Bragança é o novo Entroncamento

Lembram-se certamente que o Entroncamento foi durante muitas décadas conhecido como a localidade dos fenómenos esquisitos, raros ou mesmo misteriosos. Quando acontecia qualquer coisa de anormal em outro local lá se dizia “isso é um fenómeno do Entroncamento”. Pois bem, agora temos outro Entroncamento chamado Bragança.

Só que neste caso estamos perante factos muito tristes. Há uns tempos, Bragança chegou a ser notícia na capa da revista “Time” porque numa localidade tão pequena como era Bragança instalou-se mais de uma dezena de prostitutas brasileiras e aquilo foi o fim do mundo. Os homens brigantinos ficaram loucos porque nunca tinham visto mulheres tão lindas, com corpos esculturais e com a possibilidade de lhes “tocar”… Nesse fim do mundo, as esposas fizeram tudo para que as brasileiras fossem expulsas da terra já que os seus maridos nem iam dormir a casa.

Lutaram de tal maneira contra a presença das prostitutas que as autoridades correram mesmo com as “loiras” para fora de Bragança.

Desta vez, o “fenómeno” é muito mais grave e entra no foro judicial. Há crime em Bragança que chocou o país. Crime multiplicado por imensos casos e praticado há muitos anos por médicos e proprietários de agências funerárias e ainda por mais alguém que a Polícia Judiciária (PJ) está a investigar. Os crimes foram hediondos e já foram detidos dois médicos, um que até era o presidente dos Bombeiros Voluntários de Bragança e o outro ou outra, era, imaginem, a delegada de saúde. Estes clínicos passavam certidões de óbito sem sequer verem os cadáveres, confiando nos agentes funerários. Segundo as nossas fontes policiais, os crimes podem ultrapassar tudo o que se possa pensar, incluindo terem sido mortos por envenenamento ou outros métodos, para que os herdeiros recebessem espólios avultados e valiosos. Esses herdeiros dividiam depois o pecúlio com as funerárias e com os médicos. Isto, além de muito chocante é quase inacreditável. Quantos velhotes teriam sido mortos durante anos?

Provoca repulsa à maioria das gentes falar-se em pena de morte. Portugal foi dos primeiros países a abolir a sentença máxima em 1867, mas os tempos mudaram de tal forma e assiste-se a crimes tão desumanos e ignóbeis que já se ouve muita gente a concordar com a pena de morte para certos indivíduos, tais como os que abusam sexualmente de crianças com menos de dois anos de idade.

Bragança está a ferro e fogo. A PJ de Vila Real não tem parado um dia a investigar toda esta rede criminosa que pode ter ceifado muitas vidas de velhos brigantinos. Foram detidos já dois médicos e sete agentes funerários por suspeita de corrupção e falsificação de documentos. Neste país parece que só falta vermos elefantes a passear na praia do Estoril. Esta operação da PJ que foi denominada “Rigor Mortis” prendeu quem menos se esperava, o médico José Moreno, delegado de Saúde Pública, presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Bragança, presidente da Assembleia-Geral da Santa Casa da Misericórdia e membro da Assembleia Municipal eleito pelo PSD. O povo de Bragança nem quer acreditar que esta “personalidade” fosse capaz de entrar num esquema tão criminoso e obscuro. Inacreditavelmente, os médicos envolvidos terão certificado a morte de centenas de pessoas à distância, a maioria das quais idosos que viviam nas aldeias, sem apurar se havia ou não indícios de crime. Isto é infame e repugnante.

Já foram realizadas 29 buscas domiciliárias e não domiciliárias e entre os detidos encontram-se seis homens e três mulheres, com idades compreendidas entre os 38 e os 67 anos, suspeitos da autoria dos crimes de recebimento indevido de vantagem, corrupção, falsificação de documentos e falsificação informática. Ora, se existia uma rede deste calibre tudo leva a crer que era intencional tirar a vida aos velhos para herdar as suas fortunas.

A que propósito é que os médicos emitiram e entregaram a agentes funerários, mediante contrapartida financeira, várias dezenas de certificados de óbito e respectivas guias de transporte de cadáveres sem praticarem os actos médicos que lhes competia legalmente?

A PJ já classificou os crimes como algo de “muito grave” por desconfiar que as mortes podem ter tido origem criminosa e porque o princípio da segurança no sistema de saúde foi posto em causa. As nossas fontes policiais não nos adiantaram os quantitativos recebidos pelos médicos, mas adiantaram que se cifra em muitos milhares de euros.

Um dos responsáveis da PJ de Vila Real que está a investigar o caso, adiantou à comunicação social que “Sempre que temos a emissão de um certificado de óbito, onde se faz constar informação relativa aos falecidos que é fornecida através de familiares, através de pessoas, sem que haja verificação concreta pelo médico no local, corremos o risco de ter situações em que haja mortes em que possa ter havido intervenção de terceiros sem que isso seja verificado conforme a lei impõe”, concretizou.

Presentes a tribunal, o principal arguido, o médico delegado de Saúde ficou com suspensão de funções e sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, enquanto os restantes oito arguidos ficam sujeitos a apresentações bissemanais às autoridades e proibidos de contactarem entre si. A maioria da população de Bragança diverge da sentença e entende que deviam ter sido todos presos preventivamente. E é por estas e outras que o povo não acredita na Justiça.

*Texto escrito com a antiga grafia

7 Jun 2021

Benefícios económicos e pegadas ecológicas

O turismo de negócios é normalmente visto como um dos segmentos mais interessantes para qualquer destino turístico: são normalmente pessoas com gastos bem acima da média, que ficam por pouco tempo mas geram maiores benefícios económicos, quer porque os seus rendimentos pessoais não os obrigam a grandes restrições e até lhes permitem eventuais extravagâncias, quer porque, na maior parte dos casos, as despesas são larga ou totalmente cobertas pelas organizações que representam. São turistas com pouco tempo mas com acelerado consumo, o que frequentemente envolve restaurantes de gabarito e até permite mobilizar um conjunto de serviços com relativa sofisticação para oferecer programas de visita de curta duração e alta qualidade e conforto para quem tem oportunidade mas pouco tempo para explorar alguns dos encantos de um território pouco ou nada conhecido.

Essa desproporção entre a o dinheiro e o tempo disponíveis tem outra consequência, no entanto: são viajantes sem tempo a perder, em correrias sucessivas para cumprir as tarefas profissionais, seja uma reunião para concretizar uma parceria estratégica para o desenvolvimento de novas áreas internacionais de negócio, uma feira de promoção turística, uma operação imobiliária, um encontro com jovens criadores, o patrocínio de um festival de verão ou a apresentação de uma comunicação numa conferência. Há sempre pouco tempo para as tarefas e ainda menos para explorar novos destinos ou as últimas novidades em territórios já conhecidos. Tudo corre com uma urgência que requer rapidez e flexibilidade, aparentemente tidas como incompatíveis com a programação colectiva dos transportes públicos e a inerente rigidez relativa de ritmos e horários.

Foi essa a principal conclusão de um estudo ainda fresco, publicado esta semana no Journal of Transport Geography, em que explorámos potenciais relações entre as características sócio-demográficas dos turistas, as suas motivações para a visita, as respectivas opções de transporte e a satisfação que tiveram ou não com a experiência turística. O estudo foi conduzido em Barcelona, cidade com um vasto e bem organizado sistema de transportes público, que garante acessibilidade relativamente fácil a todas as zonas urbanas – ou pelo menos às zonas normalmente frequentadas pelos turistas, incluindo os que viajam por motivos profissionais. Informação abundante, de fácil identificação e interpretação, disponível em várias línguas, ajuda a ultrapassar as possíveis barreiras de comunicação frequentemente associadas à dificuldade de utilização de transportes públicos por turistas.

Nestas circunstâncias – em que se dispõe de uma satisfatória rede de transportes públicos sem significativos problemas de linguagem e comunicação – observámos que as diferentes características dos turistas (idade, sexo ou nível de educação, entre outras variáveis) pouco influenciam a escolha dos modos de transporte (ainda que os turistas mais jovens tendam a preferir transportes colectivos, até por restrições financeiras). No entanto, o factor que se revelou mais determinante nessa escolha foi o motivo da viagem, com os turistas motivados pelo lazer ou pela visita a familiares e amigos a revelar clara preferência por transportes públicos, em contraste com a preferência por transporte individual (taxis, sobretudo) revelada pelos visitantes cuja presença em Barcelona se deve a motivos profissionais. Na realidade, o estudo mostrou ainda que também os turistas com motivação profissional tendem a preferir transportes colectivos quando a visita se torna mais longa e é combinada com lazer ou visitas a familiares e amigos. Também se demonstra com clareza que a utilização de transportes públicos, não só não diminui a satisfação com a visita, como é um dos factores que mais contribui para uma apreciação global positiva da cidade de Barcelona.

A questão dos transportes é, evidentemente, um aspecto central no futuro do turismo, tendo em conta o respectivo impacto nas emissões de CO2 e inerentes implicações sobre as alterações climáticas em curso. Em estudo recente publicado pela Organização Mundial de Turismo e pelo Forum Internacional de Transportes, estimava-se em 5% o contributo do turismo para o total de emissões de CO2 provocadas por acção humana. Para essas emissões contribuem sobretudo o transporte aéreo (40%) e o transporte por automóvel (32%), sendo de apenas 3% o contributo de todas as outras formas de transporte (incluindo comboios, barcos ou autocarros). Se a redução drástica do turismo internacional e do transporte aéreo parecem a única alternativa razoável para tentar compatibilizar o futuro do turismo com uma resposta efectiva às alterações climáticas, a substituição do transporte em automóvel por transportes colectivos parece ter semelhante importância e urgência nos processos de mobilidade no interior de cada destino turístico.

O obstáculo a esta transformação, sugere o nosso estudo, são os atarefados e apressados turistas com afazeres profissionais, o único grupo com preferência inequívoca pelo táxi. São turistas que pelo seu poder de compra proporcionam maior impacto económico, mas que também deixam nas paisagens marca mais pesada da sua pegada ecológica, com acumulação intensiva de emissões de CO2 relacionadas com aviões, primeiro, e automóveis privados, depois. Está por conseguir, mais uma vez, melhor equilíbrio nesta relação entre benefício económico impactos sobre o ambiente. Não deixa de ser relevante, já agora, que neste grupo de turistas nos encontremos também nós, investigadores mais ou menos preocupados com estas questões, quando participamos nas conferências e congressos de que não gostamos de abdicar.

Concluo com uma curiosidade relevante: porque motivo um investigador japonês radicado no Japão e uma investigadora chinesa a trabalhar na Coreia se dedicam a estudar a cidade de Barcelona? É uma razão prática, sobretudo: em Barcelona é entendido que toda a informação obtida com financiamento público deve estar acessível ao público. Assim sendo, estão online e com acesso livre todos os dados recolhidos nos inquéritos regulares que a Câmara de Barcelona faz a turistas e residentes. É verdade que há poucas cidades onde um estudo destes possa ser feito – com quantidade significativa de turistas e uma rede de transportes públicos eficaz e sem grandes barreiras de comunicação – mas esta é a única que disponibiliza gratuitamente os dados necessários a um estudo deste género.

5 Jun 2021

Plano Director VIII – Dos momentos históricos e da ideologia

Por Mário Duarte Duque

 

O espaço urbano demarca-se do espaço natural pela artificialidade, mesmo quando proliferam elementos naturais nas cidades. Por isso, as cidades nunca poderiam ser ingénuas. Só a natureza é ingénua, pois não avalia, não reflecte, não planeia os seus actos. Produ-los automaticamente.

Em expressão disso, Kostof tipificou as cidades quanto ao seu método de génese por cósmicas, práticas e orgânicas.
A cidade orgânica é uma cidade coesa e indivisível. Comporta-se mais como um organismo contínuo do que como uma máquina com componentes especializadas. Depende de uma dimensão ideal e tem interacções próprias que lhe permite de imediato ajustar-se à mudança. Fa-lo mais por via de uma “consciência própria” do que por via de intervenção instrumental. Admite-se que Macau se tenha desenvolvido e caracterizado nesta categoria.

A cidade prática é a cidade a que recorre a instrumentalização para se manter factual e funcional, e depende recorrentemente da actualização dessa instrumentalização para lidar com a intensificação e com a mudança. É feita de componentes especializadas e autónomas, como se de uma máquina se tratasse. A falta de sincronia gera necessariamente disfuncionalidade. De todas as categorias, Kostof designou a cidade prática a menos “mágica”, que podemos também interpretar como a menos rica em deslumbramento.

Admite-se que em Macau já se tenha extinguido qualquer viabilidade de uma cidade orgânica, e que o modelo necessário lançar mão para resolver o ordenamento urbano da RAEM seja necessariamente o da cidade prática. Todavia, dessa constatação resultam duas condições complexas. Desenvolver novos instrumentos directores de ordenamento territorial e, simultaneamente, mudar o paradigma da génese urbana. A equação não parece fácil numa cidade onde pesam atributos históricos.

A cidade cósmica é a cidade ideal. Pauta-se por um diagrama ou um traçado que traduz uma interpretação do universo, onde os atributos podem ascender a um sentido de divino ou de verdade absoluta, muitas vezes articulado com a expressão do poder. Os modelos conhecidos no ocidente foram de apreensão racional, por via de uma grelha que regula todas as hierarquias espaciais e sociais, ou foram de apreensão sensorial recorrendo a eixos visuais e a impressionantes cenários urbanos onde o observador é um participante nessa teatralização.

São estas as cidades onde o ordenamento territorial é mais marcado por um “texto” função de uma ideologia sobrejacente, e que é explícita.

A título de exemplo, foi assim que as três vias do tridente que representa os três poderes da soberania, concentram-se à entrada do palácio de Versailles, e fácil é perceber em quem todos esses poderes convergiam à data. Mas em Washington DC o mesmo tridente já se concentra numa praça pública, e apenas numa das três vias o edifício do Capitólio tem a sua posição.

Como também a abertura da Av. Almeida Ribeiro em Macau se pautou por um momento histórico e por ideologia sobrejacente.

A mesma configuração urbana pode ainda ser simultaneamente expressão de um texto diferente a que chamamos “subtexto” quando, noutro plano de leitura, expressa ainda outro discurso cuja interpretação já é mais estrita.
Exemplo disso é a Baixa Pombalina onde, a par de um modelo racional de índole iluminista e classista, configura um altar maçónico, porque também era esse o pensamento místico dos que aí intervieram

Muitos planos de ordenamento territorial também emergiram de efectivos ou de eminentes cataclismos geográficos ou sociais que acabaram por servir a afirmação de já existentes ou novos status quo.

Desastres naturais e convulsões sociais foram recorrentemente origem catalisadora para a reconstrução aperfeiçoada das cidades, nomeadamente com iniciativas ambiciosas e oportunidade exibir o prestígio das cidades e dos protagonistas dessas transformações.

Muitas das linhas orientadoras dessas medidas são resultado de situações de exaustão, de risco, ou mesmo de colapso. São medidas que em muitas frentes se configuram em sentido de “defesa”, fosse qual fosse o efectivo “agressor”, assim como em sentido de “eficiência”.

Foi assim que as cidades se especializaram em determinadas aptidões. Cidades fluviais desenvolveram conhecimento em hidrologia para fazer face a recorrentes inundações, Lisboa desenvolveu estruturas resistentes a tremores de terra, e Singapura especializou-se numa política de integração étnica, garantindo que a ocupação de cada conjunto habitacional tenha uma correspondência étnica equiparável ​​à média nacional, pois foi esse equilíbrio que esteve na génese da separação de Singapura da Malásia.

Mas também se conhece exemplos do contrário, como foi o caso de Londres, e importa conhecer as razões. Apesar de se terem configurado desenhos inovadores de grande escala para a reconstrução da cidade após o Grande Incêndio em 1666, nenhum prosseguiu. A razão atribui-se à dificuldade em reconfigurar direitos sobre o solo. No entanto, foram feitas melhorias na cidade, nomeadamente na higiene e segurança contra incêndios, com ruas mais largas, construção de pedra e acessos ao Rio.

O mesmo não foi impedimento para que o conhecimento não fosse desenvolvido e viesse a ter utilidade, como efectivamente teve para o estabelecimento e apetrechamento de cidades na América do Norte.
Chegados aqui é legítima a expectativa que o Plano Director de Macau seja particularmente forte nas vertentes que são as principais preocupações da RAEM e, nesse sentido, desenvolva aptidões acrescidas, que desde logo se afiguram serem o saneamento urbano em condições hidrológicas adversas, assim como a habitação e a pressão imobiliária. O que se delinear na vertentes de transportes será em função e em articulação com essas decisões.

Como é igualmente legítima a espectativa de que o pensamento sobrejacente não seja ingénuo e, por isso, as soluções nas vertentes mais importantes não devem ser triviais.

A Proposta de Plano Director pra a RAEM não produziu um “texto” relevante de uma posição ideológica que deve caracterizar o futuro ordenamento territorial, pelo que não é exercício inútil especular sobre possíveis “subtextos”.

Daí é possível extrair que as orlas da RAEM são objecto de mais definição e intervenção, nomeadamente em circulação viária, do que as zonas mais interiores, seja qual for o actual nível de consolidação.

É pela orla do território que será feita a integração definitiva da RAEM no território continental da RPC, como é também esse o alcance temporal do Plano Director. Por isso, não faz sentido que tal integração não seja um ponto forte, senão o mais forte, do “texto” da Proposta de Plano Director, ou que isso se deva extrair de um “subtexto”, sendo que “subtextos” são frequentemente discursos secretos ou enigmáticos.

Assim, trazer esse “texto” à luz do Plano, permitiria estabelecer linhas orientadoras para definir funcionalmente e paisagisticamente essas frentes de integração do território, mesmo quando o ponto de partida ainda só seja a rede viária. Em verdade, mesmo projectando uma estrada regional ponderam-se as opções de traçado que, para além da sua utilidade, tornam a viagem mais aprazível.

Sobrejacente ao acto de ordenar o espaço está, ou deve estar, o pensamento que comanda as regras por que um plano urbanístico se pauta, e que, necessariamente, é reflexo do ordenamento social existente ou em vista.

É por isso impossível interpretar a paisagem urbana à margem de uma narrativa política ou do pensamento no momento histórico. Do mesmo modo que também é impossível não concluir pela ausência de narrativa, quando estamos perante algo ingénuo.

Por isso, a interpretação na vertente ideológica poderá posicionar-nos diferentemente na apreciação de um plano de ordenamento territorial. Mas já nos colocamos solidariamente na mesma posição perante tudo o que se nos apresenta ingénuo, trivial, ou que não releve em discurso urbano.

5 Jun 2021

O estado do clima

São de tal maneira frequentes as referências ao aquecimento global e às alterações climáticas que, por vezes, se confundem os dois conceitos. O aquecimento global refere-se ao aumento da temperatura média do ar, à escala global, enquanto que alterações climáticas se trata de um conceito mais vasto, que inclui o aquecimento global e as suas consequências, como sejam o aumento da frequência e intensidade de fenómenos meteorológicos, como tempestades, degelo das calotas polares e gelo marítimo, ondas de calor, secas, etc. Pode-se afirmar que o aquecimento global é um dos muitos sintomas das alterações climáticas. Note-se que, quando se fala na temperatura do ar sem se especificar a que altitude se refere, subentende-se que é entre 1,25 a 2 dois metros de altura, medida num abrigo meteorológico sobre terreno com relva.

Embora tenha sido em pleno século XIX que os cientistas começaram a dar grande importância ao facto de determinados gases na atmosfera terem a capacidade absorver calor, só nos anos oitenta do século passado foi possível antever, em termos quantitativos, o efeito que esses gases tinham no aumento da temperatura à escala global. Foi James Edward Hansen, climatologista americano, que, recorrendo a um modelo climático por si construído, em 1981, chegou a conclusões que levantaram grande celeuma no meio científico, antevendo que a temperatura média do ar poderia sofrer um aumento de 3,0 ºC a 4,5 ºC até 2100, valores muito próximos dos constantes nos relatórios do IPCC, apesar de nessa altura a capacidade dos computadores ser muito menor do que a dos atuais.

Já antes, nos anos setenta, Hansen havia colaborado na elaboração do Relatório Charney, no qual se alertava o governo dos EUA sobre as implicações do uso intensivo do carvão como combustível. devido às emissões de dióxido de carbono. Este relatório constitui uma base científica sólida do que se convencionou designar por aquecimento global.

Em 1988, Hansen proferiu uma palestra perante o Congresso dos Estados Unidos que causou grande controvérsia, não só nos meios científicos e políticos, mas também no público mais atento aos grandes problemas da humanidade.

Era tão crente das suas conclusões, que se tornou ativista e foi várias vezes preso por incitar a manifestações populares contra o uso de combustíveis fósseis, alertando para as graves consequências para o equilíbrio do sistema climático.

Já passaram algumas dezenas de anos e, apesar da criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC) e dos 25 encontros científicos, designados por Conferências das Partes (COPs), promovidos no âmbito desta Convenção, e dos compromissos assumidos, a concentração de gases de efeito de estufa (GEE) continua a aumentar.

Os termos da UNFCCC foram submetidos à apreciação dos Estados participantes na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro de 3 a 14 de junho de 1992, tendo entrado em vigor em 21 de março de 1994. Foi numa das 25 COPs promovidas por esta Convenção que se negociou o Acordo de Paris (COP 21, 2015), que veio a substituir o Protocolo de Quioto a partir de 2020.

O Acordo de Paris constitui o primeiro tratado internacional a pressionar os aderentes a executarem planos de ação para reduzirem os GEE, induzindo os países a colaborarem dentro das suas possibilidades, exigindo, no entanto, a execução das chamadas NDCs, sigla em inglês de Nationally Determined Contributions (Contribuições Determinadas a Nível Nacional).

Apesar das ações no âmbito destes tratados internacionais, promovidas sob os auspícios das Nações Unidas, para alertarem os governos sobre a necessidade do cumprimento das respetivas recomendações e decisões, as medidas tomadas até agora não têm sido de molde a reduzir as emissões dos GEE e travar as graves consequências desta inação.

No último relatório sobre o estado do clima elaborado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), designado por “State of the Global Climate 2020”, são destacadas as seguinte conclusões:

As concentrações dos principais gases de efeito estufa, dióxido de carbono, metano e óxido nitroso (CO2, CH4 e N2O), continuaram aumentar apesar da redução temporária das emissões em 2020, devida às medidas tomadas em resposta à COVID-19.

2020 foi um dos três anos mais quentes já registados. Os últimos seis anos, incluindo 2020, foram os mais quentes desde que há registos. A temperatura atingiu 38,0° C em Verkhoyansk, na Federação Russa, em 20 de junho de 2020, o valor mais alto registado a norte do Círculo Polar Ártico.

A tendência de subida do nível do mar está a aumentar. Além disso, o armazenamento de calor pelo oceano e a acidez estão também a aumentar, o que implica diminuição da capacidade do oceano para moderar as alterações climáticas.

A extensão do gelo marítimo do Ártico em setembro de 2020 foi a segunda menor registada. O recuo do gelo no Mar de Laptev, a norte da Ásia, foi o mais precocemente observado desde que há satélites meteorológicos.

A tendência de perda de massa de gelo na Antártida acelerou por volta de 2005 e, atualmente, a Antártida perde aproximadamente entre 175 e 225 milhões de toneladas de gelo por ano.

A estação de 2020 dos furacões no Atlântico Norte foi excecionalmente ativa. Furacões, ondas de calor extremo, secas severas e incêndios florestais causaram prejuízos de dezenas de milhares de milhões de dólares e elevado número de mortes.

Durante o primeiro semestre de 2020 foram registados cerca de 9,8 milhões de migrantes, em grande parte devido a riscos e desastres hidrometeorológicos.

Interrupções nas atividades agrícolas devido à Covid-19 agravaram o impacto de fenómenos meteorológicos em toda a cadeia alimentar, intensificando os níveis de insegurança alimentar.

De acordo com o último relatório da Agência Internacional de Energia, divulgado em 20 de abril deste ano, esta organização antevê que em 2021 ocorrerá muito provavelmente o segundo maior aumento anual de sempre de emissões de dióxido de carbono.

Entretanto, o regresso dos Estados Unidos da América ao Acordo de Paris constitui uma esperança para humanidade, na medida em que, sendo o segundo maior emissor de GEE, poderá contribuir grandemente para o cumprimento deste tratado internacional. A União Europeia, apesar da renitência de alguns membros, está a elaborar a Lei Europeia do Clima, preconizada no Pacto Ecológico Europeu, com cuja implementação se pretende atingir a neutralidade carbónica em 2050. Um dos países mais renitentes é a Polónia, país em cerca de 80% da eletricidade é produzida em centrais de carvão.

Portugal tem vindo a tomar algumas ações significativas no sentido da diminuição da utilização de combustíveis fósseis, encerrando a central termoelétrica de Sines, em 14 de janeiro de 2021, e programando a cessação do funcionamento da central do Pego, em novembro próximo. Com este encerramento, o carvão deixará de ser utilizado para a produção de eletricidade no nosso país.

*Meteorologista

3 Jun 2021

Perdidos na transcodificação

Na passada quinta-feira foi divulgada uma situação que certamente criou bastante transtorno a quem estava a viajar entre a China continental e Macau. Por volta do meio-dia, o sistema informático deixou de conseguir transcodificar os códigos dos cartões de saúde (códigos QR) entre as duas zonas, o que perturbou seriamente a passagem nas fronteiras.

Embora o sistema tenha voltado ao normal por volta das 12.30h, voltou a falhar às 17.00h desse mesmo dia. Nesta altura, o sistema deu um alerta de avaria. Cerca das 19.40h o problema estava resolvido e o movimento entre fronteiras foi retomado.

Não é a primeira vez que ocorre uma falha na leitura do código e não é a primeira vez que causa transtornos.
Desta vez, julgando pela organização, é óbvio que o Governo já há muito tempo que vinha a fazer preparativos para esta eventualidade. Quando o sistema informático falhou, verificou-se que o pessoal envolvido conhecia perfeitamente o plano de emergência, o que fazer e como deixar as pessoas passar. A polícia implementou medidas de controlo de multidões, pedindo às pessoas em trânsito que usassem plataformas de informação em tempo real para verificarem quais os pontos de passagem mais movimentados, de forma a evitá-los, para que a travessia na alfândega se fizesse com a maior facilidade possível. Estas medidas demonstraram que os funcionários governamentais estavam bem coordenados e que os viajantes foram também bastante cooperantes. No final, toda a operação decorreu sem problemas.

Embora actualmente o novo coronavírus ainda esteja a ameaçar a saúde dos seres humanos, não afectou os intercâmbios frequentes entre Zhuhai e Macau. A avaliar pelos problemas que têm acontecido por falhas na leitura do código, percebemos que esta questão pode criar uma quebra na comunicação entre as duas cidades, afectando a vidas das pessoas que transitam entre ambas. Este problema tem de ser abordado com seriedade.

Qual terá sido a causa da falha no sistema informático? Se foi um ataque de hackers, implica que houve crime informático, e a polícia naturalmente dará início a uma investigação.

Se a falha se ficou a dever a problemas com o software ou com o hardware, resta-nos pedir aos dois Governos que aperfeiçoem a manutenção e a monitorização do sistema informático. Por exemplo, haverá necessidade de adicionar novos servidores para aliviar a carga dos que já existem? Esta medida não só aumentaria a eficiência, como também reduziria a probabilidade de ocorrência de situações que causem transtornam a quem se desloca entre as duas cidades.

Além disso, as operações processadas pelos sistemas informáticos implicam transmissão de dados. Desta forma, poderá ser necessário uma maior monitorização das redes para evitar que haja uma sobrecarga provocada pela transmissão simultânea de excesso de dados, que possa dar origem a um problema na leitura do código.

É evidente que os peritos conseguem resolver problemas informáticos, mas para que seja possível atravessar fronteiras sem dificuldade, quando ocorre um erro na transcodificação, cada pessoa tem de ser responsável. Uma das formas de ultrapassar o problema seria unificar os códigos QR de Zhuhai e Macau. Mas embora esta solução fosse simplificar a passagem entre as duas cidades, iria levantar questões de privacidade.

Actualmente, é impossível saber quantas pessoas entram e saem em cada posto fronteiriço, quer estejam a usar o código QR de Macau ou de Zhuhai. Em circunstâncias normais, quanto mais pessoas passarem em determinadas alfândegas, mais pesado será o sistema informático desses locais. Se fosse possível adicionar uma ligação entre os códigos QR de Zhuhai e de Macau, os passageiros poderiam verificar em tempo real a afluência de cada ponto fronteiriço durante a transcodificação. Isto não só reduziria o congestionamento nas fronteiras, como também reduziria a sobrecarga do sistema informático. É por isto que o Departamento de Imigração necessita com urgência que os passageiros passem a usar plataformas de informação em tempo real de forma a procurarem os pontos fronteiriços menos movimentados. Desde que estas plataformas tenham uma ligação aos códigos QR, as pessoas podem obter informação relevante em tempo real e, mesmo quando a transcodificação não é viável, as alfândegas podem continuar a funcionar normalmente.

É evidente que a forma mais simples e mais directa, será proceder à transcodificação antes de chegar à alfândega para evitar os congestionamentos.

Os sistemas informáticos dependem de máquinas e as máquinas podem avariar-se. Não é possível esperar que funcionem sempre a 100 por cento. A chave está em estabelecer um bom plano de emergência. Desde que este plano esteja bem concebido, pode colmatar-se as falhas informáticas. Mesmo nessas circunstâncias, haverá forma de resolver os problemas e os inconvenientes serão minimizados.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Jun 2021

O labirinto da política

Em Portugal os políticos ou enlouqueceram ou querem matar-se uns aos outros. Já ninguém do povinho os entende e o que é que pretendem. Houve um escriba que até se deu ao luxo de afirmar que a direita e a esquerda políticas tendem a acabar… O homem não deve ter tido conhecimento do que aconteceu na semana passada e que está a fazer correr muita tinta. O chamado “Congresso das Direitas” pode ser classificado de duas formas: por um lado a pretensão de ressuscitar dinossauros de triste memória que até percebiam imenso de submarinos e por outro, um palco onde se promoveu a extrema-direita sem que se ouvisse uma intervenção com algum conteúdo de política digna, futurista, infraestrutural, alternativa ou até, num extremo analítico, de união dessas direitas para que pudessem vencer futuras eleições. Não, aquilo pareceu mais um velório, onde o silêncio foi quebrado com baboseiras de indivíduos que escolheram a política para se manterem à tona da sociedade ou para enriquecerem. Não ouvimos um discurso com conteúdo suficientemente baseado em propostas de mudança no país, de forma a que os desprotegidos deixassem de dizer que não há justiça, que não há saúde, que não há educação, que não há combate à corrupção, que não há economia, que não há emprego e por aí fora tal como diz continuamente a vox populi.

A ideia parva de juntar uns comentadores ultrapassados, os líderes do CDS, Chega, Iniciativa Liberal e PSD foi algo de absurdo porque nenhum daqueles “sábios” está interessado numa mudança social no país. Eles querem promover-se e afirmar que são de direita, sem o serem. Para serem de direita têm de assumir, em princípio, propostas conservadoras mas sérias e democráticas. Ora, ali naquela reunião chamada “Congresso das Direitas” só vimos um liberal que não tem iniciativa alguma. Um fala-barato da extrema-direita que só para rir é que se ouve o fulano a dizer que quer ser governo, um centrista que se apelida de democrata-cristão e um ex-autarca que deixou os adeptos do seu partido, dito social-democrata, de boca aberta quando afirmou que não era de direita, mas sim do centro. Mas qual centro? E assim quase que se concluiu que não há direita na política portuguesa. A palhaçada ultrapassou os limites quando levaram para a plateia o ex-primeiro-ministro e líder do PSD, Pedro Passos Coelho, que ao fim e ao cabo foi a vedeta da “festa” mais aplaudida. E porque teria estado ali esta figura pública ultrapassada? Alguém pretende que Passos Coelho volte a ser o número um do PSD? O próprio diz que não quer. Ou há sonhadores que o querem promover para eventual candidato a Presidente da República nas próximas eleições?

Obviamente que há direita política. São todos aqueles que estiveram no denominado “congresso”. Todos são de direita e da extrema-direita. Todos querem acabar com o reinado de António Costa e aproveitarem-se das divergências existentes no Partido Socialista e restante esquerda representada pelo Partido Comunista e Bloco de Esquerda. O tal “congresso” foi um fiasco e nem uma proposta de alternativa ao actual regime socialista foi ouvida pelo auditório, de onde se conclui que afinal, o grande vencedor daquela triste iniciativa foi António Costa, o qual até já anunciou a sua recandidatura a líder do PS.

Triste é vermos a luta das sanguessugas pelo poleiro na esquerda política. No PS, Pedro Nuno Santos, Fernando Medina e Ana Catarina Mendes. Três facções em que os apoiantes já começaram a “trabalhar” para que um dos três políticos possa ser o substituto de António Costa na liderança socialista. Os políticos enlouqueceram. Querem ser alguma coisa que os leve à televisão. Autarcas, deputados ou governantes, todos repetem a mesma lengalenga aos assessores para que estes os promovam na hasta pública. Sim, porque se trata de um leilão, onde por vezes aquele que tiver mais dinheiro é que coloca a coroa de diamantes na cabeça. No Partido Comunista, Jerónimo Sousa, continua com a teimosia de ver o Bloco de Esquerda como “ladrão” de votos e a partir daí não admite entendimentos à esquerda. Por sua vez, no Bloco de Esquerda as manas Mortágua estão desejosas de que Catarina Martins volte para os palcos de teatro e deixe o microfone bloquista.

Temos, sem dúvidas, políticos de direita e de esquerda que não compreendem o que o povo necessita. Não são capazes de ver as miseráveis reformas que são pagas a milhares de velhos que trabalharam uma vida inteira e que imensas empresas não lhes executaram os devidos descontos para a Segurança Social. São políticos que há dois anos andam a falar de pandemia, confinamento e covid-19, três palavras que nunca tinham antes pronunciado. Estes políticos estão a desgraçar o país porque o povo está cada vez mais a optar pela abstenção de cada vez que temos eleições. E quem ganha com isto é sempre o populismo normalmente de extrema-direita, o que é perigoso. Estamos num labirinto difícil de encontrar a saída, mas onde os portugueses têm de começar a levantar a voz bem alto de modo a que o seu protesto é que tenha de mudar o paradigma de políticos que valem zero.

*Texto escrito com a antiga grafia

1 Jun 2021

Em defesa de uma agenda cultural para a cidade

Opinião de João Miguel Barros

1. Macau é uma cidade pequena, com comunidades diversificadas. Tem muita gente por cm2, mas não tanta assim interessada em acontecimentos culturais contemporâneos. No entanto, a autonomia individual na promoção e dinamização cultural, e a lógica do “cada um por si”, que aparenta ser um sinal de enorme riqueza e variedade, torna-se num factor não inclusivo e até de exclusão à participação nas actividades culturais que se vão organizando pela cidade.
Somos muitos e apenas deve contar quem está. Mas não é possível estar em mais do que um lugar ao mesmo tempo. E este é o problema.
Justifica-se que a autonomia de cada uma das entidades que organizam eventos leve a que se tenha, por vezes, duas e três inaugurações no mesmo dia e há mesma hora?

2. Em meu entender, isto é um absurdo. Mas pode ter solução se houver vontade de se começar a olhar para além do próprio umbigo!

3. O caminho não é limitar a capacidade de iniciativa de ninguém (a livre iniciativa na organização, como a liberdade criativa, são sempre bens a preservar e a defender de forma intransigente). Mas já seria uma boa solução se fosse criada uma agenda cultural para a cidade.
Poderão realizar-se eventos que coincidam no mesmo dia e hora, se for essa a vontade consciente das entidades envolvidas, mas é imperioso minimizar os “riscos” dessa sobreposição.

4. O Instituto Cultural (ou a Direcção de Turismo) poderia, e deveria, promover uma plataforma de registo prévio de eventos, aberto a todas as entidades que organizem eventos culturais, para que, com antecedência, essas entidades “reservem” espaço de calendário, deixando nesse backoffice uma previsão da sua programação cultural. As entidades (associações, fundações, departamentos do governo, etc.) teriam assim, querendo, um instrumento de planeamento da sua programação (e nunca de controlo ou censura), que lhes permitiria ajustar as suas inaugurações ou realizações a dias livres e sem se sobreporem a outros “acontecimentos” já previamente projetados.

5. Uma vez confirmadas as diversas iniciativas, o conteúdo dessa agenda cultural deveria ser disponibilizado em três línguas através de uma página própria na internet, onde se dariam detalhes públicos sobre cada uma das concretas iniciativas a acontecer ou em curso. E assim teríamos, também, mais um instrumento de promoção de um turismo cultural que importa dinamizar, e que vá para além das visitas aos bairros históricos ou ao património construído.

6. Esta é uma solução plausível e a sua concretização é de manifesta utilidade pública. A tecnologia não é problema; mas as pequenas vaidades ou necessidades de afirmação de “independência” de cada um talvez o sejam…
Esta metodologia de trabalho inclusivo seria a melhor forma de garantir a diversidade e de permitir a participação cultural na cidade. Logo se ajustariam os procedimentos quando as pessoas passassem a ter o dom da ubiquidade!

31 Mai 2021

A linha de partida das eleições

De momento, ainda ninguém sabe se os Jogos Olímpicos de Tóquio se vão realizar a 23 de Julho como estava programado. Mas as eleições para a Assembleia Legislativa de Macau, agendadas para 12 de Setembro, serão realizadas, a menos que qualquer situação de emergência não prevista, como um tufão, um terramoto, uma super variante do coronavírus, ou uma guerra regional ocorram. As eleições para o Conselho Legislativo de Hong Kong têm sido sucessivamente adiadas. Com a implementação da decisão do Congresso Nacional do Povo para Aperfeiçoar o Sistema Eleitoral da RAEHK e da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, é difícil prever se os democratas estão dispostos a candidatar-se a esta eleição. O sistema eleitoral em Macau permanece inalterado e pode ser encarado como um modelo de sucesso da implementação do princípio “um País, dois sistemas”. Por isso não vejo nenhuma razão plausível para adiar ou cancelar uma tão simbólica eleição.

Para participar nas Olimpíadas de Tóquio, os atletas têm de obedecer a determinados requisitos. Para participar na eleição dos deputados à Assembleia Legislativa da RAEM por sufrágio directo, as associações políticas ou as comissões de candidatura desde que constituídas por 300 a 500 eleitores recenseados podem apresentar candidatura.

Existem mais de 325.000 eleitores recenseados em Macau e havia mais de 174.000 eleitores recenseados para votarem nas eleições por sufrágio directo em 2017. Se 10% dos eleitores recenseados desejarem formar comissões de candidatura, e se cada candidatura requerer 500 eleitores recenseados, os 10% dos eleitores recenseados podem apresentar 34 candidaturas no total. Nas eleições para a 6.ª Assembleia Legislativa de Macau, só foram apresentadas pouco mais de vinte candidaturas. Em teoria, não deveria ser difícil encontrar 300 eleitores recenseados para formar uma comissão de candidatura. Mas na verdade, participar neste processo é tão difícil como participar nas Olimpíadas de Tóquio.

Como os diferentes grupos que pretendem apresentar candidaturas precisam de angariar um número suficiente de eleitores recenseados dispostos a formar uma comissão de candidatura, alguns tentam encontrar estes eleitores recenseados através de várias organizações e instituições, enquanto outros apelam directamente ao público, instalando bancas em certas artérias da cidade, ou procuram eleitores recenseados através da Internet. Nestas eleições, a procura de eleitores recenseados tem sido mais intensa que nas anteriores. Primeiro que tudo, a “caça” aos eleitores recenseados disparou rapidamente desde 11 de Março, e toda a força de trabalho necessária foi mobilizada por diferentes grupos. Em seguida, o número de eleitores recenseados angariados por grupos excedeu largamente os 500 definidos pelos estatutos, sem ter havido necessidade de estabelecer um patamar mais elevado.

Independentemente da forma hilariante como foram “coleccionados” os eleitores recenseados para formar comissões de candidatura, ocorreram-me os seguintes motivos para analisar a situação: 1) Alguns grupos não conseguem obter os eleitores recenseados requeridos, por isso necessitam procurá-los freneticamente; 2) Outros, já conseguiram o número suficiente de eleitores recenseados, mas continuam à procura de mais para aumentar a sua exposição pública; 3) Outros ainda, que já têm eleitores recenseados de sobra, procuram diminuir a quantidade de eleitores recenseados disponíveis no “mercado” para prejudicar os seus rivais; 4) Há ainda aqueles que, embora tenham eleitores recenseados em excesso, continuem à procura de mais para testar a capacidade organizacional e de mobilização dos seus membros e para obterem uma grande quantidade de dados para análise de forma a prever o número de votos que podem obter nas eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa de Macau e também para poderem estabelecer estratégias de campanha e planos de votação com antecedência.

A intensa luta pela obtenção de eleitores recenseados demonstra que não é de todo fácil pôr o pé na linha de partida nas eleições para a 7.ª Assembleia Legislativa de Macau, agendadas para 12 de Setembro. E mesmo alguns grupos que já pisaram esta linha, é possível que não venham a participar na corrida por uma variedade de motivos. Recentemente, dois grupos enviaram uma carta à Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa anunciando a sua desistência da candidatura. As razões para a desistência da candidatura podem ser pessoais, saúde ou quaisquer outras. Mas, avaliando a partir de um conjunto de sinais, a rivalidade intensa despertada pela eleição dos deputados à 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM por sufrágio directo não será menor que nas eleições para a 6.ª Assembleia Legislativa da RAEM e o número da lista de candidaturas para a 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM será também semelhante à anterior.

Alguns grupos optaram por não participar e outros optaram por concorrer à eleição dos deputados à 7.ª Assembleia Legislativa da RAEM. Cada eleitor recenseado tem o direito de exercer os direitos de propositura, de candidatura e de voto nas eleições, e o exercício dos direitos é um dever dos cidadãos. A linha de partida pode estar em qualquer lado, mas o mais importante é que os cidadãos definam por si próprios onde se encontra esta linha.

28 Mai 2021

A crise como oportunidade

“The COVID-19 outbreak has turned bedrooms into offices, pitted young against old, and widened the gaps between rich and poor, red and blue, the mask wearers and the mask haters. Some businesses–like home exercise company Peloton, video conference software maker Zoom, and Amazon-woke up to find themselves crushed under an avalanche of consumer demand.”
Scott Galloway
Post Corona: From Crisis to Opportunity

 

O equilíbrio incerto da concorrência e da cooperação no mundo obriga-nos a olhar para a COVID-19 como a crise que cristalizou uma competição prolongada e de alto risco entre as maiores potências mundiais, tal como as crises na Grécia e na Turquia em 1946-1947 que cristalizaram uma Guerra Fria emergente. A pandemia sublinhou que o mundo está a fracturar-se em vez de convergir; as políticas das grandes potências estão a assumir uma lógica de adição zero cada vez mais.No entanto, podemos também olhar para a COVID-19 como o evento que lançou em alívio a vulnerabilidade mútua de rivais ainda mais amargos e a necessidade de uma cooperação de soma positiva entre eles, como se este equilíbrio entre concorrência e cooperação será um desafio determinante da ordem mundial no século XXI.

Dirá respeito não só às pandemias, mas também às alterações climáticas, segurança alimentar, migração, informação e biotecnologia, e outras questões com potencial para perturbar fundamentalmente a experiência humana. Há perspectivas contrastantes sobre como abordar este dilema. Alguns analistas argumentam que os Estados democráticos do mundo deveriam primeiro concentrar-se em ganhar a competição com a China, porque um equilíbrio de poder favorável é a melhor garantia de assegurar a cooperação com os rivais em condições favoráveis.

Seria insensato, nesta perspectiva, silenciar a rivalidade sino-americana na esperança de ganhar a cooperação chinesa em matéria de pandemias ou alterações climáticas. Em vez disso, a América e os seus aliados deveriam competir vigorosamente, confiantes de que a cooperação sobre interesses comuns pode ser compartimentada, tal como as superpotências conseguiram cooperar no controlo de armas e na erradicação da varíola durante a Guerra Fria ou talvez esta primeira visão seja demasiado sanguínea.

A cooperação entre os Estados Unidos e a União Soviética em matéria de controlo de armas e doenças globais só surgiu após duas décadas de Guerra Fria e os primeiros passos no sentido de um desanuviamento da superpotência.

Talvez seja necessário limitar a rivalidade sino-americana antes que os comportamentos de soma positiva possam criar raízes. Se for este o caso, um esforço determinado para aproveitar o terreno geopolítico e ideológico elevado, poderia simplesmente assegurar que todas as questões fossem vistas em termos de soma zero, como aconteceu nas fases iniciais da crise da COVID-19. E embora a suposta ameaça que a China representa possa parecer muito real, permanece algo mais abstracta do que a carnificina humana e económica que a COVID-19 tem vindo a provocar em ambos os países e em todo o mundo. Para alguns, a natureza alterada do sistema internacional significa que o fracasso das grandes potências em subsumir as suas diferenças para trabalharem em desafios globais partilhados e potencialmente catastróficos levará o mundo à ruína.

O debate lembra-nos que os desafios de sustentar um mundo pacífico e florescente neste século são particularmente assustadores, porque o mundo está a dividir-se cada vez mais por linhas geopolíticas e ideológicas, mesmo quando requer cooperação entre elas. E mostra que uma forma de estadismo americano que é puramente competitiva por natureza que não tem um papel de liderança dos Estados Unidos na acção catalisadora de desafios transnacionais não irá satisfazer as exigências da liderança global. O futuro da globalização e inovação COVID-19 não é simplesmente uma crise de saúde pública. É uma crise económica, um coma auto-induzido sem paralelo na história moderna. Quarentenas, pedidos de abrigo e outras restrições causaram o colapso do crescimento e o aumento do desemprego.

Estas medidas também suscitaram fortes questões sobre quanto tempo durariam os danos resultantes, que indústrias e países emergiriam com uma vantagem competitiva, e que perspectivas existem de economias equitativas vibrantes a nível nacional e global nos anos vindouros. O facto de a COVID-19 ter ocorrido no meio de uma crescente insatisfação com os efeitos da globalização e da interdependência é complicado. Nos anos após a Guerra Fria, a globalização tinha-se intensificado e aprofundado. O processo ligou o mundo como nunca antes, gerou uma enorme riqueza, e tirou indivíduos de todo o mundo da pobreza. No entanto, internamente, a deslocalização também exacerbou a desindustrialização e a perda de postos de trabalho de produção nos Estados Unidos e outros países. A nível mundial, os aumentos maciços dos fluxos comerciais e financeiros geraram turbulência e crises ocasionais, e deixaram os países vulneráveis a forças globais poderosas fora do seu controlo.

Esperava-se que a globalização trouxesse consigo democracia liberal, transparência, tolerância e abertura, mas a China, o exemplo mais claro, encontrou engenhosamente formas de capturar benefícios económicos sem fazer sacrifícios políticos ou sociais. A ansiedade em relação à abertura andou de mãos dadas com a ansiedade em relação à inovação tecnológica. Muito crescimento e ainda mais interligação foram impulsionados por mudanças profundas na tecnologia, especialmente no sector da informação. Há apenas uma década atrás, esta revolução tecnológica era vista como quase inteiramente benéfica para a humanidade, mas desde então, temos visto alguns dos seus lados obscuros. As campanhas de desinformação aprofundaram a polarização dentro das democracias, enquanto novas tecnologias, tais como ferramentas de reconhecimento facial, dão poder a regimes eminentemente estatistas. A inteligência artificial, robótica, aprendizagem de máquinas e biotecnologia prometem benefícios extraordinários para a humanidade, ao mesmo tempo que aumentam a ameaça de perigos potencialmente vastos.

A inovação tecnológica sempre foi uma fonte de perigo, bem como de oportunidade. A ordem económica do pós-guerra nunca foi tão suave ou sem problemas como por vezes acreditamos. O sistema de Bretton Woods era propenso a crises e entrou em colapso no início da década de 1970, levando a anos de esforços ad hoc para estabilizar um sistema turbulento. Quando a Guerra Fria terminou, muitos países em todo o mundo reduziram as barreiras comerciais, liberalizaram as suas economias, e permitiram o investimento estrangeiro; as décadas que se seguiram testemunharam um crescimento impressionante, mas também crises debilitantes. A história da economia global pós II Guerra Mundial é uma história de prosperidade fantástica e de desafios severos e recorrentes. Nesta crise, há más e boas notícias. A má notícia é que a globalização se revelou surpreendentemente frágil face a uma pandemia em fúria, pois mesmo países dentro da União Europeia impediram as exportações de bens críticos e fecharam as suas fronteiras.

A boa notícia é que certos aspectos do sistema têm funcionado bastante bem à semelhança da crise financeira global de 2007-2009, a Reserva Federal dos Estados Unidos actuou como o banqueiro do mundo durante a pandemia, fornecendo a liquidez muito necessária para evitar uma depressão (embora com menos coordenação global). Os governos nacionais, incluindo os Estados Unidos, iniciaram programas de estímulos massivos; os resultados foram mistos, mas o efeito foi certamente melhor do que teria sido na ausência destas injeções. Existem também certas indicações de que os governos ainda podem responder à crise de formas na sua maioria construtivas. Se o resultado da pandemia for uma redução das dependências específicas de regimes estatistas, uma ênfase na resiliência económica que, no entanto, encoraja uma integração profunda entre as democracias, uma maior concentração de recursos entre nações de mentalidade semelhante para desenvolver e dominar as tecnologias do futuro, e esforços acrescidos para abordar as desigualdades tanto no interior como entre países, então a crise poderá ser uma fonte de renovação em vez de um prenúncio de uma nova era sombria. Uma razão pela qual a crise da COVID-19 tem sido tão aguda é que parecia agravar a profunda crise global da governação.

A fragilização das normas democráticas, o aumento do populismo e do nacionalismo, a sobreposição e a eficácia das burocracias governamentais, e o alcance crescente dos líderes autocráticos têm ameaçado a ordem global durante vários anos. A pandemia tem, pelo menos a curto prazo, acelerado muitas destas tendências preocupantes. Há muito tempo que a arte estatal americana defende que a ordem mundial deve ser baseada em ideias liberais e valores democráticos. Se assim for, revigorar e repensar a política democrática em casa pode ser um pré-requisito para sustentar a influência desses valores na cena global. Embora existam diferentes pontos de vista sobre como a batalha entre formas democráticas de governação e autoritarismo se irá desenrolar, o futuro pode não ser tão auspicioso.

Algumas democracias como a Nova Zelândia, Islândia e Alemanha implementaram medidas especialmente eficazes para limitar a propagação do coronavírus. Países com populistas iliberais ou líderes autoritários no comando como o Brasil, Irão, Rússia, Coreia do Norte, Bielorrússia viram casos, hospitalizações e mortes aumentar. Infelizmente, a principal democracia mundial, os Estados Unidos, teve um mau desempenho, devido à presidência errática de Donald Trump, bem como ao desempenho decepcionante da burocracia federal.

O contraste com a eficiência absoluta da China parece, à primeira vista, bastante surpreendente. Mas a história não é toda má. A forma como o sistema chinês fez realmente melhor contra a COVID-19 parece indiscutível. Nos Estados Unidos, a ausência de supervisão nacional permitiu a certos governos estaduais e locais demonstrar competência e visão. Elementos do sector não lucrativo e privado exibiram qualidades de agilidade e adaptação. O extraordinário esforço, em curso que culminou no desenvolvimento de terapias eficazes como vacinas produzidas em massa em tempo recorde é de cortar a respiração. A sociedade civil americana profunda, diversificada e inovadora proporciona um grau de resiliência, mesmo face ao desempenho federal insuficiente, que as autocracias têm dificuldade em imitar. A COVID-19 pode forçar as democracias a confrontar as suas limitações, como as crises frequentemente fazem. A COVID-19 irá equipar os governos democráticos em todo o mundo com uma maior compreensão dos perigos das campanhas de desinformação.

A pandemia pôs em evidência questões persistentes de igualdade e injustiça racial nos Estados Unidos e noutras sociedades democráticas. Não menos importante, revelou como a polarização política profunda e o tribalismo se têm demasiadas vezes colocado no caminho de políticas sábias e coordenadas. É evidente que os Estados Unidos e outras sociedades democráticas enfrentam uma crise de política e governação. Temos de escapar a um ciclo terrível pois quanto pior for o desempenho das nossas instituições e da política, mais pessoas perdem a fé na governação e mais a nossa política fica envenenada. Se estamos à procura de algo que dê um impulso ao lento, confuso e incremental processo de reforma necessário para evitar um tal resultado, uma pandemia global parece ser um candidato tão bom como qualquer outro. Estamos a viver uma época sombria. O mundo confronta-se com crises nacionais e globais sobrepostas.

Os governos e as instituições internacionais parecem muitas vezes inadequados para a tarefa. O autoritarismo agressivo e o iliberalismo parecem muitas vezes estar em ascensão. Aspectos das ordens do pós-guerra e pós Guerra Fria parecem desgastados e desactualizados. Aqui a história pode fornecer tanto consolo como inspiração. O mundo tem visto outros períodos de grande desordem e turbulência, mesmo desde a II Guerra Mundial que foram indiscutivelmente piores do que os nossos. A crise actual revelou mesmo os pontos fortes subjacentes à actual ordem mundial. Por exemplo, a partilha sem precedentes de informação científica e o impulso para terapias e vacinas recordam-nos os progressos económicos, intelectuais e científicos de tirar o fôlego que ocorreram nas últimas décadas. Finalmente, a história recorda-nos que os tempos de crise oferecem oportunidades de criatividade e reforma. A inovação e os avanços técnicos emergem frequentemente de depressões económicas (a bicicleta foi inventada na Alemanha durante uma epidemia entre cavalos em 1815). Os momentos de crise quebram a inércia e criam uma fluidez que pode ser posta a bom termo; podem fomentar a vontade política necessária para enfrentar patologias enraizadas.

Os extraordinários protestos sobre a injustiça racial em Junho de 2020, que rapidamente se espalharam pelo mundo, reflectem um desejo colectivo nacional e global de trazer mudanças reais. As propostas para reformar a governação global, reforçar a solidariedade das nações democráticas, e investir em novos esforços para enfrentar as ameaças que se aproximam reflectem um impulso semelhante. Será que podemos aproveitar ao máximo o momento? O ponto de partida é pensar de forma criativa sobre como chegámos à nossa actual conjuntura e como podemos sair da incerteza que nos acompanha. Conhecemos bem o início, pois os primeiros casos de pneumonia em Guangdong, gripe em Veracruz, e febre hemorrágica na Guiné, marcaram respectivamente as origens do surto da SARS de 2002-2004, a pandemia de gripe H1N1 de 2008-2009, e a pandemia de Ebola de 2014-2016. A história recente diz-nos muito sobre como as epidemias se desenrolam, os surtos se espalham, e como são controlados antes de se alastrarem demasiado.

Estas histórias só nos levam até agora, no entanto, a enfrentar a crise global da COVID-19. Nos primeiros meses de 2020, a pandemia do coronavírus passou por cima da maioria dos esforços de contenção, tomou as rédeas da detecção e vigilância de casos em todo o mundo, e saturou todos os continentes habitados. Para compreender os finais desta epidemia, temos de olhar muito mais para trás. Os historiadores há muito que são fascinados pelas epidemias, em parte porque tendem a formar um tipo semelhante de coreografia social reconhecível em vastas extensões de tempo e espaço. Mesmo que os agentes causadores da Peste de Atenas no século V a.C., a Peste de Justiniano no século VI d.C., a Peste Negra do século XIV, e a Peste Manchuriana do início do século XX não fossem quase certamente a mesma coisa, biologicamente falando, as próprias epidemias partilham características comuns que ligam os agentes do passado à nossa experiência actual.

O historiador de medicina americano, Charles Rosenberg disse que como fenómeno social, uma epidemia tem uma forma dramatúrgica. As epidemias começam num momento no tempo, prosseguem num palco limitado no espaço e na duração, seguindo uma linha de enredo de tensão crescente e reveladora, avançam para uma crise de carácter individual e colectivo, e depois derivam para o final. À medida que o coronavírus se infiltrava ainda mais como uma mancha demasiado visível no tecido da nossa sociedade, vimos uma fixação inicial sobre as origens dar lugar à questão mais prática dos fins. Em Março de 2021, foi argumentado com verdade as possíveis “linhas de tempo para o regresso à vida normal”, todas elas dependentes da base biológica de uma quantidade suficiente da população que desenvolvesse imunidade (talvez 60 por cento a 80 por cento) para refrear a propagação. As epidemias não são meros fenómenos biológicos. São também sempre inevitavelmente moldadas pelas nossas respostas sociais do princípio ao fim. A questão que agora se coloca aos cientistas, clínicos, presidentes de câmara, governadores, primeiros-ministros e presidentes de todo o mundo não é meramente quando irá o fenómeno biológico desta epidemia se resolver? Mas sim quando (se é que alguma vez) irá a perturbação da nossa vida social causada em nome do coronavírus chegar ao fim? Como o pico da incidência parece ter passado nalguns locais, mas aumenta noutros, líderes eleitos e grupos de reflexão de extremos opostos do espectro político fornecem roteiros e quadros para a forma como uma epidemia que quase travou a vida económica, cívica e social de uma forma nunca vista em pelo menos um século poderá eventualmente recuar e permitir o recomeço de uma “nova normalidade”.

Estas duas versões de uma epidemia, a biológica e a social, estão estreitamente interligadas, mas não são o mesmo. Os processos biológicos que constituem a epidemia podem encerrar a vida quotidiana, adoecendo e matando pessoas. Mas as respostas sociais que constituem a epidemia também encerram a vida quotidiana ao derrubar premissas básicas de socialidade, economia, governação, discurso e interacção ao mesmo tempo que matam pessoas no processo. Existe o risco, como sabemos tanto pela gripe espanhola de 1918-1919 como pela gripe suína mais recente de 2009-2010, de relaxar as respostas sociais antes de a ameaça biológica ter passado. Mas existe também o risco de julgar erroneamente uma ameaça biológica baseada em modelos defeituosos e de responder ou perturbar a vida social de tal forma que as restrições nunca poderão ser retiradas. Vimos no caso do coronavírus, as duas faces da epidemia a escalar a nível local, nacional e global em conjunto. Mas a epidemia biológica e a epidemia social não recuam necessariamente na mesma linha temporal.

27 Mai 2021

Hong Kong a debelar o vírus

O número de novos casos de coronavírus em Hong Kong caiu desde há vários dias para um dígito. Os peritos da cidade têm salientado que Hong Kong tem agora a oportunidade atingir as “zero” infecções e conseguir eliminar a transmissão local. São sem dúvida boas notícias para Hong Kong.

Após ter vivido um período de caos e destruição da segurança pública, promovido pelos “homens de preto”, o surto epidémico veio agravar seriamente a economia de Hong Kong. Não estamos a exagerar se dissermos que houve uma “recessão em todos os sectores” para descrever a situação. Os negócios estiveram parados e os trabalhadores ficaram sem emprego. Embora o Governo de Hong Kong tenha alocado por várias vezes fundos para ajudar a suavizar a crise, este esforço só por si não foi suficiente para resolver todos os problemas. Esta ajuda, por maior que tenha sido, acabou por ser apenas “uma gota no oceano” em relação às necessidades económicas da cidade.

Agora, se Hong Kong conseguir erradicar por completo a epidemia, pode retomar a sua actividade económica. Se o distanciamento social for sendo levantado, as pessoas vão poder retomar o contacto e as actividades regressam ao normal. Deixar de haver casos de COVID em Hong Kong é também um dado fundamental para que as fronteiras com a China continental e com Macau reabram. Com a abertura das fronteiras regressa o comércio com a China e com Macau. Para Macau vai significar o regresso dos turistas de Hong Kong aos casinos. A epidemia isolou os residentes de Hong Kong e de Macau e tornou-se quase impossível viajar. Os casinos de Macau perderam grande parte da sua clientela. Quando as fronteiras abrirem, os turistas de Hong Kong vão começar a chegar um a um aos casinos de Macau.

Para recuperar a economia de Hong Kong não basta a abertura das fronteiras. Hong Kong é actualmente o maior centro que a China utiliza para transicionar a sua moeda, o renminbi. As instituições financeiras da China, de Hong Kong, e de Macau já promoviam os seus produtos cotados em renminbis, antes da pandemia. Hong Kong é um centro financeiro internacional. Não existe controlo nas entradas e saídas de fundos. Um sólido sistema jurídico garante uma protecção sólida. Esta é a grande vantagem de promover produtos financeiros em RMBs. Além disso, Hong Kong tem muitos anos de experiência em planeamento financeiro, quer seja em fundos, seguros, ou obrigações. Vários projectos de gestão financeira, ou métodos de gestão financeira, como protecção de bens, avaliação de investimentos, heranças, etc., podem ser assegurados por instituições financeiras da Área da Grande Baía. No pós-pandemia, se Hong Kong continuar a apostar em produtos financeiros cotados em renminbis, recuperará a sua economia mais rapidamente. Para a China e para Macau, a experiência financeira de Hong Kong será uma mais valia. Numa perspectiva de cooperação em termos de desenvolvimento financeiro, Hong Kong tem uma palavra a dizer na Área da Grande Baía.

Embora existam várias formas de revitalizar a economia, Macau pode tirar partido da experiência de Hong Kong. Macau depende da indústria do jogo, durante a epidemia deixou de haver turismo e esta indústria foi naturalmente afectada. Este foi o resultado da aposta do Governo numa única fonte de rendimento. O mesmo se passa em Hong Kong, que depende quase exclusivamente do sector financeiro. Assim, depois da epidemia, o Governo de Hong Kong deve tentar perceber seriamente qual a indústria que lhe pode proporcionar uma fonte de taxação estável. Com um rendimento estável, Hong Kong pode desenvolver o seu sistema de segurança social e garantir que os seus residentes possam viver e trabalhar em paz.

Até ao momento, o número de pessoas vacinadas em Hong Kong e em Macau não é muito grande e isso é reflexo dos receios que as vacinas inspiram. Com as contínuas mutações do vírus, resta saber se as vacinas vão ser eficazes contra as novas variantes. Só quando o vírus estiver completamente controlado é que a economia mundial pode recuperar. Se Hong Kong quiser recuperar a sua economia, tem de esperar pela oportunidade e redobrar os esforços.

25 Mai 2021

Há cadeiras que não arrefecem

Determinados fulanos quando ocupam um cargo de relevo resolvem nunca mais arrefecer a cadeira do poder. Pensam-se os donos do mundo e fazem o que querem. Estou a lembrar-me de dois portuenses e por acaso portistas. Jorge Nuno Pinto da Costa e Rui Moreira são dois exemplos de indivíduos que andam sempre sob suspeita de irregularidades e pensam que são intocáveis. Têm acontecido as maiores suspeitas de irregularidades nas hostes da SAD do FC Porto e o presidente Pinto da Costa tem sempre ficado a rir-se das investigações e dos tribunais. Mas, na semana passada talvez tenha torcido o nariz quando a Polícia Judiciária (PJ) iniciou buscas na sede e nas casas do FC Porto e do Portimonense devido a investigações iniciadas há muito tempo sobre a falsificação dos testes à covid-19 a vários jogadores, nomeadamente o japonês Nakagima que viajou infectado e ao suborno a determinadas unidades laboratoriais, facto gravíssimo que pode atingir cerca de oito anos de prisão por se tratar de um atentado contra a saúde pública. O caso vai dar que falar e pode ser que desta vez Pinto da Costa fique a saber que afinal ainda há lei em Portugal.

Por outro lado, tivemos um caso que é há muito badalado na cidade do Porto com o presidente da Câmara Municipal, Rui Moreira, na berlinda. Aconteceu que Rui Moreira e a sua família diziam ter um terreno em local privilegiado na margem do Douro, que deu origem ao célebre caso Selminho. O presidente da Câmara do Porto terá de responder em tribunal no âmbito da discordância Selminho que opõe a família de Rui Moreira e a lei nacional, no sentido de que o terreno pertence ao Estado. Moreira é acusado de agir em benefício da imobiliária Selminho – à qual tem ligações familiares – em detrimento do interesse municipal. A decisão de levar o edil a julgamento partiu do Tribunal de Instrução Criminal – a juíza Maria Antónia Ribeiro acusou Moreira nos mesmos termos do Ministério Público (MP) – exarando uma acusação muito violenta onde salienta no despacho que “submetido a julgamento venha a ser aplicada ao arguido em função da prova recolhida nos autos, uma sanção penal”. Moreira é acusado de prevaricar em abuso de poder beneficiando-se a si próprio e à sua família. O MP acrescenta ainda que o presidente da Câmara Rui Moreira deve perder o mandato. E aqui é que a cadeira não arrefece. Moreira e tantos outros pelo país fora, mesmo acusados de factos graves não largam o poleiro. Já anunciou que se vai recandidatar nas próximas eleições autárquicas e que tudo isto não passa de uma manobra política tal e qual como aconteceu há quatro anos. A verdade é que a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, já afirmou que o caso é muito grave e que Moreira deve demitir-se de imediato. Já o antigo líder do PSD, Luís Marques Mendes, em 2009, barrou as candidaturas autárquicas de Isaltino Morais a Oeiras e de Valentim Loureiro a Gondomar. Também o PS adoptou uma postura semelhante não deixando Luís Correia candidatar-se ao município de Castelo Branco. No caso de Rui Moreira, sendo independente, certamente não terá quem o obrigue a abdicar. Mas devia ter. O tribunal podia já decidir a sua exoneração do cargo, já que o exemplo é vergonhoso e demonstrativo como estes senhores quando se apanham sentados na cadeira do poder tudo fazem para que a mesma não arrefeça.

O que é certo é que Rui Moreira irá a julgamento. O Tribunal de Instrução Criminal do Porto diz que o edil-arguido “agiu com intenção directa de beneficiar os interesses da imobiliária Selminho da qual também era sócio, em detrimento da Câmara Municipal”. A Selminho pretendia construir um edifício de apartamentos de luxo num terreno da Calçada da Arrábida, perto da ponte com o mesmo nome, torres essas que valeriam muitos milhões de euros. Com exemplos destes que pululam pelo país no seio da comunidade autárquica, a situação tem de mudar, tem de se demonstrar que não se aceitam intocáveis e muito menos cidadãos eleitos pelo povo e que depois apenas se limitam a prejudicar esse mesmo povo e a beneficiarem-se a si próprios, aos amigos e aos familiares.

No território nacional temos tido casos gravíssimos de autarcas que abusam do poder que lhes é conferido pela via democrática e que se comportam como autênticos ditadores. Estamos à porta de novas eleições autárquicas e infelizmente assistimos a candidaturas de certos indivíduos que deixaram muito a desejar quanto à seriedade na função que exerceram enquanto presidentes de Câmara. Devia ser absolutamente proibido que cidadãos que tenham exercido dois mandatos à frente de uma edilidade voltassem a aquecer a cadeira do poder. É uma tristeza ver que a Assembleia da República nunca se preocupa com estas especificidades e é assim que o nosso país vai caminhando sempre baseado na falta de honorabilidade por parte de quem devia dar o exemplo.

 

*Texto escrito com a antiga grafia

24 Mai 2021

Um Presente ao Futuro: Macau – Diálogos sobre Arquitetura e Sociedade

Por Bernardo Amaral, Arquitecto, Investigador

 

No final do ano passado a editora Circo de Ideias lança “Macau – Diálogos sobre Arquitetura e Sociedade” – uma publicação que propõe fazer um ponto de situação do pensamento crítico sobre as transformações urbanas e sociais que a cidade viveu nos últimos 20 anos. Editado por Tiago Saldanha Quadros e Margarida Saraiva, o livro é composto por nove entrevistas a arquitetos, urbanistas e investigadores e por um ensaio visual da autoria de Nuno Cera. A iniciativa dos editores surge da necessidade de “dar corpo, reunir, arquivar, partilhar uma espécie de estado da arte no que ao urbanismo de Macau diz respeito, permitindo o alargamento do debate sobre o futuro da cidade e sua relação com as regiões vizinhas”, como afirma Margarida Saraiva no prefácio. O livro foi inicialmente publicado em 2015, em inglês, pela organização cultural BABEL, fundada em Macau, no ano de 2013, com o objetivo de gerar oportunidades de investigação e aprendizagem nas áreas da arte contemporânea, arquitetura e ambiente numa abordagem interdisciplinar. Em 2019, o livro é publicado em português pela Circo de Ideias, dando a conhecer aos leitores portugueses o conjunto de entrevistas conduzidas por Tiago Saldanha Quadros entre 2013 e 2014. Para Quadros, “a relevância deste livro passa por analisar o tempo da nossa condição contemporânea, lançando a partir de Macau olhares reflexivos acerca dos desafios que a vida urbana moderna em Macau supõe.”

De facto, Macau é hoje mais uma cidade numa aldeia global, testemunho da maior revolução urbana de sempre, nomeadamente o atual processo de urbanização do território chinês. Fundada por mercadores portugueses no séc XVI, Macau é definida, a par de Hong Kong, como uma Região Administrativa Especial desde 1982. Enquanto tal, beneficiando de autonomia política e administrativa, estas duas cidades vão servir de tubo de ensaio para o “socialismo de mercado” planeado por Deng Xiaoping; processo também conhecido pelo mote “um país, dois sistemas”. Em 1999, a soberania administrativa de Macau é transferida para a China e desde então são implementadas uma série de medidas estratégicas no sentido de transformar a cidade numa atração turística e na capital mundial do jogo. O centro histórico de Macau, protegido pela UNESCO desde 2005, compete hoje com a monumentalidade dos edifícios dos casinos, cada vez em maior número (cerca de 38). É sobre este período que se centra o livro, sobre a rápida transformação da pacata cidade portuária, que nos últimos 20 anos ganhou 10 quilómetros quadrados de terreno ao mar e aumentou a sua população em mais 200 mil habitantes.

Ao selecionar 9 pensadores com diferentes experiências vividas de Macau e de nacionalidades diversas, Tiago Quadros reúne distintas perspetivas sobre o tema, oferecendo ao leitor um retrato multifacetado da condição contemporânea da cidade. Nas entrevistas são abordados temas como a arquitetura, a representação, a história e a memória, questões inevitáveis perante a velocidade a que a paisagem urbana muda, mas também perante regimes de representação que manipulam despudoradamente os signos da história da arquitetura.

Um dos entrevistados é o arquiteto Jorge Figueira, que visita Macau desde 2006, no quadro da sua investigação sobre a pós-modernidade na arquitetura portuguesa. Figueira demonstra particular interesse na vida e obra do arquiteto português Manuel Vicente, mas será igualmente fascinado pela condição contemporânea da cidade, como a alta densidade urbana e a sua constante transformação. Manuel Vicente, falecido em 2013, irá projetar e construir em Macau desde os anos 60. Marcado pela sua experiência profissional nos Estados Unidos com Louis Kahn e influenciado pela obra de Robert Venturi, Vicente desenvolve uma obra original, que seduz muitos arquitetos portugueses a descobrirem a exótica cidade, como é o caso de Manuel Graça Dias ou Diogo Burnay, este último também entrevistado por Tiago Quadros. Tendo lá vivido de 1992 -97, Diogo Burnay oferece um testemunho fascinante de como era trabalhar com Manuel Vicente e viver em Macau antes da transição para a administração chinesa. Também Wang Wejien, arquiteto formado em Taiwan e Berkeley e professor em Hong Kong, conhece a cidade desde essa altura, recordando o valor da arquitetura vernacular chinesa e do tecido urbano caracterizado pelos largos e pátios, que ainda hoje se encontram preservados. Por outro lado, Werner Breitung, geógrafo e urbanista alemão, professor em Hong Kong, que assistiu à transformação da cidade desde os anos 90, demonstra mais interesse no conceito de fronteira como lugar de contacto e gerador de urbanidade e de identidade coletiva ao longo dos últimos anos. Jianfei Zhu, historiador da arquitetura chinesa do século XX e formado na Universidade de Tianjin, faz uma leitura das transformações urbanas de Macau à luz da cultura urbana chinesa e enquadrada no processo de urbanização de todo o território continental. Outros pensadores e investigadores entrevistados por Tiago Quadros como Thomas Daniell, Mário Duque, Hendrick Tieben e Pedro Campos Costa, revelam, a par das suas reflexões pessoais sobre outros temas, preocupações com o impacto do turismo e do jogo na urbanização cidade, questionando a qualidade do espaço público, do acesso à habitação, e alertando para o perigo da transformação de Macau num “Parque Temático”. Alertas pertinentes, que espelham a condição contemporânea de uma sociedade de lazer e consumo, que Tiago Quadros irá aprofundar no texto do posfácio.

O ensaio visual de Nuno Cera surge no início do livro como um preâmbulo, ilustrando as contradições de uma cidade em “permanente mutação”. Ao longo das 47 imagens realizadas em 2018, o leitor deambula por um território denso e tropical, estranhamente familiar e simultaneamente irreal. Como num palimpsesto, sobrepõem-se edifícios de diferentes tempos e lugares, caracterizando fielmente a condição urbana da cidade peninsular. Para além dos massivos prédios de habitação e suas características “gaiolas”, Nuno Cera capta também a arquitetura festiva dos casinos, que apesar da sua excentricidade surge integrada no quotidiano da cidade. Um ensaio visual que é também um diálogo entre o autor e a cidade, convidando o leitor a percorrer os seus passos.

Na entrevista a Diogo Burnay e como resposta à questão sobre a importância da memória como mecanismo de “progresso”, Burnay responde citando Manuel Vicente: “O Manel costumava dizer-nos que o presente é um presente ao futuro e o passado é um presente ao presente.” Eu diria que esta frase atravessa todo o livro e que caracteriza exemplarmente o espírito deste bem sucedido projeto editorial. Um livro para conhecer Macau, enquanto espelho do mundo onde vivemos.

24 Mai 2021

Três meses que abalaram o mundo

O catastrófico balanço dos impactos da pandemia de covid-19 no planeta estará sempre por completar mas uma boa síntese provisória é apresentada em relatório recentemente publicado por um painel independente criado pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 148 milhões de pessoas infectadas e mais de 3 milhões de mortes, incluindo pelo menos 17.000 profissionais de saúde, com prejuízos económicos globais na ordem dos 10 triliões de dólares em 2021 e 22 triliões entre 2020 e 2025, naquele que é o maior choque na economia mundial desde a segunda guerra mundial. No momento mais crítico da pandemia, 90% das crianças do planeta não puderam ir à escola, multiplicaram por 5 os casos de violência doméstica e entre 120 milhões de pessoas ficaram em situação de pobreza extrema.

Este dramático retrato também serve para revelar a dimensão da irresponsabilidade das respostas políticas aos sinais da emergência da pandemia – e da urgência dessas respostas. O mesmo relatório afirma que durante os três meses que decorreram entre o aparecimento dos primeiros casos em Wuhan e a generalização global da pandemia houve informação partilhada e pareceres técnicos de alto nível em variadas instituições que teriam sido mais que suficientes para despoletar respostas urgentes e sólidas para antecipar e prevenir os problemas que haviam de chegar em breve. Pelo contrário, apesar da quantidade, clareza e credibilidade das informações que se foram acumulando durante três meses, o mundo acabou por reagir como se tratasse de uma surpresa (“rigorosamente nada foi antecipado, preparado ou planeado nos 3 ou 4 meses que passaram entre a identificação do vírus na China e a sua chegada à Europa”, escrevia eu na crónica “Um ano em covid”, aqui publicada em 22 de Janeiro de 2021).

São certamente mais sérias e credíveis que as minhas, as observações deste painel independente para a preparação e resposta às pandemias que a OMS criou com o objetivo de recolher o máximo de evidências técnicas e científicas para enfrentar possíveis casos semelhantes no futuro. O painel inclui especialistas com reconhecimento em várias áreas com relevo para o estudo das pandemias e está a analisar com o detalhe possível (que não é pouco) a propagação da doença e respectivas respostas, com vista a fazer do covid-19 “a última pandemia”. Independentemente da qualidade, celeridade e clareza dos trabalhos que vier a produzir, não será tarefa fácil, tendo em conta a irresponsabilidade generalizada com que se lidou com o problema na maior parte do mundo.

Não se sabendo se esta vai ou não ser a última pandemia, certo é que não se trata da primeira: uma pandemia associada a síndromes respiratórios (SARS) já tinha afectado o mundo há quase 20 anos, durante 6 meses de 2003, com mais 8000 casos e quase 800 mortes em 29 países. Pela primeira vez se tornou evidente a possibilidade de transmissão rápida e fácil de doenças, mesmo na ausência de sintomas. Depois deste caso houve outras propagações internacionais com repercussões significativas, como as associadas ao vírus H1N1 (em 2009) ou aos vírus Ébola e Zika (entre 2014 e 2016). O estudo que suporta esta crónica identifica pelo menos 16 relatórios e 11 painéis e comissões de alto nível que desde 2009 apresentaram detalhadas recomendações para melhorar a preparação dos sistemas de saúde para enfrentar situações semelhantes de pandemia. Apesar disto, a chegada do covid-19 encontrou sistemas de saúde completamente desprevenidos, impreparados e frequentemente com severas limitações financeiras. O resultado foi inviabilizar as medidas preventivas que teriam tido custos muitíssimo menores que as que tiveram que se assumir quando a pandemia ocorreu – e continuarão a ter que ser assumidas no futuro.

Ao contrário do que se tem frequentemente afirmado, a identificação do vírus pelas entidades de saúde da China até foi relativamente rápida: em Dezembro de 2019 apareceu um pequeno grupo de pacientes com problemas respiratórios severos, em diferentes hospitais da cidade de Wuhan, que não reagiu como esperado a tratamento para uma aparente pneumonia. No início de Janeiro já se tinha identificado um padrão comum para estes problemas, o que levaria à rápida identificação da sua origem, do vírus causador e até ao confinamento total da população ainda em 23 de Janeiro de 2020. A 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde declarava uma “situação de emergência internacional de saúde pública” relacionada com o vírus, incluindo recomendações detalhadas sobre como conter a sua propagação, como lidar com as infecções ou como tratar e isolar os casos que se viessem a identificar.

Nesse final de Janeiro, já o vírus tinha sido identificado em 19 países, também não houve uma resposta generalizada pelos diversos serviços nacionais de saúde à já mais que previsível difusão global da pandemia. O problema havia de se generalizar em Março de 2020, 3 meses depois da sua origem em Wuhan, perante total impreparação, ausência de planeamento, escassez do mais elementar equipamento de prevenção, falta de meios e infra-estruturas para isolamento e tratamento de pessoas infectadas, ausência de planos e mecanismos para identificar e monitorizar contactos e possíveis focus de infecção, regras possíveis para reduzir os contactos e aumentar a chamada “distância social”. Foram três meses de negligência que abalaram o mundo tal como o conhecemos: tudo podia ter sido de outra forma, mais tranquila, com menos dor, menos mortes e menos custos económicos e sociais. Na realidade, por mais dramáticos que sejam, os problemas não se limitam às infecções por covid-19, sabemos hoje bem: a enorme pressão sobre profissionais e serviços de saúde levou também a negligenciar, degradar ou mesmo interromper a prestação de outros cuidados, subitamente menos urgentes e menos críticos, mas nem por isso menos problemáticos para quem os sofre.

Hoje vivemos tempos já diferentes, com algum horizonte de que o problema se ultrapasse relativamente depressa, graças à imunidade que a vacinação em larga escala possa proporcionar. Mas o acesso às vacinas constitui outro problema político e económico, lembra também o tal relatório do painel independente: enquanto alguns dos países mais desenvolvidos do mundo (Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia) dispõem a curto prazo de vacinas suficientes para 200% da sua população, os países asiáticos, africanos ou da América Latina continuam bastante longe de um nível de imunidade suficiente para garantir a segurança comunitária. Aliás, não deixa de ser curioso que tenha sido a Ásia o primeiro continente a reagir e a conter a propagação do vírus, mas que possa ser o último a reabrir as fronteiras ao tráfego e ao turismo internacionais.

21 Mai 2021

A covid-19 e as falhas globais de saúde pública

“Unpurified drinking water. Improper use of antibiotics. Local warfare. Massive refugee migration. Changing social and environmental conditions around the world have fostered the spread of new and potentially devastating viruses and diseases-HIV, Lassa, Ebola, and others.”
Laurie Garrett
The Coming Plague: Newly Emerging Diseases in a World Out of Balance

 

 

A crise do coronavírus foi um choque, mas não deveria ter sido uma surpresa. Há anos que os peritos em saúde pública vinham alertando para os perigos das pandemias virais. A SRA, H1N1, Ebola, e MERS tinham destacado os riscos de doenças que atravessavam fronteiras e a necessidade de respostas nacionais e globais eficazes. Não muito antes dos primeiros casos notificados de COVID-19 em Wuhan, China, tanto o Johns Hopkins Center for Health Security como o Kissinger Center for Global Affairs Senior Fellow Dr. Kathleen Hicks tinham organizado exercícios separados que realçaram o quão profundamente um vírus em movimento rápido poderia pôr em perigo o sistema internacional e a segurança nacional dos Estados Unidos. No entanto, estes alertas não foram em grande parte seguidos e o mundo não estava preparado para reagir eficazmente quando a crise começou.

A COVID-19 sobrecarregou os esforços nacionais e internacionais para conter a pandemia, expondo ao mesmo tempo falhas profundas nas infraestruturas globais de saúde pública. As instituições mais responsáveis pela saúde pública, a Organização Mundial de Saúde (OMS) para o mundo, os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) para os Estados Unidos não tiveram um bom desempenho. O mundo vê diariamente a aumentar o número de casos confirmados de COVID-19. A Índia, os Estados Unidos e o Brasil têm sido os mais duramente atingidos. A ciência e os conhecimentos epidemiológicos em torno do vírus estão a evoluir, novas terapias estão a ser desenvolvidas, e os esforços intensivos que culminaram em várias vacinas proporcionam alguma esperança.

A COVID-19 irá dominar o panorama internacional. Mesmo depois de o vírus ser contido, as consequências estarão connosco durante algum tempo. Isto porque a pandemia chegou a um momento especialmente preocupante para o mundo. Nos últimos anos, muitos comentaram o desgaste dos acordos internacionais para proporcionar uma ordem mundial estável, pacífica e próspera. O que se temia há algum tempo era agora visto como uma dura realidade pois muitas das normas, instituições e práticas que sustentavam a ordem internacional liberal e marcaram a liderança americana desde o fim da Guerra Fria e, em alguns casos, o fim da II Guerra Mundial, estavam sob enorme tensão.

As causas são muitas e interligado dado o ressurgimento da rivalidade política de grandes potências, marcada pelo agravamento e crescente toxicidade da relação entre as duas maiores potências, os Estados Unidos e a China; o aumento do populismo e do nacionalismo, bem como uma aparente perda de fé na democracia à medida que o autoritarismo aumenta o seu domínio em muitas partes do mundo; os efeitos vertiginosos e desorientadores das novas tecnologias; e numerosas outras causas.

Estes desafios têm-se manifestado à medida que os Estados Unidos polarizados se tornam cada vez mais incertos sobre o seu papel no mundo, à medida que muitos perdem a fé nos benefícios da globalização e da interdependência, e como um conjunto de novas preocupações transnacionais, que vão desde as alterações climáticas à desinformação, revelam as deficiências das instituições internacionais existentes. No entanto, a crise constitui uma oportunidade.

Há que fazer um esforço multidisciplinar para avaliar o estado actual da ordem mundial, analisar os efeitos da crise da COVID-19, e oferecer perspectivas e ideias para o futuro. A crise tornou claro que muito trabalho precisa de ser feito para melhorar as nossas capacidades e instituições nacionais e globais de saúde pública, e para elevar a ameaça de doença e pandemia a uma prioridade mais elevada nos nossos quadros de segurança nacional e internacional.

Todavia, existe uma premissa maior que é a ideia de que a crise destaca uma série de outros desafios nacionais e globais prementes, em áreas que vão desde as alterações climáticas às relações com a China.

Acreditamos que esta crise é potencialmente um ponto pivô crucial, proporcionando uma oportunidade para repensar e talvez revitalizar o nosso actual sistema internacional. Historicamente, os esforços para construir acordos internacionais eficazes emergem após períodos de guerra, crise e tumulto. A Paz de Vestefália pôs fim às guerras viciosas da religião que tinham assolado a Europa e construiu um sistema comparativamente estável baseado no equilíbrio de poder entre os Estados-nação. O Congresso de Viena de 1814-1815 foi marcado pela diplomacia magistral do Conde Metternich da Áustria e Lord Castlereagh da Grã-Bretanha, que trabalhou com outros líderes europeus para dominar as guerras e o fervor ideológico desencadeado pela Revolução Francesa. Estes esforços mantiveram a paz na Europa até à Guerra da Crimeia e impediram qualquer potência europeia de dominar o continente até ao início do século XX.

O que restava do sistema do Concerto entrou em colapso com a I Guerra Mundial, levando a uma série de esforços ao longo das décadas seguintes para reconstruir a ordem mundial. A conferência de Versalhes após a I Guerra Mundial foi inspirada pelo desejo do Presidente americano Woodrow Wilson de construir uma paz baseada na autodeterminação nacional, na diplomacia aberta, no fim das corridas ao armamento e na segurança colectiva através de uma Liga das Nações, as curas, acreditava ele, às patologias do imperialismo, do militarismo e da diplomacia feroz que tinham provocado o conflito. Esta visão falhou quando os Estados Unidos se retiraram do sistema proposto por Wilson enquanto as queixas persistentes e não resolvidas da guerra envenenavam o clima internacional. Uma depressão global, a ascensão de regimes violentos e revolucionários, e o início da II Guerra Mundial destruíram o sistema criado em Versalhes e revelaram a necessidade desesperada de mecanismos eficazes para gerar a ordem mundial.

Aprendendo com este fracasso, os planificadores americanos trabalharam com os seus aliados para começar a construir a ordem do pós-guerra antes mesmo de a guerra terminar. Conferências entre os três principais actores, os Estados Unidos, a União Soviética e a Grã-Bretanha em Teerão, Yalta e Potsdam misturaram planos para ganhar a guerra com esforços para coordenar a paz do pós-guerra. Reuniões internacionais em Bretton Woods e Dumbarton Oaks conceberam instituições globais tais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, e as Nações Unidas. Os americanos esperavam uma ordem mundial integrada e sem descontinuidades que reunisse as nações líderes para evitar a guerra e manter uma paz segura e próspera. No entanto, a Guerra Fria estragou esta visão de “Um Mundo” só, e o que emergiu nos anos seguintes não foi uma ordem, mas várias. No domínio económico, a tão chamada ordem de Bretton Woods, centrada no mundo capitalista, criou um sistema que encorajou a revitalização do comércio global mas deu prioridade à reconstrução interna, integração regional, e estabilidade. Este sistema desgastou-se nas décadas de 1960 e 1970, e após um tempo marcado por alguma desordem, foi substituído pelo sistema mais aberto e globalizado que temos agora, baseado em moedas flexíveis e determinadas pelo mercado, investimento e comércio global em larga escala, e o domínio da banca e finanças denominadas em dólares.

A segurança internacional evoluiu também em direcções inesperadas. O sistema das Nações Unidas, baseado na soberania dos Estados e em princípios universais, foi ofuscado por um sistema bipolar que assistiu a uma intensa rivalidade ideológica e geopolítica entre dois blocos de superpotência rivais liderados pela União Soviética e pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos acabaram por liderar uma ordem internacional segura e próspera, mas que se limitou ao “mundo livre” e não ao mundo inteiro. No entanto, as superpotências cooperaram para criar uma terceira ordem; uma ordem nuclear muito bem-sucedida, baseada no seu interesse comum em limitar os perigos colocados pela “arma absoluta”. Esta ordem foi construída em torno de uma série de tratados bilaterais e globais de controlo de armas incluindo o Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares de 1963, o Tratado de Não Proliferação Nuclear de 1968, e os Tratados de Mísseis Antibalísticos e de Limitação Estratégica de Armas de 1972, bem como normas e práticas menos formalizadas, desde a tolerância ao sobrevoo de satélites pelo inimigo (necessário para reduzir o perigo de ataque surpresa) e um entendimento implícito, que evoluiu ao longo do tempo, de que as armas nucleares não eram meras bombas poderosas, mas que se encontravam numa categoria própria.

Apesar de estar sob pressão constante, este elemento de ordem rivais que trabalham para gerir e limitar os perigos das novas tecnologias, foi mais bem-sucedido do que qualquer um esperava e talvez forneça um modelo para os desafios temporários. O inesperado fim da Guerra Fria e o rápido desaparecimento da União Soviética realçaram tanto o sucesso destes acordos pós-guerra como a necessidade de repensar a ordem mundial para uma nova era. Foi também uma época de grande criatividade intelectual, pois estudiosos como John Mearsheimer, Francis Fukuyama, John Ikenberry, Charles Krauthammer, e Samuel Huntington ofereceram molduras conceptuais inovadoras para compreender um mundo em rápida mudança. Os eventos moveram-se rapidamente. A Alemanha foi reunificada pacificamente e o projecto da União Europeia floresceu; democracias surgiram em todo o mundo, e alguns conflitos e guerras civis em ebulição prolongada foram resolvidos pacificamente. Os Estados Unidos, trabalhando através das Nações Unidas, construíram uma coligação impressionante para impor a segurança colectiva e expulsar o Iraque do Kuwait. Para surpresa de muitos, alguns elementos da era pós-guerra, tais como a Organização do Tratado do Atlântico Norte, não só foram mantidos como alargados. Outras instituições, tais como o Fundo Monetário Internacional, foram novamente imaginadas. Com o tempo, ainda outras instituições, tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Grupo dos Vinte (G20) foram inauguradas.

A era pós Guerra Fria foi marcada por uma combinação de multilateralismo e ideais e poder americanos, uma vez que os Estados Unidos se encontravam numa posição de comando nos assuntos mundiais. Na medida em que havia uma ordem mundial única, foi em grande parte uma expansão e modificação do sistema liberal que se tinha enraizado no mundo não comunista após a II Guerra Mundial. Como este sistema assumiu dimensões cada vez mais globais, foi um tempo de esperança e promessa. Esse período de optimismo parece agora uma memória distante. Os ataques de 11 de Setembro aos Estados Unidos, seguidos de guerras difíceis e controversas no Iraque e no Afeganistão, expuseram novas fontes de insegurança. A guerra no Iraque, em particular, esgotou as energias dos Estados Unidos e abalou o apoio internacional ao poder americano. A crise financeira de 2007-2009 estremeceu a economia global e minou a confiança no mercado. O populismo aumentou e o movimento em direcção à democracia enfraqueceu.

À medida que a economia da China floresceu, este país não abraçou, como muitos esperavam, os princípios liberais, mas em vez disso desafiou tanto as normas e instituições regionais como globais, ao mesmo tempo que aprofundou o estatismo. A tecnologia da informação, outrora vista como uma força libertadora, mostrou o seu lado mais sombrio através de ciberataques e campanhas de desinformação; as alterações climáticas pareciam ser um desafio potencialmente existencial. Tanto a votação do Reino Unido para deixar a União Europeia (Brexit) como a inesperada eleição de Donald J. Trump como presidente dos Estados Unidos numa campanha da “América Primeiro” fez de 2016 o ano em que ficou claro que a ordem mundial existente era imperiosa. Os princípios e valores que muitos acreditavam ser a pedra angular desta ordem com abertura e inovação, prática democrática e tolerância, interdependência e globalização foram vistos com desconfiança por grandes faixas da América e do mundo.

A COVID-19 destacou e exacerbou muitas das tensões que já estavam a testar o sistema pós Guerra Fria. A pandemia tem sido tão perturbadora porque explodiu num mundo que já estava cada vez mais desordenado. A questão de como reconstruir a ordem mundial após a COVID-19 envolve lidar não só com a doença, mas também com os problemas de mentira que ela revelou. Como devemos diagnosticar e compreender estes desafios à ordem mundial, e que princípios e políticas devem moldar os nossos esforços para avançar? É inegável que a COVID-19 está a abanar o mundo e a pôr a nu as fraquezas dos acordos e instituições existentes. Mas será que a COVID-19 marcará o fim de uma ordem mundial e a emergência de outra? A resposta acreditamos, não é assim tão simples. Não é uma coincidência que as maiores e mais epocais mudanças na ordem mundial ocorram frequentemente no rescaldo de grandes guerras. Tais cataclismos rompem fatalmente as relações e instituições existentes; reiniciam a distribuição global do poder. Ao nivelar a arquitectura de uma ordem mundial, eles criam novas possibilidades de construção. Que a COVID-19 terá um efeito igualmente transformador parece improvável.

A pandemia tem sido monumentalmente traumática, é claro, e todas as apostas estão erradas se o mundo enfrentar múltiplos e cada vez mais letais surtos mesmo depois da cada vez maior evolução das vacinas existentes. Mas, a menos que isso aconteça, a COVID-19 não irá provavelmente alterar dramaticamente a distribuição do poder material. Com toda a certeza, os Estados Unidos saíram-se mal de uma perspectiva de saúde pública e sofreram uma grave diminuição a curto prazo, pelo menos da sua credibilidade e reputação de competência apesar das grandes decisões nesta matéria tomadas pelo presidente Joe Biden. No entanto, vários aspectos da crise, o papel da Reserva Federal dos Estados Unidos na estabilização da economia mundial, a fuga para o dólar, e outros testemunham efectivamente o imenso poder estrutural da América. Além disso, está longe de ser claro que o principal desafio da América, a China, verá a sua própria posição a longo prazo reforçada, em parte devido à forma como a crise sublinhou as patologias estatistas do país e em parte porque um dos resultados da pandemia pode ser um esforço de contrapeso mais concertado das democracias do mundo.

Quando se trata de instituições, a pandemia tem sem dúvida revelado fraquezas profundas no seio de muitos organismos internacionais proeminentes, desde a OMS e OMC até ao G7. A necessidade de reforma tornou-se clara para todos; o mesmo aconteceu com a ausência de estruturas institucionais bem desenvolvidas para lidar com uma variedade de desafios emergentes. Isto não nos deve surpreender pois grande parte da nossa arquitectura de governação global foi criada numa altura diferente, num mundo distinto, para lidar com diferentes desafios. Alguns deles estão agora desactualizados ou mal adaptados às novas ameaças globais. Aqueles com memórias longas compreendem que houve períodos anteriores de subdesempenho institucional, fracasso e adaptação no contexto de ordens particulares. Os papéis e responsabilidades do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial mudaram consideravelmente desde a sua criação; o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio deu lugar à Organização Mundial do Comércio após a Guerra Fria; acordos ad hoc surgiram frequentemente para complementar, em vez de substituir, os organismos existentes em questões como a proliferação nuclear. Visto contra este precedente, a COVID-19 pode simplesmente estimular um período de reforma e evolução institucional muito necessário, em vez de um novo começo. De facto, longe de destruir a ordem existente, a COVID-19 poderia impulsionar a sua reforma e renovação.

Talvez essa ordem seja um pouco mais restrita do que era após a Guerra Fria, pois argumenta-se que a chave é diminuir a dependência da China enquanto se aprofunda a cooperação entre as democracias, um regresso a algo como a abordagem de “dois mundos” da era pós-guerra. Embora essa mudança fosse um afastamento significativo da era pós-guerra fria de integração global, levaria de facto os Estados Unidos de volta às suas raízes de construção de ordem, por assim dizer. Poderia a crise forçar uma mudança significativa da ordem mundial, alterando fundamentalmente a forma como os Estados Unidos e outros países vêem e dão prioridade às principais ameaças internacionais? Se a COVID-19 acabar por matar, apenas dentro dos Estados Unidos, um número de pessoas que é em ordem de magnitude muitas vezes superior ao número de pessoas que morreram em 11 de Setembro, então certamente que as ameaças de segurança “suaves” aumentarão de importância em relação aos desafios de segurança “duros” como o terrorismo e a rivalidade geopolítica. Talvez o equilíbrio militar do poder esteja a tornar-se passado, talvez simplesmente não seja tão relevante num mundo em que os pequenos Estados têm frequentemente feito melhor do que os grandes Estados na supressão da pandemia e onde as graves ameaças à prosperidade humana e ao florescimento não respeitam as divisões geopolíticas. Também aqui, porém, a história não é tão simples.

A COVID-19 pode ter elevado a ameaça representada pelas pandemias e outras ameaças não tradicionais. Mas a ameaça colocada por perigos mais tradicionais permanece. A COVID-19 criou novas tentações para os actores autoritários minarem a política e a coesão das sociedades democráticas; poderia muito bem exacerbar o fracasso e a instabilidade do Estado em regiões frágeis em todo o mundo, incluindo o sempre volátil Grande Médio Oriente. A verdadeira retirada da COVID-19 pode ser que as ameaças duras e suaves trabalhem frequentemente em conjunto, potencialmente misturando-se e combinando-se de formas poderosas. A rivalidade geopolítica pode tornar as ameaças transnacionais mais difíceis de combater; as ameaças transnacionais podem acentuar as rivalidades geopolíticas e a instabilidade. A América e outros países não poderão ignorar as ameaças duras ou suaves num mundo pós-COVID-19, porque esses desafios estão profundamente inter-relacionados.

20 Mai 2021

Plano de Pensões de Reforma da China

A comunicação social de Macau anunciou que a partir de 21 de Maio de 2021, os trabalhadores independentes de Hong Kong, Macau e Taiwan podem vir a beneficiar do seguro básico de pensões para colaboradores de empresas de Guangdong, desde que tenham permissão de residência na China, ou sejam residentes locais.
Trabalhadores independentes são trabalhadores sem vínculo a uma empresa, ou trabalhadores em part-time que não descontam para o sistema de pensões, pessoas ligadas a vendas online, etc.

A pensão de reforma básica, facultada pela China aos residentes de Hong Kong, Macau e Taiwan não só passou a abranger os trabalhadores independentes, como também quem não tem trabalho. Quem tiver uma permissão de residência na China, passa a ser abrangido pelo Plano de Pensões de Reforma da China (PPRC).

Para os residentes de Macau, é mais vantajoso participar no PPRC como trabalhadores independentes, porque a maioria já está vinculada ao plano de Pensões de Macau (PPM). Com a possibilidade de virem a beneficiar de mais um apoio ao abrigo do PPRC, podem obter duas pensões de reforma. Actualmente, os contribuintes podem participar simultaneamente nos planos de reforma da China e de Macau.

Embora ambos os planos prevejam a protecção da população durante a reforma, os seus conteúdos divergem. O PPRC tem certas regras. Por exemplo, este plano esta vedado a quem tenha atingido os 60 anos. Os contribuintes que participem no PPRC são subsidiados em 65 por cento pelo Governo chinês e esta contribuição deverá de ser feita ao longo de 15 anos. Caso não se atinja os 15 anos de contribuições, a pensão diminui. É um princípio justo.

Actualmente, a contribuição máxima é de RMB$150. No final dos 15 anos a pessoa descontou RMB$27,000, e o Governo chinês contribui com 65 por cento deste valor, ou seja com RMB$17,550. Assim, após este período, o contribuinte acumula RMB$44,550. De acordo com este regulamento, as pessoas devem começar a descontar para este plano pelo menos aos 45 anos para perfazerem os 15 anos de contribuições.

Se um residente de Macau tem 50 anos quando começar a participar no PPRC, só pode contribuir durante 10 anos. Neste caso, pode pagar os 5 anos que ficam em falta, mas o Governo chinês não subsidia este período, ou seja, dos 15 anos de contribuições, o Governo só participa em 10.

Quem for participar neste plano, vai certamente querer saber quando e quanto virá a receber. O PPRC estipula que as pessoas começam a receber a partir dos 60 anos. Por outras palavras, este plano está dividido em duas partes, a primeira no valor de RMB$460 mensais, que representa um pagamento fixo. A segunda parte será retirada das contribuições efectuadas ao longo do tempo. Esta parte varia de acordo com o valor acumulado. Actualmente, o PPRC prevê que a pensão seja paga durante 139 meses. Ao longo de 15 anos, o contribuinte acumulou RMB$44550.

Este valor retirado ao longo de 139 meses, transforma-se numa verba mensal de RMB$320.5, à qual será adicionada a verba fixa que consta da primeira parte do plano, de RMB$460, sendo o total de RMB$780.5.

Não será um grande montante, mas não nos esqueçamos que ao longo dos 15 anos de contribuição, as pessoas apenas pagam mensalmente RMB$150, o que no total perfaz RMB$27,000. No entanto, nos 139 meses que se seguem ao seu 60º aniversário, passam a receber RMB$780.5 por mês. Durante este período podem receber RMB$108489.5, um ganho extra de RMB$81489.5, a taxa de retorno é quatro vezes superior ao investimento.

Actualmente, o Plano de Pensões para os residentes de Macau implica uma contribuição mensal de 900 patacas. A partir dos 65 anos, passam a receber 3740 patacas por mês. Se também vierem a participar no PPRC, recebem 3740 patacas do Plano de Reforma de Macau e RMB$780.5 do Plano de Reforma da China.

Os atractivos do PPRC vão depender da situação financeira de cada pessoa. Após a reforma, deixamos de receber salários mas temos de continuar a viver. É por este motivo que é necessário estarmos preparados para este período das nossas vidas. As contribuições que fizermos hoje vão reverter-se em ganhos futuros, e este é o objectivo do PPRC.

Não podemos apenas depender do Governo para garantir a nossa reforma. Todos têm a responsabilidade de preparar este período das suas vidas. Quanto mais cedo começarmos, mais próspera será a nossa vida nos anos vindouros. Este plano permite aos residentes de Macau virem a ter duas pensões de reforma. É um possibilidade importante e rara. Do ponto de vista da China, o PPRC ajuda a promover a integração de Macau na Área da Grande Baía e a aumentar o sentimento de pertença dos habitantes da cidade à China. Isto também explica porque é que cada vez mais instituições de Macau têm manifestado recentemente o seu desejo de ajudar os residentes a aderir ao PPRC.

 

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

18 Mai 2021

19 anos de fome pode dar novo confinamento

De norte a sul o país vestiu-se de verde para comemorar ao fim de 19 anos a vitória, diga-se merecida, do Sporting como campeão nacional de futebol. Há milhares de jovens que nunca tinham tido a sensação de ver o seu clube ser o número um. Fizeram parte de claques, gritavam, viajaram a acompanhar os “leões”, invadiram a academia de Alcochete e foram para tribunal depois de agredirem jogadores, treinadores e equipa médica, tiveram os mais diferentes presidentes e treinadores e afinal, durante 19 anos apenas choraram. Desta vez foi diferente: chegaram à loucura. De manhã cedo já estavam ao redor do estádio de Alvalade com os cachecóis e bandeiras, sem pensar que o Boavista podia estragar a festa. Vá lá, que um golinho do único avançado que deixou de saber marcar golos, o Paulinho, foi o suficiente para que o país esteja a falar de tudo o que se passou. A festa foi enorme, mas não se tem falado em outra coisa sobre o aspecto de uma festa deste género em estado de calamidade. O coronavírus não joga à bola mas rola por todo o lado e os responsáveis e especialistas pela Saúde sabem perfeitamente que o perigo espreita a todo o momento se entrarmos numa espiral de desleixo. As autoridades do país, sejam elas camarárias, dirigentes do Sporting e Direcção-Geral de Saúde é que têm a culpa do descalabro que se assistiu. Realizou-se uma reunião com as referidas entidades e a Polícia de Segurança Pública (PSP) e esta alvitrou que a festa se realizasse apenas no interior do estádio do Sporting, com um número limitado de adeptos e com o teste rápido feito à entrada. A proposta da PSP foi rejeitada. E aqui é que está o busílis. Mais ainda: a PSP recomendou que o autocarro dos sportinguistas não percorresse as ruas de Lisboa para evitar os ajuntamentos e a possibilidade de propagação da covid-19 ou de qualquer variante do vírus que anda por aí. Como é que foi possível autorizar no exterior do estádio a instalação de ecrãs gigantes para que a multidão visse o jogo? Porque não se fizeram avisos com antecedência de que seria proibido o ajuntamento de público junto ao estádio? Quem permitiu a venda de bebidas alcoólicas junto ao estádio tendo provocado como consequência que arruaceiros atirassem com garrafas e pedras aos agentes policiais?

Naturalmente que estes responderam em força e os confrontos foram uma vergonha que manchou a chamada festa. Quanto ao ministro da Administração interna, que só tem feito asneiras, desta vez devemos tirar-lhe o chapéu porque a sua PSP fez tudo para evitar multidões que pudessem propagar o vírus. E o ministro não tinha a certeza do resultado do encontro. O Boavista podia vencer e não havia razão nenhuma para ajuntamentos sem máscara de protecção e muito menos sem distanciamento físico.

O Presidente Marcelo veio meter-se no assunto a posteriori. A que propósito? Tinha de ter tomado medidas sérias muito antes dos acontecimentos. E pede responsabilidades. A quem? Aos ministros da Saúde e da Administração Interna? E por que não aqueles que têm proibido a presença de público nos estádios de uma forma organizada e em número reduzido? Desta vez, Marcelo está mal a pedir a cabeça de alguém porque a culpa é simplesmente de quem não aceitou as propostas da PSP e aí, meus caros, temos alguma informação que os dirigentes do Sporting é que quiseram a bagunça a que se assistiu porque teriam o receio de uma invasão do relvado no final do jogo e que pudesse contaminar alguns jogadores. Balelas, porque os jogadores andam por todo o lado incluindo centro comerciais. O que se passou nos festejos verdes não foi nenhuma brincadeira, foi algo de muito sério porque passadas duas semanas iremos ver o resultado da pandemia no que respeita a infectados. Para já, no sábado o número já tinha aumentado para cerca de 500 infectados relativamente ao dia anterior e para sete óbitos quando antes dos festejos não se verificava nenhuma morte. Se temos no país ainda vários lugares em cerco sanitário e com elevado número de pessoas infectadas, como foi possível permitir que milhares de adeptos leoninos se juntassem daquele modo?

Os 19 anos sem ganhar um campeonato nacional tinha de ter sido festejado com bom senso e mostrar que o respeito pelos seus concidadãos tinha de ser a pedra de toque, não vá o caso resultar em novo confinamento geral, pelo menos na região de Lisboa.

O Sporting sempre foi um grande clube, tem história, há muitos anos ganhava campeonatos em anos seguidos, mereceu ser campeão este ano, mas os seus dirigentes não estiveram à altura do momento pandémico que todos vivemos e só por isso não enviamos um viva ao Sporting.

*Texto escrito com a antiga grafia

17 Mai 2021

Quem tem a última palavra sobre o futuro de Macau?

Na sessão de consulta exclusivamente destinada aos Deputados da Assembleia Legislativa sobre o Projecto do Plano Director da Região Administrativa Especial de Macau (2020-2040), lançado em Setembro de 2020, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas revelou que o Governo da RAEM propôs ao Governo Central a suspensão do projecto de aterro da Zona D dos Novos Aterros Urbanos, passando a construir uma zona entre a Zona A dos novos aterros urbanos e a Península de Macau, com o objectivo de criar espaços verdes. Assim, a área do aterro foi reduzida de 58 para 41 hectares. Quando questionado sobre a suspensão do projecto de aterro da Zona D, o Chefe do Executivo declarou que Macau terá território suficiente nos próximos 20 anos e que a proposta para suspensão do projecto de aterro da Zona D aguarda a aprovação do Governo Central.

Assim que esta notícia foi divulgada, os membros do Conselho do Planeamento Urbanístico manifestaram de imediato o seu apoio à suspensão do projecto de aterro da Zona D, e os representantes da União Geral das Associações dos Moradores de Macau e da Associação de Construtores Civis e Empresas de Fomento Predial de Macau também se mostraram favoráveis ao projecto num programa de rádio. Na sessão de consulta pública exclusiva ao público, interroguei os responsáveis sobre o motivo da suspensão do projecto de aterro da Zona D. Em resposta, o Chefe do Departamento de Planeamento Urbanístico da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) alegou que a decisão tinha sido tomada para protecção dos ecossistemas da marina de Macau e da paisagem circundante.

Os principais pontos da minha intervenção na sessão de consulta pública exclusiva ao público, foram os seguintes, “A publicação do documento de consulta do Plano Director da Região Administrativa Especial de Macau (2020-2040) visa sondar a opinião da população. Mas, infelizmente, enquanto o documento de consulta esteve a circular, o Governo da RAEM afirmou que tinha proposto ao Governo Central a suspensão do projecto de aterro da Zona D dos Novos Aterros Urbanos, passando a construir uma área entre a Zona A dos novos aterros urbanos e a Península de Macau. Isto fez com que o projecto de aterro da Zona D, transformado em documento de consulta, deixasse de existir. Desta forma, estamos perante uma ‘notificação’ pública ou perante uma ‘consulta’ pública? A criação das cinco novas zonas urbanas em Macau foi oficialmente aprovada pelo Conselho do Estado em 2009, como um “presente” para assinalar o 10.º aniversário do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. Em 2010, Wen Jiabao, o primeiro- ministro da República Popular da China ao tempo, veio pessoalmente a Macau para analisar o plano do Governo da RAEM para a criação das novas zonas urbanas através de aterro. Como é que uma decisão tão importante pode ser agora ignorada com tanta ligeireza?”

Se recuarmos a Setembro de 2020, quando o Governo da RAEM ousou propor ao Governo Central a suspensão do projecto de aterro da Zona D, a maior parte das pessoas acreditou que o Governo local tinha um certo grau de certeza na aprovação do projecto. Caso contrário não faria uma proposta que pretende reverter uma decisão do Governo Central. Eu fui o único que, na sessão de consulta pública exclusiva ao público, se opôs à suspensão do projecto de aterro da Zona D.

Sem o consentimento do Governo Central, o projecto de aterro da Zona D mantém-se, enquanto o plano de construir uma área entre a Zona A dos novos aterros urbanos e a Península de Macau através de aterro será suspenso temporariamente.

Sou um grande defensor da protecção ambiental, e o projecto de aterro vai ter necessariamente impacto nos ecossistemas da marina de Macau, particularmente nos residentes do Edifício Ocean Garden, devido ao projecto de aterro da Zona C dos Novos Aterros Urbanos. Mas, na realidade, muitos dos terrenos de Macau foram obtidos através do aterro. O projecto de aterro das cinco novas zonas urbanas já arrancou, então porque é que o plano de aterro da Zona D teve de ser cancelado ou adiado? A razão é simples. Macau terá terrenos suficientes nos próximos 20 anos. Além disso, um aterro em grande escala requer o investimento de grandes somas do erário público, enquanto a construção de um grande número de edifícios residenciais vai provocar o rebentamento da bolha do sector do imobiliário de Macau. Do ponto de vista da economia deste sector, a suspensão do projecto de aterro da Zona D dos Novos Aterros Urbanos é uma boa decisão, o que vai implicar o adiamento da construção das habitações públicas.

Quanto ao Governo Central, a sua maior preocupação nos próximos 20 anos não é a RAE de Macau, mas sim o papel de Macau na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau depois de 2049. As cinco novas zonas urbanas não são apenas um presente do Governo Central à RAEM, mas também uma aposta estratégica no desenvolvimento futuro de Macau. Desta forma, o projecto de aterro da Zona D pode ser adiado, mas terá de ser realizado porque constitui uma decisão política. O Governo Central tem sempre a última palavra no que respeita ao futuro de Macau!

14 Mai 2021

Turismo e Covid-19

“The travel industry worldwide has been dealt a vicious blow by COVID-19. The industry will recover, but travel will never be the same again, and the year 2020 will be a defining moment in the history of the tourism sector. As COVID-19 has painfully demonstrated, travel can play a critical role in the spread of new infectious diseases. Likewise, the increased globalization of tourism means that the industry is uniquely vulnerable to the disruption these disasters can cause.”
Simon Hudson
COVID-19 & Travel: Impacts, Responses and Outcomes

 

O turismo proporciona meios de subsistência a milhões de pessoas e permite a milhares de milhões mais apreciar as suas diferentes culturas, bem como o mundo natural. Para alguns países, pode representar mais de 20 por cento do seu PIB e, globalmente, é o terceiro maior sector de exportação da economia global. O turismo é um dos sectores mais afectados pela pandemia da COVID-19, impactando economias, meios de subsistência, serviços públicos e oportunidades em todos os continentes. Embora a manutenção dos meios de subsistência dependentes do sector deva ser uma prioridade, a reconstrução do turismo é também uma oportunidade de transformação, com vista no aproveitamento do seu impacto nos destinos visitados e na construção de comunidades e empresas mais resilientes através da inovação, digitalização, sustentabilidade, e parcerias.

De acordo com dados de 2019, o turismo gerou 7 por cento do comércio mundial, empregou uma em cada dez pessoas a nível mundial e através de uma complexa cadeia de valor de indústrias interligadas, forneceu meios de subsistência a milhões de pessoas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Com o encerramento das fronteiras, os hotéis fecharam e as viagens aéreas caíram drasticamente, as chegadas de turistas internacionais diminuíram 56 por cento e perderam-se trezentos e vinte mil milhões de dólares em exportações do turismo nos primeiros cinco meses de 2020, o que representou três vezes mais que a perda durante a Crise Económica Global de 2009. Os governos estão a lutar para compensar a perda de receitas necessárias para financiar serviços públicos, incluindo a protecção social e ambiental, e cumprir os prazos de pagamento da dívida.

Os cenários para o sector indicam que o número de turistas internacionais poderia diminuir de 58 por cento para 78 por cento em 2020, o que se traduziria numa queda nos gastos dos visitantes de 1,5 triliões de dólares em 2019 para entre 310 e 570 mil milhões de dólares em 2020, colocando em risco mais de cem milhões de empregos no turismo directo, muitos deles em micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) que empregam uma elevada percentagem de mulheres e jovens. Os trabalhadores informais são os mais vulneráveis. Nenhum país escapou à dizimação do seu sector turístico, desde Itália, onde o turismo representa 6 por cento do PIB do país, até Palau, onde gera quase 90 por cento de todas as exportações. Esta crise é um grande choque para as economias desenvolvidas e uma emergência para as pessoas mais vulneráveis e para os países em desenvolvimento.

O impacto nos pequenos Estados insulares em desenvolvimento (PEID), países menos desenvolvidos (PMD) e muitas nações africanas é motivo de preocupação. Em África, o sector representava 10 por cento de todas as exportações em 2019. Os impactos da COVID-19 no turismo ameaçam aumentar a pobreza quanto aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS1) e a desigualdade (ODS10) e inverter os esforços de conservação da natureza e da cultura. A pandemia também corre o risco de abrandar o progresso no sentido dos ODS. O turismo é directamente referenciado em três objectivos: ODS8 “trabalho decente e crescimento económico”, ODS12 “consumo e produções responsáveis” e ODS14 “vida na água”. Para as mulheres, comunidades rurais, povos indígenas e muitas outras populações historicamente marginalizadas, o turismo tem sido um veículo de integração, empoderamento e fonte de rendimentos. Permitiu a prestação de serviços em locais remotos, apoiou o crescimento económico das zonas rurais, proporcionou acesso a formação e emprego, e muitas vezes transformou o valor que as comunidades e sociedades atribuem ao seu património cultural e natural.

A ligação do turismo a tantas outras áreas da sociedade significa que esta crise também põe em risco a contribuição do sector para outras ODS, tais como a igualdade de género (ODS5) ou a redução das desigualdades entre e dentro dos países (ODS10). O turismo relacionado com a natureza e os oceanos é uma importante motivação para viajar e fonte de receitas. Um inquérito de 2015 da Organização Mundial do Turismo (OMT) determinou que catorze países africanos geram uma estimativa de cento e quarenta e dois milhões de dólares em taxas de entrada em áreas protegidas. O encerramento das actividades turísticas significou meses sem rendimentos para muitas áreas protegidas e para as comunidades que vivem à sua volta, muitas delas altamente dependentes do turismo para sobreviver e sem acesso a redes de segurança social. A perda de rendimentos do turismo põe ainda mais em perigo a biodiversidade das áreas protegidas e de outras áreas conservadas, onde se realiza a maior parte do turismo de vida selvagem. Sem oportunidades alternativas, as comunidades podem recorrer à sobre-exploração dos recursos naturais, quer para consumo próprio quer para criar rendimentos.

Ao mesmo tempo, o sector do turismo tem uma elevada pegada climática e ambiental, exigindo um forte consumo de energia e combustível que coloca stress nos sistemas terrestres. O crescimento do turismo ao longo dos últimos anos pôs em risco a realização dos objectivos do Acordo de Paris. As emissões de gases com efeito de estufa relacionada com os transportes provenientes do turismo foram estimadas em 5 por cento de todas as emissões de origem humana e poderão recuperar drasticamente se a recuperação do sector não estiver alinhada com os objectivos climáticos. A riqueza global de tradições, cultura e diversidade estão entre as principais motivações para as viagens.

O impacto da COVID-19 no turismo coloca mais pressão sobre a conservação do património no sector cultural, bem como sobre o tecido cultural e social das comunidades, particularmente os povos indígenas e grupos étnicos. Por exemplo, com o encerramento dos mercados de artesanato, produtos e outros bens, as receitas das mulheres indígenas têm sido particularmente afectadas.

As organizações culturais também viram as suas receitas cair a pique. Durante a crise, 90 por cento dos países foram total ou parcialmente fechados como Património Mundial, e cerca de oitenta e cinco mil museus foram temporariamente encerrados. O turismo, um sector construído na interacção entre as pessoas, é um dos principais veículos para a promoção da cultura e para o avanço do diálogo e compreensão interculturais. À medida que as viagens recomeçam em algumas partes do mundo, a conectividade limitada e a fraca confiança dos consumidores, a evolução desconhecida da pandemia e o impacto da recessão económica apresentam desafios sem precedentes para o sector do turismo. Apoiar os milhões de meios de subsistência que dependem de um sector afectado por meses de inactividade, e construir uma experiência de viagem sustentável e responsável que seja segura para as comunidades de acolhimento, trabalhadores e viajantes são fundamentais para acelerar a recuperação.

Esta crise é também uma oportunidade sem precedentes para transformar a relação do turismo com a natureza, o clima e a economia. É tempo de repensar o impacto do sector nos nossos recursos naturais e ecossistemas, com base no trabalho existente sobre o turismo sustentável; de examinar como interage com as nossas sociedades e outros sectores económicos; de o medir e gerir melhor; de assegurar uma distribuição justa dos seus benefícios e de fazer avançar a transição para uma economia turística neutra e resistente ao carbono. Uma resposta colectiva e coordenada de todos os intervenientes pode estimular a transformação do turismo, juntamente com pacotes de recuperação económica, e investimentos na economia verde. A crise COVID-19 é um momento crítico para alinhar o esforço de sustentar os meios de subsistência dependentes do turismo com os ODS e assegurar um futuro mais resiliente, inclusivo, neutro em carbono e eficiente em termos de recursos.

O aproveitamento da inovação e digitalização, abraçando valores locais, e a criação de empregos decentes para todos, especialmente para os jovens, mulheres e grupos mais vulneráveis nas sociedades, poderia ser a frente e o centro da recuperação do turismo. Para tal, o sector precisa de avançar nos esforços para construir um novo modelo que promova parcerias, coloque as pessoas anfitriãs no centro do desenvolvimento, promova políticas baseadas em provas e investimentos e operações neutras em carbono. A ONU através da OMT propôs um guia para transformar o turismo e que necessita de abordar cinco áreas prioritárias sendo a primeira como gerir a crise e mitigar os impactos socioeconómicos sobre os meios de subsistência, particularmente sobre o emprego das mulheres e a segurança económica e para tal terão de ser implementadas soluções e respostas graduais e coordenadas para proteger os meios de subsistência, empregos, rendimentos e empresas; criar confiança através da segurança em todas as operações turísticas e reforçar as parcerias e a solidariedade para a recuperação socioeconómica, dando prioridade à inclusão e à redução das desigualdades.

A segunda seria impulsionar a competitividade e construir a resiliência, apoiando o desenvolvimento de infraestruturas turísticas e serviços de qualidade em toda a cadeia de valor do turismo; facilitar os investimentos e construir um ambiente empresarial favorável para as MPME locais, diversificar produtos e mercados, e promover o turismo doméstico e regional sempre que possível. A terceira seria avançar a inovação e a digitalização do ecossistema turístico com pacotes de recuperação e futuros desenvolvimentos turísticos poderiam maximizar a utilização da tecnologia no ecossistema turístico, promover a digitalização para criar soluções inovadoras e investir em competências digitais, particularmente para trabalhadores temporariamente sem uma ocupação e para pessoas à procura de emprego. A quarta seria fomentar a sustentabilidade e o crescimento verde inclusivo sendo importante que o turismo mude para um sector resiliente, competitivo, eficiente em termos de recursos e neutro em termos de carbono, em conformidade com os objectivos e princípios do Acordo de Paris sobre Alterações Climáticas e da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável de 2030. Os investimentos verdes para recuperação poderiam visar áreas protegidas, energias renováveis, edifícios inteligentes e a economia circular, entre outras oportunidades.

O apoio financeiro e de ajuda dos governos às indústrias de alojamento, cruzeiros e aviação poderia também garantir a proibição de práticas poluidoras insustentáveis. A quinta área seria a coordenação e parcerias para transformar o turismo e alcançar os ODS sendo necessárias abordagens e alianças mais ágeis para se avançar para um futuro resiliente e objectivos globais. A Comissão de Crise Global do Turismo da OMT uniu o sector do turismo para formular uma resposta sectorial ao desafio sem precedentes da pandemia da COVID-19. Uma coordenação eficaz para planos e políticas de reabertura e recuperação poderia considerar colocar as pessoas em primeiro lugar, envolvendo governos, parceiros de desenvolvimento e instituições financeiras internacionais para um impacto significativo nas economias e meios de subsistência. É de lembrar que estão em risco cem a cento e vinte milhões de empregos no turismo directo; perda de mais de novecentos e dez mil milhões de dólares para 1,2 triliões de dólares em exportações provenientes do turismo – despesas dos visitantes internacionais; a perda de 1,5 por cento a 2,8 por cento do PIB global; a salvação para os países menos desenvolvidos (LDCs na sigla inglesa), países menos desenvolvidos (PMDs) e muitos países africanos em que o turismo representa mais de 30 por cento das exportações para a maioria dos SIDS e 80 por cento para alguns.

O Secretário-Geral da ONU, António Guterres quando tomou posse a 1 de Janeiro de 2017, afirmou que é imperativo que reconstruamos o sector turístico. O turismo é um dos sectores económicos mais importantes do mundo. Emprega uma em cada dez pessoas na Terra e dá sustento a centenas de milhões de pessoas mais. Impulsiona as economias e permite que os países prosperem. Permite às pessoas experimentarem algumas das riquezas culturais e naturais do mundo e aproxima as pessoas umas das outras, destacando a nossa humanidade comum. De facto, poder-se-ia dizer que o turismo é em si mesmo uma das maravilhas do mundo. É por isso que tem sido tão doloroso ver como o turismo tem sido devastado pela pandemia da COVID-19. Nos primeiros cinco meses de 2020 no estudo da ONU de Agosto do mesmo ano, as chegadas de turistas internacionais diminuíram em mais de metade e perderam-se cerca de trezentos e vinte mil milhões de dólares em exportações do turismo. No total, cerca de cento e vinte milhões de empregos directos no turismo estão em risco. Muitos estão na economia informal ou em micro, pequenas e médias empresas, que empregam uma elevada proporção de mulheres e jovens. A crise é um grande choque para as economias desenvolvidas, mas para os países em desenvolvimento, é uma emergência, particularmente para muitos pequenos Estados insulares em desenvolvimento e países africanos. Para as mulheres, comunidades rurais, povos indígenas e muitas outras populações historicamente marginalizadas, o turismo tem sido um veículo de integração, empoderamento e geração de rendimentos.

O turismo é também um pilar fundamental para a conservação do património natural e cultural. A queda nas receitas tem levado a um aumento da caça furtiva e da destruição de habitats em áreas protegidas e em seu redor, e o encerramento de muitos “Sítios do Património Mundial” tem privado as comunidades de meios de subsistência vitais. A imperatividade da reconstrução do turismo tem de ser de uma forma segura, equitativa e amiga do clima. As emissões de gases com efeito de estufas relacionadas com os transportes poderão recuperar drasticamente se a recuperação não estiver alinhada com os objectivos climáticos. Apoiar os milhões de meios de subsistência que dependem do turismo significa construir uma experiência de viagem sustentável e responsável que seja segura para as comunidades de acolhimento, trabalhadores e viajantes. Para ajudar à recuperação, são identificáveis cinco áreas prioritárias sendo a primeira, mitigar os impactos socioeconómicos da crise. A segunda construir resiliência em toda a cadeia de valor do turismo. A terceira maximizar a utilização da tecnologia no sector do turismo. A quarta promover a sustentabilidade e o crescimento verde e a quinta, fomentar parcerias que permitam ao turismo continuar a apoiar os ODSs.

É necessário que o turismo recupere a sua posição como fornecedor de empregos decentes, rendimentos estáveis e a protecção do nosso património cultural e natural. A mensagens-chave é de que a reconstrução do turismo é uma prioridade, mas o sector deve tornar-se mais sustentável e resiliente no futuro. O turismo continua a ser um dos sectores mais duramente atingidos pela pandemia do coronavírus e as perspectivas continuam a ser altamente incertas. A OCDE espera que o turismo internacional diminua cerca de 80 por cento em 2020. Os destinos que dependem fortemente do turismo internacional, de negócios e de eventos são particularmente difíceis, com muitas zonas costeiras, regionais e rurais a terem melhores resultados do que as cidades. As notícias encorajadoras sobre vacinas impulsionaram as esperanças de recuperação, mas os desafios permanecem, prevendo-se que o sector permaneça em modo de sobrevivência durante 2021.

O turismo doméstico recomeçou e está a ajudar a mitigar o impacto sobre o emprego e as empresas em alguns destinos. Contudo, a recuperação real só será possível quando o turismo internacional regressar. Isto requer cooperação global e soluções baseadas em provas para que as restrições de viagem possam ser levantadas em segurança. A sobrevivência das empresas em todo o ecossistema turístico está em risco sem apoio contínuo do governo e embora os governos tenham tomado medidas impressionantes para amortecer o golpe no turismo, para minimizar a perda de empregos e para construir a recuperação em 2021 e mais além, é necessário fazer mais, e de uma forma mais coordenada. As principais prioridades políticas incluem, restabelecer a confiança dos viajantes; apoio às empresas de turismo para se adaptarem e sobreviverem; promover o turismo interno e apoiar o regresso seguro do turismo internacional; fornecer informação clara a viajantes e empresas, e limitar a incerteza (na medida do possível); medidas de resposta evolutivas para manter a capacidade no sector e colmatar as lacunas nos apoios; reforçar a cooperação dentro e entre países e construir um turismo mais resiliente e sustentável.

13 Mai 2021

A insatisfação conjugal e os desafios do divórcio chinês

Na China um inquérito indicou que cerca de 20 por cento das mulheres estão arrependidas por se terem casado. Os números da insatisfação têm aumentado ano após ano. Talvez um ano de pandemia tenha ajudado a esta tendência. Não houve ano mais exigente para as mães e esposas que andaram em malabarismos entre tarefas e trabalhos. Os valores de insatisfação, por sua vez, não se reflectem da mesma forma nos homens. Os homens parecem estar muito satisfeitos. A razão? Os desequilíbrios na divisão de tarefas conjugais está claramente a tender para um lado. A mulher chinesa moderna tem um emprego, ao mesmo tempo que cuida da casa, dos filhos e dos pais.

Para um jovem chinês a pressão para se casar e ter filhos começa logo depois da universidade, quando até lá era “proibido” namorar. As políticas que estimulam a natalidade também estão orientadas para esta visão pró-casamento. O envelhecimento da população é cada vez mais óbvio. A necessidade de manter uma geração trabalhadora exige muito casamento, família e filhos. Agora – mudam-se os tempos e as vontades, e num contexto em que as mulheres têm cada vez mais espaço no tecido empresarial, a família e a procriação podem só ser mais uma tarefa para sobrecarregar a vida, e não um propósito de existência.

Aliada a esta tendência para a insatisfação, os divórcios têm aumentado. O governo chinês, preocupado com estes números, implementou um período de reflexão obrigatório de 30 dias a quem queira divorciar-se. Implementado a 1 de Janeiro de 2021, imensos casais apressaram-se a divorciar para não serem apanhados por esta exigência. A ideia não é nova – parece que a Coreia do Sul já a tem implementada desde 2005, variando os períodos dependendo das localidades. A investigação em contexto coreano mostra que há casais que acabam por desistir do processo. As teorias que sustentam um período de reflexão obrigatório acreditam que as pessoas se precipitam a tomar decisões.

Da mesma forma que as pessoas não devem ir ao supermercado com fome, porque vão comprar muito para além do que é suposto, as pessoas no calor da discussão não conseguem racionalizar o divórcio. O estado chega-se à frente na criação de condições para se acalmarem os ânimos. Se resulta em casamentos mais felizes, isso é que a investigação longitudinal poderá elucidar – mas não vi que existisse.

Já sabemos que este é um estado que tende a meter-se nos assuntos da esfera privada, mas nem é muito consistente nesta intromissão. Se há um período de reflexão para o divórcio porque não existe um para o casamento? Não se tomam decisões sobre o casamento de cabeça apaixonada? O que estas leis estão a querer insinuar é que está tudo bem se te casares e tiveres filhos sem grande reflexão. O divórcio, esse que destrói a sagrada união matrimonial e familiar, tem que ser evitado, ou pelo menos, racionalizado. Principalmente se existem filhos envolvidos. Os teóricos a favor deste mecanismo frequentemente referem a sua preocupação pelo bem-estar dos filhos – e que filhos de casais divorciados são mais infelizes e têm mais problemas, etecetera. E períodos de reflexão para quem planeia ter filhos?

Nestes tempos a ênfase no casamento talvez já não faça o mesmo sentido como antigamente. As pessoas vêem que há legitimidade para querer outras coisas. As preocupações sociais fazem pressão por uma visão do casamento, e da família, intacta e em prol do desenvolvimento. Talvez valha a pena reformular o paradigma. E se a preocupação for o bem-estar? O individual e o colectivo. Talvez, se não existir tanta pressão para casar, não existirão tantos divórcios. E se se trabalhar a igualdade de género? E se se permitir o casamento homossexual? E a adopção? E se se normalizar a terapia de casal? Tudo opções que podem ser bem mais eficazes na promoção do bem-estar e na promoção da família – que não tem que ser única nem prototípica. Talvez seja bem mais eficaz dar espaço para as várias constelações familiares surgirem. Todos têm a ganhar.

12 Mai 2021

Nova administração americana renuncia às patentes das vacinas

No passado dia 5, o Governo dos Estados Unidos anunciou que vai renunciar às patentes das vacinas contra a COVID. A seguir a este anúncio, os preços da BioNTech, da Novavax e da Ocugen baixaram.

A Representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai, fez o comunicado, salientando que, com esta decisão, se pretende produzir vacinas seguras e eficazes que possam pôr fim à epidemia do novo coronavírus. Katherine Tai adiantou que o Governo vai continuar a reforçar a cooperação com o sector privado e com todos os potenciais parceiros, de forma a aumentar o fornecimentos de matérias primas necessárias e a produção das vacinas. Para além disto, a distribuição também vai acelerar.

Os Estados Unidos tomaram esta decisão a pedido de vários países, liderados Índia e pela África do Sul, que repetidamente apelaram à Organização Mundial do Comércio para retirar provisoriamente os direitos de patente das vacinas. Os apoiantes acreditam que esta medida vai ajudar os países em desenvolvimento a aumentar a sua produção de vacinas.

A decisão dos Estados Unidos representa um marco na cooperação global ao nível da vacinação. À medida que a vacinação vai acelerando nos Estados Unidos, o Governo começou a estar menos preocupado com a questão doméstica e a prestar mais atenção aos problemas que os outros países enfrentam, manifestando o desejo de os apoiar. Esta medida vai permitir que mais pessoas sejam vacinadas a nível global e vai fazer diminuir o fosso entre os países ricos e os países pobres. Vem também dar resposta ao pedido dos cientistas para que a população mundial seja vacinada o mais rapidamente possível, de forma a evitar o aparecimento de mais variantes do vírus resistentes a estas vacinas. Esta ameaça fez com que um número cada vez maior de pessoas passassem a apoiar a abolição dos direitos de patente.

Os laboratórios e os países que se opõem a esta medida insistem que as patentes não são um obstáculo para a expansão da produção de vacinas, e avisam que a abolição do direito de patente pode desmotivar os cientistas a prosseguir com as investigações em situações futuras.

Todos compreendemos que o acesso equitativo às vacinas levanta questões éticas e económicas. Partimos do princípio de que todos temos apenas uma vida e de que todos as vidas são igualmente importantes, sejamos ricos ou pobres, seja qual for a nossa nacionalidade. No entanto, este é apenas um princípio ideal, porque se vivermos num país rico vamos ser de certeza mais rapidamente vacinados. O aviso dos cientistas é muito claro. Os vírus sofrem mutações. As vacinas que temos hoje combatem as diversas mutações existentes, mas quem pode garantir que vão combater as futuras mutações? É vital criar imunidade global antes que surjam variantes para que não estamos preparados. Para isso é preciso proteger a saúde de todos.

A investigação e desenvolvimento das vacinas tem naturalmente um custo. Os Laboratórios investem somas enormes. Sem este investimento e este esforço não haveria vacinas. Se as patentes forem abolidas, a indústria farmacêutica vai ser muito afectada. E em que pé ficará a investigação sobre novos medicamentos para tratar a COVID e a investigação sobre as novas variantes do vírus? Neste contexto, que futuro nos espera?

Existem muitos apoiantes da decisão do Governo americano, mas a maior parte deles não está ligada à indústria farmacêutica. Se a indústria deixar de ser tão lucrativa pode começar a desinvestir na investigação. É difícil termos o melhor de dois mundos. Qual a melhor solução? Talvez o Governo dos EUA pudesse considar compensar financeiramente os Laboratórios pelas perdas sofridas com a abolição das patentes. Claro que esta opção iria ter muitos críticos, porque o dinheiro do Governo vem dos contribuintes, pelo que seriam estes a pagar os direitos de patente à indústria farmacêutica e, em última análise, estes direitos continuariam a existir.

Outro método mais exequível seria o Governo através de negociações convencer a indústria farmacêutica a aceitar reduções dos direitos das patentes. No entanto, em quanto deveria consistir essa redução, qual a forma de redução e quando deveria ser feita, são questões de difícil resposta. Seriam certamente negociações complicadas.

A abolição dos direitos de patente das vacinas representa uma decisão corajosa e difícil. É uma decisão que recebe o aplauso dos apoiantes do Governo e as críticas dos seus opositores.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog:http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

11 Mai 2021

A escravatura voltou

Índia, Bangladesh, Nepal, Marrocos, Malásia, Afeganistão, Tailândia, Paquistão, China, Moldávia são alguns dos países onde existem máfias organizadas para o tráfico de mulheres e homens para trabalharem na agricultura em Portugal. Há muitos anos que assistimos á vergonhosa situação proporcionada pelas redes ilegais internacionais que trazem para Portugal milhares de pessoas que têm sido escravizadas e exploradas nos salários. No Alentejo vivem mais de vinte mil imigrantes em condições deploráveis. Alguns, em autênticas barracas ou tendas. Outros, são instalados pelos intermediários em casas sem condições nenhumas, como a inexistência de água canalizada. Há quartos que albergam seis seres humanos. Há garagens onde dormem em beliches doze imigrantes que vêm para a apanha da azeitona e amêndoa, nesta época. A situação varia com as estações do ano e aos escravos podem ser postos a trabalhar na colheita de uvas ou de tomates.

As condições indignas em que vivem os imigrantes são uma vergonha para Portugal. Falámos com um grupo de imigrantes que nos transmitiu que os seus elementos recebem 400 euros por mês, pagam 150 para a renda da cama, gastam 100 euros em comida e o restante é para enviar para a família nos seus países. Na semana passada rebentou a vergonha porque foi descoberta em Odemira uma situação abaixo de todos os limites. Os imigrantes, especialmente as mulheres testaram positivo da covid-19 e residiam dentro de contentores onde fizeram um buraco para o ar poder entrar. E o mais vergonhoso é que se deslocou ao local o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e teve o desplante de anunciar que em primeiro lugar está a saúde pública e não a dos imigrantes, como se os imigrantes não fizessem parte da saúde pública nacional. Houve um advogado que incrivelmente foi proibido de entrar em Odemira por querer defender os direitos dos imigrantes.

Do momento, o governo arranjou uma solução bem demonstrativa de que foi pior a emenda que o soneto. Então, há anos que ninguém se preocupou em construir habitações dignas para os contratados imigrantes e de repente decidiu-se alojar o grande número de imigrantes de Odemira num complexo turístico naturalmente contra a vontade dos proprietários que tinham gasto uma fortuna em preparar tudo para a próxima época de veraneio. Não, assim não se pode compreender como se governa este país. Os imigrantes são enganados no salário que lhes prometem e mais: nos seus países, antes de saírem, têm de pagar entre 10 e 20 mil euros. Uma loucura para gente tão pobre. Começa logo aí a exploração. Chegam a Portugal depois de lhes dizerem que irão ganhar entre 600 e 1000 euros, quando não lhes pagam mais de 400. As autoridades municipais, policiais e governamentais sabem desta situação há anos quando no Alentejo o lago Alqueva começou com o regadio de grandes propriedades.

Os empresários destes imigrantes não estão isentos de culpas, eles é que pagam o salário miserável para um trabalho de sol a sol, eles é que têm os contactos com os intermediários mafiosos que transportam os imigrantes, eles é que sabem que nem água existe nas casas de banho das residências onde instalam os trabalhadores estrangeiros. Isto, é revoltante e terá de ter uma solução. Sabemos que a nossa agricultura necessita de mão-de-obra, mas que se contratem os imigrantes e que se lhes deem as mínimas condições de dignidade humana.

Se eu estivesse a ocupar o cargo de ministro da agricultura tinha-me demitido de imediato assim que as televisões chegaram a Odemira e mostraram aquela miséria sob humana. Uma parte de país, mais no litoral, ficou atónita, não queria acreditar que num quarto dormissem seis pessoas, que nem água tivessem para se lavar ou cozinhar. Os debates televisivos sucederam-se ao longo da semana passada e até ao momento que vos escrevo esta crónica ainda não foi anunciada uma decisão oficial concreta que mude radicalmente a situação dos trabalhadores imigrantes.

Portugal tem milhões de emigrantes espalhados pelos cinco continentes. Já imaginaram o que seria se um português chegasse ao Dubai e fosse metido num barracão de madeira sem água e com mais cinco companheiros? Já imaginaram o crédito negativo que era espalhado pelo mundo contra os árabes? E quem diz no Dubai podemos salientar outra qualquer cidade para onde vão portugueses trabalhar. Até em França já não existe o triste “bidonville”.

O que é mais triste é que assistimos a toda e qualquer manifestação por isto e por aquilo. É o direito ao casamento do mesmo sexo, é a eutanásia, é o não uso de máscara higiénica, mas não vimos nenhuma manifestação ou protesto de um qualquer movimento ou associação dos direitos humanos a deslocarem-se para Odemira e fazerem ouvir a sua voz em defesa daqueles que realizam o trabalho que os portugueses não querem fazer…

*Texto escrito com a antiga grafia

10 Mai 2021

Futuros que tresandam a passado

Há ironias assim: instalou-se no planeta a pandemia de covid-19 pouco tempo depois de ter sido convidado a contribuir com um capítulo para um livro sobre turismo em áreas protegidas do Mediterrâneo na era do “overtourism” (“Mediterranean Protected Areas in the Era of Overtourism”, publicado pela Springer, para quem possa interessar). Ainda não tinha sequer começado quando fui confrontado com esse paradoxo de me propor escrever sobre “demasiado turismo” quando a actividade turística estava bloqueada (ou quase). A solução para o aparente imbróglio havia de ser simples: na realidade, as consequências problemáticas do “turismo a mais” ou do “turismo a menos” têm a mesma origem: o excesso de turismo nas economias locais e regionais. Na origem do convite estava um projecto relativamente longo a que dediquei alguns anos de investigação e que incluiu, entre outros tópicos mais ou menos relacionados, uma análise da relação entre os recursos naturais das regiões europeias e a sua dinâmica turística, quer em termos do número de visitantes, quer em termos do valor acrescentado gerado para as economias locais. Muito frequentemente a procura turística e a riqueza gerada nos destinos estão longe de ser a mesma coisa.

Logo na recolha de informação tive a primeira surpresa, quando compilei os dados sobre a percentagem do território de cada região classificada como zona protegida no âmbito da rede europeia “Natura 2000”, que define regras e critérios comuns para todas as regiões da UE. Apercebi-me então da magnífica liderança das regiões mediterrâneas, sendo relativamente frequente encontrar mais de um terço do território sob a alegada protecção desta forma de classificação e certificação ambiental. Entre as mais de 200 regiões que observei, as que tinham mais de um quarto da sua área inscrita na Rede Natura eram quase todas portuguesas, espanholas, francesas, italianas ou gregas. Não tenho conhecimentos suficientes de biologia para afirmar se esta diferença se deve a efectivas diferenças na biodiversidade e na importância dos recursos naturais de cada região, se é o resultado do excesso de zelo legislativo que é frequentemente reconhecido nesta zona do Sul da Europa e que nos faz ser (re)conhecidos como “os bons alunos” da União Europeia, os pobrezinhos mas honrados europeus que traduzem com mais abnegação do que os legisladores as leis e normativas, mas que pouco ou nenhum poder temos para influenciar. Não me surpreenderia que assim fosse, mas nem era esse o meu assunto nem eu sou pessoa habilitada para o estudar com a seriedade que o tema merece.

Também não é meu assunto avaliar se essa generosa integração de territórios na Rede Natura (entre um quarto e um terço, em geral, mas chegando a ultrapassar os 40%) contribui para uma certa forma de ordenar o território ainda muito enraizada em Portugal: um ordenamento que em grande medida não se faz pela afirmação de uma estratégia de utilização de espaços e recursos, mas pela sua negação e proibição: quer a reserva ecológica, quer a reserva agrícola existentes no nosso ordenamento territorial, para lhe chamar alguma coisa, têm funcionado mais como formas de limitar a expansão urbana e os processos de construção, do que como formas de planear, proteger e valorizar a natureza ou as práticas agrícolas. Um dos resultados é ter um território ordenado e regulamentado por excepções, abertas em nome de superiores interesses nacionais e outras figuras jurídicas de relevo, após longos e penosos processos jurídicos e administrativos, para que se possa eventualmente vir a permitir que se desenvolvam novas áreas habitacionais, de serviços ou turísticas em áreas onde supostamente se protegeria a agricultura ou a natureza. Um país excepcional, portanto, é o que resulta deste regime onde as excepções, claro está, só são possíveis para quem possa pagar os serviços de consultoria a assessoria necessários à navegação pelas turvíssimas águas dos nossos ordenamentos territorial e jurídico. E também um pasto muito fértil para os bois e os borregos das redes nacionais de corrupção.

Nada disto vinha ao caso do tal projecto de investigação a que aludia, mais concentrado noutros e certamente mais singelos problemas, mas que ajudou a revelar que estes territórios de alto valor ecológico para a magnífica União Europeia, são também aéreas de intensa procura turística, destinos de viagem massificados e aparentemente inconciliáveis com a suposta vulnerabilidade dos ecossistemas que justificam tamanho zelo administrativo pela burocracia do país e da UE. Um zelo tonto e inconsequente, sabemos bem: afinal as nossas preciosidades ecológicas servem para que se instalem as multidões de nortes vários das Europas, gente com sede de sol, mar e cerveja, e que afinal gasta pouco – e essas foram também contas que fui fazendo quando estudei o assunto: apesar da evidente ligação directa entre territórios de alvo valor ecológico e pressão turística massificada, estas são também regiões onde o turismo gera pouco valor acrescentado: pouca riqueza se cria em comparação com o turismo que se faz noutras partes da Europa – e parte dela nem sequer fica no país, regressando a grandes empresas internacionais em circuitos mais ou menos lícitos e mais ou menos expostos à tributação e outras formalidades administrativas que paraísos diversos permitem iludir.

Esse turismo a mais, que perturba quem vive nos destinos de férias, transforma valores culturais em mercadorias baratas de consumo imediato e destrói ecossistemas, é um problema para a Europa mediterrânica. A sua súbita interrupção, obrigando ao encerramento de empresas, lançando no desemprego milhares de pessoas e abrindo novos horizontes de incerteza é outro problema. Em todo o caso, os problemas relacionados com o “turismo a mais” ou com o “turismo a menos” são causas com a mesma origem estrutural: a excessiva dependência das estruturas económicas regionais de um sector turístico massificado, de exploração máxima do trabalho e dos recursos, de baixos preços e baixos salários. Uma estrutura económica pouco diversificada, onde normalmente faltam a inovação, o conhecimento ou a tecnologia.

Se a pandemia de covid-19 obrigar a uma reorganização do turismo contemporâneo, mais adequada às preocupações com o esgotamento de recursos e das alterações climáticas, com mais restrições e menos abertura à mobilidade internacional, é o mercado que vai fazer essa regulação. E como se vai vendo nas poucas experiências internacionais de reabertura dos serviços turísticos, são os segmentos mais altos dos mercados turísticos (com empresas financeiramente mais preparadas para lidar com crises e consumidores com maior poder de compra) que estão a dar sinais mais claros de resiliência neste contexto de crise generalizada. Talvez seja o prenúncio de um regresso ao passado, em que o turismo internacional era privilégio de classe ainda mais pronunciado e o turismo doméstico a opção possível para os mais pobres. Não será boa notícia para o turismo no mediterrâneo, tal como o temos vindo a conhecer.

7 Mai 2021

APOMAC | Duas décadas de serviço exemplar

A Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) fez ontem 20 anos. Foram duas décadas de serviço a gente que seriamente serviu esta cidade de Macau. Graças a esta associação, muitos tiveram garantida uma melhor velhice, um espaço de convívio e acolhimento, cuidados de saúde primários e, sobretudo, palavras de carinho e humanidade.

É, sobretudo, disto que falamos quando nos referimos à APOMAC. Da capacidade de criar um espaço onde todos são bem-vindos, onde podem conviver, ser recebidos como família, fazer parte da vida social de Macau. Ali ninguém se sente a mais, ninguém se sente despojado de interesse. Todos contam, todos têm uma palavra a dizer e essa palavra tem peso, importância, significado.

Bem sabemos como a sociedade actual pode ser cruel para os idosos, para os que deixaram de desempenhar um papel activo, apesar de terem sido eles a contribuir de forma decisiva para o bem-estar dos mais jovens. Estes não fazem ideia do que era o mundo antigo, muitas vezes não querem olhar para trás e, por isso, não são capazes de apreciar como os seus pais e avós tiveram de trabalhar e sofrer para que eles hoje desfrutem de regalias que antes, simplesmente, não existiam.

A APOMAC, durante estes vinte anos da sua existência, foi capaz de criar uma casa e uma família coesa; foi capaz de acolher todos os que dela necessitaram e de os ajudar a enfrentar as agruras de um mundo em transformação demasiado rápida para ser entendido de forma real por muitos dos que o ajudaram a construir.

Por outro lado, a APOMAC assumiu sempre ser uma associação de matriz portuguesa e, nesse sentido, abriu em todas as ocasiões os braços a quem tinha um domínio deficiente ou incompleto da língua chinesa, no sentido de os ajudar a enfrentar este novo Macau e permitir de modo suave e sincero a sua integração.

Importa realçar o papel fundamental que nestes 20 anos tiveram Francisco Manhão e Jorge Fão, dois dos mais importantes obreiros desta associação. Foram horas e mais horas, dias e mais dias, semana após semana, ano após ano, dedicados a esta nobre causa, garantindo os meios financeiros e logísticos para a sua sobrevivência, entregando-se de corpo e alma ao trabalho de manterem viva e activa esta entidade para tantos fundamental. Foram sempre eles que deram a face pela APOMAC, que por ela trabalharam de forma exemplar e empenhada, além de outros que igualmente fazem parte de uma equipa dedicada ao serviço daqueles que serviram a cidade de Macau, em bons e em maus tempos.

Portanto, parabéns! Se vinte anos não parece ser muito tempo, basta olhar para as realizações da APOMAC para perceber que o tempo nem sempre pode ser contado da mesma maneira. Tudo o que foi conseguido parece ter já raízes bem mais profundas, parece quase impossível de entender como foi conseguido em duas meras décadas. Por tudo isto, os nossos mais sinceros e merecidos parabéns!

7 Mai 2021

A defesa do ambiente e os primeiros 100 dias do governo de Joe Biden

É já um lugar-comum afirmar que as alterações climáticas têm vindo a afetar o nosso planeta, o que se reflete na subida da temperatura média do ar e dos oceanos, no aumento da frequência de fenómenos meteorológicos extremos, nomeadamente ondas de calor, secas, inundações, cheias e tempestades. Em apoio desta interpretação, a última época dos furacões no Atlântico Norte foi a mais ativa de sempre desde que há registos, tendo ocorrido trinta ciclones tropicais aos quais foram atribuídos nomes próprios (tempestades tropicais e furacões). O número foi de tal modo elevado em 2020, cerca do triplo da média anual, que os 21 nomes da lista se esgotaram, o que fez com que se tivesse de recorrer a letras do alfabeto grego, o que só havia acontecido, desde que há registos, em 2005.

São também atribuídos às alterações climáticas o comprovado degelo de grande parte das calotas polares e a diminuição de caudal de muitos glaciares. Como consequência deste degelo, a subida do nível médio do mar tem vindo a aumentar. Para este aumento também contribui a diminuição da área coberta pelo gelo marítimo, na medida em que passa a haver menos reflexão da radiação solar e, consequentemente, maior aquecimento da água, e mais evaporação. O vapor de água transporta energia sob a forma de calor latente de evaporação que, por sua vez, é libertada para atmosfera, aquando da condensação, o que contribui para a formação e intensificação de tempestades.

Partindo do princípio de que as alterações climáticas têm como causa principal a injeção na atmosfera de milhares de milhões de toneladas de gases de efeito de estufa (GEE), com especial ênfase para o dióxido de carbono, os meios científicos têm vindo a realçar que, para evitar um desastre climático, é necessário que se atinja o mais breve possível a neutralidade carbónica, ou seja, quando for nulo o balanço entre a quantidade de dióxido de carbono injetado na atmosfera e a quantidade desse gás que dela se retira, num determinado período.

Para se conseguir a tão almejada neutralidade carbónica, há que diminuir drasticamente as fontes de GEE e aumentar a eficácia dos sumidouros. As fontes são essencialmente as atividades antropogénicas relacionadas com a utilização de combustíveis fósseis, nomeadamente os transportes, a produção de aço, cimento e alumínio. Quanto aos sumidouros, há a realçar as florestas, os oceanos e o solo. O grande problema é que, enquanto as fontes têm vindo a aumentar, os sumidouros têm diminuído de eficácia. A área coberta por florestas tem vindo a diminuir, devido a incêndios e desflorestação, e o aumento da temperatura dos oceanos faz com que diminua a sua capacidade de absorver o dióxido de carbono.

Para se poder atingir a neutralidade carbónica em 2050, os governos têm de tomar medidas adequadas em termos de legislação e promover a investigação científica e a inovação tecnológica. Em relação a estas duas últimas, a iniciativa privada terá também um forte papel a desempenhar. Alguns governos têm vindo a tomar medidas nesse sentido. Também o Conselho e o Parlamento da União Europeia (UE), chegaram recentemente (em 20 de abril de 2021) a um acordo político provisório visando legislação que leve à neutralidade carbónica da UE em 2050.

Se se continuar a injetar GEE ao ritmo atual, ou em maiores quantidades, não se conseguirá travar o a subida da temperatura para valores inferiores a 2º Celsius, de preferência inferiores a 1,5º C, em relação aos valores da era pré-industrial, conforme preconizado pelo Acordo de Paris. Para que tal possa ser alcançado até ao fim do século XXI, é essencial atingir a neutralidade carbónica por volta de 2050. Caso contrário, a temperatura continuará a aumentar para valores que, segundo o IPCC, poderão atingir 3º C ou mais, no final do século.

Trata-se de uma tarefa gigantesca, na medida em que não só não se dispõe atualmente da tecnologia necessária para esse efeito, mas também há que ultrapassar os preconceitos de alguns governantes e os poderosos lóbis negacionistas das alterações climáticas.

A derrota de Trump nas últimas eleições presidenciais e a rapidez com que Joe Biden (há quem lhe chame Speedy Joe) tem vindo a reverter as decisões do seu antecessor no sentido de os EUA voltarem ao multilateralismo e à política de defesa da sustentabilidade do planeta, faz com que os americanos venham, muito provavelmente, a conquistar o lugar de líderes mundiais no combate às alterações climáticas. Os avanços nesta área foram enormes nos primeiros cem dias de governo do novo presidente dos EUA, tendo sido as seguintes as principais medidas: regresso ao Acordo de Paris; cancelamento da construção do oleoduto de Keystone XL; substituição de cientistas negacionistas nomeados por Trump em lugares chave da NOAA; compromisso de redução, até 2030, das emissões de dióxido de carbono de 50 a 52% até 2030, em relação aos níveis de 2005; início do processo de restabelecimento dos regulamentos revogados durante a presidência de Trump; realização da Cimeira de Líderes sobre o Clima, iniciada simbolicamente no dia 22 de abril, Dia da Terra, em que participaram 40 governantes, incluindo chefes dos governos dos países mais poluidores e de alguns países mais vulneráveis.

A cimeira consistiu essencialmente em depoimentos dos governantes, em que assumiram compromissos de os respetivos países virem a reduzir as emissões de GEE. Participaram também ativistas e representantes de organizações empenhadas na defesa da sustentabilidade do nosso planeta.

No que se refere ao oleoduto Keystone XL, com a extensão prevista de cerca de 1.900 km, o Presidente Obama, considerando que os riscos eram muito superiores aos benefícios, já havia rejeitado, em 2015, a autorização para a sua construção. Trump, no entanto, em 2017, revogou a decisão de Obama e assinou uma licença para que a empresa TransCanada iniciasse os trabalhos, o que motivou grandes manifestações populares contra tal medida.

Agora foi a vez de Joe Biden, no seu primeiro dia como presidente, cancelar a autorização de Trump para continuar as obras dessa polémica infraestrutura. Seria conveniente que, caso seja eleito um presidente republicano em 2024, esse processo esteja definitivamente encerrado e não se volte a revogar a revogação da construção do oleoduto.

São as seguintes algumas das promessas de reduções de emissões de GEE anunciadas na cimeira:
Canadá: 40-45% até 2030 (em relação a 2005)
EUA: 50-52% até 2030 (em relação a 2005)
Japão: 46-50% até 2030 (em relação a 2005)
Reino Unido: 78% até 2035 (em relação a 1990)
União Europeia: 55% até 2030 (em relação a 1990)

No início da intervenção do primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, um problema técnico impediu que se ouvisse a sua voz, o que foi interpretado por alguns observadores como sendo uma metáfora da sua atitude pouco entusiasta em relação aos objetivos da cimeira. A Austrália é um dos maiores exportadores mundiais de carvão, utilizado pelos importadores na produção de aço e de eletricidade. Alguns dos seus maiores clientes, nomeadamente a Coreia do Sul e o Japão, estão a diminuir significativamente a utilização deste mineral e, de futuro, a China também seguirá esse caminho.

Uma das declarações mais importantes desta cimeira consistiu do anúncio de Xi Jinping de que a China limitaria estritamente o aumento do consumo do carvão nos próximos cinco anos e o reduziria gradualmente nos cinco anos seguintes.

Causaram surpresa as declarações do presidente Jair Bolsonaro, que é internacionalmente conhecido como negacionista confesso das alterações climáticas, admirador de Trump, e mentor do aligeiramento das ações de monitorização da desflorestação da Amazónia e da alteração das regras de proteção do ambiente. Quem não visse que era ele a falar, atribuiria o seu discurso a qualquer entusiasta do combate às alterações climáticas.

Tratou-se de uma cimeira em que os participantes não se encararam olhos nos olhos e, portanto, muito menos eficiente do que as que são levadas a cabo presencialmente. Apesar de haverem já muitas críticas, principalmente nos EUA, pelo facto de Biden não ter convidado um único cientista, este encontro virtual pode ser considerado um passo importante para a preparação da COP26, a realizar em Glasgow em novembro de 2021, na medida em que pode ser um contributo para que os líderes políticos mundiais se consciencializem da necessidade de assumirem compromissos, por escrito, relativamente às metas a cumprir no sentido de se concretizar a neutralidade carbónica o mais rapidamente possível, preferencialmente antes de 2050.

*Meteorologista

6 Mai 2021