Mais triste, mais injusto

Fecha o ano ainda mais triste e injusto do que tinha começado: há um vírus global continua a ameaçar a convivência, a condicionar os quotidianos e a matar as pessoas. E há uma sociedade altamente individualista e predatória que os impactos assimétricos desta crise tornam ainda mais injusta. A brutalidade dos dados sobre as desigualdades no planeta é cruamente revelada na última edição do “World Inequality Report”, recentemente publicado por um centro de investigação criado pela Escola de Economia de Paris e pela Universidade de Berkeley. Thomas Piketty, um dos economistas com mais relevante trabalho na crítica do capitalismo contemporâneo, é um dos editores do estudo, prefaciado por Abhijit Banerjee and Esther Duflo, fundadores do “Poverty Action Lab” e em 2019 galardoados com o chamado prémio Nobel da economia. O relatório está disponível na internet com acesso livre e apresenta indicadores globais sobre a evolução do rendimento anual e da riqueza acumulada pela população do planeta.

O estudo tem em consideração a chamada “paridade do poder de compra”, uma “correcção” no cálculo dos rendimentos que considera as substanciais diferenças entre aquilo que se compra com os mesmos 100 euros em Portugal ou na Alemanha, só para dar dois exemplos que até nem serão dos mais extremos. Ao introduzir este mecanismo, diluem-se razoavelmente as diferenças de rendimento entre Portugal e a Alemanha (ou entre África e a Europa, ou entre Sudoeste Asiático e América do Norte), uma vez que nos países menos desenvolvidos os preços tendem a ser mais baixos. Mesmo introduzindo este mecanismo, a desproporção que se revela nos rendimentos gerados e no capital acumulado – quer entre países, quer entre classes sociais – evidencia o carácter profundamente despropositado e injusto da dinâmica do capitalismo contemporâneo. Também se mostra como a passagem do tempo não está a resolver problemas – antes pelo contrário – e que a pandemia de covid-19 só os agrava.

Em média, cada habitante em idade adulta deste planeta (5.1 mil milhões de pessoas) auferiu 16.700 euros em 2021 (tendo em conta as tais paridades de poder de compra). Mas este valor médio é quase irrelevante: na realidade, mais de metade (52%) do rendimento gerado globalmente foi apropriado por apenas 10% da população (que inclui as 517 milhões de pessoas mais ricas). Neste grupo, o rendimento anual médio individual foi de 87 200 euros, mas já se está nesta categoria se o rendimento for de 37 200 euros anuais. De outra forma: um salário mensal pouco superior a 3.000 euros é suficiente para se estar neste grupo. Já o rendimento médio anual da metade da população com rendimentos mais baixos é de 2.800 euros – o que significa que metade dos seres humanos do planeta (2,5 mil milhões de pessoas) vive, em média, com salários pouco superiores a 200 euros por mês. No nível intermédio fica 40% da população (2 mil milhões de pessoas), com um rendimento médio anual de 16.500 euros (menos de 1500 euros por mês). Para se estar neste grupo – a classe média – basta um rendimento anual de 6700 euros anuais (um salário pouco superior a 500 euros por mês). Se estas medidas da distribuição da riqueza gerada não são muito abonatórias para a justiça ou mesmo a eficiência do sistema económico contemporâneo, a avaliação da distribuição da riqueza acumulada – ou do capital disponível para criar condições para a prosperidade económica futura – mostram com ainda mais evidência a inevitável persistência futura destas desigualdades. Neste caso, os dados mostram que os tais 10% da população mais rica detêm, em conjunto, 76% de toda a riqueza do planeta. Já a metade mais pobre detém apenas 2%.

Estas diferenças entre classes sociais assumem proporções diferentes consoante a geografia: a Europa continua a ser a região com menores desigualdades e a parte mais rica da população (10% das pessoas) absorve 36% do rendimento gerado por ano. Pelo contrário, no Médio Oriente, a região mais desigual, esse valor atinge 58%. Por outro lado, o grupo de 40% da população classificado na situação intermédia detém cerca de 40% da riqueza acumulada na Europa, enquanto em todas as outras regiões esse valor se situa entre os 25 e os 30%. A análise de dados históricos (desde o século 19) sugere que essa classe média europeia se foi consolidando ao longo do século 20 e que há uma perda sistemática e continuada de poder de compra pela classe média dos Estados Unidos desde os anos 1980. No entanto, o aspecto mais notório é que a metade mais pobre da população mundial praticamente não acumula riqueza – ou capital – independentemente da região do mundo onde vive (desde 1% da riqueza total na América Latina a pouco mais de 4% na Europa): o problema da desigualdade só se vai agravar no futuro, portanto. Os dados só agora comecem a reflectir os impactos da pandemia de covid-19 nas sociedades contemporâneas e alguns sinais de agravamento são já evidentes: a riqueza total da população do planeta cresceu 1% entre 2019 e 2021, mas a riqueza dos 0,001% mais ricos aumentou 14%. No caso particular dos bilionários, a riqueza cresceu mesmo mais de 50% durante este triste período.

A tristeza desta época tradicionalmente festiva não se reduz às compilações estatísticas sobre injustiças sociais ou ecológicas de um sistema económico em crise permanente e cada vez mais perto do abismo. Há também – ou sobretudo – as pessoas que nos morrem, que deixam de estar. São presenças que marcam as nossas vidas, cuja leveza é subitamente substituída pelo peso de uma ausência inaceitável, inevitável e insuperável. Cada pessoa tem as suas e toda a gente se vê a perder com a passagem da pandemia e o rasto de tristeza que vai deixando. Desta vez calhou-me – a mim e a outras pessoas fazedoras e leitoras deste jornal – perder o João Paulo Cotrim, com quem me encontrei e desencontrei desde o início dos anos 1990. Cada vez que nos encontrávamos – às vezes com anos de intervalo – retomávamos conversas como se tivessem sido interrompidas na véspera. Através do João Paulo conheci outra gente e foi também através dele – e da sua delicada engenharia de pontes – que se criou a minha relação com o Hoje Macau, já há mais de 3 anos. Pessoa de saberes variados e quase infinitos, tinha esse condão de oferecer oportunidades de aprendizagem sem se propor ensinar ninguém, na tranquilidade de quem tem a noite toda pela frente. Fico mais pobre, certamente. Lisboa e o país também.

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