Turismo na economia (I): quanto é que é muito?

[dropcap]É[/dropcap] frequentemente assumido que o desenvolvimento do turismo, sobretudo quando se entra em processos de mais intensa massificação, implica um conjunto de custos e problemas ambientais, culturais e de eventual perturbação da qualidade de vida de quem vive nesses destinos “de sucesso”, mas que em compensação há um benefício económico que acaba por ser mais vantajoso para essa comunidade.

Não é verdade: na realidade, não só os custos e benefícios do turismo são muito assimetricamente distribuídos pela população – uns e outros podem ser muito diferentes para cada pessoa – como se encontram com frequência problemas económicos muito significativos associados ao desenvolvimento turístico.

Há um padrão para a evolução de destinos turísticos, formalizado no início dos anos 1980 por um geógrafo britânico a trabalhar no Canadá, Richard Butler de sua graça, que se pode aplicar de forma muito genérica a grande parte dos territórios: os sítios são “descobertos” por viajantes ocasionais e mais ou menos acidentais, que não encontram serviços nem infra-estruturas particularmente orientadas para a hotelaria e o turismo, mas que apreciam a visita, vão voltando, comentam o assunto, e o local vai ganhando popularidade; numa segunda fase, alguns negócios locais (alojamento, alimentação, pequeno comércio) começam a orientar-se para esse novo segmento de mercado que se vai criando e a população tende a receber com agrado estes visitantes que ajudam os negócios e reforçam o orgulho local; até que se chega à crítica fase do desenvolvimento, quando os sistemas e infra-estruturas de transporte se começam a implementar e/ou organizar em função dos fluxos turísticos, enquanto empresas exteriores à região (e ao país, eventualmente) se vêm instalar, sobretudo na hotelaria – mas também na restauração ou no comércio ou outros serviços, como a distribuição (agências de viagens a operadores turísticos). A procura turística aumenta rapidamente e esses novos mercados prometem – e frequentemente garantem – alta rentabilidade e rápida recuperação dos investimentos.

É nesta fase crítica que os benefícios económicos são evidentes e imediatos, enquanto os problemas são mais subtis e remetidos para a obscuridade de um qualquer futuro. Mas não deixam de ser visíveis, ainda que por vezes vão emergindo lentamente esses impactos sobre a organização territorial das economias: as fábricas de conservas, os estaleiros navais ou os portos comerciais do litoral que vão fechando e ficando ao abandono até que uma redefinição do uso do solo abra o caminho a um magnífico e muito mais rentável empreendimento turístico ou cais de cruzeiros; os terrenos agrícolas que passam a ser ocupados por soberbos campos de golfe – e respectivos imobiliários associados, que são quase sempre a motivação real do investimento; os prédios de habitação em zonas urbanas substituídos por unidades hoteleiras de mais ou menos ou menos charme, primeiro, e apartamentos para alugar em plataformas online de uma alegada economia de partilha de recursos (e que afinal é apenas uma ferramenta para a sua exploração máxima com regulação mínima).

Não são apenas as grandes empresas de transporte e alojamento turístico a fazer grandes negócios, de lucro fácil e rápido, nestas alturas de massacre intenso e sistemático sobre territórios e comunidades: são também pequenos negócios locais, proprietários de imóveis que os retiram da sua função de provisão de habitação permanente para a prestação de serviços de alojamento temporário, e muitas pessoas que encontram nestes novos serviços oportunidades de trabalho com rendimentos frequentemente muito acima do que encontravam antes da chegada massiva do turismo. Mesmo sendo frequentemente trabalho com alguma sazonalidade e mal regulado ou informal, não é difícil oferecer uma expectativa – e mesmo uma concretização real – que supera largamente o que existia nas relativamente pobres economias periféricas como é o caso da portuguesa. E essa atractividade – sobretudo para a população mais jovem – traz uma outra consequência potencial: o abandono precoce dos estudos e a preferência por se começar cedo uma carreira profissional com remunerações aparentemente atractivas (mas que também pouco evoluem ao longo da vida profissional). Pouco se tem estudado o assunto, mas uma análise recente destas dinâmicas nas regiões da Croácia mostra que onde o turismo mais se desenvolveu nos últimos 20 anos foi onde se observou a pior evolução nas qualificações da população. A este problema de longo prazo junta-se outro, que é o da concentração do conhecimento e utilização económica de tecnologia num sector de actividade com fraco valor acrescentado, e que pouco contribuirá para que haja uma convergência significativa entre regiões mais ou menos desenvolvidas, com maior ou menos capacidade integrar conhecimento e tecnologia na produção e com maior ou menor criação de valor para a economia.

É nessa fase de desenvolvimento acelerado que pode ser mais crucial a acção das políticas públicas: deve apoiar-se o turismo, enquanto actividade que, de facto, permite gerar emprego e riqueza, aproveitando uma onde de atractividade que pode não durar sempre, ou deve condicionar-se, quer limitando as infra-estruturas de suporte (transportes e alojamento, sobretudo), quer priorizando apoios a outros sectores de actividade, com potenciais melhores resultados futuros mas também maiores riscos e incertezas no presente? No que diz respeito a Portugal, a resposta tem sido inequívoca – e em favor do turismo. Não são só os autarcas que dizem desconhecer “o que é turismo mais”, foram também os anos do cavaquismo em que se destruíram (literalmente) frotas pesqueiras e indústrias relacionadas (e que agora se pretendem resgatar em nome de uma alegada “economia azul”, orientada para os recursos do mar), foram as décadas de reforço de transportes aéreos e portos de cruzeiros, as autorizações para o desenvolvimento da hotelaria e dos projectos imobiliários associados aos campos de golfe, esses parasitas dos territórios e das comunidades que não oferecem às economias qualquer tipo de contributo para o desenvolvimento tecnológico.

Na realidade, pese a distração de um ou outro autarca, até pode-se saber-se o que é turismo a mais. Há muitos casos, devidamente estudados. Mas será sempre difícil encontrar esse momento em que o copo começa a transbordar: entre a liberdade de movimentos e de circulação, as necessidades efectivas de infra-estruturas de transporte, alojamento e outros serviços inerentes à boa estadia de viajantes, e as legítimas oportunidades económicas decorrentes, quanto é que é demais? Até quando se deve apoiar e quando se deve limitar o desenvolvimento do turismo? É um facto que a pergunta soa melhor em inglês (“how much is too much”) mas a resposta tem que vir em várias línguas – e em particular em português. Voltarei ao assunto em breve.

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