucesso. (…) A verdadeira comunidade entre os homens deve basear-se em interesses de carácter universal. Não são os propósitos particulares do indivíduo, mas os objectivos da humanidade que criam uma comunidade duradoura entre os homens. (…) Para que se possa formar uma tal comunidade, é necessário um líder perseverante e lúcido que tenha metas claras, convincentes, que despertem entusiasmo e que possua força para realizá-las.” Pela Imagem dos trigramas encontrados entende-se: “O Céu movimenta-se na mesma direcção que o fogo e, no entanto, são diferentes um do outro. Assim como os corpos luminosos no Céu servem para a articulação e divisão do Tempo [na China o Tempo é uno, mas como método pode desdobrar-se pelos ciclos da História que se repetem em diferentes níveis de complementaridade e sincronia], a comunidade humana e todas as coisas que pertencem à mesma espécie devem ser estruturadas organicamente. A comunidade não deve ser um símbolo conglomerado de indivíduos ou coisas — isto seria um caos, e não uma comunidade —, mas para que a ordem se estabeleça é necessário que haja uma organização entre a diversidade dos seres.” Ao deitar as três moedas para encontrar os dois trigramas, que formam o hexagrama, na primeira linha saiu o número 9 e respeitante a essa linha lê-se: “O início de uma união entre homens deve ocorrer diante da porta. Todos encontram-se igualmente próximos uns dos outros. Ainda não existem divergências e nenhum erro foi até então cometido. Os princípios básicos de qualquer tipo de união devem ser igualmente acessíveis a todos os participantes. Acordos secretos geram infortúnio.” Harmoniosa comunidade Passeava por Macau quando, em frente às ruínas de S. Paulo, encontro um jovem a explicar a História do monumento e cada um dos símbolos da fachada a um enorme grupo de estudantes mais velhos. Seguiram depois o jovem guia, em Actividade Formativa sobre o Património Cultural, para o Templo de Na Cha e daí para o Museu de Macau. Espanta a profundidade das explicações e a sua desenvoltura rivaliza com os guias profissionais. Espelha o excelente trabalho que em Macau se vem fazendo na Educação. Esse processo civilizacional que a educação tem dado ao estar dos jovens residentes de Macau transborda para os visitantes e, por isso, encontramos as ruas mais limpas e mais respeito e valorização do património. Também um dos vectores trabalhados durante os últimos vinte anos diz respeito à educação artística e sobretudo musical, dando gosto ver os progressos feitos, tanto ao nível de executantes como dos ouvintes. Nos concertos de música clássica são agora os espectadores vindos do exterior de Macau a mostrar não terem sido educados para assistir em silêncio e ter a delicadeza de não usar os telemóveis, mesmo quando no início dos espectáculos lhes é pedido para os desligar. Já os comportamentos dos jovens locais e mesmo das crianças nos concertos dá para observar como escutam a música e esta os coloca com o espírito no patamar do grande prazer. Um dos maiores atractivos de Macau é apresentar um alto nível de segurança, tanto de dia como à noite, para todos os que nela vivem e a visitam, complementado por um estar familiar a envolver quem pela cidade anda, onde ainda é normal haver quem delicadamente se cumprimenta com uma saudação, mesmo entre pessoas que apenas se conhecem do cruzar quotidiano. Existe ainda uma entreajuda e solidariedade encontrada entre e nos seus residentes, assim como disponibilidade para esclarecer as dúvidas dos turistas quando precisam dalguma informação. Já quanto aos taxistas, que são o cartão-de-visita de qualquer cidade, encontrei sempre muitos ao longo dos anos de uma extrema educação e respeito para com os clientes e os que não apresentavam tão elevado grau de atitude têm vindo rapidamente a melhorar o seu comportamento, muito devido à acção de penalização que lhes tem sido aplicada. Essas mudanças registam-se também na maior parte dos condutores de autocarros na forma da sua condução e respeito pelos mais idosos. Outro factor muito positivo e do agrado dos residentes é o atendimento nos serviços da administração pública, cujo nível de excelência é pouco habitual em outras cidades do mundo e assim, ter de tratar de assuntos ligados ao quotidiano deixa os residentes com um elevado grau de satisfação a fazer esquecer algumas agruras ainda existentes. Falta vedar um conjunto de algumas poucas ruas secundárias para se poder atravessar a pé a maior parte da cidade sem se ser importunado pelo trânsito de veículos motorizados. Essa via verde pedonal não seria difícil de criar e para se usufruir de um tranquilo caminhar era só preciso ser arborizada e ter esplanadas para tornar a cidade mais viva e saudável. A diferença entre os jovens de Macau e os de Hong Kong – e mesmo da maior parte do resto do mundo – é sentirem existir aqui o momento com futuro, enquanto esse sentimento não existe para os outros que vivem já sem esperança. Apesar dos quase trinta anos que levo de Macau, a cidade surpreende-me cada vez que saio de casa e a pé me deixo enredar pelos esquecidos pátios, becos, travessas e ruas, ainda a perpetuar a tradição, mas que não merecem a atenção das multidões. Estas, apenas ocupam poucos lugares centrais da cidade e não perturbam pois, com um pequeno desvio, logo nos conseguimos colocar fora dessa onda, se for caso de querer evitar as multidões. Considero Macau a minha terra e gosto de aqui viver e bastavam pequenos arranjos para se tornar um lugar de eleição, como poucos existentes pelo mundo.