Turismo responsável

Reabrem os nossos universos às possibilidades do convívio quando passou já mais de um ano sobre a chegada à Europa do vírus que havia de impor sobre os quotidianos e as economias restrições e transformações sem precedentes nas nossas existências. O calor, entretanto, começa a apertar, aproxima-se o estio e as vontades de ar livre e beira-mar, antecipam-se possibilidades de regresso aos prazeres de longos dias de sol na praia e outros espaços ao ar livre ou de longas noites de diversão ao fresco, exploram-se oportunidades para a reanimação das indústrias do lazer e do entretenimento, que a pandemia deixou francamente atordoadas ou definitivamente aniquiladas, conforme os casos.

Com inequívoca clareza, a indústria do turismo na Europa demonstrou no ano passado a sua capacidade de persuasão: com o inestimável apoio de diversas instituições internacionais e de reputados especialistas dos universos político, empresarial e académico, entre sistemáticos apelos a práticas renovadas de “turismo responsável”, as fronteiras internacionais abriram-se à circulação de turistas ávidos de prazeres estivais para gáudio ainda maior de empresários e trabalhadores dos sectores relacionados, a viver em crise permanente desde que o covid-19 se instalou entre nós.

Não são só os empresários e trabalhadores do turismo dos países mais dependentes de formas sazonais de ultra-exploração de recursos territoriais: na realidade, as maiores empresas do planeta a operar em actividades directamente relacionadas com o turismo têm origem nos países mais desenvolvidos do mundo: é alemão o maior operador turístico do planeta, com a sua poderosa frota de aviões e milhares de hotéis a operar com marcas diferentes para diferentes tipos de clientes; são norte-americanas as maiores cadeias de hotéis, com a breve intromissão de um grupo francês entre os cinco maiores do mundo; são também norte-americanas as maiores empresas de aviação, ainda que nas entre as cinco maiores se encontrem também uma alemã e uma franco-holandesa; têm a sua base nos Estados Unidos quatro das cinco maiores empresas relacionadas com prestação de serviços turísticos, com a exceção a registar-se na Holanda.

É bom também lembrar que não foi o poder das economias do sul da Europa nem o decorrente peso político a determinar essa apressada reabertura de fronteiras ao turismo internacional: foi também (ou sobretudo) a importância do sector para essas grandes empresas das economias mais ricas, que não deixaram de promover – com intensas diplomacias e acelerados compromissos governamentais – a tal abertura “responsável” do turismo. Hoje sabemos com clareza que o turismo internacional foi, de facto, “responsável”: na realidade, foi directamente responsável pela tragédia que se seguiu ao verão, com o nível de propagação do vírus a atingir níveis incomparáveis com os que se tinham registado no início da pandemia – e que já eram suficientemente trágicos – para se concretizar uma das maiores mortandades jamais registadas na Europa em tempo de paz.

Essa responsabilidade do turismo na propagação da epidemia começa agora a ser devidamente comprovada em circuitos científicos. Em artigo recentemente publicado numa das mais prestigiadas revistas académicas da área do turismo (Journal of Travel Reserach), um grupo de investigadores de diferentes países identifica, em breve mas clarividente e rigoroso artigo, a relação de causalidade entre a intensidade do turismo praticado (quer em termos de saída, quer em termos de entrada de turistas) e a propagação da epidemia de covid-19 (quer em termos do número de casos de infecções, quer do número de mortes). Analisando mais de 90 países, o modelo estatístico utilizado detecta a relação directa entre a actividade turística, o número de pessoas infectadas e as mortes por covid-19 registadas em cada país.

Naturalmente, o estudo considera ainda a possibilidade de outras variáveis contribuírem para explicar os problemas em questão (número de infecções e mortes por covid-19 em cada país) mas são raras aquelas para as quais se detecta uma causalidade que se possa considerar estatisticamente válida (ou significante, na gíria técnica). Por exemplo, a idade da população e os meios à disposição nos serviços de saúde (medidos em termos de número enfermeiros ou de camas disponíveis em hospitais) não têm qualquer relação estatisticamente verificável com o número de infeções detectado. No entanto, o número de camas disponíveis em hospitais é identificado como uma causa relevante para a diminuição do número de mortes.

Mais interessante é a observação sobre o dinheiro gasto directamente pelas pessoas em despesas de saúde (despesas não cobertas por esquemas de seguro, público ou privado). Neste caso, o estudo identifica relações positivas, quer com a propagação da doença, quer com o número de óbitos: quanto mais as pessoas têm que cobrir despesas médicas do seu próprio bolso, mais fácil a difusão da pandemia – e a consequente mortalidade. Mais do que a estrutura etária da população ou os recursos disponíveis nos serviços de saúde, o carácter privado dos custos a suportar com os tratamentos é que aparece como determinante na propagação da doença.

Em todo o caso, o turismo internacional revela-se como a causalidade mais determinante – e é também o aspecto sobre o qual se podem tomar medidas com impacto mais imediato. Há outro Verão que se aproxima e com ele as apetências dos prazeres estivais, da recuperação dos negócios e das oportunidades de emprego. Uma nova esperança para quem vive do turismo, sejam os trabalhadores precários e sazonais, os pequenos empresários locais ou as grandes empresas transnacionais. Todos voltarão a pressionar para que que o turismo internacional reabra de forma “responsável”. Mas, como se tem visto na Ásia, a única solução “responsável” é o encerramento ao tráfego internacional. Por mais uns tempos, o turismo doméstico, mais passível de ser identificado e tratado por sistemas de saúde de carácter nacional em caso de propagação de infecções, é a única solução “responsável” (ainda que modesta) para a actividade turística.

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