Turismo em comum e democracias participativas

No turismo, o que é especial é comum: os motivos e recursos que atraem turistas a um determinado destino ultrapassam em larga medida a esfera dos serviços turísticos e até a das transações de procura e oferta inerentes às actividades económicas de agentes privados – ou mesmo públicos. Ainda que certamente existam, muito raros serão os casos de viajantes que se deslocam a determinando sítio motivados pela excelência dos serviços de transporte (por muito magníficas condições que se ofereçam em comboios, autocarros ou aviões, também se pode desfrutar dessas comodidades para viajar até outros destinos). Também é raro que se escolha um destino de viagem porque se pode usufruir de determinada unidade hoteleira, até porque hoje há uma oferta altamente diversificada e relativamente sofisticada de serviços de alojamento onde quer que nos desloquemos.

São outras as razões que normalmente nos motivam a ir aos sítios. Excluindo razões pessoais ou profissionais de viagem – em que não há exactamente a livre escolha de um destino mas a necessidade de visitar um sítio predefinido – são razões e motivos profundamente enraizados e partilhados por comunidades locais que nos atraem enquanto turistas. Podem ser características ecológicas e paisagísticas (as praias, as montanhas, os lagos, os parques naturais, a geologia, a fauna, etc.) e as diferentes actividades possíveis nesses lugares (educativas, desportivas, entretenimento, relaxamento). Podem ser aspectos culturais, mais relacionados com elementos materiais (monumentos, museus, arquitectura de edifícios e espaços públicos, artesanatos locais) ou imateriais (modos de vida, eventos, tradições, música ou outras artes performativas, culinária, formas de vestir). Pode ser mais simplesmente o prazer ou à vontade com que se circula em ruas limpas, ambientes despoluídos ou comunidades acolhedoras e seguras.

Quaisquer que sejam estas razões, estamos invariavelmente no domínio do comum, dos recursos comunitários, cuja utilização – ou até produção – resulta de acção colectiva, sem proprietários. Frequentemente são flexíveis as estruturas hierárquicas que regulam a sua utilização – quando as existem: são recursos de todos e não são de ninguém e qualquer pessoa pode deles usufruir. E no entanto, a apropriação dos benefícios resultantes da sua utilização turística está longe de ser comunitária: não só traduz um processo profundamente injusto de privatização, como acaba por beneficiar um número muito limitado de entidades, que em última análise vive da extração de recursos que são de todos – e que lá permanecem, para continuarem a ser extraídos. No caso do turismo, são as empresas de transporte e alojamento quem mais beneficia destes recursos comunitários, frequentemente absorvendo mais de 70 ou 80 por cento dos gastos de quem viaja, e oferecendo um contributo mínimo (ou nulo) para a sua produção, preservação ou valorização.

Estes motivos mais do que justificam o envolvimento das comunidades em processos de planeamento do desenvolvimento turístico. E justificam também que o seu poder de influência seja equiparado (pelo menos) ao do poder das empresas que operam no local – e que normalmente rejeitam essa condição de igualdade reivindicando o mérito da criação de empregos – e negligenciando, quer o facto de viverem da exploração de mercados criados a partir dos recursos comuns a quem vive naquele local, quer o reconhecimento de que a actividade turística também gera problemas económicos, sociais, culturais e ambientais a quem vive em zonas de destino massificado. Barcelona é um desses casos, cidade de bom clima e boa comida, com uma notável dinâmica cultural, incluindo patrimónios antigos e artes contemporâneas, praia e boa vida nocturna, futebol de alto gabarito e notável arquitectura urbana, tudo ligado por muito razoável e acessível rede de transportes públicos.

A massificação turística que se foi construindo sobretudo a partir dos Jogos Olímpicos de 1992 foi criando sucessivos problemas de ocupação do espaço, homogeneização cultural e gentrificação, que foram transformando o centro da cidade em lugar de entretenimento para turistas, em vez de local de encontro de residentes. Os problemas tornaram-se mais evidentes e os conflitos mais acesos quando a crise financeira de 2007-2009 começou a gerar outras vítimas, as do desemprego conjugado com a usura dos mercados de habitação, os novos desalojados nas suas próprias cidades de residência, que foram perdendo as suas casas, cada mais integradas na dinâmica do turismo através de alugueres de curta duração suportados por plataformas digitais alegadamente “colaborativas” – mas que na realidade constituem poderosos instrumentos para maximizar novas formas de exploração de recursos, territórios e pessoas.

Estes conflitos abririam caminho a uma recomposição política sem precedentes na cidade, conduzindo ao poder autárquico novas forças que viriam a atribuir novas centralidades aos conceitos de “comum”, comunidade ou participação nas instituições. Isto também se aplicaria ao turismo, com a criação de um órgão consultivo da câmara municipal – o Conselho de Turismo – onde têm assento, com um delicado equilíbrio numérico, associações empresariais directa e indirectamente ligadas ao turismo, associações de residentes de cada bairro, peritos diversos e organizações não-governamentais com conhecida relevância local, enfim, os protagonistas do turismo, quer enquanto prestadores dos serviços necessários, co-habitantes de um espaço super-ocupado, ou vítimas de uma massificação predatória do território.

Tive oportunidade recente de estudar o assunto, com um colega catalão e outro holandês, com base num conjunto de entrevistas feitas em Barcelona quando a pandemia ainda o permitia. Ficámos a saber do potencial deste tipo de organismo para promover e reforçar laços colaborativos entre agentes com agentes e motivações diferentes e até contraditórios. Mas também constatámos as dificuldades para se gerar alguma forma de consenso sobre as matérias mais complexas, sobre as quais a divergência de posicionamentos – e de potenciais benefícios, já agora – são mais profundas e expostas. O tempo não resolve essas divergências, antes pelo contrário: participar exige tempo, discussões longas e acesas, paciência para frequentemente se chegar a becos sem saídas colectivas. Sobra apenas a expressão dos diferentes interesses que marcam as tensões e conflitos sociais da cidade e já não é pouco, dizem-nos: aprender com lentidão novas formas de colaborar e fazer em conjunto, ao mesmo tempo que se oferece uma fotografia instantânea de quem apoia ou rejeita cada proposta, quem beneficia ou fica prejudicado com cada iniciativa, já são contributos preciosos para haver melhores e mais informadas políticas locais. Para os interessados, o trabalho está publicado na revista académica “Urban Research & Practice”.

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