Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA Qubit “What is a Qubit? You guessed it – it’s a Quantum Bit. A Qubit is a Basic unit of information on a quantum computer. Just like bits on normal computers, qubits are used to store, transmit, and process information, but in much higher quantities.” San Satoshi Hymn Of Modernity: Machine Learning, Augmented Reality, Big Data, Qubit, Neuralink and All Other Important Vocabulary A 29 de Setembro de 2018, cientistas chineses e austríacos ligaram-se numa videoconferência. Essa imagem de homens e mulheres, sentados em cadeiras e com a intenção de ouvir mensagens do outro lado do mundo, tornou-se uma das fotografias simbólicas da nova era. Porquê? Era uma videoconferência diária, mas o evento representou uma novidade extraordinária, pois as equipas chinesa e austríaca estiveram em videoconferência encriptadas através de um sistema quântico. Tudo graças a Micius (um nome derivado do filósofo chinês Mozi, latinizado em Micius), um satélite que a China lançou em 2016, e cujo objectivo era precisamente assegurar a possibilidade de guardar informação através da utilização da mecânica quântica. Como acontece frequentemente na China, este resultado depende do trabalho do cientista, Jian-Wei Pan, elogiado até pelo Presidente Xi Jinping e considerado o “pai chinês do quantum” e que é professor na Universidade de Ciência e Tecnologia da China que com cinquenta anos de idade, produziu uma série de descobertas que o tornaram famoso na sua terra natal. O seu trabalho, como habitualmente, não vem do nada, mas de um esforço excepcional da China para desenvolver perante outros o chamado “computador quântico”, que é extraordinariamente poderoso. Numa entrevista à “MIT Technology Review”, Pan recordou que na China foi primeiro um “estudante” de tudo o que foi descoberto no Ocidente, mas agora pode tornar-se um líder na sua área. Este é um pensamento que percorre a mentalidade de cada chinês. O principal objectivo de Pan era construir computadores quânticos poderosos, cujas unidades de computação, as qubits, ao contrário dos bits, podem ocupar simultaneamente um estado quântico de 0 e 1. Ao ligar as qubits através de um fenómeno que o próprio diário do MIT chama “quase místico” e conhecido como emaranhamento, os computadores quânticos podem gerar aumentos exponenciais no poder de processamento. No futuro, as máquinas poderiam portanto ser utilizadas “para descobrir novos materiais e medicamentos através da realização de simulações de reacções químicas que actualmente exigiriam demasiado tempo de processamento por computadores clássicos”. Os “PCs Quantum” poderiam também impulsionar a Inteligência Artificial (IA) porque as redes ultra seguras que utilizam a distribuição quântica de chaves poderiam ser particularmente úteis para o sector financeiro (uma das áreas em que a recente aceleração da tecnologia produziu as mudanças mais radicais, embora nem sempre no centro da cena mediática) e para os militares. Os investigadores chineses estão, de facto, a trabalhar em “sensores quânticos” especiais com o objectivo de favorecer a navegação dos seus submarinos. Em suma, seria uma verdadeira revolução. E quem chegar primeiro, como de costume, será favorecido. É uma guerra em curso, na qual também há bolsas de cooperação, pois cientistas chineses e americanos colaboram entre si, mas os governos têm muito mais ciúmes das descobertas das suas próprias equipas. O confronto entre Oriente e Ocidente joga-se muito mais em pc quântico do que em sistemas de reconhecimento facial, onde as técnicas podem ser alcançadas, embora mais tarde do que os concorrentes, mais rápida e facilmente do que a criação de um computador quântico capaz de funcionar realmente. A China já construiu a mais longa rede terrestre de “chaves criptográficas quânticas” do mundo. A ligação terrestre de 2032 quilómetros entre Pequim e Xangai foi concebida por Pan e envia chaves criptográficas quânticas. É um serviço cívico aos municípios, que começaram a utilizar esta nova forma de transporte de dados, bem como para a transmissão de dados financeiros. Segundo os analistas, é difícil medir exactamente quanto a China está a investir nestes e noutros projectos quânticos, pois é difícil medir tudo na China, considerando que alguns dados são confidenciais (mesmo o número exacto de “reservas estatais de carne de porco”, útil para acalmar os preços, como no caso da epidemia de peste suína que eclodiu em 2019, é um segredo de Estado) e outros são sempre susceptíveis de ajustamento por parte daqueles que os recolhem. Certamente que os investimentos são massivos. O governo está há muito empenhado neste esforço, encorajando a produção de artigos científicos e o número de patentes relacionadas com comunicações e criptografia quântica. O número de patentes chinesas excede em muito o dos Estados Unidos. Para ajudar a desenvolver os futuros investigadores quânticos, o país está a construir em Hefei um laboratório nacional de mil milhões de dólares para a ciência da informação quântica, que abriu em 2020 para reunir especialistas de várias disciplinas, tais como física, engenharia eléctrica e ciência dos materiais. A China lançará também mais quatro satélites quânticos de baixa órbita, a serem seguidos por um satélite geoestacionário de alta órbita. A visão a longo prazo é criar uma Internet que cubra o continente e que, protegida pela criptografia quântica possa eclipsar aquilo a que agora chamamos de Internet, com tudo o que implica para a chamada “soberania digital” que caracteriza a China. Mas olhando muito mais longe, e pensando nos consumidores, esta tecnologia poderia ser utilizada para proteger tudo, desde smartphones a portáteis. A grande questão é a vontade do Estado de investir em certos sectores e uma das razões pelas quais a China tem feito tão bem neste campo, é a estreita coordenação entre os seus grupos de investigação governamentais, a Academia Chinesa de Ciências e as universidades do país. A Europa tem o seu plano director quântico “para estimular tais colaborações, mas os Estados Unidos têm sido lentos em produzir uma estratégia abrangente para desenvolver as tecnologias e criar uma futura mão-de-obra quântica”. Que este desafio entre a China e o Ocidente também é fundamental foi demonstrado recentemente. A “supremacia quântica por meio de um processador supercondutor programável” é o título de um texto assinado por investigadores que colaboram com o Google e a NASA no desenvolvimento de novos computadores, o qual apareceu no website da Nasa e foi depois removido. Não foi feito tão depressa, porque o “Financial Times” conseguiu guardar uma cópia do documento e publicá-lo no seu site. O texto ocupa-se precisamente dos computadores quânticos. Se houvesse casas de apostas para o desafio quântico entre a China e o Ocidente, até há pouco tempo a maioria teria aconselhado a apostar na China. O anúncio do Google, então, com ou sem publicidade, deve ter cientistas chineses inquietos nas suas cadeiras, assumindo que tudo é verdade. Não vai demorar muito tempo a perceber-se, porque as coisas avançam sempre muito rapidamente na China. E é precisamente a velocidade que distingue o desenvolvimento chinês. Os Estados Unidos pensaram, por exemplo, que a vantagem 5G da China poderia ser de alguma forma gerida, e depois tornar-se cada vez mais sólida com o passar dos anos. A China navega com ventos devastadores em termos de velocidade de execução, podendo contar com financiamento e um sistema educativo que, embora com falhas, é capaz de gerar talentos, aproveitando o tamanho da população local e a riqueza que tem sido criada ao longo dos últimos quarenta anos. O desafio tecnológico será o terreno em que o Ocidente terá de competir nos próximos anos; pensemos apenas nos dados, e em breve, perguntar-nos-emos, de facto já o fazemos, se a natureza extractiva do capitalismo actual, presente tanto no Ocidente como na China, dará origem a um sistema governado por empresas ou por um Estado, como o chinês. Para a Europa, então, o destino poderia parecer inexoravelmente ligado à seguinte questão se será que preferimos que os nossos dados estejam em mãos chinesas ou em mãos americanas? Esta perspectiva deveria levar-nos a pensar no peso dos dados e no seu “processamento”, pelo qual passará o nosso mundo do futuro, como elaborar uma estratégia global e considerar os dados como um bem comum poderia permitir à Europa, por exemplo, não ser apenas uma periferia do mundo ou uma terra de conquista das superpotências, mas um lugar capaz de prever um novo modelo de transparência e de utilização pública dos dados. Desta forma, poder-se-ia evitar os erros do passado. Se a Europa conseguir fazê-lo, tanto na China como no Ocidente, cidades inteligentes, por exemplo, poderiam realmente tornar-se o lugar capaz de produzir uma nova forma de cidadania, em vez de novas divisões sociais. De facto, a aspiração deve ser que as tecnologias possam tornar-se um instrumento para melhorar a vida das pessoas e a sua relação com o ambiente, em vez de uma arma de controlo social nas mãos dos estados e plataformas tecnológicas. Em finais de Janeiro de 2020, o Covid-19 atacou o mundo. O surto começou na região Hubei da China, na capital Wuhan, uma cidade de onze milhões de pessoas. Desde finais de 2019 que têm sido comunicados casos anormais de pneumonia na China. Alguns médicos pensavam que se tratava da SRA (Síndrome Respiratória Aguda Grave) novamente, outra forma de coronavírus registada na China e identificada por um médico italiano, que mais tarde morreu de SRA na Tailândia, desde finais de 2002. Durou até 2003 e fez setecentas e setenta e quatro vítimas em dezassete países. Alguns países sem qualquer comprovação científica em mero discurso político consideram as autoridades chinesas como responsáveis pela propagação do vírus, afirmando que minimizaram a epidemia durante muito tempo sem dar o alarme, contribuindo assim para atrasar fatalmente a adopção de contramedidas. Depois foi a vez de Guangdong, e depois de Hubei. O atraso das autoridades chinesas na comunicação da emergência foi mínimo, e para não incorrer em “outra SRA”, a China comunicou a existência do vírus, primeiro à Organização Mundial de Saúde (OMS) e só mais tarde à sua população. Uma vez iniciada a resposta, no entanto, a China agiu como habitualmente, com a máxima velocidade para remediar o problema. Wuhan foi colocado em quarentena juntamente com quinze outras cidades, num total de pelo menos sessenta milhões de habitantes, correspondente à população da Itália inteira, que ficaram em lugares selados, dos quais era impossível entrar e sair; tendo sido a maior quarentena da história da humanidade, uma solução que é frequentemente considerada tardiamente pela comunidade científica, mas que demonstra a determinação chinesa em lidar com a epidemia. O facto de tudo ter provavelmente uma razão e onde a verdade científica está por determinar e de ter começado dentro de um mercado em Wuhan, onde animais selvagens são abatidos e vendidos, destaca o que ainda é visível, de um país lançado para o futuro, mas que ainda mantém hábitos tradicionais e culturais de mil anos de idade, capazes de afectar o tecido social se tal for comprovado. Em quarentena e com as grandes cidades desertas, com escolas e escritórios fechados, uma sequência de imagens icónicas passou rapidamente perante a população chinesa como o grito dos edifícios na noite de Wuhan, de encorajamento, a contagem dolorosa dos mortos e a necessidade de abastecer os hospitais com material médico, a construção em dez dias de dois hospitais de emergência, o despedimento de centenas de funcionários considerados “incompetentes”, a morte de Li Wenliang, um médico de trinta e quatro anos de idade que tinha relatado casos de pneumonia anormal mas em que não se acreditava. Li Wenliang teve de receber uma reprimenda, depois foi ilibado e finalmente morreu do Covid-19. Em todo este estremecimento de tragédia e esperança, a principal preocupação de muitos chineses continuava a temer a proximidade com qualquer pessoa infectada nos dias que antecederam o surto. E as respostas chegaram, porque o saber na China tornou-se muito fácil, pois as companhias telefónicas e algumas aplicações (por exemplo, as dos caminhos-de-ferro estatais) criaram sistemas através dos quais as pessoas puderam verificar se, durante as suas viagens de comboio ou avião, estiveram perto ou em contacto com aqueles que mais tarde adoeceram ou que foram hospitalizados. A China-Mobile, um dos maiores operadores telefónicos do país, disse aos cidadãos de Pequim que poderiam verificar os seus movimentos durante os últimos trinta dias através de um serviço ad hoc. Parece inacreditável aos nossos olhos, uma afronta à privacidade de cada um dos passageiros dos comboios e aviões, que desconheciam os controlos do seu estado de saúde, no entanto, na China, revelou ser um passo bastante positivo, de acordo com o feedback dos utilizadores sobre estes serviços, para tranquilizar as pessoas. O poder das aplicações chinesas, dedicadas ao controlo rigoroso dos movimentos das pessoas foi apresentado pelo governo chinês e pelos operadores como um grande serviço numa situação de emergência. Como a agência Reuters referiu, a Covid-19 teria feito emergir o sistema de vigilância chinês “das sombras”. Mais do que uma emergência, na realidade, poder-se-ia dizer que o vírus permitiu uma utilização ad hoc de instrumentos que os chineses estão habituados a utilizar todos os dias. A Covid-19, de facto, é a primeira emergência sanitária global na era da IA e, embora numa situação dramática e complicada, mais uma vez a China mostrou um caminho. Aqui, por exemplo, há outro uso da IA na China quando um homem de Hangzhou que tinha acabado de regressar de Wenzhou, um lugar considerado altamente infectado, foi avisado pela polícia para não sair de casa e a matrícula do seu carro foi gravada pelas câmaras de vídeo. Por causa da sua origem, deveria ter ficado em casa, ter medido a sua temperatura e contactado as autoridades sanitárias da cidade, se necessário. Mas, aborrecido, decidiu sair e foi contactado não só pela polícia, mas também pelo seu empregador. O homem tinha sido visto perto do lago Hangzhou por uma câmara de reconhecimento facial e as autoridades também tinham alertado a sua empresa de que não estava a cumprir as directivas impostas. Na China existem novas possibilidades para as empresas de alta tecnologia e neste momento, embora nunca o admitam, deparam-se com uma oportunidade única de aumentar o combustível principal para as suas invenções, que são os dados. A China tem muito e de qualidade, mas com a Covid-19 a quantidade de informação aumentou. Abalados pelo medo e pela preocupação, os chineses enterraram a sua fraca resistência à invasão da sua privacidade com a empresa de reconhecimento facial. Foi desenvolvida uma nova forma de detectar e identificar pessoas com febre, graças ao apoio do Ministério da Indústria e Ciência. O novo “sistema de medição de temperatura” utiliza dados corporais e faciais para identificar pessoas doentes. Este é apenas um exemplo (Baidu, o principal motor de busca da China, anunciou também que o seu Laboratório de IA estaria a fazer um dispositivo semelhante) que permite detectar tendências que têm vindo a ocorrer no país há algum tempo como empresas privadas, apoiadas pelo Estado, desenvolvem novos produtos “intrusivos” (e, neste caso, também úteis, dir-se-á); a empresa pode então vender no estrangeiro a sua criação, aperfeiçoada graças à possibilidade de acesso a todos os dados. O governo tem movimentos e dados na ponta dos dedos para se certificar de que tudo está a correr de acordo com as suas directivas. A frente do reconhecimento facial, não termina aí, pois o SenseTime, outra das bandeiras do sistema, afirmou ser capaz de identificar até pessoas que usavam máscaras. Este é um aspecto importante, especialmente durante os dias mais complicados da Covid-19, para além do smartphone, para fazer uma enorme quantidade de coisas (pagar, reservar, executar tarefas no banco ou em repartições públicas) precisa sobretudo da cara. Com a utilização massiva de máscaras, a tecnologia tem dado sinais de imperfeição (também ironicamente sublinhada nas redes sociais chinesas por pessoas que, devido à máscara, falharam o reconhecimento para entrar nas suas casas). A empresa de câmaras de vigilância Zhejiang Dahua disse que pode detectar febre com câmaras de infravermelhos com uma precisão até 0,3 graus. Uma utilização específica para lugares com muita gente, como um comboio. De facto, numa entrevista à Xinhua, a agência estatal chinesa, a Academia das Ciências da China explicou como a tecnologia pode ajudar as autoridades a encontrar pessoas num comboio que possam estar expostas a um caso confirmado ou suspeito de Covid-19, pois obtém informações relevantes sobre o passageiro, incluindo o número do comboio, e informações sobre passageiros que estiveram próximos da pessoa. Outras aplicações para lidar com a Covid-19 estão em curso sendo o mais famoso que está relacionado com o uso de drones para convidar as pessoas a usar máscaras (um vídeo em que, na Mongólia Interior, uma senhora idosa recebeu uma visita de um drone foi muito filmada na rede); depois há os robôs que dentro dos hospitais cuidam de actividades que poriam em perigo a saúde dos operadores, tais como desinfestação, entrega de refeições ou limpeza nas áreas dos hospitais utilizadas para os infectados e doentes de Covid-19, bem como assistentes de voz, que usando IA são utilizados para pedir informações a pessoas em casa, armazenar dados e sugerir tratamentos ou hospitalização imediata. Em cinco minutos, os assistentes de voz chineses fazem duzentas chamadas, aliviando muito o trabalho dos hospitais. Como o portal mandarim Yesky salientou, “este serviço de chamadas robotizadas pode ajudar os médicos da linha da frente a controlar a situação. Com tecnologias como o reconhecimento de voz, compreensão semântica, e diálogo homem-máquina, os robôs são capazes de compreender com precisão as línguas humanas, obter informações básicas e dar respostas”. O “lado” da investigação médica não está ausente. A este respeito, o website da Administração do Ciberespaço da China, num artigo intitulado “Inteligência artificial e grandes dados ajudam a investigação e desenvolvimento de novos medicamentos contra o Covid-19”, anunciou o lançamento de um plano de “investigação e desenvolvimento de medicamentos graças à IA e plataformas de partilha de grandes dados, bem como todo o tipo de investigação e material bibliográfico sobre a Covid-19. Sobre esta questão, contudo, apesar dos anúncios, a comunidade científica é bastante unânime em salientar que o prazo para uma cura, para não mencionar as vacinas, não está exactamente ao virar da esquina. Finalmente, há o aspecto ligado às conferências virtuais e ao e-learning, em que a China tem vindo a investir há algum tempo e que em 2020, devido ao encerramento de escolas e escritórios, tem visto uma atenção e experimentação renovadas. Para as escolas, foram utilizados programas prontos que permitem a ligação de vários alunos ao mesmo tempo, fornecendo ao professor todos os dados necessários, incluindo os gravados por câmaras fotográficas sobre a atenção demonstrada pelo aluno durante a aula. Para além da actual situação de emergência, esta é uma realidade na China.
Olavo Rasquinho Vozes“Speedy Joe” e a década mais quente (2011-2020) De acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), as décadas desde 1980 têm sido caracterizadas por temperaturas médias do ar cada vez mais altas a nível global. Na década de 2011-2020, a temperatura foi a mais alta desde que há registo regular dos parâmetros meteorológicos, sendo os anos 2016, 2019 e 2020 os mais quentes. Este último foi caracterizado pela temperatura média de 14,9 graus Celsius, aproximadamente 1,2 graus acima do valor médio pré-industrial, tendo como referência o período de 1850 a 1900. Esta conclusão é baseada na análise dos registos de conjuntos de dados observacionais de várias instituições meteorológicas e climatológicas, entre as quais National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), Goddard Institute for Space Studies, United Kingdom’s Met Office Hadley Centre e East Anglia’s Climatic Research Unit. Apesar do fenómeno La Niña ter contribuído para o arrefecimento do globo na parte final de 2020, este ano foi quase tão quente como 2016, em que a tendência de aquecimento foi reforçada pela ocorrência de um episódio El Niño. Como já é do conhecimento do público interessado por questões relacionadas com o tempo e o clima, El Niño e La Niña são fenómenos que ocorrem com certa periodicidade no sistema oceano/atmosfera, no Oceano Pacífico equatorial central e equatorial oriental, que afetam a circulação geral da atmosfera e o clima regional em muitas partes do globo. A designação El Niño deve-se ao facto deste fenómeno ocorrer num período que abrange a época do Natal (El Niño Jesus, em espanhol). Afeta grandemente a indústria pesqueira do Peru, na medida em que a água mais aquecida afasta o fitoplâncton, que constitui a base da alimentação dos cardumes que predominam habitualmente nessa região quando as águas estão mais frias. Contrariamente, o fenómeno La Niña é caracterizado pelo arrefecimento da água superficial, o qual está relacionado com a intensificação dos ventos alísios que convergem nessa região, fazendo com que a água à superfície seja arrastada e substituída por água mais fria vinda de maior profundidade, fenómeno que se designa por afloramento (em inglês upwelling). Em geral, nos anos de eventos El Niño a temperatura média global é mais alta do que nos anos neutros ou de La Niña. Atualmente (fevereiro de 2021) está a ocorrer um evento La Niña que se antevê que perdure até meados da próxima primavera do hemisfério norte. Apesar da ocorrência de La Niña, segundo o Met Office, antevê-se que o ano 2021 seja um dos mais quentes de sempre (de acordo com a Press Release da OMM, datada de 18 de Janeiro de 2021, “… the Met Office annual global temperature forecast for 2021 suggests that next year will once again enter the series of the Earth’s hottest years, despite being influenced by the temporary cooling of La Niña…”). O Secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, afirmou recentemente que, devido ao aquecimento global, apesar de La Niña corresponder a temperaturas mais baixas a nível global, os episódios mais recentes de La Niña têm sido caracterizados por temperaturas mais altas do que nos anos com fortes eventos El Niño, no passado. O consistente aumento da temperatura média global, e as suas implicações, têm causado grande preocupação na comunidade científica, governos e público mais informado. António Guterres, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, afirmou recentemente: “A confirmação pela Organização Meteorológica Mundial de que 2020 foi um dos anos mais quentes já registados é mais um lembrete gritante do ritmo implacável das alterações climáticas, que estão causando a destruição de vidas e meios de subsistência no nosso planeta. Hoje estamos com 1,2 graus de aumento de temperatura e já testemunhamos extremos climáticos sem precedentes em todas as regiões e em todos os continentes. Estamos caminhando para um aumento catastrófico da temperatura de 3 a 5 graus Celsius neste século. Fazer as pazes com a natureza é a tarefa definidora do século XXI. Deve ser a prioridade máxima para todos, em todos os lugares”. Esta tendência para o aumento da temperatura média global faz com que se esteja cada vez mais próximo do limite inferior do aumento de temperatura preconizado pelo Acordo de Paris, que visa que o aumento não atinja 2 graus até ao fim do século, preferencialmente 1,5 graus, acima dos níveis pré-industriais. A figura que acompanha este texto ilustra, de acordo com o IPCC, o aumento real da temperatura média global de 1950 a 2005 (curva a preto) e projeções do aquecimento global até ao fim do século XXI nas seguintes condições: se não forem tomadas medidas para redução significativa dos gases de efeito de estufa, o aumento seria de quase 5 graus Celsius (curva a vermelho); se forem tomadas essas medidas, o aumento seria de cerca de 1,6 graus (curva azul). Há outras antevisões, como a que vem expressa no Global Annual to Decadal Climate Update (2010-2024), preparado pelo Met Office, em que se admite uma probabilidade de aproximadamente 70% de que um ou mais meses durante os próximos 5 anos serem caracterizados por um aumento da temperatura de pelo menos 1,5 graus Celsius. É muito provável que o nosso planeta caminhe para uma tragédia se entretanto os governos não puserem em prática as medidas preconizadas pelo Acordo de Paris. É inquestionável que tem havido cada vez mais fenómenos meteorológicos e climatológicos extremos, tais como ondas de calor e secas, que potenciam fogos florestais mais vastos e frequentes que destroem enormes áreas florestais, reduzindo drasticamente a biodiversidade, injetando na atmosfera quantidades enormes de fumo e gases de efeito de estufa (GEE) que se espalham, arrastados pelo vento, à escala planetária. Há, entretanto, sinais de que os governos estão a tomar consciência desta realidade. Assim, por exemplo, sob a coordenação da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, estão a ser dados passos significativos para a implementação do Acordo Verde Europeu (European Green Deal), programa que tem como principal objetivo tornar a Europa, até 2050, o primeiro continente neutro no que se refere à emissão de GEE, preservando, entre outros aspetos, o ambiente natural e a biodiversidade. Mais recentemente, logo após a tomada de posse de Joe Biden, surgiu a boa notícia que os EUA irão voltar ao Acordo de Paris. Ficará na história o texto assinado por Biden no primeiro dia da sua administração: “ACCEPTANCE ON BEHALF OF THE UNITED STATES OF AMERICA – I, Joseph R. Biden Jr., President of the United States of America, having seen and considered the Paris Agreement, done at Paris on December 12, 2015, do hereby accept the said Agreement and every article and clause thereof on behalf of the United States of America – Done at Washington this 20th day of January, 2021”. Na sequência desta decisão, o Secretário-Geral da ONU difundiu a seguinte declaração: “Saúdo calorosamente as medidas do presidente Biden para entrar novamente no Acordo de Paris sobre Alterações Climáticas e juntar-se à crescente aliança de governos, cidades, estados, empresas e pessoas empenhados em medidas ambiciosas para enfrentar a crise climática”. Uma outra medida da administração Biden consistiu na dispensa dos cientistas negacionistas David Legates e Ryan Maue das suas funções na NOAA. Ambos haviam sido nomeados pela administração Trump para altos cargos desta agência com o intuito de calar as vozes discordantes da sua política no que se refere às alterações climáticas. A investidura de Joe Biden constitui uma esperança para a humanidade no que se refere à atenuação das alterações climáticas As Executive Orders sobre a crise climática, no sentido de recuperar o tempo perdido durante a administração Trump, foram tantas e tomadas tão rapidamente que não ficaria mal alcunhar o presidente Biden de “Speedy Joe” em vez de “Sleepy Joe”, como Trump ironicamente lhe chamava… *Meteorologista
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBurlesco-ando Talvez porque a dança está proibida em tempos de pandemia, deu-me para ruminar na dança sexual que nos é apresentada em formato burlesco. Se não repararam, há um revivalismo do (neo-)burlesco nos últimos tempos, de onde a muito famosa Dita von Teese tem sido uma impulsionadora – a lingerie, os corpetes, as luvas até aos cotovelos, espetáculos em copos gigantes de champanhe. Tudo o que imaginam de uma exagerada apresentação da feminilidade perdida e retro encontrou expressão nos dias de hoje. Todo um movimento que rejeita a casualidade das calças de ganga. Antigamente esses exercícios de apresentação e performance eram para umas quantas que se aventuravam – ou que eram obrigadas por diversas razões. A história mais deliciosa que encontrei foi a de uma estudante de psiquiatria que vai um estúdio de televisão fazer um estudo qualquer comportamental, mas que é confundida com uma bailarina burlesco por conta das suas formas voluptuosas. Foi assim que a Iris Chacon se tornou num símbolo sexual da América Latina. Estava no lugar certo na altura certa. As histórias podem ser de coação ou livre arbítrio, mas o papel das mulheres dos cabarés na sexualidade, feminilidade e até na moda (!) são inegáveis. Quem é que acham que criou os biquínis, as mini-saias, ou até as cuecas de fio dental? Inovações de quem precisou dar a volta à constante censura do corpo. Até porque não era qualquer uma que podia ser uma showgirl. Não é só preciso ter uma carinha laroca e um corpo de invejar. Ser uma artista exige beleza, sensualidade, postura, habilidade, muita dança (movimento da anca), personalidade e exuberância. É preciso querer mostrar-se. Esta arte e tipo de performance trazem algumas tensões, como devem calcular. Nada no mundo é um mar de rosas maravilhoso: nem com uma tipa bonita a abanar as maminhas na vossa cara. A tensão que a literatura científica tem mais explorado é a da feminilidade e do feminismo nestes contextos. Dois conceitos aparentemente semelhantes, mas em muito diferentes. A ênfase numa apresentação exageradamente feminina nestas danças pode significar um perpetuar da visão machista da mulher que existe para agradar, para se aperaltar e para ser objectificada. Pode tornar-se numa forma de comercialização da sexualidade embrulhada num pacote de consequências que nada fazem para destruir o patriarcado – muito pelo contrário, fica ao serviço dele. Ao mesmo tempo, no contexto da pouca expressão sexual das mulheres, este agarrar a sensualidade pelos tomates sem grandes receios ou modéstias põe em causa a suposta submissão sexual que não pode ser contestada. Há liberdade de pavonear o corpo contra tudo e todos e dá-se espaço aos desejos. O batom vermelho, que é simultaneamente uma arma política e um símbolo de expressão e submissão feminina, é a maquilhagem de eleição no burlesco. Os significados associados a estas danças são negociados e re-interpretados em conjunto, e em sociedade. Por isso é que estas discussões interessam. Como, para quem, porque é que se dança são as questões que importam. O burlesco, ou o striptease, mesmo que associado à história de liberdade sexual, é indissociável da excessiva performance da identidade “feminina” (e de todos os problemas que isso implica). Contudo, é nesse equilíbrio entre representações de mulher devassa e submissa que existe espaço para as mulheres expressarem a sua sexualidade e feminilidade como bem entenderem. É isso que precisa de ser espalhado a quatro ventos – e dançado por aí.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAno novo#fique em casa No passado dia 22, Macau registou o seu 47º caso de coronavírus. O doente é residente da cidade. Tinha vindo do Dubai, com passagem por Singapura e pelo Japão. À chegada, acusou positivo por duas vezes. Foi internado no Earl´s Ren General Hospital, e 8 dos seus contactos próximos foram colocados em observação. No dia 23, em Zhuhai Doumen identificou-se mais um caso assintomático. A pessoa em causa tinha regressado a Guangzhou vinda da Ucrânia. Após uma quarentena de 14 dias, voltou a Zhuhai e foi seguida durante 7 dias pelos serviços de saúde. Depois deste período, o teste do ácido nucleico e os testes de anticorpos revelaram que existia infecção. Ambos os casos foram devidamente tratados e o vírus não se propagou. Mas claro que também esteve em causa o factor sorte; no entanto estes dois casos fizeram soar o alarme para o reforço da prevenção em Macau. Dentro de sensivelmente três semanas, iremos celebrar o Ano Novo chinês. Por tradição, as famílias reúnem-se e os jovens visitam os mais velhos. As reuniões familiares promovem a propagação do vírus. Embora o Governo Central e o Governo e Macau tenham desaconselhado as deslocações e as reuniões familiares durante o Ano Novo, de forma a evitar a propagação da infecção, o poder da tradição é muito forte. Muitas pessoas vão querer visitar a família e a sua terra de origem. A possibilidade de esta festividade provocar o aumento dos contágios é real. No combate ao vírus, o esforço de todos e de cada um é muito importante. Dado que as movimentações de pessoas podem ajudar à propagação do vírus, de momento, devemos dar o nosso melhor para combater essa propagação. Para além de higienizar as mãos e usar máscara, devemos responder ao pedido do Governo, mesmo que a nossa tradição nos mande visitar os mais velhos. Na situação de pandemia que vivemos, temos de fazer o possível para minimizar os seus efeitos, e os nossos familiares mais idosos certamente que nos irão compreender. O Governo também assinalou que as vacinas contra a COVID chegarão em breve e a vacinação começará de seguida. De momento, este é o método mais eficaz para lutar contra o novo coronavírus. Só quando todos estivermos vacinados, poderemos obter protecção global e impedir que o vírus se propague. Como ficámos a saber, através da comunicação social, as diversas vacinas até agora produzidas oferecem diferentes níveis de protecção. Se tomarmos em linha de contas as várias mutações do vírus, é legítimo interrogarmo-nos se estas vacinas nos protegem realmente deste vírus e das novas variantes. Tendo em contas as várias opiniões, antes de nos vacinarmos deveremos consultar um médico, ouvir a sua opinião e depois decidir sobre a vacina a tomar. A vacina pode produzir efeitos secundários; a possibilidade de sobrevirem complicações sérias, inclusivamente a morte, é um assunto ainda por esclarecer. No entanto, é certo que os casos graves são extremamente raros. Acima de tudo, não devemos rejeitar a vacina por temermos efeitos que raramente ocorrem. Apesar de tudo, os benefícios da vacinação suplantam largamente eventuais malefícios. O Governo está actualmente a considerar a hipótese de fazer um seguro para compensar residentes que sofram efeitos secundários após a toma da vacina; esta é sem dúvida a decisão de um Governo que estima os residentes e merece todo o nosso apoio. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau Ai Portugal VozesQuarenta ambulâncias em seca As novidades sobre Portugal são catastróficas. Fazemos um esforço enorme em enviar-vos acontecimentos alegres, de grande satisfação, de uma inauguração de um novo complexo social que albergue os idosos não lhe chamando lar, mas um local de convívio com moradias pequenas concedendo autonomia aos utentes; um aumento das reformas que fosse digno de um país europeu; um partido político novo que emergisse com o intuito principal de ocupar um verdadeiro centrão entre o PS e o PSD de modo a combater a corrupção profundamente e anunciando uma política de favorecimento e melhoria da vida dos portugueses. Mas não se encontra nada que nos anime. Ainda recentemente fiquei incrédulo e revoltado quando conversei com um amigo que viveu em Macau e que está em Lisboa desde 2005 como cuidador informal sem nunca ter recebido qualquer apoio estatal. O país está angustiado. Em algumas autarquias toda a vereação e a população estão desorientados e impotentes no combate à covid-19. Os hospitais regionais já passaram do limite e enviam os pacientes infectados para outros hospitais. As novidades que vos posso enviar só vos entristecem e isso deixa-me desolado por não vos proporcionar algo de bom. Mas é a realidade deste Portugal que na semana passada deixou-nos com três acontecimentos particularmente chocantes. Custa a acreditar, muitas vezes, que exista governo, presidente da República, deputados, gestores de hospitais e aquela coisa que inventaram para dar uns tachos a amigos e a que deram o nome de Protecção Civil, a qual nem apoio soube dar às dezenas de bombeiros que têm estado dias à porta das urgências dos hospitais. O país ficou incrédulo quando soube que a vacinação contra a covid-19 tinha sido interrompida porque deixaram estragar milhares de unidades. Como é possível tanta incompetência? E ainda sobre as vacinas assistimos a uma guerra suja e incompreensível de quem é que devia ser vacinado primeiramente, se os profissionais de saúde e os idosos ou os políticos? Chegámos ao ponto de ouvir no parlamento um deputado a dizer: “Mas porque razão é que eu tenho de ser vacinado quando tenho em casa os meus pais com 90 anos e não fazem parte do lote de cidadãos a vacinar?”. Custa a acreditar como é que Portugal passou para o primeiro lugar mundial no número de infectados por cada milhão de habitantes. A segunda faceta a que assistimos, vá lá, foi uma bofetada sem mão à GNR e a outras autoridades que passaram o verão a perseguir e a multar os autocaravanistas. Não os deixavam estacionar em lado nenhum e em locais junto às praias. Pois, os autocaravanistas deram uma lição de humanismo e solidariedade. Decidiram levar as viaturas para os hospitais, a fim de proporcionar aos profissionais de saúde umas horas de sono e não terem de se deslocar a suas casas, muitas vezes a residirem do outro lado do Tejo e esta atitude nobe dos caravanistas veio provar que os hospitais não têm estruturas para o seu pessoal. A terceira vergonha que tenho para lamentar diz respeito a algo nunca visto. O Hospital de Santa Maria tinha fama de eficiente e de uma organização louvável. Inclusivamente tem um piso somente dedicado a doentes de cardiologia e cujos profissionais têm fama em todos os continentes. De um dia para o outro, tudo foi por água abaixo. Ou porque os profissionais de saúde estão exaustos ou não há local para receber os doentes, imaginem as ambulâncias a chegar às urgências e a ficarem em fila horas e horas. Quando falamos em horas, dizer-vos que houve ambulâncias em que os seus doentes esperaram 18 horas no interior da ambulância sem assistência, sem oxigénio e sem qualquer alimento. Uma bombeira heroína mandou vir uma pizza e distribuiu-a por dez colegas que ali estavam sem comer há mais de 12 horas. E o absurdo aconteceu: 40 ambulâncias em fila a aguardar assistência. Escrevi quarenta, é surreal ou inacreditável. Os doentes no interior das 40 ambulâncias desesperaram e pioraram. Só no dia seguinte foram contemplados com uma triagem móvel. Não tinham nada para comer. A dada altura, lá apareceu a solidariedade de muita gente que foi levar alimentos aos doentes e aos bombeiros. O caos instalou-se à porta do hospital de Santa Maria e as 40 ambulâncias em fila já decoraram várias páginas de jornais internacionais. É assim que estamos em Portugal: confinados, doentes, amedrontados, com os miúdos endiabrados em casa, com os bares clandestinamente a servir bebidas até a polícia aparecer e até proibidos de regressar ao local de trabalho em Inglaterra ou no Brasil, após o governo ter decretado a suspensão de voos para esses países a contas com variantes da covid-19.
Carlos Morais José Editorial VozesGirar Macau pode embandeirar em arco com os elogios de Xi Jinping. Mas a verdade é que há muito trabalho para fazer. E convém não esquecer certas partes do encómio presidencial, nomeadamente as que referem a eterna necessidade de diversificação económica. É que, pés assentes no chão e não a voar nas asas dos elogios, é neste ponto que muito se enraíza a qualidade de vida dos habitantes de Macau. Daí que certas medidas governamentais me surjam algo incompreensíveis. Nomeadamente, a diminuição do investimento público. E não me refiro a grandiosas obras que, em termos financeiros, retiram dinheiro da economia local. Entendo é que haveria uma necessidade óbvia de apoio às pequenas e médias empresas que, além do Jogo, constituem o tecido económico da cidade e são, afinal, a sua economia real e diversificada. É claro que é preciso terminar o Hospital da Taipa. Até porque o São Januário abarrota de gente, em tempos de pandemia, e a população precisa de serviços de saúde pública de irrepreensível qualidade. Esse é um investimento incontornável. Mas existem pequenos negócios, pequenas empresas, que precisam de apoios razoáveis. Repare-se: nas últimas décadas, assistimos a um significativo melhoramento do nível educativo da população. Hoje muito mais gente frequentou o liceu e a universidade, gente que sonha em montar a sua empresa e dela fazer a sua vida. Só que as condições reais para o seu estabelecimento são ainda extremamente difíceis, por causa do elevado preço das rendas e de uma dependência do turismo que, como este ano se viu, nos deixa à mercê da boa ou da má sorte. Não percebo por isso, keynesianamente, porque razão o governo se prepara para reduzir o seu investimento. Nas crises, para isso serve o governo, por mais liberais que sejam as sociedades e os regimes. E esse não seria dinheiro a fugir pelas fronteiras. Pelo contrário, é reinvestido localmente. Faz girar as coisas. E hoje, mais que nunca, as coisas precisam de girar.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesGuerra ao vírus Devido ao aquecimento global, as anormalidades climáticas tornaram-se um fenómeno normal, no entanto não geram condições que não consigamos suportar. Mas as alterações dos fenómenos sociais vão trazer consigo consequências muito graves. Os peritos da Organização Mundial de Saúde só começaram a investigar a origem do vírus que provoca a SARS-CoV-2, quase um ano após o primeiro surto em Wuhan. Este tipo de abordagem arqueológica na procura da origem do vírus é sem dúvida um processo científico anormal. Nos Estados Unidos manifestantes irromperam pelo Capitólio, causando danos materiais e inclusivamente mortes. Vi a polícia e retirar os manifestantes do edifício, através da TV, e constatei que as salas do Congresso não ficaram seriamente danificadas. Se compararmos com a invasão que ocorreu a 1 de Julho de 2019, no Complexo onde funciona o Conselho Legislativo de Hong Kong, esta parece bastante anormal. Existem neste mundo muitas questões sem resposta, tal como o problema do vírus da SARS-CoV-2 que tem vindo a evoluir persistentemente ao longo dos últimos meses. Mas tenhamos ou não respostas a estas questões, as pessoas têm de continuar a viver porque é a única forma de perpetuar a raça humana. No início de 2021, as variantes da SARS-CoV-2 lançaram um ataque à humanidade. Ao constatarmos que certas zonas da China voltaram a declarar “Estado de Sítio” para combater a COVID-19, torna-se evidente que os novos surtos provocados pelas “inteligentes” variantes da SARS-CoV-2 são muito potentes. Se a pandemia não for controlada e as vacinas não forem suficientemente eficazes contras as novas variantes, resultantes das constantes mutações, os seres humanos podem vir a ser varridos da face da Terra, e serão derrotados na guerra biotecnológica que estão a travar contra a SARS-CoV-2. Mesmo que a humanidade tenha a sorte de vir a derrotar a SARS-CoV-2, permanece outro problema. Como diagnosticar e tratar os vírus políticos? Recentemente, Lai Xiaomin, o antigo director da China Huarong Asset Management, na China continental, foi condenado à morte por ter aceitado subornos. Foi anunciado que Lai possuia mais de 100 propriedades, que existiam mais de 100 pessoas envovidas nos subornos, e que o acusado tinha mais de 100 amantes. A Televisão Central da China (CCTV) reportou que foram encontradas em casa de Lai enormes quantidades de dinheiro e de outros valores. Com o contínuo crescimento de casos de corrupção em larga escala na China, estamos sem dúvida perante um atentado à segurança nacional. Para erradicar os vírus políticos, não podemos apenas depender das reformas e da política de abertura. A implementação da democracia e do estado de direito é a melhor cura para as doenças causadas por vírus políticos. No entanto, será que o Governo vai conseguir optar por esta via? Andrew Cheung Kui-nung, Meretíssimo Chefe de Justiça do Tribunal de Recurso Final de Hong Kong, foi entrevistado por jornalistas no dia em que tomou posse. Na altura foi interrogado sobre o caso do juiz do Tribunal de Distrito que declarou que um advogado e dois observadores teriam de abandonar a sala a menos que trocassem as máscaras amarelas que estavam a usar por outras pretas, e se portanto, era obrigatório usar preto no Tribunal. Em resposta, Andrew Cheung Kui-nung sublinhou que o que é importante é a independência jurídica e a preservação do estado de direito, e que as cores da indumentária não são relevantes. O estado de direito tornou-se o derradeiro pilar de Hong Kong. Se puder ser preservado, ainda continua a haver esperança para a cidade; caso contrário, envereda pelo caminho da destruição. A propaganda política tem de ter uma base substantiva para ser convincente. Depois da promulgação da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, iremos avaliar o seu grau de eficácia, considerando o aumento de pessoas que estão a sair de Hong Kong, ou que planeiam vir a sair da cidade. Não existe nenhum problema de segurança nacional em Macau. E isto não acontece por Macau ter promulgado legislação de acordo com a Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado em 2009, mas sim porque Macau é uma região dependente, que não tem capacidade de desafiar a China continental, nem capacidade de ajudar ao seu desenvolvimento. Desde o regresso de Macau à soberania chinesa, todos confiaram nas receitas do jogo para sobreviver. O Governo de Macau apoia as Associações locais e estas Associações dependem do Governo para garantir a sua sobrevivência. Os habitantes de Macau estão acostumados a beneficiar do Plano Anual de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico, enquanto a prática do clientelismo se tornou uma regra silenciosa e a política apenas um meio para alguns ganharem a vida. A sociedade de Macau não enfrenta nenhuma crise imediata, mas, a longo prazo, o sentido de auto-complacência dos habitantes de Macau vai fazer com que percam a capacidade de sentir, que também é considerado uma espécie de vírus. O flagelo do vírus político está a tornar-se cada vez mais evidente no desenvolvimento das relações entre a China e os Estados Unidos, nas relações China-Taiwan e nas relações do Governo central da China com o Governo de Hong Kong e com o Governo de Macau. Espero que depois de a pandemia ter terminado em 2021, todos possamos aprender com o sofrimento que vivemos e encontrar uma saída para o futuro em conjunto.
Carlos Morais José A outra face VozesSó respirar é importante Não sei se algo vos posso dizer que não tenha já sido dito e redito. Ou escrito, ou talvez vomitado em rua escura, por um desses génios das lâmpadas LED que acentuam o negrume de almas chãs. Vagamundamos, as ditas redes, motores de busca, onde tudo e nada persistem, além deste sabor a cal na boca fria dos meus dedos. A importância das coisas finou-se. Era, afinal, orvalho de madrugadas que o sol não devia ter rompido e exposto as coisas vãs, as farmácias sucessivas. Teríamos ficado em noite eterna, ainda com uma possibilidade (a última?) de alinhavar o pesadelo. Aquele que imagináramos eliminar. Hoje o mundo arde. Deixa arder. Visto de relance, não vale nada: não vale o rouxinol que agora se cala para dar lugar ao sol. Faltam-me as nuvens, o céu cobertor, a lua indecisa; sobra o temor de não ser e meramente estar, enquanto algo aqui grita de espanto. Deve ser um disparate, equívoco de formiga, uma idiota briga que transporto até por fim desfalecer, na estação terminal, como se o sono ainda alguma coisa afastasse. Vou dormir, resmungo. E duvido desta verdade de me ver deitado algures. Queria esquecer, é certo, vaguear por um deserto belo e limpo. “It’s clean”, dizia Lawrence no filme. Mas esse deserto não vive em mim: os crepúsculos trazem a noite, como as auroras trarão as madrugadas. E nada, nada, nos salva da notação. Permanecemos, comemos; eventualmente, faríamos amor, se o amor fosse algo para ser feito e não encontrado num acaso. Pois. Não é este o caso. E andamos, porque não há outra saída, não há porta sem ser ferida. Sou cego, surdo e tacteio. E só não sou mudo porque as vozes de permeio não acalmam e se a boca não gritasse com certeza explodia. Volta o dia. Outro dia e outro dia, que sem remissão nos perseguem. Para quê, pergunta a voz malparida, essa infinita voz – doente, obcecada – só lembranças de um passado que teima em não repousar. Já chega, grito p’ra dentro. Mas isso de pouco adianta. Ela persiste, por vezes velha, doutras criança. Ainda um som compulsivo. É a canção que não quero mais ouvir. Rádio Carlos. Desliga-te. Deixa dormir, deixa-me lá existir mas, por uma vez, sossegado. Para quê tanta fanfarra e tanta loiça partida? É a vida, é o fado, dizes tu e deverás ter razão. Mas se é assim, vale a pena, quando a alma não existe e a rua é tão pequena? Cheira a verbena, a banana, a açucena. Mas ainda que o cheiro nos encante e por vezes alucine e atrás de uma cortina algo afinal se exponha, para quê meter travões, se na verdade os dedos se apresentam vazios? Não vejo rios ou sufoco de outra margem. Parece vã qualquer coisa que se assemelhe à coragem. Passa um ribeiro, à porta da minha casa. Em princípio, deslizará até ao mar. É belo o seu deslizar. Os peixes escondem-se, sedentos de água, nas rochas. Chegam as tropas. Roda a girândola no céu, máquina aflita de um universo estrelado. Um joelho no pescoço. Refila o povo que é feito de refilar. Desfila tudo neste entrudo de hoje sem hortelã. Ergue-se crua a manhã, a tarde sépia, a noite, sempre de ti assombrada. Esta semana morreu um poeta. Ele não vai para lado nenhum. Os poetas morrem todos os dias no meu país. Camilo, Fernando, Herberto. Permanecem insepultos. É esse o destino dos poetas: a vala comum dos dias, a triste morgue das noites. Nem na morte ter alguma utilidade. Eles não se queixam: sabiam que só respirar é importante.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPagamento fácil Recentemente, a comunicação social anunciou que a Autoridade Monetária de Macau vai implementar um novo serviço – o Simple Pay. Os bancos de Macau lançaram diferentes softwares para telemóveis, permitindo os pagamentos através destas plataformas. Estamos perante o pagamento electrónico, que é possível ser realizado de várias formas. A utilização do cartão de crédito para fazer compras online é um dos exemplos. Tele-contas, também conhecidas como carteiras electrónicas, são a forma mais comum de pagamento electrónicos. De acordo com os dados da Autoridade Monetária de Macau, em 2019, efectuaram-se 16,49 milhões de pagamentos a partir de carteiras electrónicas, que movimentaram 1,23 mil milhões. Nos primeiros três trimestres de 2020, o número de operações disparou para 40,85 milhões, que envolveram transacções no valor de 4,01 mil milhões; o número de movimentações aumentou 2,47 vezes, e o volume de transacções 3,26. A taxa de crescimento é espantosa. Estes dados demonstram que as contas electrónicas se estão a tornar cada vez mais populares em Macau. Com este rápido crescimento, existiam até agora em Macau sete ou oito aplicações para telemóvel que permitiam criar carteiras electrónicas, mas que impossibilitavam os pagamentos se o banco do cliente fosse diferente do banco do comerciante. Tratava-se de um desajuste. O Simple pay veio solucionar este desajuste. O processo é dividido em dois passos. No primeiro, o comerciante pode utilizar qualquer terminal bancário para aceitar os códigos QR das diferentes contas virtuais associadas a diferentes bancos locais. Assim sendo, independentemente do banco a que está associada a conta virtual do cliente, o pagamento pode ser realizado. Em segundo lugar, o cliente pode usar qualquer tipo de carteira electrónica local para identificar o código QR do comerciante. Depois de completar estes dois passos, o desajuste é eliminado, porque ambas as partas têm acesso ao código QR uma da outra. Cada dia que passa mais pessoas utilizam smartphones. As carteiras electrónicas agilizam o pagamento. Não existe troca de dinheiro vivo e por isso a margem de erro é baixa. O registo dos pagamentos é claro. A eficácia dos caixas aumenta. Estas várias conveniências podem fazer aumentar o consumo, e consequentemente ajudar a que Macau se venha a tornar uma cidade inteligente. É claro, que os pagamentos virtuais também podem trazer desvantagens. As carteiras electrónicas são uma forma de pagamento electrónico. A ligação sem fios à internet requer um sinal. No momento do pagamento, se o telemóvel não receber sinal da operadora e a loja não tiver Wi-Fi, o cliente naturalmente não será capaz de pagar. Em terceiro lugar, a taxa de manuseamento das carteiras electrónicas é um problema. Os comerciantes que aceitam o pagamento com carteiras móveis, precisam de pagar uma taxa. Presumindo que essa taxa é de 2%, sobre um consumo de $100, o comerciante apenas receberá $98, e claro que quanto maior for o pagamento maior será a taxa; isto equivale a um ónus extremamente pesado para o comerciante. Se o montante do pagamento aumentar, significa que o cliente compra os mesmos bens com um preço mais elevado; a carteira electrónica aumenta a conveniência do pagamento mas simultaneamente os custos. Além disso, se o volume de transações não for elevado, por exemplo, $10, o lucro do comerciante vai depender de um rápido e elevado volume de negócios. Mas se o comerciante precisar de usar o terminal para introduzir várias informações por cada pagamento, acaba por perder rapidez nas transacções. A taxa de manuseamento das carteiras electrónicas é também um problema para os trabalhadores de certas indústrias. As carteiras electrónicas reduzem o uso de dinheiro vivo em restaurantes mas também reduzem as gorjetas que os empregados obtêm normalmente pelos seus serviços. Um estudo recente demonstrou que os jovens de Macau escolhem o pagamento eletrónico como primeiro método de pagamento. Entre eles, 47% gastam duas ou mais horas por dia a navegar nas plataformas de e-shopping, 30% sentem-se entusiasmados quando compram online, e 5% não conseguem pagar as despesas. Além de explicar os padrões de consumo dos jovens, os resultados do inquérito são também um indicador que aconselha os jovens a não fazerem compras apenas pela conveniência e rapidez dos pagamentos eletrónicos, se desta forma estiverem a prejudicar o seu orçamento. A tecnologia tornou mais fácil os pagamentos. Mas, ao mesmo tempo, os jovens devem compreender o valor do dinheiro. A facilidade dos pagamentos electrónicos não deve ser motivo para consumirem ser qualquer controlo. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José A outra face VozesA lentidão do papel Queria ser lento como o papel mas tudo me ultrapassa. Tudo se esvai, tudo se esgaça. As coisas tendem a desaparecer no digital. Passar como se não tivessem importância, apesar de transportarem os sentimentos mais básicos. Lembro-me de uma carta que nunca cheguei a escrever. Era suposto que ela deslizasse pelo mundo devagar. Que fosse de barco pelos oceanos, que fosse entregue em mão por um carteiro. E gostava da ideia de uma carta te perseguir, meu amigo, ainda que eu não soubesse bem onde realmente estás e qual a tua verdadeira morada — eu escrevi “João em Almada”, como se fosse para mim. Mesmo que a carta nunca te chegasse, talvez te perseguisse, talvez te procurasse e, por um acaso mero, te encontrasse. Aí talvez a lesses e nela ainda reconhecesses o teu amigo, ainda que ferido do muito tempo que a carta demorou para chegar. Sim, eu gostava desta ideia: da impossibilidade da certeza, da carta que viaja de navio, de avião, de comboio, de carrinha. Talvez a carta nunca te encontre, talvez tudo o que eu escrevi nunca seja lido e a tua vida não mude realmente. Mas, penso eu delicado, talvez o carteiro saiba onde geralmente te deitas e das maleitas que a missiva talvez pudesse evitar. Podia mandar-te um email – e entredentes o faço – mas preferia a carta lenta, paciente nos transportes, manuscrita verdadeira, sem a versão altaneira que pela net te envio. Isto não passa de um rio onde nunca pela segunda vez me banharei. E assim pretendo ser rei de um reino já esgotado. A carta segue e eu espero, tu talvez esperes, ainda que o faças sentado, distraído, entretido a dobar, para sempre o mesmo novelo. Queres lá tu saber de mim, a não ser no digital e na rede social que tão depressa nos une como o vento nos esquece. Dá para negócios, bem sei. E não tens de me lembrar. Estou aqui a afinar a minha certa fortuna. Existem as apostas, o lance da sorte pedante, impante de ter certezas que se afundam pelas mesas. Mas existe aquela parte esquecida que o papel dava à vida. A parte táctil, o toque da árvore nos dedos, o deslizar da faca a rasgar o envelope. A folha que ainda pouco se mostra, a caligrafia adivinhada. A tua letra, a minha letra. “Espero que esta carta te encontre bem de saúde”, dizia-se. Assim começava o discurso. Lento. Pausado. Por vezes apaixonado. Mas com ritmo de mar que avança e se despenha em sucessivas ondas de encontro à falésia. Sem pressas. Seguro de ter o seu lugar, de sempre acabar por abraçar a costa. A carta que nunca chegou e, por essa simples razão, houve um mundo que mudou. A carta – lida à luz da tocha, do candeeiro hesitante, vela bruxuleante, sol de inverno magoado. A carta que há-de chegar; da espera, na estação férrea, no cais marítimo, no terminal de autocarros. E ela por ali virá, dia há que chegará e nas mãos de alguém brilhará tanto que será dia de lua noiva e não a noite rente da solidão. “Ainda penso em ti, meu amor. Fazes-me falta. E esta guerra que não termina.” Não terminou nunca. “A política é a guerra por outros meios.” Interminável. Mas o papel cumpre-se como cegamente se cumpre um destino. O papel é lento, sedento de leitura e a caligrafia incerta uma prova de vida torta. A vida descrita, a tinta azul ou negra, a vida possível de descrever a quem se gosta. A mão já trémula, hesitações. Risco ainda uma palavra mas esse risco é a prova do meu cuidado por ti porque, por vezes, saem ásperas as palavras. E não é isso que eu quero. Quero-te dizer que estou bem, ainda que chore sobre o papel, que penso em ti, que és importante para mim. E a carta leva os meus beijos. Vai lenta, talvez não chegue. Não sei. Algo de mim vai nela e deste lado fico morto, despido nas frases que te escrevi. O papel viaja lentamente e repete-se. Provavelmente, nunca te encontrará, meu amigo. Agrada-me a ideia de uma carta minha a perseguir-te, a procurar-te pelas cidades, pelos campos, pelos quartéis, já suja de carimbos vários, de mãos generosas de gorduras, do latido irado dos cães do outro lado dos portões. A minha carta é lenta e, provavelmente, nunca às tuas mãos chegará. Mas nela mora ainda a beleza das coisas impossíveis. E todas as crenças digitalmente perdidas.
Hoje Macau Ai Portugal VozesA palhaçada do fascismo Por André Namora Assistimos a uma não campanha eleitoral para as eleições presidenciais. Mais uma vez a pandemia fez das suas. O governo decretou o confinamento. O povinho não mostrou qualquer civismo e responsabilidade. Saiu tudo à rua e de confinamento ao ar livre aconteceu tragédia. A campanha eleitoral não existiu. Os candidatos iam suspendendo as acções já agendadas. O governo e o país assistiram à desgraça de verem o número de óbitos e de infectados a subir assustadoramente. Os dias passaram a ser de uma constante surpresa com mais de 200 mortos em 24 horas. Os candidatos a presidente da República, em número demasiado na esquerda política e com pouco sumo de mudança política passaram a limitar-se a umas mensagens nas televisões. O Partido Socialista deixou o país incrédulo em não apoiar um candidato próprio e ainda por cima em não dar o seu aval à socialista Ana Gomes em detrimento de Marcelo Rebelo de Sousa. Porque não venham com a história da chamada liberdade de voto porque não pega. O actual presidente Marcelo obviamente que será reeleito e por larga vantagem. Só não sabemos uma coisa: é se a abstenção é significativa e poderá provocar uma segunda volta. Com quem? Bem, isso é outra conversa. Andam dois passarões a disputar a mesma presa do segundo lugar, a candidata Ana Gomes e o “bocas” que fez Portugal voltar a falar e a pensar naquilo que já ninguém imaginava – no fascismo. O homem André Ventura apareceu como o “palhaço” da moda política: dizer mal de tudo e de todos, mas deixando um rasto bem visível de que a extrema-direita europeia estava a financiar as suas campanhas. Extrema-direita com a cabeça de fora não se imaginava que passasse a ser uma realidade. Falar em fascismo e aparecerem ideias autenticamente fascistas, racistas e xenófobas é uma realidade na companha do homem que aprendeu política no PSD. O homem insulta, ofende, diz que vai ser presidente, governante, autarca, diz tudo e mais alguma coisa sem lógica, mas com o perigo de angariar apoios nos descontentes. Acontece que os portugueses estão zangados com muitos actos governativos, especialmente pelo que não se faz pelos mais desprotegidos. E aqui é que o homem bate forte numa onda de populismo como nunca se vira nas hostes do CDS ou do PSD. Portugal está triste, preocupado e de luto. Morre muita gente com a covid-19, os hospitais do norte ao sul do país estão em ruptura, sem mais camas e profissionais de saúde. Nenhum governo alguma vez se preocupou que poderíamos ser alvo de uma catástrofe. Nesse sentido, deviam-se ter construído mais hospitais e valorizado o trabalho dos profissionais de saúde. O número de óbitos, que nos últimos dias ultrapassou os 220 por dia, criou o medo permanente em toda a gente, excepto nos inconscientes que até andam pelas ruas sem máscara. E é neste ambiente nacional de tristeza e preocupação que o candidato Ventura provoca o impensável: regressaram as manifestações idênticas aos da década de 1970, com protestos de “Fascismo nunca mais” e “Fascismo não passará”, sempre que ele aparece numa cidade. Em todos os locais onde o candidato se desloque os protestos contra a sua presença fazem-se ouvir. Em Setúbal, a polícia teve de intervir porque a caravana automóvel do candidato Ventura foi alvo de grande ostracismo por um grupo de opositores de etnia cigana. Onde está a noção de confinamento para o candidato Ventura, quando todos os outros candidatos suspenderam as actividades de rua? O homem só sabe gritar que há o bem e o mal. É óbvio que ele e o seu grupelho se acham a parte boa da população e tem o desplante de anunciar que vai vencer as eleições numa segunda volta, quando se sabe há anos que Marcelo Rebelo de Sousa será reeleito logo à primeira votação. No entanto, a campanha presidencial teve momentos de grande elevação com as posições de candidatos como Ana Gomes, Marisa Matias, João Oliveira e Tino de Rans. Souberam trocar palavras que não ofendiam, não insultavam, simplesmente demonstraram que em política não podem ser todos iguais nem anunciar as mesmas medidas. Os debates nas televisões tiveram sobriedade, cordialidade e em certos casos nas entrevistas realizadas aos candidatos, estes souberam, com clareza, manifestar o que poderia mudar em Portugal. Durante esta campanha eleitoral ficou uma nódoa negra, a mais negra da campanha: a posição do candidato Ventura contra a comunidade cigana. A maioria dos ciganos trabalha à sua maneira, alguns já têm cursos superiores, há dias conheci um que é veterinário. Os ciganos não merecem os insultos do candidato Ventura que anunciou que os ciganos nada fazem e que vivem à custa do dinheiro do povo. É mentira. Conheço vários casais de ciganos que se levantam todos os dias às cinco da madrugada para se deslocarem nas suas carrinhas para vender os seus produtos nos mais variados locais onde se realizam feiras de rua. Há ciganos que trabalham em empresas de distribuição, nas obras de construção civil, nos armazéns de hipermercados e nos mais variados tipos de trabalho. O candidato Ventura disso não fala e nada diz sobre o prejuízo que têm os ciganos, tal como todos nós, devido ao confinamento e de não poderem ganhar dinheiro para sustento das famílias que normalmente são numerosas. O candidato Ventura mostrou ao país uma única teoria: a palhaçada do fascismo, que até teve a presença em Portugal da líder fascista francesa Le Pen. No meio disto tudo, com as escolas também encerradas, o povo apenas deseja que a pandemia termine e que Marcelo Rebelo de Sousa tenha um novo mandato especialmente virado para a defesa dos mais desprotegidos no nosso país.
João Romão VozesUm ano em covid Comecei relativamente cedo, não tanto como quem vive em território chinês, mas quase: já se completou um ano desde que comecei a ter contacto próximo com os efeitos da presença do covid-19 nas nossas sociedades. Esse primeiro contacto foi logo bastante esclarecedor: estava eu em Sapporo, no Norte do Japão, e começava nessa altura a trabalhar à distância (mesmo sem vírus) num projecto de investigação com uma colega chinesa a viver em Busan, na Coreia do Sul. Em Dezembro já se tinham identificado na China os primeiros casos deste problema ainda difícil de definir e ainda mais de enfrentar, e nós estávamos ambos nas proximidades geográficas deste epicentro. No início de Janeiro, a minha colega foi visitar a família à China, com viagem marcada muito antes, e tornou-se na primeira pessoa minha conhecida a viver um confinamento: duas semanas sem poder sair de casa, todo o tempo que durou a viagem, desde que aterrou até que saiu de território chinês. Regressaria então à Coreia e tornava-se também na primeira pessoa que conheci a passar por uma quarentena: outras duas semanas fechada em casa, agora em território coreano. No total foi um mês, o que hoje parece um período de reclusão e isolamento relativamente curto banal, mas que na altura constituía radical novidade a irromper subitamente nos quotidianos das sociedades modernas, habituadas a outras liberdades e intensas mobilidades. Apercebi-me também cedo de que estar forçosamente confinado em casa não implica necessariamente ter mais disponibilidade para trabalhar: operam ao mesmo tempo outros mecanismos fisiológicos e psicológicos que de alguma forma neutralizam a aparente boa vontade dos relógios e dos calendários para nos oferecer tempo para trabalhar. Havia de perceber mais tarde que, um pouco por todo o lado, todos demorámos a transformar esta reclusão forçada em processos produtivos, fossem eles quais fossem. Nos finais de Janeiro o vírus chegaria à cidade onde eu vivia, Sapporo, a capital da região de Hokkaido, destino turístico de grande notoriedade no mercado chinês, que nesse mês organiza o seu maior evento, o Festival da Neve, com esculturas em gelo de grandes dimensões a ocupar o parque central da cidade. Foi um funcionário de apoio ao evento o primeiro a ser noticiado como infectado na cidade, numa altura em que a propagação se contava ainda em escassas unidades por semana e se sabia exactamente como as coisas se tinham passado. Ainda assim, a China era perto e a informação sobre o ambiente de terror que lá se vivia – com mais de mil milhões pessoas confinadas e enormes cidades transformadas em desertos – era suficiente para se começarem a antecipar respostas possíveis se e quando o vírus chegasse. Isso era no Japão, evidentemente, ou na Coreia, ou em Singapura, ou na generalidade dos países asiáticos. Na Europa e na América era tempo de contar anedotas xenófobas sobre a fraca qualidade do “vírus chinês”. Continua a pagar-se muito alto o preço desta arrogante negligência. Noutras cidades japonesas foram aparecendo casos isolados mas seria Hokkaido a ter o crescimento mais rápido dos contágios, levando o governo regional a decretar um “estado de emergência” para a região assim que se registaram quase 10 casos durante três dias consecutivos. Na altura eram cerca de 50 as pessoas infectadas mas já grandes os receios. Na nossa política de emergência doméstica, decretámos rapidamente um recolher quase obrigatório, só com as excepções inevitáveis por motivos profissionais, que a situação de gravidez que vivíamos nos pareceu requerer. Numa das poucas cidades em apareceram casos de infeções havia de realizar-se em Fevereiro uma conferência para a qual já tinha pago inscrição e viagem e que decidi cancelar. Tendo em conta o carácter que me pareceu excepcional da situação, ainda tentei ser reembolsado pelo pagamento da inscrição. Debalde, que a organização – por acaso posicionada no campo do “pensamento crítico” na área dos estudos turísticos – se remeteu escrupulosamente às datas regulamentares. Ainda enviei por email ligações para notícias sobre eventos já na altura cancelados em diferentes países, mesmo na distante Europa, mas o que recebi em resposta foi outro texto da imprensa, em que um comentador classificava como “histérica a xenófoba” a reacção de medo em relação à propagação do vírus. Por coincidência, havia de encontrar o nome do meu interlocutor em sérios e graves publicações e debates científicos relacionados com os efeitos da pandemia no turismo. O moderno charlatão não se passeia só pelas redes sociais. Depois de uma fase em que a situação parecia contida, uma segunda vaga de contágios havia de chegar ao Japão, numa altura em que felizmente tinha que mudar de cidade: Hokkaido voltava a estar na liderança das preocupações pandémicas, enquanto no meu novo destino (Hiroshima) muito poucas notícias havia do vírus. Em todo o caso, as regras de prudência e confinamento doméstico só interrompido por motivos inevitáveis e inadiáveis havia de se manter. O novo trabalho havia de começar, a propagação do vírus havia de se agravar, as aulas passariam subitamente a ser dadas online, a nossa filha chegaria com o solstício, e tudo foi correndo com relativa tranquilidade, nessa altura em que já na Europa se tinha demonstrado com evidência a incúria com que se lidou com o assunto, quer enquanto continente (ou enquanto União), quer por parte de cada um dos países: nem máscaras, nem ventiladores, nem planos para encerramento de voos (só em Abril e para reabrir no verão), nem estratégia para confinamentos gerais ou parciais em que se garantissem regras de tele-trabalho, abastecimentos domésticos de produtos essenciais ou transportes públicos em segurança para quem precisa. Rigorosamente nada foi antecipado, preparado ou planeado nos 3 ou 4 meses que passaram entre a identificação do vírus na China e a sua chegada à Europa. Recentemente vivi a terceira vaga, mais forte que as anteriores, e que desta vez atingiu mais fortemente a região de Hiroshima. Pela primeira vez, houve encerramento generalizado de restaurantes e comércio não essencial e apelos (não obrigatórios mas amplamente seguidos) a recolhimento doméstico. O programa de apoio ao turismo interno que tinha sido accionado foi suspenso. Mas aparentemente este confinamento que vivemos no Natal e Ano Novo (e continua a prolongar-se, enquanto recomendação, até ao início de Fevereiro) teve os seus resultados: numa cidade com mais de um milhão de habitantes, os casos diários de novas infecções voltaram a estar abaixo da dezena, quando tinham estado perto da centena durante quase dois meses. O momento é de relativa mas desconfiada tranquilidade: a vacinação generalizada ainda está longe e não se sabe se está a chegar uma nova vaga de infeções. Na Europa, entretanto, vive-se por esta altura o momento mais dramático e violento desta crise. Não havia mesmo necessidade nenhuma.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBatom Vermelho O batom vermelho precisa de contexto, muito para além de explicação. O batom vermelho, para além de muita coisa, é um símbolo de sensualidade. Para mim foi sempre um fetiche do glamour hollywoodesco dos anos 50. Valeu-nos a Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor para tornar o batom vermelho bem mais comum do que qualquer outro. Mas o batom teve (e tem) uma vida para além desta sensualidade cinematográfica. Nasceu de práticas e vivências centenárias (milenares?) para chegar a um momento onde ainda é, de algum modo, polémico. Há um pluralismo aparente nos lábios encarnados, mas uma consistente assumpção: a da sexualidade no feminino e a sua história de luta por legitimidade. Na Grécia Antiga as mulheres eram identificadas como prostitutas porque usavam uma cor vermelha nos lábios. Nos tempos medievais os lábios vermelhos eram sinais do demónio, de imoralidade e da heresia. Foi a rainha Elizabeth de Inglaterra que lhe deu moda e visibilidade, por mais tóxico que fosse (nesta altura ninguém sabia que o mercúrio o era). As sufragistas tinham como arma e símbolo de sororidade os seus lábios vermelhos. Uma espécie de indicador de união e resistência – que durou até aos tempos da segunda guerra mundial. O Hitler tinha um ódio especial por esta cor de lábios. Foi assim que o batom vermelho se tornou parte da indumentária das mulheres pelos Aliados e a sua produção nunca foi parada. De tantas estórias e história voltada, os lábios vermelhos foram pela visibilidade e contestação. Dá nas vistas, ressalta, vira-cabeças. Chateia muita gente, mas dá espaço a muita outra. Para além disso, há secções de pornografia dedicadas ao fetiche com este tão icónico batom. O batom vermelho nunca deixou de ser cultural, político e sexual. Quando, recentemente, os lábios vermelhos foram acusados de serem sinal de brincadeira – opondo-se a seriedade, entendi eu – mobilizaram-se os muitos batons vermelhos que estavam guardados nas gavetas. Reclamou-se o uso do batom com o poder que a cor vermelha tem, sem medo de ser visível. Mobilizou-se este passado de resistência que nem eu tinha consciência que existia. Um batom vermelho nunca foi só um batom vermelho. A resistência com este tão singelo objecto de maquilhagem uniu as pessoas de forma incrivelmente bonita. Não querendo ser pessimista, contudo, é preciso estender este gesto, e esta conversa a outros domínios. Vale a pena reflectir acerca dos batons que ficam, e ficaram, por usar. Os muitos contextos em que o batom vermelho ainda é mal visto, criticado e simbolicamente desprezado. Tenho eu tanto espaço para usar um batom vermelho como a outra pessoa que está ao meu lado? A que nível de normalização do batom vermelho nos encontramos? Pode um homem cisgénero pintar os lábios de vermelho para ir para o trabalho? Será que uma mulher racializada pode usar um batom da mesma forma que uma mulher branca? A luta pelo batom vermelho está longe de estar terminada. Ainda que nos apareçam pessoas e ideias que põem em causa as conquistas que há muito pensámos terem sido travadas, não percamos o foco das muitas outras lutas que ainda estão por travar. A luta actual contra o re-surgimento de valores conservadores precisa de ser enquadrada nesta outra em que as oportunidades e liberdades ainda não são de todos. Nunca comprei outro batom na minha vida, senão o vermelho. Nunca soube muito bem porquê, mas talvez a nível inconsciente percebesse que a resistência está na visibilidade e a contestação está tanto nas palavras como nos gestos.
Hoje Macau Ai Portugal VozesNa gaiola outra vez Por André Namora Aí está a chamada tradição do Natal transformada em confinamento. Todos achavam que a celebração eucarística da família à mesa com bacalhau e peru é que tinha de acontecer. Em primeiro lugar estava a oportunidade de dizer à covid-19 que passasse ao lado da malta porque as festas eram importantíssimas… nem sequer o alerta de certos especialistas clínicos a avisar que os ajuntamentos familiares no Natal iriam provocar grandes dissabores traduzidos em números astronómicos de infecção e aumento do número de óbitos, permitiu que as pessoas não aderissem às festas natalícias. De nada serviu, os médicos atentos ao que se vai passando por esse mundo sabiam que as festas iriam dar bronca. Festas que foram do conhecimento das autoridades com 100, 300 ou 500 pessoas. Tudo na maior. Toca a banda e abre o garrafão que é Natal ou ano novo. A Guarda Nacional Republicana ainda entrou por umas quintas a dentro e acabou com o festim. Numa delas, havia mulheres e homens nus numa piscina interior aquecida em plena orgia do tipo grego com uvas e outras bolas nas mãos. No interior do salão com lareira manjava-se javali e veado cozinhados com vinho tinto. Resumindo: estava tudo bêbedo sem se darem conta que o coronavírus andava por lá a marcá-los à distância para passadas duas semanas enviá-los para o hospital, na secção chamada de covid. A propósito, de falarmos sobre a covid-19 e o aumento estonteante do número de infectados e de mortes que levaram o governo a decretar novo confinamento à população, há que registar o excelente e sacrificado trabalho dos profissionais de saúde pública, especialmente os enfermeiros e assistentes sociais. As secções nos hospitais onde são instalados os doentes com a pneumonia covid são geridas com uma seriedade espantosa. Qualquer profissional está equipado dos pés à cabeça com bata especial plastificada, uma touca, dois pares de luvas, sapatos especiais, óculos de plástico, máscara profissional, todo este material que ao deixarem a secção onde se encontram os doentes com a covid são atirados fora para recipientes próprios para cada tipo de objectos utilizados. Os enfermeiros merecem os nossos maiores aplausos pelo trabalho que realizam. É proibido entrar nos hospitais mas tive a oportunidade de ver um vídeo que um profissional hospitalar realizou e vê-se que felizmente não se está a brincar em serviço. Quem brinca com o povo são os políticos tão incompetentes que até eles apanham a covid-19, como foi o caso da ministra do Trabalho e da Segurança Social. Por sinal, quando a vi toda gaiteira e a falar sem máscara, disse para comigo “esta não se safa à covid”. Dito e feito. Mas, a verdade total neste aspecto não vem a público: há mais governantes e assessores infectados e incrivelmente, pelo menos um deles, sabia que estava positivo e foi “trabalhar” para o Ministério onde se encontram centenas de colegas. A irresponsabilidade tem sido grande, o governo perdeu o controlo da pandemia, os médicos que sabem da matéria não têm sido levados a sério e assim estamos com cerca de 150 mortes por dia. Quem diria que chegávamos a um ponto tão trágico e tão triste e mesmo assim foi decretado um confinamento da treta. Qual confinamento? As escolas estão abertas, os pais saem à rua para ir levar e buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino, os supermercados estão abertos, as pastelarias estão abertas servindo o cafezinho numa mesa colocada à entrada e onde os ajuntamentos de clientes são uma realidade, as padarias não param de vender toda a espécie de pão, as mercearias estão cheias dos clientes habituais lá do bairro, os cabeleireiros estão fechados mas as marcações telefónicas levam a que no interior o trabalho não pare. Resumindo: as ruas estão cheias de “confinamento”, uns foram à farmácia, outros ao hipermercado, alguns dizem que vão ao dentista, outros que vão à consulta que o médico marcou há duas semanas, há muitos a passear o cãozinho, à porta do talho vêem-se as filas de carnívoros, enfim, são tantas as excepções ao confinamento que estou certo que o número de infectados e de mortos não vai baixar. Por outro lado, tenho um vizinho que já trocou o seu Mercedes pelo último modelo. É proprietário de uma agência funerária e disse-me que nunca imaginou ficar tão rico. Só os funerais dos muçulmanos dão-lhe um lucro astronómico porque é das poucas agências que sabem tratar dos rituais inerentes à religião de Maomé. O confinamento que foi decretado na passada sexta-feira é um fiasco e tristemente o civismo das pessoas ainda não alcançou uma plataforma de compreensão de que esta pneumonia covid não brinca com os humanos, simplesmente trata-lhes da saúde enriquecendo as agências funerárias. As pessoas não entendem o que é uma pandemia, não querem compreender a gravidade deste tipo de vírus e até há quem brinque aos testes. Hoje dá negativo, no dia seguinte deu positivo, tem que ficar 15 dias confinado, mas depois de mais um teste volta a resultar negativo e aí vai ele para a rua porque as eleições estão à porta e há quem queira continuar a ser presidente da República. O que me apetecia era ter uma fábrica de gaiolas onde pudesse meter esta passarada toda… *Texto escrito com antiga grafia
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO infundado apocalipse climático “What’s really behind the rise of apocalyptic environmentalism? There are powerful financial interests. There are desires for status and power. But most of all there is a desire among supposedly secular people for transcendence. This spiritual impulse can be natural and healthy. But in preaching fear without love, and guilt without redemption, the new religion is failing to satisfy our deepest psychological and existential needs.” Michael Shellenberger Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All Estamos a viver uma era de preocupação, especialmente um medo das alterações climáticas. Uma imagem resume esta época que é de uma rapariga com um letreiro a dizer que “Morrerás de velhice ou de alterações climáticas”. Esta é a mensagem que os meios de comunicação estão a perfurar as nossas cabeças, pois as alterações climáticas estão a destruir o nosso planeta e ameaçam matar-nos a todos. A linguagem é de apocalipse. Os noticiários referem-se à “incineração iminente do planeta” e os analistas sugerem que o aquecimento global pode fazer com que a humanidade se extinga em poucas décadas. Recentemente, fomos informados que a humanidade tem apenas uma década para salvar o planeta, fazendo de 2030 o prazo limite para salvar a civilização. E, portanto, temos de transformar radicalmente todas as grandes economias para acabar com a utilização de combustíveis fósseis, reduzir as emissões de carbono a zero, e estabelecer uma base totalmente renovável para toda a actividade económica. As crianças vivem no medo e alinham as ruas em protesto. Os activistas estão a isolar as cidades e os aeroportos para aumentar a consciência de que toda a população do planeta está a enfrentar “hecatombe, morte e fome”. Em 2017, o jornalista americano David Wallace-Wells escreveu uma longa e aterradora descrição do impacto do aquecimento global para a revista New York. Embora o artigo fosse geralmente considerado pelos cientistas como exagerado e enganador, o mesmo argumento foi publicado em forma de livro, em 17 de Março de 2020, com o título “The Uninhabitable Earth: Life After Warming”, que se tornou um bestseller. O livro revela um alarmismo sem falhas: “É pior, muito pior, do que se pensa”. Da mesma forma, no seu livro de 2019, “Falter: Has the Human Game Begun to Play Itself Out?”, o naturalista americano Bill McKibben, líder da organização ambientalista 350.org, advertiu que o aquecimento global é a maior ameaça à civilização humana, pior até do que a guerra nuclear. Pode acabar com a humanidade não com uma explosão, mas “com o rebentar de um oceano em ascensão”. Uma prateleira gemeria sob o peso de livros recentes com títulos e mensagens deliberadamente aterradoras. É assim que o mundo acaba com secas e ondas de calor e os furacões que estão a convergir na América. Os meios de comunicação social reforçam a linguagem extrema, dando amplo espaço aos activistas ambientais, e envolvendo-se no seu próprio activismo. O New York Times adverte que “em todo o mundo as alterações climáticas estão a acontecer mais rapidamente do que os cientistas previam”. A capa da revista Time diz-nos: “Fiquem preocupados. Estejam muito impressionados”. O jornal britânico The Guardian foi mais longe, actualizando as suas directrizes de estilo, pelo que os repórteres devem usar os termos “emergência climática”, “crise climática”, ou “ruptura climática”. O editor do jornal acredita que “alterações climáticas” não é suficientemente assustadora, argumentando que “soa bastante passivo e suave quando aquilo de que os cientistas estão a falar é uma catástrofe para a humanidade”. Sem surpresas, o resultado é que a maioria de nós está muito preocupada. Uma sondagem de 2016 revelou que em países tão diversos como os Emiratos Árabes Unidos e a Dinamarca, a maioria das pessoas acredita que o mundo está a piorar, e não a melhorar. No Reino Unido e nos Estados Unidos, dois dos países mais prósperos do planeta, um espantoso 65 por cento das pessoas são pessimistas quanto ao futuro. Uma sondagem de 2019, revelou que quase metade da população mundial acredita que as alterações climáticas irão provavelmente acabar com a raça humana. Nos Estados Unidos, quatro em cada dez pessoas acreditam que o aquecimento global levará à extinção da humanidade. Há consequências reais para este medo. As pessoas estão a decidir, por exemplo, não trazer crianças ao mundo. Uma mulher disse a uma jornalista: “Eu sei que os humanos são difíceis de procriar, mas o meu instinto agora é proteger os meus filhos dos horrores do futuro, não os trazendo ao mundo”. Os meios de comunicação social reforçam esta escolha; os países querem saber “como se decide ter uma criança quando as alterações climáticas estão a intensificar. Se os adultos estão preocupados de forma disparatada, as crianças estão aterrorizadas. Um inquérito do Washington Post de 2019 mostrou que das crianças americanas entre os treze e os dezassete anos de idade, 57 por cento sentem medo das alterações climáticas, 52 por cento sentem raiva, e 42 por cento sentem-se culpadas. Um estudo académico de 2012 com crianças com idades compreendidas entre os dez e os doze anos, de três escolas de Denver, revelou que 82 por cento expressaram medo, tristeza e raiva ao discutir os seus sentimentos sobre o ambiente, e que a maioria das crianças partilhava opiniões apocalípticas sobre o futuro do planeta. É revelador que para 70 por cento das crianças, a televisão, os noticiários e os filmes foram fundamentais para formar os seus pontos de vista aterrorizantes. Uma criança de dez anos, diz sobre o futuro que já não haverá tantos países por causa do aquecimento global, porque ouve falar no Discovery Channel e canais científicos como se em três anos o mundo pudesse inundar-se com o calor e ficar demasiado quente. Estas descobertas, se válidas em todo o país, sugerem que mais de dez milhões de crianças americanas estão aterrorizadas com as alterações climáticas. Como resultado deste medo, em todo o mundo as crianças estão a faltar às aulas para protestar contra o aquecimento global. Porquê assistir às aulas quando o mundo vai acabar em breve? Recentemente, uma aluna dinamarquesa da primeira classe perguntou seriamente à sua professora: “O que vamos fazer quando o mundo acabar? Para onde iremos? Para os telhados?” Os pais podem encontrar uma montanha de instruções e guias online com títulos bastante sugestivos. E assim, representando o verdadeiro terror da sua geração, uma jovem segura um sinal que diz “Vou morrer de alterações climáticas”. As alterações climáticas são um problema real. Ao contrário do que ouvimos, os resultados climáticos básicos têm-se mantido notavelmente consistentes ao longo dos últimos vinte anos. Os cientistas concordam que o aquecimento global é principalmente causado pelo homem, e que tem havido poucas mudanças nos impactos que projectam para a subida da temperatura e do nível do mar. A reacção política à realidade das alterações climáticas sempre foi deficiente, o que também se tem vindo a apontar há décadas. Existem formas mais inteligentes para enfrentar o aquecimento global. Mas a conversa mudou drasticamente nos últimos anos. A retórica sobre as alterações climáticas tornou-se cada vez mais extrema e menos ancorada à ciência actual. Ao longo dos últimos vinte anos, os cientistas climáticos aumentaram cuidadosamente o conhecimento sobre as alterações climáticas, e nós temos mais fiáveis dados do que nunca. Mas, ao mesmo tempo, a oratória que vem dos comentadores e dos meios de comunicação tornou-se cada vez mais irracional. A ciência mostra-nos que os receios de um apocalipse climático são infundados. O aquecimento global é real, mas não é o fim do mundo. É um problema controlável. No entanto, vivemos agora num mundo onde quase metade da população acredita que as alterações climáticas irão extinguir a humanidade, tendo alterado profundamente a realidade política. Faz-nos duplicar em políticas climáticas pobres. Faz-nos ignorar cada vez mais todos os outros desafios, desde as pandemias e a escassez de alimentos até aos conflitos e disputas políticas, ou subsumi-los sob o signo das alterações climáticas. Esta singular obsessão com as alterações climáticas significa que estamos agora a passar de desperdiçar milhares de milhões de dólares em políticas ineficazes para desperdiçar triliões de dólares. Ao mesmo tempo, estamos a ignorar cada vez mais os desafios mais urgentes e muito mais fáceis do mundo. E estamos a assustar crianças e adultos sem sentido, o que não é apenas factualmente errado mas moralmente repreensível. Se não dissermos para parar, o actual falso alarme climático, apesar das suas boas intenções, é provável que deixe o mundo muito pior do que poderia estar. Precisamos de deixar o pânico, olhar para a ciência, enfrentar a economia, e abordar a questão racionalmente. Como é que reparamos as alterações climáticas, e como é que a priorizamos no meio dos muitos outros problemas que afligem o mundo no topo da qual está a Covid-19 que não é fruto das alterações climáticas? As alterações climáticas são autênticas, e causadas predominantemente pelas emissões de carbono dos seres humanos que queimam combustíveis fósseis, e devemos combatê-las de forma inteligente. Mas para o fazer, temos de parar de exagerar e de argumentar que é agora ou nunca, e parar de pensar que o clima é a única coisa que importa. Muitos defensores do clima vão mais longe do que o apoio da ciência. Sugerem implicitamente ou mesmo explicitamente que o exagero é aceitável, porque a causa é tão importante. Depois de um relatório da ONU sobre o clima de 2019 ter conduzido a reivindicações exageradas por activistas, um dos autores científicos advertiu contra o exagero. Escreveu que arriscaríamos a afastar o público com conversas extremistas que não são cuidadosamente apoiadas pela ciência. Apesar de tudo está certo. Mas o impacto de reivindicações climáticas exageradas vai muito mais fundo. Dizem-nos que temos de fazer tudo de imediato. A sabedoria convencional, repetida ad nauseam nos meios de comunicação, é que só temos até 2030 para resolver o problema das alterações climáticas. Isto é o que a ciência nos diz? Não é! É o que nos diz a política. Este prazo veio de políticos que fizeram uma pergunta muito específica e hipotética aos cientistas e que basicamente consiste no que será necessário para manter as alterações climáticas abaixo de um objectivo quase impossível? Não surpreendentemente, os cientistas responderam que fazê-lo seria quase impossível, e chegar perto de qualquer meta exigiria enormes mudanças para todos os sectores da sociedade até 2030.Imagine uma discussão semelhante sobre mortes no trânsito. Nos Estados Unidos, quarenta mil pessoas morrem todos os anos em acidentes de viação. Se os políticos perguntassem aos cientistas como limitar o número de mortes a uma meta quase impossível de zero, uma boa resposta seria fixar o limite de velocidade ao equivalente a três quilómetros por hora. Ninguém morreria. Mas a ciência não nos diz que devemos ter um limite de velocidade de três quilómetros por hora, apenas nos informa que se queremos zero mortos, uma forma simples de o conseguir é através de um limite de velocidade de três quilómetros por hora fortemente imposto. No entanto, é uma decisão política para todos fazerem as contrapartidas entre limites de velocidade baixos e uma sociedade conectada. Actualmente e com exclusão da Covid-19 e todas as suas possíveis estirpes a nossa atenção única apesar dos muitos desafios globais, regionais e mesmo pessoais são quase inteiramente subsumidos pelas alterações climáticas. A sua casa está em risco de inundações por causa das alterações climáticas! A vossa comunidade está em risco de ser devastada por um ciclone devido às alterações climáticas! As pessoas estão a morrer à fome no mundo em desenvolvimento por causa das alterações climáticas! Com quase todos os problemas identificados como causados pelo clima, a solução aparente é reduzir drasticamente as emissões de dióxido de carbono a fim de melhorar as alterações climáticas. Mas será esta realmente a melhor maneira de ajudar? Se quiser ajudar as pessoas nas planícies aluviais do Mississippi, do Nilo ou outro qualquer grande rio a reduzir o risco de inundações, existem outras políticas que ajudarão mais rapidamente, de forma barata e eficazmente do que a redução das emissões de dióxido de carbono. Estas poderiam incluir uma melhor gestão da água, a construção de diques mais altos, e regulamentos mais eficazes que permitam a algumas planícies aluviais inundar de modo a evitar ou aliviar inundações noutros locais. Se quiser ajudar as pessoas no mundo em desenvolvimento a reduzir a fome, é quase tragicómico concentrar-se na redução do dióxido de carbono, quando o acesso a melhores variedades de culturas, mais fertilizantes, acesso ao mercado e oportunidades gerais para sair da pobreza os ajudaria muito mais rapidamente e a um custo menor. Se insistirmos em invocar o clima a cada curva, acabaremos muitas vezes por ajudar o mundo de uma das formas menos eficazes possíveis. Não estamos à beira da iminente extinção. Na realidade, muito pelo contrário. A retórica da desgraça iminente desmente um ponto essencial, pois em quase todas as formas que podemos medir, a vida na Terra é melhor agora do que era em qualquer outra altura da história. Desde 1900, temos mais do que duplicado a nossa esperança de vida. Em 1900, a esperança média de vida era de apenas trinta e três anos; hoje é de mais de setenta e um. O aumento tem tido o impacto mais dramático no pior momento do mundo. Entre 1990 e 2015, a percentagem do mundo que praticava a defecação aberta caiu de 30 para 15 por cento. A desigualdade na saúde diminuiu significativamente. O mundo é mais literato, o trabalho infantil tem vindo a diminuir, estamos a viver num dos tempos mais pacíficos da história. O planeta também está a ficar mais saudável. No último meio século fizemos reduções substanciais na poluição do ar interior, anteriormente o maior assassino ambiental. Em 1990, causou mais de 8 por cento das mortes; isto reduziu quase metade para 4,7 por cento, o que significa que 1,2 milhões de pessoas sobrevivem todos os anos e que teriam morrido. O aumento do rendimento agrícola e a mudança de atitudes em relação ao ambiente significaram que os países ricos estão cada vez mais a preservar as florestas e a reflorestar. E desde 1990, mais 2,6 mil milhões de pessoas tiveram acesso a fontes de água melhoradas, elevando o total global para 91 por cento. Muitas destas melhorias surgiram porque ficámos mais ricos, quer como indivíduos quer como países. Durante os últimos trinta anos, o rendimento médio global por pessoa quase duplicou. Isto conduziu a diminuições maciças na pobreza. Em 1990, quase quatro em cada dez pessoas no planeta eram pobres. Hoje é menos de uma em cada dez. Quando somos mais ricos, vivemos melhor e vidas mais longas. Vivemos com menos poluição do ar interior. Os governos providenciam mais cuidados de saúde, proporcionam melhores redes de segurança e aprovam leis e regulamentos ambientais e de poluições mais fortes. É importante notar que o progresso não terminou. O mundo foi radicalmente transformado para melhor no século passado, e continuará a melhorar neste século. A análise dos peritos mostra que é provável que nos tornemos muito melhores no futuro. Os investigadores que trabalham para a ONU sugerem que até 2100 os rendimentos médios aumentarão talvez para quatrocentos e cinquenta por cento dos rendimentos actuais. A esperança de vida continuará a aumentar, para oitenta e dois anos ou possivelmente para além de cem anos. À medida que os países e os indivíduos enriquecem, a poluição atmosférica irá reduzir ainda mais. As alterações climáticas terão um impacto global negativo no mundo, mas diminuirão em comparação com todos os ganhos positivos que temos visto até agora, e continuarão a ver-se no presente século. A melhor investigação actual mostra que o custo das alterações climáticas, se nada fizermos, será de cerca de 3,6 por cento do PIB global. Isto inclui todos os impactos negativos; não só o aumento dos custos das tempestades mais fortes, mas também os custos do aumento das mortes por vagas de calor e das zonas húmidas perdidas devido à subida do nível do mar. Significa também, que em vez de verem os rendimentos aumentar para 450 por cento até 2100, poderão aumentar “apenas” para 434 por cento, o que é claramente um problema. Mas também não é uma catástrofe. Como o próprio painel climático da ONU o afirmou que para a maioria dos sectores económicos, o impacto das alterações climáticas será pequeno em relação aos impactos de outros factores [tais como] alterações na população, idade, rendimento, tecnologia, preços relativos, estilo de vida, regulação, governação, e muitos outros aspectos do desenvolvimento socioeconómico.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesLuz ao fundo do túnel Podemos olhar para 2020 como um dos mais negros da nossa História, ou como o ano em que despertam as primeiras luzes da alvorada. Não sei se algum dos meus leitores viu o filme “Doze Macacos”? A trama é a seguinte, um vírus mortal escapa inadvertidamente do laboratório causando a morte da maioria da população mundial. Aos sobreviventes não resta outra opção senão ocupar o subsolo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) provou, na forma como lidou com a pandemia, não passar de uma organização incapaz de lidar com a defesa da população a nível global perante a ameaça que representa o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Se assim não fosse, a nova variante da Covid-19, identificada no Reino Unido e na África do Sul, já há muito teria sido detectada e eliminada. Se os cientistas da OMS não conseguem encontrar a origem do SARS-CoV-2, mais valia afirmarem que o vírus surgiu de um “buraco negro” no espaço. Estou convencido que muitas pessoas iam acolher esta versão com entusiasmo. Os “buracos negros” políticos e económicos podem ser encontrados a cada esquina deste planeta. 2020 foi um ano difícil para Macau. Quanto a Hong Kong, se conseguir sobreviver, já terá alcançado uma vitória. A economia de Hong Kong continua letárgica e a esperança de vir a ser a região que mais rapidamente iniciará a retoma económica na Ásia, já se desvaneceu. Se não fosse o apoio do turismo da China continental, a situação de Macau teria sido ainda pior. No entanto, até quando é que o Governo consegue aguentar uma política de preços promocionais para promover o turismo local e quando é que poderemos vir a ter um vislumbre do fim do buraco negro? O Governo da RAE suspendeu o depósito de verbas nas contas individuais do regime de poupança central devido à queda abrupta das receitas fiscais, o que provocou o descontentamento de muitos cidadãos. Para mais, o Chefe do Executivo não convocou novos elementos com vontade de integrarem o Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais, tendo simplesmente renovado os mandatos de 25 dos actuais membros deste Conselho, atitude que foi criticada por pessoas fora do sistema. Não podemos deixar de nos interrogar se as próximas eleições para a Assembleia Legislativa, agendadas para este ano, não virão a ser um jogo político com um resultado sabido de antemão. Para alcançarmos o fim da escuridão, precisamos de gente determinada e inovadora. Em 2020, para além de submersa na “fadiga anti-epidemia”, a sociedade de Macau não conseguiu vislumbrar quaisquer saídas noutros aspectos. Tudo gira à volta da “Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, não parece existir outro caminho para além deste. Se assim continuarmos, mesmo que a primeira luz da manhã surja no horizonte, Macau não vai encontrar o caminho para sair da escuridão. Não é assim tão difícil sair da escuridão, o que é difícil é perceber a importância de lá sair. Durante muito tempo, Macau viveu nos casinos onde a luz do Sol não entra nem pode ser vista. As indústrias tradicionais da cidade desapareceram, e o sector da manufactura acabou por morrer. A cidade foi entregue ao circuito do consumo. Torna-se muito difícil voltar a enveredar pelo caminho da inovação e do empreendedorismo. E mesmo que surja uma luz no fundo do túnel, haverá sempre alguém que a vai querer obstruir para que não perturbe a paz da escuridão. Podemos comparar esta situação a um edifício com elevadores. Morar nos andares superiores é gratificante, mas quando todos os elevadores se avariam, ter de subir as escadas até ao topo é sem dúvida um grande desafio. E quantas pessoas em Macau estão à altura deste desafio? Com o arranque da vacinação contra a SARS-CoV-2 a nível global, estima-se que em meados 2021, quando o número de pessoas infectadas rondar os 100 milhões, a pandemia comece a decrescer. Em Setembro, altura em que as eleições legislativas de Macau e de Hong Kong terão lugar, os resultados de ambas vão indicar se estas cidades irão ou não sair do buraco negro em que se encontram mergulhadas. Quando uma pessoa consegue produzir uma centena de sons diferentes, é um prodígio; quando centenas de pessoas só conseguem produzir um único som, é um triste facto social. Se virmos a luz mas não a tentarmos alcançar com determinação suficiente, ficamos encerrados na escuridão.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesContratempos da vacina (III) Actualmente, a forma mais eficaz de combater o novo coronavírus é através da vacinação. A responsabilidade legal dos laboratórios que produzem vacinas, ou seja, a garantia do produto, é naturalmente o primeiro passo na questão da responsabilidade legal neste âmbito e merece a nossa atenção. Hoje vamos continuar a discutir a responsabilidade das empresas que produzem vacinas. A responsabilidade do pessoal médico será analisada mais tarde. Em circunstâncias normais, o desenvolvimento, produção, testagem e inoculação das vacinas, leva cerca de dez anos. A situação actual é de grande urgência, e este intervalo de tempo teve de ser reduzido para dez meses, o que inevitavelmente cria nas pessoas um sentimento de alguma insegurança. Ruud Dobber, executivo sénior da AstraZeneca, um laboratório britânico, tornou claro que as farmacêuticas não se podem responsabilizar por efeitos secundários ao fim de muitos anos. Assim sendo, actualmente em muitos países está a ser debatida a responsabilidade dos laboratórios e os seus pedidos de protecção legal. Carrie Lam, Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), afirmou que se o Governo não aceitar as condições propostas pelas farmacêuticas, terá dificuldade em comprar vacinas. Estas empresas requerem imunidade legal, caso o produto cause efeitos secundários, e as pessoas que são vacinadas não estão dispostas a ver-se privadas dos seus direitos. Este dilema está a ser abordado do ponto de vista legal de três formas diferentes. A primeira não considera sequer a possibilidade de ignorar a responsabilização legal das farmacêuticas. Se alguém tiver uma reacção adversa após ter sido vacinado, pode processar a farmacêutica, mas a protecção legal do pessoal médico mantém-se. A segunda forma é a que foi adoptada pelo Public Emergency Act, nos Estados Unidos. Os laboratórios terão de assumir a responsabilidade criminal, mas são dispensados da responsabilidade civil. A terceira forma vai de encontro ao National Child Vaccine Injury Act 1986, também dos Estados Unidos. As farmacêuticas não têm de indemnizar a vítima directamente, esta indeminização é retirada de um Fundo para a Vacinação. É difícil dizer qual destas três abordagens é a melhor. A RAEHK acrescentou recentemente uma emenda à legislação e adoptou um modelo em que conjuga a segunda e a terceira formas, para lidar com a eventualidade de reacções adversas após a vacinação. O Governo de Hong Kong vai avançar com a criação de um Fundo para a Vacinação. Se alguém sofrer uma reacção adversa rara ou inesperada, que resulte em incapacidade para o trabalho ou que afecte a sua vida de alguma forma, desde que fique comprovado por um painel de especialistas que essa reacção foi directamente provocada pela vacina, existe lugar a uma indemnização. Por enquanto ainda não estão determinadas, nem as circunstâncias que permitem o direito à indemnização nem os valores implicados. O Governo de Hong Kong também assinalou que, embora os contratos com as farmacêuticas incluam algumas excepções, se estiverem em causa negligência, fraude, ou más condutas, etc., não haverá qualquer isenção de responsabilidade. Neste caso, o Governo está particularmente bem habilitado para lidar com esta questão devido há emenda efectuada ao Regulamento de Prevenção e Controlo de Doenças (Utilização de Vacinas) a 24 de Dezembro de 2020. O Artigo 10(2) isenta as farmacêuticas da responsabilidade civil no que respeita a eventuais efeitos adversos das vacinas. Mas este artigo não as isenta da responsabilidade criminal. Se existir fraude ou má conduta, as farmacêuticas continuam a ter responsabilidade criminal. O Artigo 10(4) também estipula a exclusividade da jurisdição dos Tribunais de Hong Kong na audição de casos relacionados com este assunto. Determina que apenas os Tribunais de Hong Kong têm o poder de ouvir os queixosos que processem os laboratórios. O Artigo (4) merece uma análise mais detalhada. Imaginemos que um residente de Hong Kong, que designaremos por A, é vacinado na cidade e apresenta posteriormente uma reacção adversa. A vacina foi produzida pelo laboratório B no país C. A apresenta queixa num Tribunal de Hong Kong, que irá julgar o caso. Seria estranho se este Tribunal não possuísse jurisdição que abrangesse este tipo de queixa. Como a vacina é produzida pelo laboratório B, no país C, o conflito deveria ser regulado pelas leis desse país. Desta forma, A podia escolher um advogado do país C e processar o laboratório B nesse país, e aí pedir para ser indemnizado. Nestas circunstâncias, poderá o Artigo 10(4) impedir A de apresentar uma queixa no país C? Pode o Tribunal do país C recusar o caso de A por causa do Artigo 10(4)? No fundo, o essencial é compreender que os residentes de Hong Kong podem apresentar queixa num Tribunal da cidade, caso tenham sofrido alguma reacção adversa à vacina, independentemente do país onde está sediado o laboratório e do país onde a vacina foi fabricada, desde que tenham sido vacinados em Hong Kong. Mas, se um residente de Hong Kong que esteja fora da cidade, e que designaremos por D, (assumindo que está no país E) for vacinado nesse país e tiver uma reacção adversa. Pode D apenas dar início ao processo em Hong Kong devido ao Artigo 10(4)? E ainda, se um estrangeiro (designado por F) tiver uma reacção adversa depois de ter sido vacinado em Hong Kong, pode recorrer aos Tribunais de Hong Kong? Quanto mais pessoas forem vacinadas, maior será a responsabilidade legal das farmacêuticas. Emboras as clausulas de excepção protejam estas empresas, privam dos seus direitos os vacinados. Criar um Fundo de Vacinação é uma forma equilibrada de proteger ambas as partes. Embora já esteja muita gente a ser vacinada e de início o Fundo ainda não disponha de verbas avultadas, apenas muito poucas pessoas sofrerão reacções adversas às vacinas. Desde que este Fundo seja bem gerido, os problemas podem ser resolvidos. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau Ai Portugal VozesA pandemia tem de ir morrer longe Por André Namora Li muito do filósofo escocês David Hume, um homem excepcional que faleceu em 1776. A sua principal obra foi a “Investigação sobre os Princípios da Moral”. Cada vez que mais o lia mais discordava com ele, apercebendo-me que eu era uma formiga intelectual ao pé de um elefante. O genial David Hume teorizava sobre questões epistemológicas – aquelas que tratam da natureza do conhecimento. Seus pensamentos foram revolucionários o que o levou a ser acusado de heresia pela Igreja Católica por ter ideias associadas ao ateísmo e ao cepticismo. Compõs a famosa tríade do empirismo britânico, sendo considerado um dos mais importantes pensadores do chamado iluminismo escocês e da própria filosofia ocidental. Dizia que era impossível provar a existência de Deus. Opôs-se particularmente a Descartes e às filosofias que consideravam o espírito humano desde um ponto de vista teológico-metafísico. Assim David Hume abriu caminho à aplicação do método experimental aos fenómenos mentais. A sua importância no desenvolvimento do pensamento contemporâneo é considerável. Somente no fim do século XX os comentadores se empenharam em mostrar o carácter positive e construtivo do seu projecto filosófico. Mas, ó André, a que propósito vens com filosofias? Não seria empírico falares sobre o que nos desgosta em Portugal? Precisamente, apresentei-vos David Hume porque ele escreveu uma vez que nada se destruía ou tudo desapareceria. Discordei logo dele. Primeiramente, não concebo que muitas coisas não se destruam quando, por exemplo, entre milhares de factos, estamos desde Março a aturar e a sofrer com uma pandemia que já matou milhões de pessoas em todo o mundo. O confinamento foi terrível e levou um amigo meu ao suicídio, o que aconteceu com tantos humanos que não aguentaram o enjaulamento caseiro e a progressiva deterioração na relação com a companheira ou vice-versa, tendo, alguns, os filhos pelo meio a enlouquecer o cérebro dos pais. Uma pandemia que nos trouxe a covid-19, algo ainda hoje inexplicável. O Coronavírus pulula pelo mundo há anos e a ciência tem andado sempre no seu alcance e no seu controlo. De repente, foi denominado de covid-19 e começou a matar humanos por todo o mundo, particularmente nos EUA, Brasil, China e Índia. As especulações são imensas: guerra entre americanos e chineses com o objectivo da destruição económica, anulação de metade da população de velhos no mundo em especial porque os governos já não têm dinheiro para pagar as reformas e para sustentar os organismos de apoio à saúde, uma tentativa da China de colocar Donald Trump na ordem ou no jazigo, farmacêuticas e laboratórios que viram a porta aberta para a angariação de biliões de dólares, enfim, uma panóplia de teorias de conspiração que levou às mais variadas opiniões de especialistas, cientistas, simples clínicos, comentadores de televisão e até políticos, esses incompetentes que nem das suas tutelas entendem quanto mais de uma pandemia. Ainda bem que já estamos em 2021, um novo ano que nos leva a ter esperança que tudo poderá melhorar. É uma esperança, porque se um rochedo dos Himalaias ou da Serra da Estrela dá razão a David Hume em nunca se destruir e assistirem à vivência milenar de gerações atrás de gerações, também temos de pensar que o vírus tem de desaparecer para Júpiter ou Saturno, mas que não nos mate mais. Agora assistimos ao negócio das vacinas. Esperemos que a ciência ganhe a batalha e que o inacreditável da criação de uma vacina em tão pouco tempo possa dar o efeito desejado, mesmo que seja um dos maiores negócios lucrativos do globo. O ano que terminou nem queremos lembrá-lo. Mudou o mundo, as pessoas, as estruturas, os pensamentos, os investimentos. Mudou a estabilidade de milhares de empresas. Deixou milhares no desemprego. Obrigou patrões pela primeira vez a despedirem trabalhadores fiéis de dezenas de anos com as lágrimas nos olhos. Obrigou jornais e revistas a encerrar. Obrigou casais a divorciarem-se porque a maioria dos homens nunca esteve habituada a não sair à noite para tomar um copo com as amigas e amigos. Obrigou os políticos a mentir nos números de infectados e de óbitos no respeitante à covid-19. Obrigou os médicos e enfermeiros a trabalhar como nunca pensaram e a sofrer desmesuradamente por se sentirem impotentes quando os seus doentes lhe morriam nos braços devido a esse vírus maldito. Por aqui, em Portugal, ai, meus leitores de Macau. A situação é horrível. Não houve Natal, não se festejou a passagem de ano, os restaurantes têm ido à falência, os hotéis estão vazios, os táxis estão sem clientes, os cabeleireiros nem sabem se os seus clientes mais idosos morreram ou não saem de casa desde Março. Meus amigos, que conhecem Portugal, dizer-vos que aquelas tascas maravilhosas à beira das estradas que serviam bifanas e pregos de provocar a lambidela dos dedos também têm encerrado as portas. Estão a morrer quase 80 pessoas por dia. O recorde de infectados chegou quase aos oito mil em 24 horas. Que o novo ano venha cheio de sorte, fé, amor e saúde! Que encha os nossos dias de força, de coragem e de pessoas de luz nas nossas vidas! Que nos ajude a manter o foco e a fé no que realmente importa! Que alivie o peso das lutas e nos traga paz! Que nos faça acreditar que aconteça o que acontecer, há sempre um sol por detrás dos dias escuros e nublados… há sempre! E que todos nós, em 2021 possamos dizer: fuck… estou a viver o melhor ano da minha vida, Desculpa, meu admirado David Hume, algo tem de terminar para bem de todos nós. Não podemos continuar a sofrer como tem acontecido desde Março do ano passado. A pandemia tem de ir morrer muito longe… *Texto escrito com a antiga grafia – Artigo escrito em 3/01/2021
João Romão Vozes2020 ainda não acabou Com inusitada prudência e generalizada desconfiança se foi celebrando, mais ou menos silenciosa e tristemente, a entrada em 2021, o ano que se segue ao da pandemia global que por muito tempo ficará na memória de toda a gente como o que trouxe o coronavírus à nossa intimidade e que, em maior ou menor escala, nos roubou a proximidade dos relacionamentos, pessoais, profissionais ou circunstanciais, remetendo grande parte da nossa vida afectiva para etéreos universos digitais e impondo, para quem pode, processos de trabalho à distância, geradores de novas incertezas e ansiedades mas ainda assim largamente preferíveis ao risco da convivência em espaços públicos ou às tragédias pessoais e colectivas do desemprego. Em todo o caso, mesmo com o notável progresso que a ciência parece ter proporcionado com o desenvolvimento acelerado de vacinas aparentemente eficazes e seguras, nenhum dos problemas que o covid-19 trouxe às sociedades contemporâneas está sequer perto de ficar resolvido. Na realidade, novos problemas vão acumular-se: apesar da mudança do calendário, 2021 não só nos obrigará a viver com os mesmos impactos imediatos da omnipresença de um vírus altamente letal e contagioso, como nos trará ao quotidiano os primeiros sinais dos impactos de médio-prazo que esta pandemia nos obriga a viver. Ainda que se vislumbrem soluções médicas – inevitavelmente lentas – o novo ano será sobretudo tempo de juntar novos problemas às dificuldades que a pandemia nos trouxe e que vão persistir. Ainda que o vírus continue entre nós – e em força – algumas marcas do que será uma sociedade pós-covid começam já a ser evidentes: recessão económica generalizada, falências, desemprego, concentração de riqueza, aumento da pobreza, intensificação das desigualdades sociais e reforço dos desequilíbrios de poder do capital sobre o trabalho num contexto de enfraquecimento da capacidade de intervenção e regulação dos estados. Apesar da imensa profusão de estudos, relatórios técnicos e produção científica que vou acompanhando nos domínios que por motivos profissionais me são mais familiares – desenvolvimento regional, planeamento urbano e economia do turismo – nenhuma destas questões parece ser vista como uma preocupação central ou mesmo como uma característica razoavelmente relevante no processo de reorganização de processos produtivos e relações sociais que possa resultar da erradicação definitiva do infame vírus que tão abrupta e categoricamente colocou a economia global em inevitável quarentena e as comunidades planetárias em justificado pânico. Na maior parte dos casos, o que leio sobre o assunto em contributos de ciências sociais diversas ou em documentos de orientação política parece na realidade mais próximo da ficção do que da análise científica. Neste caso, diria mesmo, muito mais próximo da má ficção científica, a que se deixa fascinar cegamente pelo brilho de prometidos radiosos futuros nutridos por progressos extraordinários das tecnologias – no caso as digitais, naturalmente, com a sua parafernália de redes, sensores, conexões, interações, dados (“big data” e outras magníficas formulações), análises em tempo real, simulações, enfim toda uma parafernália de instrumentos que tornarão mais “inteligentes” (“smart”, na mais modesta expressão inglesa) as nossas cidades, economias e vidas quotidianas – mas que pouco se atrevem, afinal, a explorar as contradições, conflitos, exclusões ou tensões sociais e psicológicas que comunidades e pessoas estão a enfrentar com cada vez maior intensidade, como seria próprio da boa ficção científica. Tomo como exemplo recente relatório publicado pela OCDE (Organizações para a Cooperação de Desenvolvimento Económico), que graças aos seus portentosos recursos e experiência acumulada mobiliza quadros técnicos de indiscutível qualidade e sapiência para a produção de informadas e sólidas análises que em grande medida enquadram e definem o essencial das opções de política económica dos países mais desenvolvidos do planeta. Em estudo publicado nos finais de 2020 (OECD Regions and Cities at a Glance 2020) aborda-se também este futuro que se considera próximo para as sociedades pós-covid, enfatizando a importância dessas tecnologias digitais, as virtudes do tele-trabalho, a reorganização dos serviços de saúde, a aceleração da transição para uma economia pós-carbono ou a renovada atractividade de zonas rurais e pequenas áreas urbanas em tempos de alta conectividade digital e generalizada preocupação com a proximidade física. Como de costume, ficam de fora as questões de poder ou as assimétricas situações de vulnerabilidade que diferentes pessoas ou grupos sociais têm que enfrentar. Quando muito, referem-se assimetrias regionais na resiliência com que se reage a este devastador impacto. E no entanto há evidentes assimetrias dentro de cada região, de cada cidade, de cada comunidade. Aprofundaram-se com a generalização da pandemia e vão aprofundar-se à medida que avançamos por 2021. Estão ligadas, reforçam-se mutuamente e constituirão um ciclo que marcará durante mais tempo a economia da catástrofe que estamos já a viver. O ponto de partida é o do costume: uma recessão económica global, prolongada e generalizada, com os decorrentes encerramentos de empresas, evitáveis e inevitáveis, a marcar o ritmo dos despedimentos, da subida do desemprego e da desvalorização do trabalho, sempre proporcional ao aumento do desespero. Ao mesmo tempo, a contemporânea mobilidade de capitais permite reorganização quase instantânea, mobilização de recursos financeiros para os negócios mais adequados a cada circunstância – e também os há em tempos de pandemia ou outras crises, como temos visto abundantemente. Mais uma vez, crescem as fortunas multi-milionárias do planeta, acelerando e intensificando a concentração de riqueza e aprofundando desequilíbrios e desigualdades de classe. Este aprofundamento dá-se num contexto específico, em que os estados se vão encontrar particularmente vulneráveis, a ter que suportar custos imprevistos para a contenção dos impactos imediatos da pandemia (saúde, subsídios, apoios sociais, etc.) e a ver reduzidos os seus recursos (menores receitas fiscais como consequência da recessão económica). O resultado é mais do que económico e traduz-se em mais um passo significativo para a reconfiguração do poder a que temos assistido desde os anos 1980, em maior ou menor grau consoante as geografias mas com evidente tendência planetária: um sistemático desequilíbrio na relação entre o poder do capital (cada vez mais concentrado) e o valor do trabalho (cada vez mais isolado), num contexto de sistemático enfraquecimento da capacidade de intervenção e de regulação dos estados. Os anos pós-covid já começaram e parecem ir reforçar ainda mais estas tendências globais, mesmo antes da erradicação do vírus. A reconfiguração das cidades, sociedades e quotidianos vai ser feita gradual mas implacavelmente e de acordo com os interesses de quem vem acumulando e concentrando poder. São coisas que parecem interessar pouco na discussão pública, no entanto.
Olavo Rasquinho VozesO acordo de Paris na era pós-Trump Passados cinco anos após a entrada em vigor do Acordo de Paris, o presidente Donald Trump deu instruções para que os EUA se retirassem, o que veio a concretizar-se em 4 de novembro de 2020, data em que formalmente se deu a quebra do compromisso. Recorde-se que o Acordo de Paris é um tratado internacional no âmbito das atividades da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change-UNFCCC), que tem como objetivo a tomada de medidas, pelos Estados aderentes, no sentido de que o aumento da temperatura média do ar seja inferior a 2 graus centígrados no final do século XXI e, tanto quanto possível, inferior a 1,5 graus, tendo como referência os níveis pré-industriais. Este tratado internacional foi aprovado por 195 países em 12 de dezembro de 2015 e entrou oficialmente em vigor em 4 de novembro de 2016, altura em que 55 países que produzem 55% das emissões globais dos gases de efeito de estufa (GEE) o ratificaram. De acordo com projeções do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC), estima-se que, se a temperatura média do ar aumentar 2 ou mais graus celsius até ao fim do século, dar-se-á a fusão de grande parte do gelo da Gronelândia, Antártida, Oceano Ártico, assim como dos glaciares que ainda persistem, nomeadamente nos Alpes, Himalaias, Andes e Islândia. Este degelo implicaria um fluxo de água líquida que provocaria a subida do nível médio do mar de forma significativa, o que faria com que vastas zonas litorais do nosso planeta se tornassem inabitáveis, não só devido às marés astronómicas mais pronunciadas, mas também às marés de tempestade frequentemente associadas a depressões muito cavadas, como por exemplo os ciclones tropicais (tufões e furacões). O degelo no Oceano Ártico não contribuiria diretamente para a subida do nível médio do mar, na medida em que a água líquida proveniente da fusão do gelo, menos denso, iria ocupar o mesmo espaço do gelo submerso. No entanto, sendo o poder refletor do gelo muito maior do que o da superfície líquida, o degelo de vasta áreas implicaria menor reflexão da radiação solar e uma maior absorção pela superfície líquida do mar e, consequentemente, um aumento da sua temperatura. O ar, em contacto com o mar, também teria tendência para aumentar a sua temperatura, potenciando o aquecimento global. Os modelos de previsão do clima entram em consideração com esta realidade, além de outros parâmetros (nebulosidade, fluxo energético associado a correntes marítimas, etc.), de maneira que os resultados que nos dão são uma aproximação do que poderá ser a realidade futura. Numa das suas primeiras declarações, Joe Biden realçou a intenção de regressar ao Acordo de Paris, o que não implica a sua ratificação automática, na medida em que esta depende do senado. Este órgão tem constituído frequentemente uma barreira às intenções dos Presidentes dos EUA. Por exemplo, durante a administração de Bill Clinton, o senado impediu a ratificação do Protocolo de Quioto, com a argumentação de que seria potencialmente prejudicial para a economia americana, apesar de ter sido assinado pelos EUA em novembro de 1998. Isto apesar de o Vice-Presidente Al Gore ter sido um dos principais paladinos da importância desse Protocolo. Os EUA também não têm sido um bom exemplo de cooperação internacional noutras áreas. Foi o que aconteceu com o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, que entrou em vigor a 1 de julho de 2002, após a ratificação do Tratado que lhe deu origem, por 76 países, entre os quais a Rússia e 19 membros da NATO. Os EUA, que sempre tiveram uma atitude ambígua em relação a este tribunal, acabaram por assinar o Tratado em 31 de dezembro de 2000, no final do mandato da administração Clinton. Acontece, porém, que a Administração Bush, que lhe sucedeu, anulou a adesão em maio de 2002, alguns meses antes do Tratado ter entrado em vigor. A saída de Trump da presidência dos Estados Unidos da América constitui uma esperança para os que acreditam que o Acordo de Paris possa vir a ser bem-sucedido. Isto não só por os EUA serem a segunda maior potência responsável pela emissão de GEE a nível global, mas também pelo facto de os seguidores de Trump se sentirem desmoralizados pela sua derrota eleitoral. Talvez seja o caso do seu duplo sul-americano, Bolsonaro, que provavelmente se sentirá agora mais isolado após a queda do seu ídolo. Curiosamente, ambas as personalidades, Trump e Bolsonaro, têm sido apoiadas por equipas constituídas por negacionistas das alterações climáticas, por vezes com aspetos que, se não fossem trágicos, seriam anedóticos. Steve Bannon, o antigo conselheiro e diretor da campanha eleitoral de 2016, de Trump, teve recentemente um comportamento de tal forma abjeto, que algumas redes sociais removeram o vídeo de sua autoria onde sugeria a decapitação de Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA, e de Christopher Wray, diretor do FBI, e a exibição das suas cabeças à entrada da Casa Branca, como “um aviso a burocratas federais”. Essa figura sinistra, Steve Bannon, esteve também em contacto, em 2018, com Eduardo Bolsonaro, filho do então candidato Jair Bolsonaro, tendo-se prontificado para prestar consultoria informal na área da análise de dados na Internet, o que terá ajudado a manipular a opinião pública através notícias falsas nas redes sociais. Também movimentos europeus de extrema-direita têm vindo a usufruir do apoio de Steve Bannon. Coerentemente com as suas ideias negacionistas, o então candidato a presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, manifestou durante a sua campanha eleitoral a intenção de o Brasil se retirar do Acordo de Paris, apesar de o Congresso o ter ratificado em agosto de 2016. No entanto, mediante pressão política, acabou por desistir da ideia. Durante a vigência da administração Trump, os EUA tomaram outras atitudes inamistosas para com a comunidade internacional. Assim, além da saída do Acordo de Paris, também se retiraram de outros pactos e fóruns multilaterais, nomeadamente da UNESCO e do acordo nuclear com o Irão. A decisão de retirada da UNESCO, que está em sintonia com a aversão de Trump ao multilateralismo, tomada em outubro de 2017, foi justificada pela necessidade de a organização necessitar de uma reforma profunda e de deixar de manifestar preconceitos anti-israelitas. A administração Trump iniciou também o processo de saída da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization – WHO), da qual os EUA são membro desde 1948, ano da entrada em vigor da sua constituição. Acontece, no entanto, que a retirada não se poderá concretizar antes de julho de 2021, altura em que a administração Biden já contará com meio ano de exercício. Se a nova administração conseguir impor a sua vontade, a intenção de Trump será frustrada. Tenhamos esperança que a nova administração dos EUA consiga impor a vontade de regressar ao Acordo de Paris e que a COP26, a realizar em Glasgow em novembro de 2021, venha a constituir um marco histórico na concretização dos esforços da comunidade científica, no sentido de que se caminhe para um futuro mais promissor no que se refere à sustentabilidade do nosso planeta. *Meteorologista
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelebrar o extraordinário O ano velho foi atípico. Forçou mudanças, restringiu a liberdade, o toque e o contacto foram desaconselhados e até proibidos. Recordar os primeiros momentos do surto é recordar a incerteza de tudo o que estava a acontecer – e agora chegámos aqui. Aqui estamos no ano novo (do calendário gregoriano) e muitos foram os votos pela normalidade que conhecíamos. A esperança de um regresso às viagens, prazeres e liberdades têm invadido os discursos. Não admira. A pandemia trouxe tempos difíceis onde os problemas do mundo só se exaltaram. Muita gente não tinha uma casa onde se abrigar, apesar do confinamento obrigatório. As desigualdades sociais tornaram-se mais óbvias. A “casa” tornou-se o refúgio de muitos e o pesadelo de outros, que não se sentiam seguros e protegidos. O confinamento foi romantizado pelos que podiam, os outros tiveram que se aguentar. As âncoras deixaram de estar visíveis. A bem ou a mal foi o tempo de parar. Na viragem do ano também vieram as resoluções de sempre. Algumas delas focadas na transformação do corpo e na futilidade da imagem (que as redes sociais pioram sempre). Vários estudos mostram que só 10 por cento das pessoas conseguem cumprir as suas resoluções de ano novo. E isso é simples de explicar – para a mudança acontecer é preciso preparação, e essa é escassa. Tanto a nível individual como colectivo. A pandemia que o diga: no momento em que a prioridade foi a saúde e a vida humana, tudo se baralhou. Parecíamos umas baratas tontas. Novas prioridades exigiram novas normas: a custo de quê? Agora volta-se ao normal não-normal, que só afunda o que nos separa. Artificia-se um colectivismo nacional/regional para garantir economias e formas de vida. Prevalecem soluções e perspectivas tecnocráticas do funcionamento social onde só há espaço para o que interessa (a alguns). Em tempos de crise discrimina-se o essencial de um suposto acessório. Os gestores são mais importantes que os artistas, dizem eles. A obrigação é necessária e o prazer é um luxo, dizem eles. Sonha-se com a normalidade antiga sem grande consciência que era ela o problema também. Um 2020 marcado pela pandemia só foi disruptivo porque não o vimos como sintomático do estilo de vida contemporâneo. As coisas estavam más, mas eram finamente toleradas. A normalidade contribuiu para a desflorestação, a crescente invasão de ecossistemas e para a transmissão zoonótica do vírus – de onde outros vírus virão. Foi dos vícios e artifícios do antigamente que se agravaram as dificuldades sociais violentamente sentidas, e que vão continuar. Pelo menos parou-se. Podia ter sido uma oportunidade para re-imaginar um mundo diferente, um espaço para o recomeço. Foi extraordinário assistir ao sentido de comunidade que se desenvolveu a vários níveis – ainda que não tenha durado muito. Ajudavam-se os vizinhos e o “essencial” parecia ser importante. A humanidade estava latente no trato, ainda que cumprindo distanciamento social e protegido de máscaras. Provou-se a resiliência e a criatividade com serenatas e concertos à janela, entre muitas outras coisas. O vislumbre de um mundo radicalmente diferente poderia prometer um ano 2021 radicalmente diferente. O ordinário só é familiar, não é imutável. O extraordinário é o trunfo dos tempos e pode ser que 2021 assim o seja.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesContratempos da Vacina (II) A semana passada, analisámos cinco vacinas contra a covid-19 e algumas reacções alérgicas que eventualmente podem provocar, como paralisia facial e outras reacções adversas. Como é impossível provar cientificamente que estas reacções estejam directamente relacionadas com a toma da vacina, não se pode afirmar com cem por cento de certeza que exista uma relação causa efeito. No entanto, é necesssário ter muito cuidado antes de tomar a vacina. Os pacientes devem ter conhecimento da sua história clínica, e os médicos devem estar preparados para a eventualidade de uma reacção alérgica. Após a vacinação, é preciso haver um certo resguardo e esperar algum tempo para garantir que não sobrevêm quaisquer sintomas negativos. Em média, são necessários mais de dez anos para desenvolver uma vacina, mas estas levaram apenas dez meses a ser criadas, produzidas e administradas. Se estas vacinas garantirem protecção num período entre 3 a 5 anos, só no final deste intervalo de tempo se poderá ter um conhecimento mais aprofundado do seu funcionamento. Até lá, não podemos saber ao certo a sua eficácia, nem quais serão os efeitos secundários. Uma vacina desenvolvida em tão pouco tempo vai deixar uma série de questões em aberto. A responsabilização legal dos produtores das vacinas é outro assunto que merece a nossa atenção. O tempo recorde em que estas vacinas foram produzidas deu margem para os laboratórios poderem estudar as reacções adversas que podem eventualmente desencadear? Até que ponto é que estas reacções adversas podem prejudicar a saúde a médio e longo prazo? Os laboratórios farmacêuticos não têm respostas para estas perguntas. Onde reside a sua responsabilidade legal? O fabricante tem a responsabilidade de garantir que o seu produto não provoca reacções adversas. Se a vacina provoca uma reacção negativa e quem a recebe precisa de tratamento médico, estão criadas as condições para um processo legal. A pessoa prejudicada pode pedir uma indemnização ao laboratório. A responsabilização legal dos fabricantes varia de país para país. Em situações de emergência, os Governos desobrigam os fabricantes da responsabilidade legal. O Reino Unido é disso exemplo. O Reino Unido garantiu protecção legal aos laboratórios farmacêuticos, para evitar que possam ser alvo de processos na sequência da administração das vacinas. Esta protecção é alargada ao pessoal de saúde e aos fabricantes de medicamentos. Ruud Dobber, administrador sénior do AstraZeneca, um laboratório farmacêutico britânico, deixou bem claro que é impossível os laboratórios responsabilizarem-se pelos efeitos secundários das vacinas muitos anos após a sua administração. Desta forma, em todo o lado, os laboratórios devem estar a debater esta questão e a solicitar a protecção dos respectivos Governos. O Governo de Hong Kong declarou que pode desobrigar os laboratórios das suas responsabilidades legais no que respeita a esta vacina. Carrie Lam, a Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Hong Kong, afirmou também que se o Governo não aceitar as condições colocadas pela indústria farmacêutica, vai ser muito difícil adquirir vacinas. A União Europeia também declarou que a responsabilidade do produto tem estado no centro das negociações com a indústria farmacêutica. O Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 dos Estados Unidos estipula que um produto que seja usado para controlar uma crise de saúde pública, pode ficar isento de processos legais. O National Childhood Vaccine Injury Act 1986 dos EUA também estipula que se alguém se sentir lesionado após ter recebido uma vacina, pode apresentar queixa contra o Secretário do Departamento de Saúde e de Serviços Humanos no Tribunal Federal e pedir para ser indemnizado através dos capitais do Fundo para a Vacinação. Este Fundo é financiado pelo Governo e por uma taxa de 75 cêntimos que os laboratórios pagam por cada dose de vacina que produzem. As diversas leis regulam a responsabilidade dos produtores de vacinas em diferentes graus e também acarretam consequências diferentes. O primeiro caso é o de Hong Kong. Até ao momento em que escrevia este artigo, não havia notícia de que Hong Kong tivesse isentado os produtores de vacinas da responsabilidade legal. Assim, se alguém tiver uma reacção adversa após ter sido vacinado em Hong Kong, pode processar o laboratório. A população não foi privada dos seus direitos legais nesta matéria. A segunda situação ocorre nos Estados Unidos. O Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 estipula que o fabricante tem de assumir responsabilidade criminal, mas está isento da responsabilidade civil. A terceira está relacionada com o National Child Vaccine Injury Act 1986 (Estados Unidos). Este conjunto de leis permite que as vítimas reclamem uma indemnização, mas essa indemnização é paga pelo Fundo para a Vacinação, sem que os laboratórios tenham de arcar com a despesa. Esta disposição protege as vítimas e as farmacêuticas. É difícil determinar qual destes três modelos é o melhor. É inegável que as afirmações de Ruud Dobber exprimem claramente que as farmacêuticas não podem correr o risco de se vir a responsabilizar por todas as reacções adversas que as vacinas possam causar ao longo dos anos, e é justificável que peçam protecção legal. Mas também é razoável que uma pessoa que tenha sofrido uma reacção adversa após ter sido vacinada, peça uma indemnização. Com os dois lados nos pratos da balança, o Governo britânico aprovou uma legislação que priva o público da possibilidade de processar as farmacêuticas. Não estará a inclinar-se para o lado dos fabricantes? Será uma postura razoável? Como a comunicação social não avançou qualquer informação sobre os conteúdos da legislação, não nos podemos pronunciar em profundidade. No entanto, esta legislação que priva as pessoas que recebem as vacinas dos seus direitos é uma séria violação do direito de ser ressarcido em caso de danos. O US Public Readliness and Emergency Preparedness Act 2005 isenta os laboratórios de responsabilidade civil e o Fundo para a Vacinação do National Child Vaccine Injury Act 1986 parece ter criado um equilíbrio entre os interesses da indústria farmacêutica e os interesses do público. Embora muitas pessoas venham a ser vacinadas e o Fundo não possua verbas muito avultadas de início, devemos ter em conta que são muito poucos os casos que apresentam reacções graves após a vacinação. Desde que este Fundo seja devidamente administrado, acredito que o problema pode ser resolvido. Continua na próxima semana. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau VozesDiscurso de Ano Novo do Presidente Xi Jinping Camaradas, amigos, senhoras e senhores, saudações a todos! O ano de 2021 está a chegar. Da capital da China, Pequim, apresento os meus votos de Ano Novo a todos! 2020 foi um ano extraordinário. Diante da repentina pandemia de coronavírus, colocámos as pessoas e as suas vidas em primeiro lugar para interpretar o grande amor entre os humanos. Com solidariedade e resiliência, escrevemos a epopeia da nossa luta contra a pandemia. Durante os dias em que enfrentámos as dificuldades juntos, vimos os espíritos heróicos marchar a direito para a linha de frente, firmes nos seus postos com tenacidade, assumindo a responsabilidade de passar por tudo, sacrifícios com bravura e momentos emocionantes de ajuda mútua. Dos trabalhadores médicos ao exército popular, dos cientistas aos trabalhadores comunitários, dos voluntários aos que construíram os projectos, dos idosos aos jovens nascidos depois das décadas de 1990 e 2000, inúmeras pessoas cumpriram as suas missões à custa das suas vidas e protegeram a humanidade com amor sincero. Eles juntaram as suas forças, criando num poder tremendo, e construíram uma muralha de ferro para salvar vidas. Muitos foram os que marcharam em frente sem hesitar, muitos revezamentos foram realizados de mãos dadas, muitas cenas expuseram momentos comoventes, e tudo isto ilustra vividamente o grande espírito de luta contra a pandemia. A grandeza é forjada no comum. Os heróis vêm do povo. Cada pessoa é notável! As nossas condolências para todos os que infelizmente foram infectados com o coronavírus! Saudamos todos os heróis comuns! Tenho orgulho da nossa grande pátria e povo, bem como do nosso inquebrantável espírito nacional. É em tempos difíceis que a coragem e a perseverança se manifestam. É após ser polido que um pedaço de jade fica mais fino. Superámos o impacto da pandemia e alcançámos grandes conquistas, coordenando a prevenção e controlo, e no desenvolvimento económico e social. O 13º Plano Quinquenal foi integralmente cumprido. O 14º Plano Quinquenal está a ser formulado de forma abrangente. Estamos a acelerar o ritmo para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento e a implementar em profundidade o desenvolvimento de alta qualidade. A China é a primeira grande economia do mundo a conseguir um crescimento positivo e espera-se que o seu PIB em 2020 atinja o novo nível de 100 triliões de yuans. A China tem uma boa colheita na produção de grãos há 17 anos consecutivos. A China produziu avanços em explorações científicas como o Tianwen-1 (missão a Marte), o Chang’e-5 (sonda lunar) e o Fendouzhe (submersível tripulado em alto mar). A construção do Porto de Livre Comércio de Hainão prossegue com vigor. Também derrotámos severas inundações. Com militares e civis, indiferentes aos perigos e às dificuldades e permanecendo unidos, conseguimos minimizar os danos das cheias. Inspecionei 13 províncias e fiquei feliz ao ver as pessoas implementar cuidadosamente as medidas de prevenção e controlo do coronavírus, correndo contra o tempo para retomar o trabalho e a produção, sem poupar esforços para promover a inovação. Em todos os lugares assisti a cenas vibrantes de pessoas confiantes e resilientes que aproveitavam ao máximo cada minuto. Em 2020, a China realizou a conquista histórica de estabelecer uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos e obteve um sucesso decisivo na erradicação da pobreza extrema. Lançámos o ataque final à fortaleza da pobreza rural enraizada e quebrámos esse “osso duro de roer”. Ao longo de 8 anos, sob o padrão actual, a China erradicou da pobreza extrema quase 100 milhões de habitantes rurais afectados e todos os 832 condados empobrecidos conseguiram elevar-se acima dessa pobreza. Nestes anos, visitei 14 áreas contíguas de extrema pobreza. Muitas vezes me lembro dos esforços incessantes das pessoas e da contribuição sincera dos quadros responsáveis pela erradicação da pobreza. Ainda precisamos permanecer de ser tenazes como um bambu profundamente enraizado nas rochas, manter os pés no chão e trabalhar duramente para pintar um quadro magnífico de revitalização rural e marchar constantemente em direcção ao objectivo da prosperidade comum. Este ano, celebramos o 40º aniversário da Zona Económica Especial de Shenzhen, entre outras, e os 30 anos do desenvolvimento e abertura de Pudong em Xangai. Quando eu estava na costa sul, e a maré da primavera subia pela margem colorida do rio Huangpu, a minha mente ficou repleta de uma miríade de pensamentos. Os testes-piloto tornaram-se modelos e forças liderantes, e as experiências para inovar tornaram-se nas forças principais da inovação. A abertura e a reforma criaram milagres de desenvolvimento. No futuro, devemos aprofundar ainda mais a reforma e expandir a abertura com maior coragem e criar mais destas “histórias de primavera”. Não estamos sozinhos na Grande Via porque o mundo inteiro é uma família. Depois de um ano de dificuldades, podemos compreender mais do que nunca o significado da humanidade como uma comunidade global com um futuro partilhado. Recebi muitos telefonemas de amigos da comunidade internacional, antigos e novos, e participei de muitas conferências à distância. O que mais discutimos foi permanecermos unidos no combate à pandemia. Ainda temos um longo caminho a percorrer na prevenção e controlo da pandemia. Pessoas de todo o mundo devem dar as mãos e apoiar-se umas nas outras para dissiparmos as sombras da pandemia e lutarmos por uma melhor “casa na Terra”. 2021 verá o 100º aniversário do Partido Comunista da China. A sua jornada de 100 anos avança com um grande ímpeto. Cem anos depois, a sua aspiração original permanece ainda mais firme. De Shikumen em Xangai ao Lago Sul na cidade de Jiaxing, o pequeno barco vermelho (onde o primeiro congresso do PCC foi realizado) trouxe grande confiança ao povo e esperança à nação. O barco cruzou rios turbulentos e baixios traiçoeiros, viajou através de ondas e tsunamis, tornando-se num grande navio que navega pelo desenvolvimento estável e de longo prazo da China. O PCC tem a sua eterna grande causa em mente e o centenário apenas inaugura o início da sua vida. Pretendemos colocar em primeiro lugar as pessoas, permanecemos fiéis à nossa aspiração original, mantemos a nossa missão bem presente, quebramos as ondas e navegamos para a nossa jornada em frente e, certamente, realizaremos o grande rejuvenescimento da nação chinesa. Na encruzilhada histórica dos “Dois Objetivos do Centenário”, a nova jornada de construção abrangente de um país socialista moderno está prestes a começar. A estrada à frente é longa; o esforço é o único caminho a seguir. Temos lutado, rasgado por entre silvas e espinhos, cruzado dez mil rios e milhares de montanhas. Continuaremos o nosso esforço, marcharemos para diante com coragem e criaremos uma glória ainda mais brilhante! Neste exacto momento, as lanternas festivas foram acesas e os familiares reúnem-se para o reencontro. O Ano Novo está a chegar. Desejo que nossa terra seja esplêndida, nosso país próspero e nosso povo viva em paz. Desejo a todos um ano harmonioso, suave e auspicioso, cheio de felicidade! Obrigado!
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO Expresso da Política A Assembleia Legislativa de Macau esteve no início do mês focada no debate das linhas de acção sectoriais das Linhas de Acção Governativa, com a presença dos secretários e respectivos directores de serviços. Acredito que quem tiver prestado atenção às transmissões directas da TDM ou às notícias dos jornais, deverá concordar comigo que, mais do que debates, estas sessões são sobretudo trocas de perguntas e respostas entre os deputados e os membros do Governo. Nota-se a ausência de debates interactivos e acalorados e paira no ar um consenso geral. Em comparação com os confrontos que se verificam no Conselho Legislativo de Hong Kong, a relação entre o Executivo e a legislatura na Assembleia Legislativa de Macau é muito harmoniosa. A Assembleia Legislativa assemelha-se a um carro que leva passageiros à boleia, ou seja, os deputados que desta forma completam a jornada de quatro anos desta legislatura. Esta viagem termina em Agosto de 2021, mas não houve melhorias na política ecológica de Macau, a vida parlamentar na Assembleia tem permanecido tão calma e imperturbável como o Lago Nam Van, que acabará por secar ou tornar-se um depósito de águas estagnadas e pestilentas. Se a Assembleia Legislativa de Macau é um carro que leva passageiros à boleia, o Conselho Legislativo de Hong Kong é um comboio expresso. A Chefe do Executivo, Carrie Lam, pediu que o Governo Central interpretasse a Lei Básica da RAEHK, o que causou a anulação do mandato de quatro deputados do campo pró-democracia. A anulação destes mandatos provocou a demissão de todos os deputados pró-democratas, numa manifestação de protesto contra esta decisão. A situação deixa o Conselho Legislativo de Hong Kong sem representantes da oposição. Apesar disso, Carrie Lam foi ao Conselho Legislativo apresentar o seu programa como se nada tivesse acontecido. Na aparência, a relação entre o Executivo e a legislatura de Hong Kong melhorou consideravelmente, com todas as propostas de lei apresentadas pelo Governo aprovadas sem qualquer problema. Este “comboio expresso” é bom ou mau para Hong Kong? Um comboio expresso sem travões acaba por ter um acidente e provocar a morte dos passageiros, sobretudo se o maquinista insiste em continuar a alimentar a “fornalha”. Para fazer uma boa viagem à boleia é preciso conseguir um carro que vá na nossa direcção, causar boa impressão ao condutor e seguir as suas instruções, só desta forma conseguiremos chegar ao nosso destino sem problemas. Para viajar num comboio expresso não existem tantas condições. Só precisamos de comprar o bilhete e mostrar o nosso documento de identificação. Depois de mostrar o bilhete ao revisor, passamos a cancela, entramos no comboio e ocupamos o lugar na carruagem que nos está destinada, depois é só seguir viagem sem paragens pelo meio. No decurso de uma viagem no comboio expresso já não podem entrar mais passageiros até ao destino final. E o que é que acontece a quem não conseguiu apanhar boleia e tem de viajar de comboio expresso? A experiência de Mahatma Gandhi na Índia pode servir de exemplo. Quem viu o filme “Gandhi” deve lembrar-se que este estadista, que ao tempo exercia advocacia, foi expulso de um comboio na África do Sul devido à cor da pele. Gandhi viajava em primeira classe, e possuía um bilhete válido, mas por não ser branco não lhe foi permitido ocupar aquele lugar. Mas, na altura, ninguém ia imaginar que a história do Império Britânico e do Hindustão iria mudar a partir do momento em que Gandhi saiu do comboio. Muitas pessoas enfatizam constantemente a importância da segurança nacional, e eu acredito que o homem que expulsou Gandhi do comboio nunca pensou que na verdade estava a praticar um acto que iria pôr em risco a segurança nacional. Numa sociedade sem igualdade, sem justiça, abertura e probidade, a segurança nacional acaba inevitavelmente por ser posta em risco. Imaginem se sempre que o comboio pára numa estação, só podem entrar aqueles que estão acostumados a apanhar boleia e os que de alguma forma têm acesso privilegiado ao expresso, o que vos parece que os que ficam de fora vão fazer? Quem fala de patriotismo sem ter noção da situação no seu todo, acaba por prejudicar o país. Em Setembro do próximo ano, vão realizar-se eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong e para a Assembleia Legislativa de Macau. Esperemos que para o efeito, se perfilem candidatos com capacidade, aspirações e ideais, e que as eleições decorram num ambiente de igualdade, justiça, abertura e livres de corrupção, para que os eleitos possam vir a falar em nome do povo, supervisionem e prestem assistência ao Governo, para tornar a sua acção mais eficaz. Só desta forma se pode garantir a segurança nacional, sem temer que ela possa ser posta em causa por um pequeno círculo de pessoas com interesses instalados.