Mulheres Palestinianas

Demorei demasiado tempo a abordar a questão palestiniana neste espaço. Não sei explicar a demora. É um tema complexo e emocionalmente exigente. Fico perplexa ao ver como, nos meus círculos sociais, a legitimidade da luta palestiniana é amplamente reconhecida, enquanto noutros espaços, qualquer apoio ao povo palestiniano é rapidamente confundido com uma atitude anti-semita.

Vivemos num mundo de extremos, onde persiste a divisão em realidades paralelas, sem margem para o diálogo. E, assim, a situação crítica continua. O que mais posso dizer, senão que sinto revolta? Tempero a minha comida com za’atar todos os dias como um gesto simbólico para manter viva a consciência de um povo que sofre de fome e privação. Assistimos a uma limpeza étnica sem precedentes, e a ocupação palestiniana, os campos de refugiados e os escombros são o epicentro da degradação sociopolítica do mundo moderno.

No Dia da Mulher, tive a oportunidade de ouvir Shahd Wadi, investigadora e escritora palestiniana, que tem explorado a ocupação e as artes como forma de testemunho das vidas e experiências das mulheres. Recentemente, lançou o livro de poesia “Chuva de Jasmim”, onde se entrelaçam vivências e línguas. Shahd escolheu Portugal como refúgio enquanto aguarda o dia em que possa regressar à aldeia da sua família, de onde a sua avó foi forçada a partir em 1948. Nessa conversa informal, discutiram-se questões fundamentais: narrativas de mulheres, a imposição do feminismo ocidental que insiste em ver a mulher árabe como vítima, o corpo como instrumento de memória de um povo em extermínio.

O conceito de interseccionalidade revela-se essencial neste contexto, pois permite compreender a resistência de um povo em paralelo com a emancipação social das mulheres. Trata-se de uma luta contra a ocupação, a injustiça e a violência sistémica. As histórias partilhadas por Shahd Wadi trouxeram uma nova luz à forma como percebemos a criatividade e resiliência das mulheres palestinianas. Como aquela mulher que, ao ver um homem a ser preso pelos soldados israelitas, lhe passa o bebé para os braços e encena uma discussão, fingindo estar farta das detenções constantes do marido, deixando-a sozinha com a criança. Os soldados, desconcertados com a situação, libertam-no. O homem devolve o bebé a essa mulher, que nunca antes tinha visto. Ou como, diante da ameaça de violação, algumas mulheres se despem, destruindo o prazer que os agressores esperam obter ao roubar-lhes a honra.

Refletir sobre a resistência das mulheres palestinianas é também reconhecer como o seu corpo se tornou um alvo de guerra. É o corpo que gera e que garante a continuidade de um povo em risco de extermínio. As restrições ao acesso aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva não são acidentais. Um checkpoint pode impedir uma mulher de chegar ao hospital para dar à luz, pondo em perigo a vida do bebé e da mãe. Pequenos detalhes como este evidenciam a dimensão insidiosa do processo de limpeza étnica em curso.

Shahd Wadi partilhou estas e muitas outras histórias, assumindo um papel essencial na preservação da experiência palestiniana. Deu-nos permissão para torná-las nossas, integrando-as no nosso imaginário político de luta e resistência. No Dia da Mulher, e em tantos outros, que se reflitam sobre as mulheres palestinianas que continuam a resistir, não apenas pelo direito de decidir sobre os seus corpos e futuros, mas também pelo direito de existir com dignidade, liberdade e soberania.

A sua luta é um testemunho de coragem e resiliência e recorda-nos que o feminismo, em qualquer parte do mundo, deve adaptar-se às realidades locais. As suas histórias e experiências fazem parte da luta pela liberdade do povo palestiniano, uma luta que pertence a todos.

14 Mar 2025

Geogastronomia e a Inteligência Artificial

A complexa interacção destas perspectivas reflecte os debates mais amplos no mundo da culinária, abordando a forma como os sistemas alimentares podem evoluir respeitando as identidades culturais. A relação entre a geogastronomia e a IA é ilustrada através de vários estudos de caso inovadores.

Um exemplo convincente é o domínio da nutrição personalizada. As tecnologias emergentes utilizam a IA para analisar as preferências alimentares individuais, as métricas de saúde e as predisposições genéticas. Empresas como a Nutrigenomix utilizam a IA para adaptar os conselhos nutricionais com base na análise do ADN, dando ênfase a uma abordagem mais individualizada da alimentação que tem em conta tanto o contexto geográfico como a saúde pessoal.

Outro esforço notável é o desenvolvimento de cozinhas inteligentes. Empresas como a Samsung e a LG introduziram aparelhos de cozinha baseados em IA que ajudam na preparação de refeições e na sugestão de receitas.

Estes dispositivos inteligentes podem oferecer receitas personalizadas com base nos ingredientes disponíveis, melhorando a experiência culinária e reduzindo o desperdício alimentar. Esta inovação não só simplifica a preparação de refeições, como também incentiva os consumidores a explorar ingredientes locais e sazonais. Além disso, as plataformas baseadas em IA, como a Tock, permitem que os restauradores de cozinha analisem os dados dos clientes para melhorar o serviço e adaptar os menus à evolução das preferências.

Esta adaptabilidade, impulsionada pela percepção dos dados, ilustra a forma como a IA pode transformar os modelos de negócio tradicionais no sector da culinária, ao mesmo tempo que os enquadra no contexto geográfico da experiência gastronómica. Apesar dos desenvolvimentos promissores na intersecção entre a geogastronomia e a IA, persistem desafios e limitações significativos. As preocupações com a privacidade dos dados levantam questões éticas relativamente à informação dos consumidores.

À medida que a IA analisa os hábitos alimentares pessoais, a protecção destes dados torna-se fundamental. Existe também o risco de exacerbar as desigualdades no acesso aos alimentos se a tecnologia se tornar demasiado centralizada ou se os produtores mais pequenos não tiverem recursos para competir.

Além disso, a dependência de abordagens baseadas em dados pode ofuscar a importância da criatividade humana na cozinha. Embora os dados possam orientar a inovação culinária, a arte de cozinhar é muitas vezes uma questão de experimentação e instinto.

À medida que os chefes de cozinha adoptam ferramentas de IA, devem manter-se vigilantes para preservar a essência e a alegria da criatividade culinária. O futuro da geogastronomia e da IA depende de uma abordagem sinérgica que respeite tanto os avanços tecnológicos como as tradições culinárias. As iniciativas educativas centradas na integração dos estudos alimentares com a tecnologia podem abrir caminho a uma nova geração de profissionais de culinária equipados para navegar nesta paisagem em evolução.

As universidades e as escolas de culinária podem incorporar a formação em IA juntamente com a educação culinária tradicional para produzir chefes de cozinha bem preparados e familiarizados com ambos os domínios. Além disso, os esforços de colaboração entre os criadores de tecnologia, os chefes de cozinha e os agricultores podem conduzir a práticas mais sustentáveis.

Ao utilizar a IA para abordar o transporte de alimentos, a gestão de resíduos e as estratégias de aprovisionamento, as partes interessadas podem criar um sistema alimentar mais eficiente que respeite os sabores e as culturas locais. Finalmente, a implementação da IA na agricultura comunitária é promissora. As iniciativas de IA localizadas podem oferecer aos agricultores informações sobre dados climáticos, padrões de rotação de culturas e tendências de mercado, promovendo assim a resiliência contra os desafios ambientais.

Ao melhorar as redes alimentares locais, as comunidades podem tornar-se mais auto-suficientes, promovendo simultaneamente o rico património agrícola exclusivo das suas regiões. A intersecção entre a geogastronomia e a IA é um domínio dinâmico e cheio de oportunidades. Ao compreender a forma como os factores geográficos influenciam a cozinha e ao integrar tecnologias de IA, podemos promover a inovação culinária, respeitando simultaneamente o património cultural.

A sinergia entre tradição e tecnologia tem o potencial de redefinir a nossa paisagem culinária, abrindo caminho a práticas sustentáveis e a experiências gastronómicas melhoradas. Em última análise, à medida que este diálogo interdisciplinar prossegue, o mundo da culinária está na vanguarda da mudança transformadora, combinando o sabor com a tecnologia de uma forma que enriquece a nossa cultura alimentar global.

13 Mar 2025

Planeta X

– Cada homem tem diante do alfabeto o número exacto de filhos que deveria conceber antes mesmo de aprender a sua composição linguística. Mais tarde ao comunicá-los deveria ter direito a interjeições na nomeação progressiva dos petizes que não tiveram culpa dos ululantes efeitos que determinariam seus sistemas fonadores, mas como esta trapalhada se passa toda no tempo das luas, que tal em numerário? Por exemplo, 31! Há mesmo um fado assim, e só agora compreendemos tratar-se de um feto desenvolvido quase à beira do 39. – Mas está bem. Que seja X.

– Quando falávamos com os deuses havia um altamente germinativo, Júpiter; ele era o rei do Olimpo e fecundava Gaia em todas as dimensões e por isso foi tido como o real e benigno ser da multiplicação, o rei dos deuses, um impetuoso expansionista que cegava as capacidades parentais e as alienava como se fossem ainda um dos seus dons. Nós estamos em crer que toda esta força foi depois incubar nos rebanhos guiados por gurus masculinos que trariam um grande reino de fraternidade para todos os irmãos, maravilhados por partículas e seivas com dispositivo de grande alcance que cobriria a Terra inteira em graus, sistemas, organizações e impérios, alargando-se em vasta irmandade. Só que não.

– O delírio foi no entanto um alto representante desta estrutura procriativa que fez enjaular os fetos nas entranhas das mães para produzir gigantismos seminais que entorpeceriam ainda a fecunda liberdade do ser: o pai, a criatura ausente, vai plasmar-se no filho que numa sucessão de desesperos o clama e dele não terá resposta. No entanto a beleza deste mito subsiste, intriga, e dele se fez cânone. -Um pai que exibe um filho como mortalha para dizer que ele pode ser especial mas não é o único, só tem uma mãe que estará sempre no centro do seu coração como um selo, onde a transcendência é na sua carne o único vivo processo. Com ele fez caminho por entre o cordão de prata que será a corrente por onde o pai jamais pode passar.

Um pai nomeia- X- a um filho, para o expor ainda distante das coisas dos homens, mas já nomeado para ser dele o cordeiro sacrificial de um emblema de passagem, um tributo da sua nova era germinal com robusta tendência para o infantilismo, e nesta perspectiva um velho enunciado se insurge – A. W- que filho deve ser mais notado enquanto interjeição que interrogação, podendo ser mesmo um acrónimo paterno. Somente as mães os chamam por seus nomes e “petit nom” que faz do filho um agente memorável de dicção fonética tão próximo do sentir poético. Elas dizem ainda: o meu Jesus, o meu João, o meu Simão, o meu Manuel, nunca lhes ocorrendo o ronco seco de qualquer signo alfabético. Ur! É muito bonito e seria perfeito o Pai lembrar.

X é filho de um pai de Marte que já ultrapassou os nove rebentos, que este planeta é o nono do sistema solar, e ainda o ditado muito português que diz «ir a nove»: a sua existência já fora prevista a orbitar nos confins do sistema solar e foi rápida trazendo logo de seguida o planeta Y. Vamos supor que estamos diante de um representante dos planetas solares existentes que perfazem vinte e quatro como o alfabeto, querendo dizer com isso que o acelerador de transmissão genética ainda vai a meio e que o visionário homem de Marte espera alcançar. Nós, chegados aos doze, desde os Alfas e os Ómegas, andámos muito parados sem capacidade de resolução, e vem agora X e Y e Z, de um Marte recuado onde sonhamos colocar os pés sem delongas de complexas nomeações. Que todas estas órbitas só podem ser explicadas se tiverem sob a influência de um planeta desconhecido. O que vem aí pode ser mudo.

– Há uma Estrela paralela ao Sol que é preciso descobrir. A sua linguagem será nos alvores da consciência, telepatia. Quando isso acontecer também estas palavras já serão ruido.

Outrora havia ainda um gato chamado Chi, mas estávamos na presença de uma composição muito oriental que nos revertia para a harmonia. O das nove vidas.

12 Mar 2025

Cheques pecuniários 2025

Recentemente, devido à redução das receitas provenientes da taxação do jogo, um efeito causado pela pandemia, surgiram três correntes de opinião em Macau que defendem que o Governo deve rever a política de distribuição dos cheques pecuniários.

A primeira corrente alega que os benificiários deveriam viver em Macau pelo menos 183 dias por ano para usufruírem deste cheque no valor de 10.000 patacas. No entanto, quem resida na Área da Grande Baía, não seria abrangido por esta medida.

A segunda corrente acredita que se deve criar uma linha temporal, para lá da qual as condições serão diferentes. Este método pode ser sintetizado desta forma, “para os novos residentes o novo sistema, para os antigos residentes o velho sistema”. Esta será também uma forma de reduzir as despesas do Plano de distribuição de cheques pecuniários.

A terceira advoga que em vez de se entregar cheques se deverá colocar as 10.000 patacas em cartões de consumo para encorajar os residentes a fazer as suas compras em Macau, estimulando assim a economia da cidade, beneficiando a população e ajudando a aumentar as receitas do Governo provenientes dos impostos.

Antes de analisar estas três correntes de opinião, é necessário compreender a situação financeira do Governo. Em Setembro de 2024, as reservas financeiras eram de aproximadamente 617 mil milhões de patacas. No orçamente para 2025, prevê-se que as receitas do Executivo sejam de cerca de 121 mil milhões de patacas, as despesas rondarão os 113,3 mil milhões e o lucro bruto do sector do jogo situar-se-á nos 240 mil milhões. Com base neste cálculo, em 2025, o Governo terá um excedente financeiro e as reservas fiscais poderão vir a cobrir cerca de cinco anos de despesas, o que indica sinais de estabilidade.

Então, porque é que surgiram as referidas correntes de opinião? Porque antes da pandemia, as receitas provenientes da taxação do sector do jogo que atingiam anualmente os 300 mil milhões de patacas, caíram a pique em mais de 200 mil milhões durante a epidemia. Este valor foi recuperando lentamente e chegou aos 230 mil milhões em 2024, pelo que o excedente orçamental foi muito reduzido. De acordo com o princípio “viver dentro das nossas possibilidades” estipulado na Lei Básica de Macau, o Governo deve considerar a forma razoável de cortar nas despesas, o que estará em conformidade com as disposições da Lei Básica.

Embora as medidas que defendem estas três correntes reduzam as verbas que o Governo aloca à implementação do Plano, a sua essência, enquanto uma importante política para apoiar a subsistência dos residentes, é permitir que todos possam partilhar os frutos do desenvolvimento económico, aumentando o seu sentimento de pertença e a sua satisfação. Desde que se tenha um bilhete de identidade de Macau e se seja residente da cidade, pode receber-se uma parte do dinheiro partilhado. Por conseguinte, a imposição de qualquer tipo de condições poderia comprometer a equidade e a inclusão do Plano. Mal se estabeleça uma situação em que “alguns têm direito e outros não”, certamente irá criar-se insatisfação social e controvérsia.

De forma a manter a essência, o objectivo e as características do Plano, tanto quanto possível tendo em conta as capacidades financeiras do Governo, a forma mais justa é que os recuos e os avanços incidam sobre todos os residentes. Se o montante dos cheques pecuniários baixar das actuais 10.000 patacas, estará de acordo com o princípio “viver dentro das nossas possibilidades”, mas sendo equitativo, vai afectar as famílias de rendimentos mais baixos e não é exequível. Além disso, com um excedente fiscal e grandes reservas fiscais, porque não considerar a possibilidade de aumentar o valor dos cheques pecuniários em vez de reduzi-lo?

Com a redução das receitas dos impostos, é natural que o Governo queira poupar optimizando as despesas e melhorando a eficácia dos fundos fiscais. Ao mesmo tempo, o Governo deve também explorar activamente o caminho da diversificação económica moderada, reduzir a dependência da indústria do jogo e aumentar as receitas. E como é que isso pode ser feito na prática?

Recentemente, a China continental retomou a política “um visto, múltiplas viagens”, o que injectou sem dúvida uma nova vitalidade na recuperação económica do sector do turismo de Macau. O Governo deve aproveitar esta oportunidade para aumentar a publicidade e promover esforços para atrair mais turistas. Deve também, simultaneamente, encorajar as lojas a inovarem o seu modelo de negócio, a desenvolverem produtos especiais e a aperfeiçoarem a qualidade do serviço para irem ao encontro das diferentes necessidades dos turistas.

O Governo estima que em 2025 Macau receba 36 milhões de turistas. A cidade organizou vários concertos de sucesso em 2024, que não só trouxeram consideráveis benefícios económicos à região, mas também deram novas ideias para o funcionamento da diversificação moderada da economia. O Governo deve continuar a apoiar e a encorajar esta via e também explorar projectos de turismo cultural semelhantes para promover a prosperidade da região. Só aumentando as receitas fiscais poderá o Plano permanecer inalterado e todos continuarem a receber a sua parte e a desfrutar dos bons resultados económicos.

Em resumo, enquanto importante política de apoio à subsistência, a continuação da implementação e a melhoria do Plano são de grande importância para aumentar o sentimento de pertença e satisfação dos residentes. Quando o Governo enfrenta pressões fiscais como a redução das receitas do sector do jogo, deve adoptar uma atitude prudente e procurar soluções justas e razoáveis para garantir que o Plano continua a desempenhar o papel que lhe é devido. Se as receitas do Governo voltarem aos níveis pré-pandémicos, a questão de modificar o Plano naturalmente desaparecerá.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com

11 Mar 2025

Portugal não tem remédio

O primeiro-ministro Luís Montenegro enredou-se numa teia de aranha da qual é quase impossível sair. Tudo começou quando Montenegro quis ser político de alto nível e logo apareceram suspeitas de compadrio na transformação de uma casa sua em ruínas, em Espinho, transformada em imóvel de luxo. Montenegro foi para presidente do PSD e tinha, e tem, uma empresa familiar que se dedica a consultoria e imobiliário.

Pronto, o credo nunca mais parou e o rol de acusações tem dado água pela barba nas últimas semanas. Montenegro nunca quis divulgar a totalidade dos clientes da sua empresa familiar, sabendo-se que alguns são clientes de grande poder financeiro e que têm tido negócios com o Estado.

Montenegro deu uma “conferência de imprensa”, – onde os jornalistas tiveram que estar com fita gomada na boca… porque não lhes foi permitido fazer perguntas -, e onde o primeiro-ministro, rodeado de todos os ministros para compor o ramalhete do poder que apenas tem andado há um ano em campanha eleitoral, veio anunciar aos portugueses que não tinha mais esclarecimentos a prestar e que se a oposição quisesse que avançasse com um moção de censura ao governo e, caso não acontecesse, o governo poderia avançar com uma moção de confiança. O Partido Comunista avançou logo com uma moção de censura, a qual foi chumbada no parlamento. Nessa sessão, o Partido Socialista talvez tenha cometido um erro grave na sua estratégia política. Porquê? Porque se o resultado de umas eleições legislativas antecipadas, derem a vitória escassa aos socialistas, depois não podem esperar apoio dos comunistas para governar.

Mas, continuando no interior da teia de aranha, Montenegro foi notícia porque comprou duas casas a pronto pagamento no valor de cerca de 700 mil euros, com dinheiro resultante dos rendimentos da empresa familiar que tem três trabalhadores: a sua mulher e os dois filhos. Pior ainda, Montenegro passou uma vergonha enorme quando na semana passada veio a público que se encontrava a gastar diariamente 400 euros num hotel de luxo. Pelos vistos, o chefe do Executivo acha razoável pagar metade de um salário mínimo nacional, por dia, ao invés de viver na Residência Oficial do Primeiro-Ministro, por essa razão o Palácio de São Bento se denomina “Residência”.

Já não bastava a afronta a todos os trabalhadores que têm filhos com 20, 30 e 40 anos que nem de casa dos pais conseguem sair, por não terem salários decentes, tendo a distinta lata de se indignar por os seus filhos, de 19 e 23 anos, não poderem deixar de facturar 900 mil euros em quatro anos, à conta da lista de contactos dos pais. Para que não restem dúvidas, 400 euros por noite equivalem a 12 mil euros por mês. Ora, o primeiro-ministro ganha 4.500 euros líquidos por mês. Quanto a nós, é infame que Luís Montenegro não compreenda a falta de decoro e de respeito por quem trabalha, passa dificuldades e a quem lhe é retirado o subsídio de renda e diminuída a pensão em mais de 100 euros, isto, de um mês para outro sem aviso prévio.

Entretanto, o primeiro-ministro anunciou uma moção de confiança que será debatida e votada na Assembleia da República já amanhã, no caso de ontem não ter havido negociações entre Montenegro e o líder dos socialistas Pedro Nuno Santos, no sentido de o PS retirar a proposta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito e Montenegro retirar a moção de confiança. Era algo ainda possível para evitar uma crise política que pode prejudicar o país gravemente em termos financeiros.

Pensamos que irá acontecer precisamente o que Montenegro deseja. Que o Chega, Partido Socialista, PAN e Bloco de Esquerda votem contra a moção de confiança, possivelmente com a abstenção do PCP, e no final, com a moção de confiança chumbada o Governo cai e o Presidente da República terá de marcar eleições antecipadas. O mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que andava todo caladinho sobre a teia de aranha de Montenegro – e que agora já veio falar, e até de mais, porque deu a moção de confiança como chumbada antes de ser votada -, e já anunciou que pelas suas contas as eleições realizar-se-ão lá para o fim de Maio.

Estamos mesmo a ver uma campanha eleitoral de lavagem de roupa suja todos os dias on the road. Surpreendente é a táctica política dos homens de Montenegro. Possivelmente como são quase todos aconselhados por Cavaco Silva, estão a pensar, e um ministro já o afirmou publicamente, que a AD poderá vir a ter maioria absoluta… ora bem, nem mais. Um governo que tem deixado o povo pobre em número de 4 milhões cada vez mais na miséria, não estou a vislumbrar que a AD consiga uma maioria absoluta. Perfilam-se tempos difíceis de entender estes políticos. Tivemos eleições legislativas há apenas um ano, vêm aí eleições autárquicas em Setembro e logo a seguir eleições presidenciais em Janeiro de 2026.

Para um país na cauda da Europa, não acham que é luxo eleitoral a mais? O povinho está farto desta politiquice balofa que em nada melhora a qualidade de vida dos portugueses. Talvez por esta razão é que, todas as sondagens indicam que os portugueses não querem um Presidente da República político profissional mas sim um militar…

Portugal não tem remédio. Vença a AD ou o PS as próximas eleições, continuaremos na mesma a observar os gladiadores com toda a espécie de roupa suja para lavar. Não há remédio, porque ninguém consegue uma maioria absoluta que, pudesse dar luz verde a decisões profundas e estruturais a bem de povo, como por exemplo, desistir daquele supérfluo aeroporto de Alcochete e da venda na totalidade da TAP. Não tem remédio porque governantes e deputados irão continuar a serem proprietários de imobiliárias e a alterarem a Lei dos Solos para que as suas imobiliárias sejam uma mina de ouro em terras raras…

10 Mar 2025

Com o destino nas mãos

“O meu destino está nas minhas mãos”, é uma fala de Ne Zha, o protagonista da série de animação chinesa “Ne Zha 2”, que representa a forma de pensar de uma geração mais jovem ousada e que corajosamente desafia aqueles que estão no poder. Até certo ponto, quer o romance quer o filme, criticam o actual estado da sociedade. O protagonista conquista o público e o filme tornou-se naturalmente um tremendo sucesso. Os habitantes de Macau, que enfrentam a actual situação económica, também devem dizer “O nosso destino está nas nossas mãos”?

O Governo da RAEM anunciou finalmente que vai relançar o “Grande Prémio para o Consumo”, que este ano terá lugar de 24 de Março 1 de Junho, para ajudar as pequenas e médias empresas (PMEs) e estimular o consumo local. A sua iniciativa promocional também proporciona “desconto imediato para consumo de idosos”. Os idosos podem obter descontos imediatos no consumo no valor de 300 patacas mediante a nova versão do “Cartão da Macau para Idosos”. Embora a boa vontade do Governo da RAE seja evidente, irá realmente melhorar a difícil situação das PMEs?

Actualmente, as dificuldades enfrentadas pelas PMEs de Macau decorrem do enorme consumo dos residentes de Macau em cidades da China continental e dos desafios colocados pela mudança dos seus padrões de compra. Em comparação com as várias cidades da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, os custos operacionais, os preços das mercadorias e os serviços de venda em Macau ficam em desvantagem. Por exemplo, o preço da gasolina de 95 octanas na China continental é de cerca de 9 patacas por litro, enquanto em Macau custa geralmente cerca de 13 patacas. Não admira que os condutores de Macau, regressem do Interior da China, com o depósito do carro totalmente cheio. Além disso, o troço da Rua de S. Paulo junto à Rua da Palha está muito movimentado, enquanto mais de um terço das lojas que vão da Travessa da Paixão à Rua de Santo António estão encerradas. Que ajuda prestará o Grande Prémio à revitalização da economia das referidas ruas e arredores?

Perante as adversidades, o Governo da RAEM mostra vontade de mudar, mas, infelizmente, ainda há espaço significativo para uma melhoria no reconhecimento e resposta às mudanças. A tarefa crucial é quebrar o monopólio dos interesses instalados.

Tomemos como exemplo a Lei da Habitação Económica. No tempo da administração portuguesa de Macau, a habitação económica serviu para resolver as questões habitacionais dos moradores e os proprietários dessas casas foram autorizados a vende-las, criando um ajuste do mercado com imóveis a preços razoáveis.

Quando fui deputado da Assembleia Legislativa, o Grupo de Trabalho a que pertencia ficou responsável pela análise na especialidade da proposta de lei intitulada “Lei da Habitação Económica”. O Diário da Assembleia Legislativa publicou que os deputados da Associação de Novo Macau, onde eu me incluía, se opuseram à proposta para estabelecer um prazo do ónus de intransmissibilidade da habitação económica adquirida e condicionar a compra de habitação económica por parte dos jovens. Com um forte apoio institucional, a “Lei da Habitação Económica” passou, e as revisões subsequentes tornaram-se cada vez mais rigorosas. Enquanto algumas pessoas ficaram satisfeitas porque “a habitação económica tem sempre de manter a mesma natureza, não sendo um investimento”, mas têm ideia de quantos jovens ficaram “escravizados pelas hipotecas” quando compraram casa?

Em Macau, nasceram apenas 3.600 bebés no Ano do Dragão (2024), um número inferior aos 3.700 nascido no ano do Coelho (2023). Algumas estimativas apontam para 3.500 o número dos que nascerão este ano, e este número já é bastante optimista. Mas porque é que a “desnatalidade” está a ganhar força? O antigo Chefe do Executivo de Macau, Ho Hau Wah, teve a ideia visionária de propor fracções do “Edifício Mong In”, situado na Rua de Francisco Xavier Pereira, para arrendamento a recém-casados, proporcionando aos jovens casais uma opção de habitação social e aliviá-los do pesado fardo do crédito à habitação, permitindo-lhes criar os filhos com tranquilidade.

Infelizmente, a proposta do Sr. Ho não avançou e os jovens que desejam casar e comprar um apartamento não têm outra escolha a não ser recorrer ao mercado imobiliário privado. Mesmo com a ajuda dos pais, os jovens têm de pagar hipotecas superiores a um milhão de patacas! Agora, com o mercado imobiliário em declínio, os apartamentos que compraram estão desvalorizaram. Deve-se perguntar, como podem eles ter disposição para fazer bebés?

Sem quebrar o duplo monopólio da economia e da política, só nos podemos «resignar ao destino», em vez de acreditar que «o meu destino está nas minhas próprias mãos»!

7 Mar 2025

As alterações climáticas e as correntes oceânicas

Para facilitar o estudo do sistema complexo que é o clima, convencionou-se considerá-lo constituído por cinco componentes que interagem entre si: atmosfera, hidrosfera, litosfera, criosfera e biosfera.

As duas primeiras são as que mais se ressentem do comportamento de uma pequena parte da biosfera, nós próprios. Já não é novidade para ninguém, exceto para os negacionistas, que as alterações climáticas são devidas às atividades antropogénicas, que constituem a causa principal da injeção de gases de efeito de estufa na atmosfera.

Nestas duas componentes ocorrem mecanismos naturais que contribuem grandemente para o equilíbrio do clima: a circulação geral da atmosfera e a circulação oceânica. Cabe a ambas a tarefa de distribuir pelo globo terrestre o calor recebido do Sol na forma de radiação. Esta incide mais intensamente nas regiões das latitudes baixas.

Sem estes mecanismos naturais, o calor ficaria mais concentrado nas regiões equatoriais e tropicais, as quais continuariam indefinidamente a aquecer, enquanto o arrefecimento também não pararia nas latitudes mais altas. A circulação geral da atmosfera e a circulação oceânica contribuem, assim, para o equilíbrio do sistema climático. No que se refere à primeira, é facilmente compreensível que o facto de o ar se deslocar faz com que o calor seja distribuído pelo globo. O vento, nas suas mais variadas formas, tem um papel importante neste processo.

As correntes de jato, os ventos alísios, as monções, as brisas, os ventos catabáticos e anabáticos, entre outras formas em que o vento ocorre na natureza, encarregam-se dessa distribuição do calor. Inseridos neste mecanismo, os ciclones tropicais (tempestades tropicais, tufões e furacões), caracterizados por ventos muito fortes, contribuem grandemente para o transporte de energia calorífica das regiões mais quentes para as mais frias, na medida em que as suas trajetórias, que têm início nas latitudes baixas, descrevem estatisticamente uma espécie de parábola, progredindo para latitudes mais altas.

Por exemplo, no oeste do Pacífico Norte, os tufões têm geralmente o seu início em pequenas perturbações do campo da pressão atmosférica, entre as Ilhas Marianas e as Filipinas, progredindo para oeste, noroeste, norte, recurvando para nordeste e leste, transformando-se em depressões extratropicais. Os furacões, no Atlântico Norte, têm um comportamento semelhante, geralmente com início em pequenas perturbações do campo da pressão no bordo sul do anticiclone dos Açores, próximo de Cabo Verde, progredindo de maneira análoga para latitudes médias e altas. Independentemente das consequências por vezes catastróficas dos ciclones tropicais, estes fenómenos meteorológicos desempenham um papel indispensável na redistribuição do calor, contribuindo, assim, para o equilíbrio do clima à escala global.

Em complemento à ação da circulação atmosférica, a circulação oceânica desempenha um papel importante na redistribuição do calor. Além dos ventos persistentes, a temperatura e a salinidade da água, e consequentemente a sua densidade, são fatores que dão origem às correntes oceânicas, o comportamento das quais é sensível à variação destes parâmetros.

É incontestável que o aquecimento global tem vindo a provocar a fusão do gelo das calotas polares e dos glaciares, em ritmo cada vez mais acelerado, fazendo com que a água doce daí resultante escoe para o mar, o que poderá provocar alterações dos padrões atuais que caracterizam as correntes oceânicas.

E é aqui que a atenção de alguns cientistas está a incidir, considerando que as consequências destas alterações são preocupantes, em especial no Oceano Atlântico. Um dos estudos recentes refere-se às implicações que este processo tem na chamada Circulação Meridional de Reversão no Atlântico (tradução para português de Atlantic Meridional Overturning Circulation – AMOC), da qual faz parte a Corrente do Golfo, que progride de sul para norte, impulsionada pelo vento associado ao anticiclone dos Açores, transportando água quente do Golfo do México (sorry, Mr. Trump) para as regiões vizinhas da costa leste dos Estados Unidos da América e do noroeste da Europa, condicionando positivamente o clima nestas regiões.

A circulação AMOC consiste num sistema de correntes no Atlântico, à superfície e em profundidade, através do qual a água quente e salgada (na figura a vermelho) é transportada das regiões tropicais do Atlântico Norte, de sul para norte, e que, ao arrefecer, se afunda, invertendo o seu deslocamento para sul, em profundidade. Este processo poderá sofrer disrupção devido ao cada vez maior afluxo de água doce proveniente do degelo, o que provoca diluição da água superficial, a qual, assim diluída, deixaria de se afundar devido à sua menor densidade, o que poderá enfraquecer o ramo frio que flui em profundidade de norte para sul.

O padrão da circulação no Pacífico é diferente da AMOC, devido, entre outros, a fatores geográficos. Em vez de uma forte corrente de retorno em profundidade, prevalecem as correntes à superfície, impulsionadas pelo vento.

As correntes oceânicas contribuem grandemente para o equilíbrio do clima. Uma vez alteradas, gera-se desequilíbrio no sistema climático, com consequências que poderão ser graves para a sustentabilidade da vida no globo. Sobre este assunto foram publicados recentemente estudos, algo contraditórios nas conclusões no que se refere às consequências das alterações da AMOC. Segundo cientistas da Universidade de Copenhaga, conforme estudo elaborado em 2023 e publicado na revista científica “Nature”, poderá ocorrer um colapso da AMOC ainda durante este século, entre os anos 2025 e 2095, com possíveis graves consequências para o clima do Atlântico Norte. Por outro lado, um trabalho elaborado por cientistas do “Met Office” (Serviço Meteorológico do Reino Unido) e da Universidade de Exeter, em 2024, não é tão pessimista. Defende que a AMOC possa sofrer enfraquecimento, mas que é improvável o seu colapso durante este século.

Seja como for, estes estudos sobre as correntes oceânicas constituem mais um alerta relativamente às consequências do aquecimento global sobre o equilíbrio do sistema climático.

Meteorologista

6 Mar 2025

Geogastronomia e a Inteligência Artificial

“Artificial Intelligence doesn’t have five senses. Computers can’t convey how foods and drinks taste and smell…yet”.

Joshua Lurie

A intersecção da geogastronomia e da inteligência artificial (IA) apresenta uma exploração única e transformadora das culturas alimentares e das práticas culinárias em diversas geografias. A geogastronomia funde a geografia e a gastronomia, realçando o impacto do local na cozinha. Examina os factores que afectam os alimentos, incluindo o clima, o solo, a cultura e as tradições locais. Este conceito não é meramente teórico, mas engloba realidades práticas. Por exemplo, a dieta mediterrânica deriva a sua singularidade da flora, do clima e das práticas culturais da região. A combinação de comida e lugar fornece uma base para compreender como os ingredientes locais moldam as identidades culinárias.

A evolução deste campo pode ser rastreada até aos primeiros esforços antropológicos. Estudiosos como Claude Lévi-Strauss influenciaram esta perspectiva ao associar a comida à identidade cultural. No entanto, a geogastronomia moderna expandiu-se para incluir questões ambientais. Temas como a biodiversidade, a sustentabilidade e as práticas agrícolas locais são agora essenciais nos debates sobre os sistemas alimentares. A IA refere-se à simulação da inteligência humana em máquinas programadas para pensar e aprender. As aplicações da IA penetraram em vários sectores, incluindo os cuidados de saúde, as finanças e os transportes. Nas artes culinárias, a influência da IA é multifacetada. Tecnologias como a aprendizagem automática, o processamento de linguagem natural e a análise de dados estão a remodelar a forma como compreendemos e produzimos alimentos.

Os sistemas de IA podem analisar vastos conjuntos de dados para identificar tendências nas preferências alimentares, na utilização de ingredientes e na informação nutricional. Esta aplicação é particularmente valiosa para chefes de cozinha e empresas do sector alimentar que pretendem elaborar menus que correspondam às preferências dos consumidores. A capacidade de processar e interpretar rapidamente os dados promove a inovação, uma vez que os profissionais da culinária podem fazer experiências com base em provas e não apenas na intuição. As ferramentas modernas, como os geradores de receitas e os assistentes de cozinha, demonstram o potencial da IA. Por exemplo, o Chef Watson da IBM (Watson é a plataforma de IA da IBM que já havia demonstrado sua expertise em ” Jeopardy ” e no tratamento do câncer de pulmão, e como Chef Watson, está a auxiliar a IBM a atingir sua missão de “ajudar as pessoas a descobrir novas ideias” neste caso para a cozinha) exemplifica como a IA pode criar novas receitas analisando milhares de combinações culinárias.

Ao considerar factores como combinações de sabores e técnicas de cozinha, o Chef Watson facilita uma nova era de experimentação culinária. Várias personalidades importantes tiveram um impacto significativo nos domínios da geogastronomia e da IA. A chefe de cozinha e escritora Alice Waters é uma personalidade proeminente na promoção do movimento “da quinta para a mesa”, defendendo o abastecimento local e as práticas sustentáveis. A sua influência demonstra como a atenção dada à geografia pode impulsionar a inovação culinária e melhorar a compreensão das fontes alimentares e do seu significado. No domínio tecnológico, Andrew Ng (fundou e dirigiu o projecto Google Brain e foi cientista-chefe na gigante de buscas chinesa Baidu, além de ter dirigido o laboratório de IA na Universidade de Stanford) e Fei-Fei Li (foi vice-presidente do Google e cientista-chefe de IA/ML no Google Cloud e membro do conselho e consultora em várias empresas públicas e privadas e que actualmente é cofundadora/CEO da World Labs que é uma empresa de IA com foco em inteligência espacial e IA generativa).

Os seus contributos para a aprendizagem automática e a aprendizagem profunda lançaram as bases para aplicações de IA em vários domínios, incluindo a tecnologia alimentar. Estes avanços permitem que os chefes de cozinha e as empresas do sector alimentar adoptem abordagens inovadoras que fundem a tradição com a tecnologia. Além disso, vários investigadores e empresas em fase de arranque estão a explorar a intersecção entre a IA e a geogastronomia. Empresas como a FlavorWiki analisam as preferências de sabor dos consumidores utilizando análises baseadas em IA, ajudando as marcas alimentares a adaptar os produtos a gostos regionais específicos.

Esta combinação de tecnologia e conhecimentos culinários reflecte uma tendência crescente no reconhecimento da necessidade de uma abordagem baseada em dados para a produção e consumo de alimentos. A integração da geogastronomia e da IA promove diversas perspectivas, particularmente em torno da autenticidade, sustentabilidade e considerações éticas. Alguns críticos argumentam que o recurso à IA pode diluir a autenticidade culinária. Os métodos de cozinha tradicionais baseiam-se frequentemente na intuição e na transmissão cultural, que podem ser negligenciadas em favor de decisões baseadas em dados. A essência da cozinha caseira, para muitos, está directamente ligada a histórias pessoais, significado cultural e rituais únicos.

Além disso, a dependência da tecnologia coloca questões sobre a sustentabilidade. Embora a IA possa optimizar a produção de alimentos, existe o risco de dar prioridade à eficiência em detrimento da preservação das práticas tradicionais. Os argumentos que defendem um equilíbrio harmonioso entre a tecnologia moderna e as práticas tradicionais sugerem que a IA deve melhorar e não substituir o património cultural.

Por outro lado, os defensores da integração da IA argumentam que a tecnologia pode trazer sustentabilidade através da optimização dos dados. Ao prever o rendimento das culturas e analisar a saúde do solo, a IA pode contribuir para práticas agrícolas mais eficientes e para a redução dos resíduos.

6 Mar 2025

A hora do diabo

Por incrível que pareça é um conto de Fernando Pessoa em folhas soltas não datadas que em boa hora chegou à Biblioteca Nacional e foi estruturado e numerado para que tivéssemos uma janela de conhecimento atento e renovado deste pensamento modelar.

Quanto ao título, é sempre de cariz contemporâneo e de carácter permanente. Estamos a atravessar um tempo assim com características dinâmicas, surtos de inequívoca falta de lucidez e diminuição dos níveis de discernimento onde empoderamentos vários atiram os diálogos, as vozes, e conceitos de civilidade para patamares que não são mais que danações. Em assuntos de seriedade máxima temos sempre os grandes poetas, e nessa fonte clara, poderemos saber do ontem, hoje e amanhã, enquanto nos encontrarmos por cá em sucessivas vagas de encantamentos e flagrantes repetições a um vínculo demasiado telúrico que parece sempre sobrepor-se à transformação para um mais alto patamar de consciência.

As lacunas que precisam ser corrigidas a um texto assim, faz de quem o trabalhou um verdadeiro «chef d´ouvre” algumas páginas são manuscritas, outras não, o título passa de «Hora» para «Noite» e nalguns casos folhas não encimadas requerem enquadramento vigilante para não danificar nenhuma alusão ao seu carácter de mensagem, isto para não dizer que passar de uma língua para a outra em arcaísmos consideráveis, pode ser de facto um processo imerso em pura filigrana para que nada fique de fora. Talvez que estes grandes poetas se abstenham de arrumar e compilar bem os seus dados, e na imersão de uma criatividade que os supera, deixem, e muito bem, para outros, o trabalho burocrático da retificação. Se acorda, se não acorda, se se transforma, é aptidão logística, mas escapar ao fluxo criativo, inventivo, e neste caso, visionariamente perene e repleto de analogias civilizadoras, seria um mecanismo menor estar-se agarrado a uma qualquer consequência métrica. Talvez estejam ébrios, desligados, opiados, na busca da ideia em caracteres vários, sempre imperfeitos e irregulares, e mesmo assim, e passe as incongruências, a língua para ser entendida só deveria ser trabalhada por poetas.

O que mais se assemelha a esta “fila do pão” que o Diabo amassou, é uma antiga correspondência ao Mago Merlim, que ao não ser aludido, mesmo assim se encontra presente ao longo de todo este trajecto, um acontecimento que se produz na rua do Carmo onde por si mesmo está distante de uma qualquer fantástica existência, mas onde o Diabo resolveu para não morrer de tédio abordar uma jovem lisboeta, ter com ela uma interessante conversa, e mais tarde, quem sabe, por obra do Espírito Santo, ela engravidasse sem que aparentemente se tivesse passado nada. Neste encontro, o púdico Diabo, crê já a ter encontrado grávida, mas o embrião revolvera-se e despojar-se-ia talvez de um inútil marido dessa Maria, para ser filho de um transeunte enigmático: de facto, essa mãe sempre estivera como as suas palavras o proferiram, na presença de um cavalheiro. E retorquiu-lhe ainda o viajante «que homem pousou sobre teus seios aquela mão que foi minha? que beijo te deram que fosse igual ao meu? nas tardes de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu»

Todo este trajecto numa noite de Estio em uma cidade pacata, olhamos apenas para o reflexo da alma de um condenado com um labor inigualável para o encantamento, uma disciplina vigorosa, e um erotismo transbordante. Seguimo-lo de perto como se de um sonho se tratasse na voz do filho que mais tarde se recordaria entre mundos de o haver escutado, como se o verbo que pronunciara se tivesse feito carne.

E porque são estilhaços

Do ser, as coisas dispersas

Quebro a alma em pedaços

E em pessoas diversas.

Um testemunho bem mais requintado que a «Metamorfose» de Kafka, e longamente sentido como estranha confissão. A nossa heroína é no entanto a grande criatura, quando volvendo para ele os olhos marejados lhe disse: – Sabe? Tenho pena de si- Eu também. É de facto uma obra que só um homem pode escrever.

4 Mar 2025

Aperfeiçoar a economia de Macau (II)

A semana passada, analisámos a questão de se encaminhar os visitantes das tradicionais atracções turísticas para as zonas comunitárias, aumentando assim as receitas do comércio local nas áreas onde os residentes vivem o seu dia a dia. Desta forma, mais pessoas poderiam beneficiar do consumo dos turistas e o número de lojas encerradas poderia ser reduzido.

Para que este plano seja bem-sucedido, devemos começar a receber concertos e a criar carreiras de autocarros turísticos entre as salas de espectáculos e as áreas turísticas comunitárias. Os organizadores dos concertos terão de assinar contratos com os artistas. Se houver mais do que um artista a actuar deve assinar-se contratos com cada um deles. A sociedade de Macau deve decidir se os autocarros serão cedidos pelas empresas de transportes locais ou por outras empresas. A empresa que ficar encarregue deste serviço deve decidir se as viagens serão ou não gratuitas.

Com os autocarros turísticos a fazerem a ligação entre os locais dos concertos e as áreas de turismo comunitário, os turistas podem facilmente ser transportados. Como já mencionámos, estes locais situam-se nas zonas onde os residentes vivem o seu dia a dia. Originalmente, estes locais não eram considerados turísticos. Portanto, a primeira tarefa é atrair turistas para estas zonas e a segunda é levá-los a fazer compras nas lojas locais. Esta segunda questão terá de ser abordada e resolvida pelos comerciantes interessados.

A maior parte dos produtos que se encontram nas lojas de Macau vêm de Zhuhai, de Zhongshan e de outros locais. Actualmente, a maioria dos turistas que visitam Macau e Hong Kong provêm do Interior da China. Se encaminharmos turistas vindos da Área da Grande Baía para as zonas comunitárias e esperarmos que façam compras nas lojas locais não teremos grande êxito porque os produtos que aí se encontram à venda estão disponíveis nas cidades onde residem.

Além disso, esses produtos são mais caros em Macau do que na Área da Grande Baía e ninguém vai querer comprar por preços mais altos o que pode comprar mais barato. É preciso não esquecer que desde que começou o movimento conhecido como “os carros que se dirigem para Norte”, ou seja, a deslocação em massa dos residentes de Macau para fazer compras nas cidades próximas do Interior da China, o consumo local caiu significativamente. Este foi também um dos motivos da redução do consumo local. Não é surpreendente que a queda no consumo tenha resultado no encerramento de várias lojas que ficaram incapacitadas de pagar os alugueres.

Só existe uma forma de resolver o problema de os residentes saírem da cidade para fazer compras e também de levar os turistas do Interior da China a consumirem nas áreas comunitárias, e isso passa por ter produtos de maior qualidade, inovar e ter coragem para procurar a mudança.

Existe um famoso restaurante de hot pot na China continental. Quando abriu, não passava de uma pequena loja desconhecida. Mais tarde, à medida que o negócio floresceu, foram abrindo cada vez mais sucursais. O restaurante de hot pot foi diversificando a sua oferta e passou a vender os seus produtos em supermercados, embalados em caixas de plástico que continham tudo o que era necessário para aquecer as refeições. Era um “hot pot portátil”.

Os clientes podem adquirir a refeição sem terem de se deslocar ao restaurante. Além disso, quando as pessoas vão aos restaurantes de hot pot ficam impregnadas com um forte odor proveniente das refeições. Esta cadeia criou um serviço de lavagem da cabeça para que o odor desapareça. Todos estes serviços têm a ver com “inovação”. Em gestão, existe uma teoria que defende a inovação das empresas. Se a nossa empresa estagnar, mas os nossos concorrentes evoluírem, significa que os outros mudam enquanto nós não. Se o nosso concorrente for melhor, nós seremos eliminados.

Para além de procurar corajosamente a mudança, o tipo de produtos vendidos deve também ser ajustado. Os turistas da área da Grande Baía não compram facilmente produtos que podem adquirir em casa. No entanto, se os produtos vendidos nas lojas de Macau tiverem elementos portugueses que representem a fusão cultural de Macau, tornar-se-ão mais atractivos.

Produtos fabricados pelos jovens de Macau, como malas de mão e T-shirts, reflectem a mentalidade da juventude local e são um símbolo da sua forma de estar na vida, que é precisamente o que os adeptos do turismo imersivo procuram. Muitos dos imanes para frigoríficos vendidos nas lojas representam locais turísticos de Macau. E se em vez disso passássemos a fazer imanes com especialidades de Macau? Quando os turistas virem estas imagens nos seus frigoríficos vão naturalmente lembrar-se do tempo que passaram em Macau. Vão voltar a evocar estes sabores e reavivar as suas memórias, que estarão sempre frescas.

Para resumir, criar uma carreira de autocarros especial para levar o público dos concertos a consumir nas zonas comunitárias é uma estratégia que vale a pena tentar. Mas é essencial que as lojas destas zonas tenham a coragem de mudar e disponibilizarem produtos e serviços únicos e de boa qualidade. Só desta forma o comércio pode verdadeiramente beneficiar da visita dos turistas.

O consumo dos turistas nas lojas das zonas comunitárias é particularmente importante. Este consumo representa receitas para as lojas. À medida que estas receitas aumentarem, os impostos que pagarão ao Governo também irão aumentar. O Governo de Macau pode ter mais receitas criando novos impostos. Desta forma, podemos desfrutar dos benefícios de “um visto para fins múltiplos”. Neste sentido, toda a sociedade de Macau pode lucrar.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.

4 Mar 2025

Imobiliárias políticas, Limitada

Eu estava num miradouro serrano para onde os meus pais e avós me levavam há cinquenta anos, quando tinha 10 anos de idade, para admirar a paisagem linda, olhando para cima, a serra cheia de neve e para baixo a globalidade da minha terra, a Covilhã. Resolvi sentar-me e escrever no caderno as primeiras linhas desta crónica sobre o que tinha acabado de ver e sobre as últimas notícias chocantes da semana passada.

Há cinquenta anos, a Covilhã era um conjunto de casarios admiráveis sem quaisquer arranha-céus. Hoje, a cidade serrana é tão horrível cheia de prédios por todo o lado da urbe. Prédios de vários andares são infindáveis. Fiquei a pensar como é grandioso o negócio das imobiliárias. Deve ser um negócio melhor que os mais lucrativos do mundo, os gelados, as pizzas e o café. Uma vez, fui uma semana a Lisboa visitar uns familiares e numa só avenida contei dez imobiliárias.

Os portugueses sabem que raramente conseguem comprar ou arrendar uma casa sem que seja através de uma imobiliária e que as comissões dessas empresas dão um lucro grandioso. E que se pretenderem adquirir um terreno, o ideal será que toda a papelada seja tratada por uma imobiliária, esteja o terreno perto de uma cidade, de uma vila ou mesmo num interior rústico. As imobiliárias tratam de tudo e as pessoas sujeitam-se ao que está definido no negócio deste tipo de intermediação no que respeita a imóveis, terrenos e ao que se tem de pagar às imobiliárias.

Pois bem, na semana passada a discussão política andou à volta de imobiliárias. Chamar-lhes-ei imobiliárias políticas. Porquê? Porque depois de um secretário de Estado do actual Governo se ter demitido quando veio a lume que era proprietário de uma imobiliária e simultaneamente estava a participar na alteração à Lei dos Solos, a comunicação social trouxe à colação que o primeiro-ministro Luís Montenegro tinha uma imobiliária e que afirmou ter vendido, imagine-se, a sua quota à mulher e filhos. O assunto foi à baila na Assembleia da República e os deputados da oposição não ficaram satisfeitos com as explicações, sobre o tema, apresentadas pelo chefe do Executivo.

Quanto a nós, Luís Montenegro não teve transparência ao ser interrogado sobre quem eram os clientes da sua empresa familiar. Era importante que se soubesse quem eram os parceiros de negócio, porquanto ficará sempre a suspeição de que esses clientes poderão vir a usufruir de benesses governamentais. Inclusivamente o semanário Expresso, na sua edição da passada sexta-feira, denunciou que os casinos ‘Solverde´ pagam 4.500 euro por mês à empresa de Montenegro. Depois, bem, depois tem sido um chorrilho de notícias sobre imobiliárias detidas por membros do Governo.

O ministro da Coesão Territorial, Castro Almeida, que tem a tutela das alterações à Lei dos Solos, também tinha uma imobiliária e veio dizer que já tinha vendido a sua parte, mas só depois da “bronca” com o primeiro-ministro. No entanto, posição diferente foi assumida pela ministra da Justiça, Rita Júdice, que veio a público afirmar que “não tem qualquer intenção de se desfazer do seu património pessoal, constituído com o seu trabalho e dos seus familiares”, nomeadamente as quatro sociedades com negócios imobiliários de que é sócia.

A verdade é que da Cultura ao Trabalho, passando pela Defesa e Presidência do Conselho de Ministros, vários Ministérios empregam actuais e antigos sócios de empresas do sector imobiliário. No Ministério do Trabalho, já é público que a própria ministra Maria do Rosário Palma Ramalho inclui a gestão de património imobiliário na sua empresa ‘Palma Ramalho, Lda’. Mas não é a única: o secretário de Estado do Trabalho, Adriano Rafael Moreira, também inclui no oblecto da sua empresa de consultoria a “gestão de património, podendo para o efeito, alienar, adquirir e arrendar imóveis e proceder à revenda dos adquiridos”.

A empresa chama-se agora ‘Orbis Terra – Consultoria e Gestão, Lda’, um nome mais discreto do que o anterior no que diz respeito à ligação ao imobiliário e o governante é sócio único. Mas o apetite pelos negócios imobiliários no Executivo de Luís Montenegro não se esgota nestes governantes e até a responsável pela pasta da Habitação no Ministério de Miguel Pinto Luz foi sócia de uma empresa que se dedica à compra e venda de bens imobiliários. Trata-se da ‘Promobuilding – Serviços Imobiliários Lda’.

A empresa onde Patrícia Gonçalves da Costa foi gerente entre 2010 e 2015 e sócia minoritária até 2019 detém ainda 50 por cento da ‘Urbanquestion, Lda’, outra empresa criada em 2023 com o mesmo objecto que inclui a compra e venda de imóveis, construção de empreendimentos próprios para comercialização e promoção de estudos de urbanização. No Ministério da Defesa, o antigo deputado do CDS Álvaro Castelo Branco, agora secretário de Estado Adjunto, é sócio da ‘Rent 4 You – Sociedade Imobiliária, Lda’. Desta sociedade também faz parte o antigo deputado do PSD e actual membro do Conselho de Administração do AICEP Paulo Rios de Oliveira.

O historial de actividades empresariais do ramo imobiliário estende-se ao Ministério da Cultura. O recém-nomeado secretário de Estado Alberto Santos deteve 90 por cento da sociedade ‘Villa Gallaecia – Mediação Imobiliária, Lda’, dedicada à mediação e angariação imobiliária, mas também à avaliação de imóveis e consultadorias várias.

E a própria ministra Dalila Rodrigues teve quota numa empresa da família: trata-se da ‘Rita Aguiar Rodrigues Arquitectos Lda’, que como o nome indica presta serviços de arquitectura, mas também inclui no seu objecto a construção e remodelação de edifícios e a compra, venda e revenda de bens imóveis. Em comunicado divulgado na noite de terça-feira passada, tanto a ministra como o secretário de Estado confirmaram que detiveram aquelas quotas em sociedades, mas que as cederam antes de tomarem posse no Governo. E na Assembleia da República? Bem, não fiquem de boca aberta.

No Parlamento, também não faltam deputados com empresas no ramo imobiliário. Além dos quatro parlamentares do Chega, o partido que viabilizou e tem adiado a votação que pode chumbar as alterações à Lei dos Solos, encontram-se muitos exemplos nas bancadas do PS e sobretudo do PSD. A dar o exemplo de empreendedorismo imobiliário num país onde o preço das casas e das rendas é incomportável para quem vive com salários baixos está o próprio presidente da Assembleia da República.

José Pedro Aguiar Branco é sócio da ‘Portocovi – Gestão e Administração de Bens Lda’, que tem por objecto a compra e venda de bens móveis e imóveis, arrendamento, gestão e administração de bens próprios ou alheios e prestação de serviços. Confrontado com a divulgação pública sobre a sua empresa, Aguiar-Branco respondeu aos jornalistas queixando-se de “voyeurismo” sobre os titulares de cargos políticos, onde “tudo é escarrapachado: o seu património, a sua situação do ponto de vista financeiro, tudo o que tem a ver com um acervo particular, ainda que não exista alguma suspeita”.

E o que queria Aguiar-Branco? Que os jornalistas fossem uns “macaquinhos” a silenciar, a não ouvir e a não ver? O mais importante é que tudo isto vem a público porque o Governo resolveu alterar a Lei dos Solos e na qual, futuramente, todas estas imobiliárias políticas poderão vir a usufruir de avultados rendimentos…

2 Mar 2025

A Terapia de Casal ou O Amor na Tempestade

Agora trabalho como terapeuta de casal, um sonho que há muito queria concretizar. A minha compreensão já não se baseia apenas em leituras incontáveis, mas também na experiência direta com o conflito dos casais. Deixo que essas vivências ressoem no meu conhecimento e na minha prática terapêutica, na esperança de que resultem em reflexões mais ricas neste espaço de escrita. Hoje, quero falar-vos sobre o amor na tempestade.

Uma relação amorosa pressupõe um vínculo afetivo. Podemos discutir as muitas formas possíveis de “casal”, mas convido-vos a focarem-se na ideia de duas pessoas que se encontram e procuram conectar-se através do que têm de mais íntimo e profundo. Normalmente, nesse tipo de relação, há sexo—o mecanismo de ligação por excelência, que nos remete aos nossos desejos mais primários. A teoria sugere que escolhemos os nossos parceiros porque encaixam na longa história das nossas ligações afetivas, começando pelas relações mais primárias, como a dos nossos pais. Assim, estabelecemos vínculos românticos que, ao mesmo tempo que oferecem a possibilidade de reparação emocional, também alimentam as nossas disfunções. O amor não existe sem essa polaridade. O vínculo vive na tensão entre encontrar o amor das nossas vidas e o risco de esse mesmo amor se tornar no nosso maior inimigo. Esta é, claro, uma caricatura, mas quero que fiquem com a consciência desta dualidade.

É comum que os casais, ao tomarem consciência dessa tensão, procurem a terapia. Surge, então, uma questão angustiante: como pode a pessoa que amo despertar em mim tanta tristeza, raiva ou frustração? É a própria evolução da relação que leva a esses caminhos sinuosos. As nossas crenças, a forma como moldam o nosso comportamento e até a nossa compreensão do amor romântico influenciam a maneira como lidamos com essa ambivalência. A verdade é que pouco nos preparamos para essa realidade. Recentemente, um marido em profunda angústia partilhou comigo: “Eu não traí, nem ando atrás de ninguém. Não percebo porque estamos assim.”

Na terapia de casal, o objetivo não é eliminar o conflito, mas compreendê-lo. O desencontro é inevitável, e é por isso que se procuram ferramentas para melhor lidar com ele. Um dos pilares desse processo é criar um espaço onde se possa falar francamente sobre os desafios da relação. No entanto, esse desencontro é emocionalmente carregado e nem sempre de fácil resolução. Não basta oferecer um novo mapa para que o casal trilhe um caminho diferente. Nem é papel do terapeuta dar soluções simples. Para reconstruir uma relação, é necessário encarar uma tempestade—daquelas de chuva descontrolada, vento a 100 km/h e trovões ensurdecedores. O terapeuta ajuda a navegar essa tempestade, para que o casal compreenda que o amor contém, em si, essa possibilidade disruptiva. No fundo, o terapeuta confirma que, mesmo que o sofrimento pareça atroz e o desencontro confuso, está tudo bem. O desencontro faz parte da vida.

A tempestade é um sintoma de um estado primitivo, um reflexo do corpo perante a frustração das suas necessidades emocionais—sejam elas de proximidade ou de afastamento. É um estado em que o pensamento racional é ofuscado pela reação instintiva. Pode manifestar-se como luta ou fuga, como se o parceiro fosse um predador, ou como evitamento, uma tentativa de se proteger de um parceiro que parece consumir a pouca energia emocional que resta. Em última instância, a forma como reagimos ao desencontro está ligada à maneira como lidamos com o vínculo afetivo.

Independentemente da abordagem terapêutica utilizada, todas as escolas psicoterapêuticas convergem nesta estratégia essencial: tornar esses mecanismos internos evidentes. A partir dessa consciência, a terapia ajuda o casal a criar novas “danças” emocionais, promovendo compreensão e empatia para que o desencontro se torne menos destrutivo.

Naturalmente, há casais que chegam à terapia num ponto em que o espaço terapêutico serve para preparar o divórcio ou a separação. Nesses casos, a mediação oferecida pelo terapeuta permite que se mantenham formas de comunicação baseadas no respeito. Muitos terapeutas “divorciam” casais, e isso também é um resultado de sucesso.

O estigma associado à terapia em geral é uma barreira. Para além do jantar romântico esporádico, ou tempo de qualidade juntos, que muitos terapeutas irão certamente prescrever, a terapia ambiciona ir para outros sítios. Investir na relação é essencial para o amor, seja através da terapia ou de conversas honestas sobre a dinâmica do casal. Porque o amor não acontece simplesmente, ele sobrevive entre o conforto, o prazer e o conflito.

28 Fev 2025

A geogastronomia e o papel da gastronomia portuguesa em Macau

(continuação)

Os chefes de cozinha estão cada vez mais a experimentar pratos de fusão que incorporam sabores internacionais, mantendo-se fiéis às raízes portuguesas. O aparecimento de novas tendências gastronómicas, como a “farm-to-table” e a gastronomia sustentável, reflecte a crescente consciência da origem e da qualidade dos alimentos. As redes sociais também transformaram a forma como as experiências culinárias são partilhadas e percepcionadas. Plataformas como o Instagram tornaram mais fácil para os chefes mostrarem os seus pratos a um público global, atraindo entusiastas da comida e contribuindo para a promoção da gastronomia macaense.

Através de apresentações visualmente apelativas, os Chefes podem envolver os clientes e incentivar a apreciação dos sabores intrincados da cozinha luso-macaense. Várias análises académicas da paisagem geogastronómica de Macau revelam a complexa interacção entre cultura e comida. Os estudiosos enfatizam o conceito de identidade, ilustrando como as práticas culinárias servem de reflexo da herança cultural e dos valores da comunidade. A mistura de tradições culinárias portuguesas e chinesas cria uma identidade distinta para Macau, reforçando a sua posição como um caldeirão cultural.

A investigação sugere que as experiências gastronómicas são vitais para fomentar um sentimento de pertença entre os residentes e promover os laços comunitários. Os eventos e festivais culinários que celebram a gastronomia luso-macaense reforçam ainda mais o envolvimento da comunidade e promovem uma identidade cultural partilhada, encorajando o orgulho nas tradições e valores locais. O papel da gastronomia portuguesa em Macau está pronto para uma evolução contínua. A crescente consciencialização dos consumidores para a sustentabilidade e para a saúde irá provavelmente moldar as tendências culinárias. Os chefes de cozinha poderão dar prioridade à utilização de ingredientes locais e orgânicos, explorando ao mesmo tempo técnicas de cozinha inovadoras que honrem as práticas tradicionais.

A promoção de programas educativos que enfatizem a importância do património culinário pode ajudar a garantir que as gerações futuras apreciem e continuem a tradição da gastronomia portuguesa. Ao promover ligações entre chefes de cozinha e consumidores, Macau pode manter a sua identidade culinária única numa paisagem global em constante mudança. O papel da gastronomia portuguesa em Macau serve como um rico exemplo de como os factores culturais e geográficos se entrelaçam para moldar as práticas culinárias. À medida que Macau navega pelas influências contemporâneas e antecipa desenvolvimentos futuros, a essência da gastronomia portuguesa continua a prosperar e a evoluir, prometendo um futuro culinário vibrante e dinâmico.

A evolução da cultura culinária macaense é também influenciada pela mudança dos hábitos dos consumidores e pela globalização. O aumento do turismo gastronómico em Macau conduziu a um maior interesse pelos pratos tradicionais, uma vez que os visitantes ansiosos por experimentar os sabores locais exploram a paisagem gastronómica. Os restaurantes podem responder elevando as receitas tradicionais a experiências gastronómicas requintadas. Eventos como a “Festa Internacional das Cidades de Gastronomia, Macau” também promove o apreço pela cozinha local, chamando a atenção para as competências dos chefes locais e para a importância do património culinário.

Nos últimos anos, tem-se assistido a um esforço consciente para preservar os métodos tradicionais, integrando simultaneamente técnicas modernas e influências globais. A introdução de elementos como a gastronomia molecular começa a ser uma prática em vários restaurantes de luxo de Macau, criando um novo diálogo entre os pratos tradicionais e a ciência alimentar contemporânea. Estas abordagens inovadoras desafiam a noção de autenticidade, sugerindo que a tradição não é estática, mas dinâmica. Enquanto há puristas que defendem a preservação das receitas originais, outros defendem uma reinterpretação que reflicta os gostos e as preferências alimentares contemporâneas.

A sustentabilidade da cozinha macaense no contexto moderno é outra área crítica a examinar. A consciência ambiental começou a influenciar as práticas culinárias, com uma ênfase crescente na utilização de ingredientes de origem local. Esta mudança melhora a frescura dos alimentos servidos nos restaurantes macaenses. Os estabelecimentos estão a destacar cada vez mais o seu empenho em práticas ecológicas, podendo integrar nos seus menus marisco sustentável e legumes orgânicos. Estas práticas garantem que, embora a cozinha permaneça enraizada no seu contexto histórico, continua a evoluir de forma sustentável.

Além disso, a intersecção de tendências globais teve impacto na paisagem culinária tradicional de Macau. O fascínio global pela cozinha de fusão encorajou os chefes a experimentarem combinações não convencionais. Esta mistura de tradições culinárias pode ser vista na popularidade de pratos como o caril de lagosta macaense-tailandês ou os biscoitos de amêndoa influenciados pelas técnicas de pastelaria portuguesas e chinesas. Estes desenvolvimentos reflectem a evolução do paladar tanto dos habitantes locais como dos turistas, reflectindo uma narrativa culinária mais ampla que desafia os conceitos tradicionais do que constitui a comida macaense.

O futuro da cozinha macaense parece promissor, caracterizado por uma exploração contínua da identidade, da inovação e do intercâmbio cultural. À medida que a cena culinária evolui, é crucial que os Chefes e os entusiastas da gastronomia encontrem um equilíbrio entre o respeito pelos métodos tradicionais e a adopção de novas técnicas. O potencial para um maior reconhecimento internacional continua a ser forte, particularmente no domínio da restauração requintada, onde os sabores macaenses podem ser apresentados com interpretações modernas.

No entanto, persistem desafios, nomeadamente no que respeita à preservação de práticas culinárias autênticas. Podem surgir discussões em torno da apropriação cultural à medida que os pratos macaenses ganham popularidade e são adaptados em vários contextos culinários. O desafio reside em assegurar a manutenção da integridade dos pratos tradicionais e, ao mesmo tempo, interagir eficazmente com um público global ávido de novidades. Este diálogo realça o delicado equilíbrio entre adaptação e autenticidade no património culinário.

A culinária Portuguesa de Macau representa uma rica tapeçaria de sabores formada através de séculos de intercâmbio cultural, inovação e adaptação. O contexto histórico fornece uma base para compreender como estas influências diversas se entrelaçaram, conduzindo a uma identidade culinária distinta.

Chefes de cozinha influentes defenderam esta cozinha, assegurando a sua relevância na gastronomia moderna, enquanto os esforços de sustentabilidade têm como objectivo mantê-la ligada às tradições locais. A interacção entre tradição e modernidade, autenticidade e inovação, continuará a moldar o futuro da cozinha macaense. O entusiasmo em torno desta paisagem culinária promete atrair o interesse global, imortalizando os sabores e as narrativas que definem este património gastronómico único.

27 Fev 2025

Aperfeiçoar a economia de Macau (I)

Depois de Sam Hou Fai ter tomado posse como Chefe do Executivo de Macau, expressou repetidas vezes o desejo de aperfeiçoar a economia da região, promovendo uma diversificação moderada do sector e corrigindo a situação que leva a que a indústria do jogo domine a economia da cidade.

Macau posicionou-se como uma cidade do lazer, mas o seu modelo turístico está a mudar de ‘passeios turísticos tradicionais’ para “Turismo imersivo” e existem muitas lojas fechadas nas ruas da cidade. De acordo com os dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, existiam 42.996 espaços industriais e comerciais fechados em Junho de 2020. Em Dezembro de 2024, este número subiu para 43.343. Estes dados demonstram que a economia ainda não recuperou completamente depois da pandemia e que o trabalho do Governo de Macau ao nível do desenvolvimento económico se tornou difícil.

Para estimular a vitalidade da economia de Macau e beneficiar mais residentes da cidade, várias pessoas defendem que se deve focar o turismo na comunidade em lugar de encaminhar os visitantes para as atracções turísticas. Desta forma, poder-se-á aumentar as vendas das lojas situadas nas áreas comunitárias, permitindo que mais pessoas possam ter acesso às receitas do turismo e reduzindo o número de espaços comerciais fechados. Já fazem parte deste plano o aumento do número de pontos de check-in na Rua Fulong e o aparecimento de muitas bancas em Coloane que vendem produtos topo de gama.

Mas como podemos levar os turistas a consumir na comunidade? Há quem diga que se pode atingir este objectivo através da realização de concertos. O processo passaria por organizar transporte gratuito para levar as pessoas que visitam os locais turísticos comunitários para a sala do concerto.

Um dos motivos pelo qual Macau pode receber estes eventos com sucesso é o facto das salas de concerto em Hong Kong estarem sempre cheias. Macau pode aproveitar a oportunidade e proporcionar locais alternativos. Os concertos atraem multidões por isso são uma excelente forma de trazer muitos turistas para Macau.

Actualmente, algumas plataformas de viagens, em colaboração com os organizadores de concertos, vendem bilhetes, em pacotes que incluem estadia no hotel, refeições, transporte e outros itens. O pacote fica mais barato do que se as compras fossem feitas individualmente. Este modelo reduz o custo da viagem para Macau e pode aumentar nos turistas a vontade de consumir na cidade. Se o projeto for enriquecido com serviços de autocarros turísticos para permitir que os visitantes acedam directamente aos locais turísticos nas áreas comunitárias, naturalmente a possibilidade de consumirem no comércio local aumentará e esta será uma forma de estimular a economia de Macau.

Para alcançar este objectivo, em primeiro lugar é necessário assegurar o sucesso do concerto. Os organizadores têm de assinar um contrato com os artistas. Mas se houver mais do que um artista a actuar, é preciso ter muita cautela. O caso que ocorreu com Messi, que era suposto ter jogado em Hong Kong, mas acabou por não jogar, fez com que o Governo da RAEHK tenha percebido que para além de se fazer um contrato com uma equipa, se não se fizerem contratos individuais com todos os participantes, pode pôr-se em risco a vinda de alguns deles.

O episódio de Messi inspirou Macau. Quando se organiza um concerto, de forma a ter a certeza que as vedetas que chamam mais público estarão presentes, é necessário assinar contratos separados para garantir a presença de todos eles. Sem esta disposições, existe a possibilidade de algumas destas estrelas falharem o concerto.

Depois de assegurar a presença das estrela, o próximo passo é a organização de transporte para os espectadores. Este autocarro deve ser um autocarro turístico tradicional? Devido à actual tendência das viagens imersivas, aparentemente, os turistas preferem os autocarros normais para experienciarem o dia a dia dos residentes da cidade. Talvez a sociedade de Macau possa ter esta ideia inovadora, ou seja, usar os autocarros dos Transportes Colectivos de Macau para realizarem este serviço turístico. Estes veículos levariam os visitantes aos locais turísticos comunitários e podiam transportar turistas e residentes locais. Desta forma, os turistas não só teriam a sensação de viajar num autocarro vulgar, mas também se reduziria o número de turistas que esperam nas filas por transporte e que congestionam os autocarros locais. E isto deve ser tomado em conta porque os turistas transportam bagagem que ocupa muito espaço. Os autocarros turísticos só viajariam entre os locais de concerto e as zonas turísticas comunitárias. O número de passageiros seria relativamente baixo e cada um deles disporia de espaço suficiente, o que aumenta o conforto. A decisão de estas viagens serem pagas ou serem grátis deve caber à empresa transportadora.

Qual será o próximo passo depois de garantir os concertos e os autocarros turísticos? Irão os turistas consumir nas áreas comunitárias? Daremos a resposta na próxima semana.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.

26 Fev 2025

Obrigado, Nuno, muito obrigado

Faz hoje uma semana que perdemos o Nuno. Perdemos o seu olhar azul, enquadrado por um cabelo escuro, e a beleza, por vezes inocente, das suas convicções. Perdemos o seu bom humor, a sua crença na humanidade, no Direito e numa sociedade mais justa. Perdemos o homem bom, equilibrado e excelente companheiro. Eu, pessoalmente, perdi o amigo com quem, dos 14 aos 17 anos, partilhei a minha vida quase diariamente no Liceu Camões, nas praias da Costa da Caparica, nas primeiras festas, na vivência tímida dos primeiros amores.

Já nesse tempo o Nuno Fernando Correia Neves Pereira era um apaixonado por desporto, uma paixão que o acompanhou até ao fim. E era o melhor de nós quando tocava a jogar basquete ou futebol. Um predestinado, dizia-se. Depois veio o full-contact. Ainda o fui ver, no Coliseu dos Recreios em Lisboa, realizar um combate de exibição, na primeira parte de um espectáculo de luta livre do famoso Tarzan Taborda. À saída, confessou-me: “Passados 15 segundos já estava todo suado. Passados 30 já me sentia cansado. Nem imaginas como isto é difícil.” E era, mas as dificuldades não o faziam desistir.

Contudo, o destino não quis que ele se entregasse totalmente à paixão desportiva que o habitava, talvez porque aos 18 anos o trouxe até Macau. Aqui se formou em Direito, aqui se empregou na função pública como jurista, tendo chegado a Chefe de Departamento, aqui leccionou na universidade, aqui se apaixonou, casou e teve dois filhos: Nuno e Tatiana. Aqui o voltei a encontrar quando, anos depois, também desembarquei na Cidade do Nome de Deus.

Em relação ao Direito, o Nuno era um ardente estudioso, conhecedor e defensor do Direito de Macau e das suas especificidades. Fascinava-o a identidade desta legislação única, construída sobre a lei portuguesa e os costumes locais, sobretudo porque entendia ser o Direito local uma expressão da diferença desta terra e ser essa diferença um sinónimo de riqueza cultural. Nesta linha trabalhou, ensinou e uma coisa muito rara é certa: por todo o Macau, da boca de ninguém ouvi uma má palavra sobre o Nuno, o que também não espanta porque nunca ouvi da sua parte uma má palavra sobre alguém. Era assim o Nuno: as suas críticas nunca eram pessoais, mas sobre ideias, factos ou argumentos. Ou seja, como deve ser e tão escasso hoje é.

O Nuno não era apenas alguém interessado na sua profissão, porque tinha um amor antigo pela literatura e pelas artes. Lia muito e lia um pouco de tudo, dos calhamaços de Direito a José Saramago, passando por Jorge Amado e Fernando Pessoa. O seu interesse pela pintura também nasceu cedo. Aos 16 anos, sabendo da minha devoção pelos The Doors, ofereceu-me um belo retrato de Jim Morrison, pintado por ele a tinta-da-China, que eu pendurei no meu quarto. Recentemente, disse-me que, agora reformado, se voltaria a dedicar à pintura, afinal a paixão que também nunca o abandonara.

Mas o destino também não quis assim, porque o destino é cego e estúpido. De que outra forma poderíamos classificar quem nos roubou assim o Nuno, de forma súbita e bruta, sem um aviso, sem uma nota, uma ameaça ou um prefácio?

Pois é, Nuno: não te podias ir embora sem nos dares uma última lição sobre a nossa precaridade, sobre a vacuidade dos nossos planos face à risível sorte, sobre a necessidade de vivermos a nossa vida hoje, perante a incerteza do amanhã.

Era escusado, Nuno, mas obrigado. Não tinhas de ter partido assim tão de repente, de forma tão inesperada, mas obrigado. E obrigado por teres partilhado comigo parte do teu caminho e por todas as memórias (ó meu Deus, como elas me assaltaram durante esta semana!) que me deixas. Por tudo: obrigado, Nuno, muito obrigado.

24 Fev 2025

Sam Hou Fai e Wu Sui

Todos sabem quem é Sam Hou Fai, mas Wu Sui, alguém sabe quem é? Acredito que não só a maioria dos portugueses, mas também muitos chineses nunca tenham ouvido este nome. No entanto, na sociedade chinesa, especialmente em Macau onde as crenças populares são preservadas, Wu Sui é uma figura importante porque é uma “divindade tutelar” do Ano da Serpente, responsável por supervisionar a felicidade e o infortúnio do mundo dos humanos.

Wu Sui nasceu na China há 800 anos durante a Dinastia Song e serviu como magistrado no condado de Xiuning. Durante o seu mandato, Wu Sui expôs muitos crimes escondidos e os condados vizinhos procuraram frequentemente a sua ajuda e conselho para resolverem casos difíceis. Certo ano, houve uma grande seca e Wu Sui orou no templo durante três dias e três noites e acabou por chover. Para aliviar o impacto que a seca teve no povo, Wu decretou a redução de impostos e do aluguer das terras, prestando socorro a 48.000 vítimas deste desastre. Nessa altura, mais de 400.000 refugiados vindos de outras zonas afectadas atravessaram o rio para Xiuning e Wu Sui fez todos os possíveis para os ajudar. Enquanto outras cidades estavam mergulhadas no caos, devido a incidentes de agitação, fogo posto e saques motivados pela seca, as áreas governadas por Wu Sui permaneciam pacíficas e ordeiras, sem que alguém criasse qualquer problema. Por isso, não é sem razão que a tradição popular elegeu Wu como a divindade tutelar no Ano da Serpente.

Devido aos actuais desenvolvimentos internacionais complexos e constantemente em mudança, acredita-se que 2025 será um ano que acontece uma vez em cada século e que terão de se enfrentar grandes desafios. Embora as crises e as oportunidades andem de mãos dadas, nem todos os líderes sabem “reconhecer a mudança”, “responder à mudança” e “procurar a mudança”. Recentemente, Xia Baolong, o director do Gabinete de Trabalho de Hong Kong e Macau e do Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado, visitou a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin, A Zona de Cooperação e Inovação Tecnológica e Científica de Hetao Shenzhen-Hong Kong (Zona de Cooperação de Hetao), a Zona de Cooperação da Indústria de Serviços Modernos entre Distrito Qianhai em Shenzhen e Hong Kong e o Porto de Yantian, onde esteve profundamente envolvido em conversações com os funcionários responsáveis para fortalecer a cooperação entre Guangdong, Hong Kong e Macau e para promover a melhor integração destas cidades na Área da Grande Baía de Guangdong-Macau.

Hong Kong e Macau, em conjunto com Guangzhou e Shenzhen, eram outrora vistos como os quatro motores do desenvolvimento da Área da Grande Baía de Guangdong-Macau. No entanto, devido a vários factores, Hong Kong ainda está na fase de “transição da estabilidade para a prosperidade” enquanto a “diversificação das indústrias 1+4” em Macau está, por enquanto, numa fase embrionária. Se o Governo da RAEM não conseguir lidar com a diversificação com cautela, não vai conseguir produzir sinergias na Área da Grande Baía de Guangdong-Macau, mas, pelo contrário, porá em risco o estatuto de Macau como um potencial centro financeiro internacional e como Centro Mundial de Turismo e Lazer. Por conseguinte, o Director Xia está muito preocupado com o desenvolvimento futuro de Hong Kong e de Macau.

Desde que Sam Hou Fai tomou posse como Chefe do Executivo, acredita-se que o seu hábito de “passear nas ruas” foi alterado, tornando-se mais complicado para ele tomar conhecimento das dificuldades que a população local enfrenta todos os dias, relacionadas com a falta de emprego e com o encerramento de lojas devido à quebra do consumo. Além da queda dos preços dos imóveis, o custo de vida está constantemente a aumentar e nos programas de rádio ouve-se frequentemente a pessoas a pedirem que o valor de risco social e a pensão de velhice sejam aumentados. A bela ideia da “integração de Macau e Hengqin” não consegue melhorar o actual nível de vida dos residentes de Macau a curto prazo. Nas próximas Linhas de Acção Governativa da RAEM para o Ano Financeiro de 2025, espero sinceramente que o Governo se ocupe efectivamente das questões com que os cidadãos têm de lidar diariamente.

Sam Hou Fai passou de juiz do Tribunal de Última Instância a Chefe do Executivo, ao passo que Wu Sui passou de magistrado para ser uma divindade tutelar da tradição popular. No entanto, ambos foram confrontados com o desafio de encontrar soluções para aliviar as dificuldades que as pessoas têm de enfrentar.

21 Fev 2025

A geogastronomia e o papel da gastronomia portuguesa em Macau

“Macau’s food culture is a fascinating amalgamation of flavors brought together by centuries of trade and colonial rule. The Portuguese influence is particularly evident in dishes that combine local ingredients with techniques and recipes brought from Portugal.”

Macau’s Culinary Delights: Portuguese and Chinese Fusion

Barker, Anthony

A intersecção entre a geografia e a gastronomia, designada por geogastronomia, ilustra a influência significativa do lugar nas práticas culinárias. A culinária portuguesa de Macau engloba uma mistura única de tradições culinárias, práticas inovadoras e intercâmbios culturais que evoluíram a partir de influências portuguesas e ingredientes locais. No cerne da cozinha macaense está o seu enquadramento histórico. A identidade gastronómica de Macau emerge dos laços históricos com Portugal, sobretudo a partir de meados do século XVI. A presença portuguesa na Ásia deu início a um intercâmbio cultural e culinário que levou ao desenvolvimento de pratos únicos. Esta ligação estabeleceu uma plataforma para o intercâmbio culinário não só entre as cozinhas portuguesa e chinesa, mas também com os sabores de outras regiões, como a Índia e o Sudeste Asiático. Assim, as origens da cozinha macaense podem ser atribuídas a esta integração intercultural, moldada pela disponibilidade de ingredientes locais e pela migração de povos.

A introdução de ingredientes como o açafrão, as malaguetas e as batatas transformou a cozinha local. As receitas tradicionais portuguesas foram adaptadas aos gostos locais e aos recursos disponíveis, criando assim um híbrido culinário distinto. Durante o período da colonização, os portugueses em Macau estabeleceram um porto comercial vibrante, facilitando o comércio entre a Europa e a Ásia.

Este comércio trouxe não só ingredientes exóticos, mas também diversas técnicas culinárias que formaram a espinha dorsal da gastronomia de Macau. A mistura de sabores de influências portuguesas, chinesas e asiáticas contribuiu para a riqueza da oferta culinária de Macau. A cena culinária de Macau tem sido moldada por diversos chefes de cozinha que têm estado na vanguarda da promoção de pratos tradicionais portugueses fundidos com influências locais. A sua abordagem exemplifica o culminar das tradições culinárias portuguesas e dos ingredientes locais, resultando em pratos inovadores que apelam tanto aos locais como aos turistas.

Além disso, os historiadores e críticos gastronómicos têm desempenhado um papel crucial na documentação e promoção da história da gastronomia portuguesa em Macau. A sua investigação fornece informações valiosas sobre a evolução das práticas culinárias, ajudando a preservar o património e a garantir a sua relevância futura. A geogastronomia analisa a forma como os contextos geográficos e culturais moldam as práticas alimentares. Em Macau, esta perspectiva é evidente na fusão culinária que define a região. Diversos pratos tradicionais portugueses foram adaptados utilizando temperos locais, criando uma versão única que reflecte a identidade de Macau, não podendo ser considerado cópia ou adulteração.

A influência das especiarias e das técnicas culinárias locais levou também ao aparecimento de pratos macaenses, como o “Pork Chop Bun”, chamada de ” versão macaense do hambúrguer” e derivado da “bifana” e o “African Chicken”, que é derivado do “frango à piri piri” que evidenciam a mistura de sabores e tradições. O papel das especiarias na cozinha macaense não pode ser subestimado. Os colonos portugueses trouxeram consigo uma grande variedade de especiarias das suas colónias, incluindo pimenta preta, canela e cravinho. Estes sabores misturaram-se com ingredientes indígenas chineses, dando origem a pratos únicos que reflectem ambas as heranças. Por exemplo, um dos pratos macaenses mais famosos é o Bacalhau à Brás, um prato de bacalhau que integra técnicas portuguesas com sabores locais como o alho e a cebola. Outro prato notável é o icónico Caril Macaense, que apresenta influências portuguesas infundidas com especiarias que lembram a cozinha indiana.

A introdução de novos métodos de cozedura é um aspecto importante desta fusão. A cozinha tradicional portuguesa envolve frequentemente técnicas como grelhar, estufar e cozer. Estes métodos foram harmoniosamente misturados com os métodos chineses, como fritar e cozer a vapor, criando uma cozinha que é tão diversa na preparação como no sabor. Pratos como o a “Pato de cabidela”, um prato de pato cozido em vinagre e servido com arroz, exemplificam esta mistura. O uso do arroz em si é digno de nota, pois é um alimento básico em ambas as culturas, muitas vezes preparado com técnicas que realçam o seu sabor, como fritar com alho antes de ferver.

A adaptação destes pratos demonstra a natureza dinâmica das práticas culinárias em resposta a factores geográficos e culturais. O papel da gastronomia portuguesa vai para além das meras práticas culinárias; desempenha um papel significativo na formação da identidade cultural e no desenvolvimento económico de Macau. A rica oferta culinária da região tornou-se uma parte vital da sua indústria turística. Os turistas que procuram experiências autênticas são frequentemente atraídos para os restaurantes locais que servem pratos tradicionais luso-macaenses, apoiando assim as empresas e a economia.

Além disso, a paisagem culinária ganhou reconhecimento internacional, com Macau a receber o título de Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO a 31 de Outubro de 2017. Esta designação sublinha a importância da preservação do património culinário, promovendo simultaneamente o seu significado cultural e o seu potencial de inovação. Destaca a necessidade de práticas sustentáveis nos sectores do turismo e da gastronomia, garantindo que os sabores únicos de Macau continuem a prosperar. Nos últimos anos, a cena culinária de Macau tem registado mudanças significativas devido à pandemia da Covid-19, globalização e à alteração das preferências dos consumidores.

(continua)

20 Fev 2025

Austrália interdita redes sociais a menores de 16 anos (III)

Nas últimas duas semanas, temos vindo a analisar a decisão do Senado australiano de aprovar a alteração à Lei de “Segurança na Internet (Idade Mínima para Acesso a Redes Sociais) de 2024” efectuada a 28 de Novembro de 2024, que interdita o acesso às redes a menores de 16 anos. Os conteúdos da nova lei são simples, mas do ponto de vista operacional, existem muitas questões que merecem ser discutidas.

As duas questões principais são as seguintes, em primeiro lugar, nem os infractores nem os seus responsáveis legais não são penalizados à luz da nova lei, a penalização recai apenas sobre as empresas que gerem as redes sociais. Esta abordagem pode conduzir a litígios sobre a atribuição de responsabilidade quando posta em prática.

Em segundo lugar, a nova lei exige que as empresas que gerem as redes sociais tomem medidas para verificar a idade dos utilizadores. Contudo, a nova lei estipula claramente que os utilizadores não podem carregar nessas plataformas os documentos de identificação, o que dificulta a determinação correcta da sua idade. Um porta-voz da Meta declarou que o Facebook respeita a lei australiana, mas que está preocupado com o processo adoptado, pois considera que foi acelerada a implementação da lei para assegurar a interdição do acesso `de crianças às redes sociais sem terem sido ouvidas as diferentes opiniões sobre o assunto.

Uma vez que actualmente não existe um método mais eficaz para evitar que os menores de 16 anos utilizem as redes sociais, para resolver o problema, o Governo australiano declarou que iria adoptar o “Sistema de Certificação de Idade” britânico. Está planeado convidar 1.200 cidadãos australianos para fazerem um teste de avaliação etária, e uma empresa de consultoria implementará as recomendações em meados do corrente ano. Este será um dos maiores testes com tecnologia de avaliação de idade já realizados. Se for bem-sucedido, tornar-se-á um importante indicador de referência para os órgãos legislativos e as plataformas tecnológicas em todo o mundo conseguirem detectar a idade dos utilizadores das redes sociais. Será um modelo global altamente representativo e estará de parabéns.

Mas se falhar, terá a Austrália um plano alternativo para fazer cumprir a nova lei? Embora não tenha sido mencionado nos noticiários, do ponto de vista da administração pública, seria complicado ter um sistema informático completamente novo, de eficácia desconhecida, para lidar com os problemas sociais decorrentes do acesso de crianças com menos de 16 anos às redes sociais, o que é, sem dúvida, um risco. Se estiver preparada para ambos os cenários a Austrália terá mais facilidade em implementar a nova lei.

Quando é necessário verificar a idade dos utilizadores, o método mais eficaz é através da apresentação de cartões de identidade, passaportes, etc. Na Austrália este método não é legal, possivelmente porque as fotos e os dados de identificação são informações pessoais e envolvem questões de protecção da privacidade. Quando as empresas que gerem as redes sociais recebem informação precisa, podem determinar correctamente a idade dos utilizadores, mas ao mesmo tempo, como têm acesso a muitos dados dos utilizadores, têm de tratá-los com cuidado. À luz da nova lei, as empresas que gerem as redes sociais podem evitar estes problemas porque não terão de processar os dados pessoais dos utilizadores, e estes não precisam de se preocupar com a possibilidade de os seus dados serem divulgados, roubados ou vendidos por terceiros.

Além disso, em relação aos aspectos práticos e operacionais da nova lei, existe outra questão que se prende com o jogo online. Os menores de 16 anos são estudantes do ensino básico. Os jovens deste grupo etário ainda não possuem capacidade de auto-controlo e auto-preservação e viciam-se facilmente no universo online. Estão muito dependentes das plataformas de redes sociais e dos jogos online. O primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, afirmou que o uso excessivo das redes sociais é um risco para a saúde física e mental das crianças e que deve ser introduzida legislação para controlar este risco. Se a Austrália aprovou legislação para proteger a saúde física e mental dos menores de 16 anos, será o próximo passo impedi-los de jogar online?

A 25 de Outubro de 2019, a Administração da Imprensa e de Publicações da China continental emitiu o “Aviso da Administração Nacional de Imprensa e Publicações para Prevenção do Vício nos Jogos Online entre os Menores”, estipulando que todas as empresas de jogos online só podem ter os jogos disponíveis às sextas, sábados, domingos e feriados. Nestes dias, os jogos estão disponíveis durante uma hora, das 20.00 às 21.00, e não será disponibilizado qualquer tipo de serviço noutros horários. Esta regulamentação foi efectivamente aplicada na China continental.

Em contrapartida, a Coreia do Sul aprovou uma lei em 2011 para restringir o acesso de menores de 16 anos ao jogo online entre as 22.30 e as 6.00, mas a lei foi muito contestada e acabou por ser revogada por não respeitar os direitos dos mais jovens.

A nova lei australiana reconhece os riscos que as redes sociais representam para a saúde física e mental das crianças. Se os jovens começarem a usar as redes sociais demasiado cedo, ficam sujeitos a consequências adversas como depressão, assédio, ansiedade e fracos resultados académicos. Se continuar a evoluir para “Vício da Internet”, será ainda mais grave e é inevitável legislar. A questão de restringir o acesso de crianças aos jogos online pode ser vista como a continuação a restrição do acesso de crianças às redes sociais e pode vir a ser tratada da mesma maneira. A experiência da China continental nesta área pode vir a ser valiosa para outros países.

Hong Kong e Macau não têm actualmente legislação que regule o acesso de menores de 16 anos às redes sociais ou às plataformas de jogos online. Precisamos de legislação para regular estas questões? A nova lei australiana é um alerta para nos lembrar este problema. O que devemos fazer? Cada uma destas regiões pode realizar uma investigação aprofundada e decidir de acordo com as suas conclusões.

Na próxima semana, teremos um novo tema.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
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18 Fev 2025

O ministro que traiu outro ministro

Um ministro cometeu o “crime” e outro ministro é que foi para a “prisão”. Mal comparado foi o que aconteceu com o ministro das Finanças, Miranda Sarmento, contra o seu homólogo das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, no caso da suspensão do subsídio de renda a mais de 80 mil pessoas que vivem em dificuldades. Sem qualquer aviso prévio, a Autoridade Tributária e Aduaneira versus Finanças, com toda a crueldade, suspendeu o subsídio de renda de cerca de 200 euros, uma medida decretada pelo Governo anterior para o prazo de cinco anos e que teve o seu início em 2023.

O ministro Pinto Luz, que tem a tutela do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) – instituição que se limitava a pagar segundo a luz verde recebida pelas Finanças durante os dois últimos anos – é que foi obrigado, confrontado por deputados na Assembleia da República, a pedir desculpa aos lesados. Quem tinha de pedir desculpas aos portugueses afectados com medida tão ingrata era o ministro das Finanças. Obviamente, que a revolta dos lesados caiu em cima do IHRU que nem estava preparado para uma contestação tão significativa e nem sequer possui um número suficiente de funcionários para fazer frente a filas de gente que durante toda a semana passada estiveram à porta do IHRU a aguardar atendimento durante horas em pé.

O primeiro-ministro Luís Montenegro tem afirmado a todos os ventos que governa para as pessoas. Pensamos que as suas pessoas sejam os amigos e compadres, porque os milhões de pobres existentes no nosso país de certeza que não se inserem na sua governação. Ficou bem patente para quem Montenegro governa. Em 1 de Janeiro de 2023, o seu antecessor António Costa tomou uma das medidas mais humanas e solidárias da política portuguesa em democracia.

Decretou que cerca de 200 mil pobres, famílias que viviam em grandes dificuldades de sobrevivência e que não tinham possibilidade de pagar a renda de casa, passassem a usufruir durante cinco anos de um subsídio de renda aproximado de 200 euros, para auxílio ao pagamento da renda, após as Finanças constatarem através do IRS quais os cidadãos a necessitar de auxílio, o que veio a acontecer automaticamente. Agora, assistimos, sem qualquer aviso prévio, ao corte governamental desse subsídio de renda a mais de 85 mil pessoas. Pessoas essas, que contavam com esse pecúlio para fazer frente ao pagamento da renda e que, mais uma vez, ficaram em falta perante os seus senhorios. Uma medida repleta de crueldade e desumanidade.

O Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) sabia perfeitamente que o Orçamento do Estado tem cativada a quantia de 300 milhões de euros para o pagamento dos subsídios de renda aos cerca de 200 mil portugueses pobres. O instituto nunca admitiria que este caso viesse a acontecer sem ser avisado com antecedência. Mesmo assim, as Finanças não se coibiram de decidir pela infâmia de cortar o subsídio de renda tão necessário a milhares de portugueses desprotegidos. O IHRU, que era a instituição pagante, foi de imediato alvo das maiores críticas nos órgãos de comunicação social e na Assembleia da República, onde um deputado nos desabafou tratar-se de uma “cretinice”.

Em face dos protestos, o IHRU emitiu um comunicado onde indicava que a partir do início da semana passada as pessoas que se sentissem prejudicadas teriam no site do IHRU uma aplicação onde poderiam confirmar os seus dados de rendimentos junto do Portal das Finanças e inserirem a sua reclamação. Esta aplicação não foi disponibilizada à grande maioria dos lesados e o IHRU viu-se obrigado a desligar o seu único número de telefone para onde as pessoas poderiam solicitar informações sobre o que tinha acontecido aos seus subsídios de renda, devido à grande avalanche de chamadas telefónicas.

A decisão infame das Finanças abrangeu portugueses em todo o território nacional. No entanto, a quase generalidade dos lesados não teve qualquer vector de solução e, em Lisboa, os lesados começaram a ter conhecimento de que a única solução seria deslocarem-se pessoalmente às instalações do IHRU, perto da Praça de Espanha, a fim de serem atendidos sobre o problema.

De salientar, que entre as pessoas desprezadas e roubadas pelo Governo, incluem-se cidadãs e cidadãos que são invisuais, deficientes, velhos e que lhes é de todo impossível deslocarem-se pessoalmente à sede do IHRU. Já não falando dos milhares de lesados que não têm qualquer acesso à internet, que não têm computador para poderem consultar o site do IHRU ou o Portal das Finanças, facto este, que encerra um desprezo total por essas pessoas.

Um cidadão pobre, muito pobre, de 79 anos de idade, morador no Bairro de Moscavide, sem acesso à internet, foi aconselhado a deslocar-se pessoalmente à sede do IHRU. O cidadão saiu de casa às 07.00 horas, apanhou o comboio na estação do Oriente para a de Roma-Areeiro, aí deslocou-se por três linhas do Metropolitano, a verde, vermelha e azul, subiu dezenas de escadas porque as rolantes e os elevadores encontravam-se avariados. Sentiu-se mal e sentou-se num banco do jardim da Praça de Espanha junto à Avenida Columbano Bordalo Pinheiro onde se situa a sede do IHRU. Às 9.05 horas entrou no edifício soberbo de oito pisos e no balcão transmitiram-lhe, seca e friamente: “Já não há vagas, volte às 14.00 horas!”. O cidadão olhou para a pequena sala de espera e na mesma estavam sentadas umas vinte pessoas. Oito andares para atenderem 20 pessoas em cada manhã? Ah… existem muitos outros serviços no IHRU e os funcionários têm mais que fazer…

Mas, quem criou esta bagunça ingrata foram as Finanças e a revolta caiu sobre o IHRU e o instituto não estava preparado para a reacção de mais de 85 mil pessoas… O cidadão em causa regressou a Moscavide pela mesma via e ao meio-dia partiu novamente pelo mesmo caminho até à sede do IHRU, na esperança de que o seu problema da retirada do seu subsídio de renda fosse resolvido, já que o seu rendimento do ano passado para este ano não tinha aumentado nem um euro. Debalde. Às 14.00 horas também já não havia senhas de atendimento. Pobre homem, que regressou a Moscavide e desistiu de arriscar algum ataque cardíaco depois de tanto esforço.

É isto, governar para as pessoas? É isto, a função e o serviço públicos? É isto, que o povo merece? É isto, o serviço de Finanças que não perde tempo a penalizar um português que se atrase no pagamento de qualquer imposto? É isto, governar para as pessoas? É isto, proteger os mais desprotegidos da nação? É isto, forma de fazer com que o povo acredite nos políticos? É isto, que faz com que o povo se manifeste nas sondagens que está farto de cruéis e mentirosos e tenda a votar para Presidente da República num homem como o almirante Gouveia e Melo. Ai, Portugal, Portugal…

17 Fev 2025

O falso aliado

PARECE que começamos a abrir os olhos, porque, a crer na sondagem que hoje é notícia, apenas 18% dos portugueses sondados acham que os EUA são um país nosso aliado. Julgo eu que nunca o foram, a não ser num curto período da Segunda Guerra Mundial e, mesmo então, só por conveniência circunstancial de ambos os países.

Quem cá mandava era o Salazar que até dos EUA pensava horrores, por lá haver, embora só legalmente, partidos diversos. Agradava-lhe, no entanto, perceber que quem de facto ditava as regras na terra do Tio Sam eram os possuidores e usuários da supremacia branca que praticavam uma exploração brutal das populações de cor, como na angolana Baixa do Cassange.

Além disso, também existia a manutenção pós-esclavagista do apartheid, até nos transportes públicos, uma realidade muito difícil de ignorar até pelas máfias e mil igrejas cristãs.

Acontece que na Europa dos 27 a clarividência dos sondados ainda é mais residual porque aceitam cordialmente o conceito do “parceiro necessário”, tal como limpar o rabo com papel de cores diversas, como se pode concluir da última sondagem realizada pelo European Council on Foreign Relations (ECFR).

Nos países que participaram nesse inquérito (Alemanha, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Estónia, França, Hungria, Itália, Polónia, Portugal, Reino Unido, Roménia, Suíça e Ucrânia), a grande maioria dos inquiridos acha que os EUA lhes bastam com o estatuto de “parceiro necessário”, com o qual se tem de cooperar estrategicamente”.

É na França e na Alemanha que se encontram as parcelas mais expressivas da população que olham para os EUA como um rival ou um adversário, 19% e 23%, respectivamente.

A sondagem, realizada entre novembro e dezembro últimos, estima ainda que a reeleição de Trump apenas veio alterar percepção europeia dos EUA, mostrando, por exemplo, a alteração ocorrida na Dinamarca, que no inquérito de Abril de 2023 tinha mais de mais de 50% dos inquiridos a dizerem que os EUA eram aliados e pouco mais de 30% a afirmarem que era Washington era um “parceiro” imprescindível.

Algo mudou, então, no shakespeareano país do príncipe Hamlet, onde agora já há neonazis no governo, como na Bulgária, Estónia, Hungria, Itália, Polónia, Roménia, Ucrânia, Bélgica, Suécia, Noruega, Finlândia e outros.

Os autores do inquérito da ESFR alertam para que “será difícil encontrar uma via europeia coerente para o futuro” e dividem os inquiridos em quatro categorias no que respeita à sua visão da posição dos 27: os euro-otimistas, que vêem a União Europeia (UE) como uma potência e acreditam que o seu colapso não está eminente com Trump no poder; os europessimistas, que acham que a EU não é uma potência geopolítica e antecipam o seu colapso para breve; os euro-realistas, que não encaram a EU como uma potência, mas não acreditam que irá colapsar; e os euromortalistas, que vêem a EU como um potência em risco de colapso.

Eu não sei bem qual destas categorias me aquartelar, porque a minha preocupação é que, pelo caminho em que vamos, parece cada vez mais distante a libertação da Europa para a paz, a solidariedade e a dignidade de todos os seus cidadãos.

Mas lá chegaremos, já que a história do mundo está feita de altos e baixos, sem nunca voltar ao princípio de todas civilizações, quando o que comesse mais também viveria mais.

*

QUEREM os partidos neonazis e da variada extrema-direita fazer da escola o bastião da sua batalha ideológica e cultural contra o sistema educativo, também muito variado, da chamada ideologia progressista” pelo que vemos a escola pública e a educação no centro de uma batalha feroz para normalizar as suas ideias.

Segundo um estudo da revista científica “Arquivos Analíticos de Políticas Educativas”, existe uma “agenda política comum, embora com nuances nem sempre subtis, que dá forma a uma Internacional da Educação europeia de extrema-direita”. Mesmo sem estrutura orgânica ou funcional, relaciona-se sob a ideia comum de que “a escola é um espaço crucial através do qual se pode moldar a mentalidade da população”.

Escrevem os autores do estudo, Enrique Javier Díez-Gutiérrez, e Mauro -Rafael Jarquín-Ramírez, citados por António Rodrigues, no “Público”, que a extrema-direita combate o progressismo instilando na cabeça das populações a que consegue chegar, e são muitas, “valores tradicionais” a partir de uma perspectiva de mercado, isto é, tingindo-os de uma estranha mistura de patriotismo, neoliberalismo, xenofobia e assimilação”, pelo que quem não for nesta onda tem se ser “encostado à parede”, como clamam André Ventura e seus prosélitos.

O objetivo destes monstrinhos modernaços, muito bem lepenizados, é, segundo os autores do estudo, “questionar e desacreditar” o modelo da escola pública, “minar” a relação entre os pais e a escola, “fomentar o medo” nos professores até que eles próprios se censurem. Pretendem uma escola apolítica e neutra, tentando, ao mesmo tempo, eliminar a realidade de uma escola que eduque cidadãos com base “em valores democráticos plurais”, valores que favoreçam “a igualdade social”. Dão prioridade à decisão individual contra a ética pública e o bem comum”.

Há que acrescentar que, sabendo tudo isto e professando uma ideologia democrática – visceralmente democrática na luta de classes –, eu nunca seria capaz de “encostar à parede” nem o Ventura nem o seu ex-compincha ladrão de malas.

14 Fev 2025

Macau no Ano da Serpente e o Turismo de Massas

(Continuação da edição de 6 de Fevereiro)

A área que vai do Largo do Senado até à Rua de S. Domingos, Rua da Palha, Travessa do Bispo e Travessa da Sé devia ser minuciosamente planeada em termos turísticos e gastronómicos devendo as lojas ali situadas destinadas à culinária chinesa, macaense, portuguesa e internacional e os restantes espaços serem explorados por lojas de interesse turístico e recomendadas pelos Serviços de Turismo de Macau. Só desta forma Macau honrará a distinção de ter sido considerada Cidade Criativa na área da Gastronomia pela UNESCO e se produzirá em parte a tão almejada diversificação económica. Outros tipos de planeamento urbano à actividade turística e roteiros gastronómicos devem ser igualmente criados em outras zonas de Macau, Taipa e Coloane.

O turismo de massas altera a paisagem social de qualquer destino. Em Macau, o afluxo de milhões de turistas todos os anos transformou os costumes e tradições locais. A população local, que é significativamente mais pequena do que o número anual de turistas, vê as suas práticas culturais e estilo de vida ofuscados pela crescente comercialização da região. O equilíbrio entre a preservação da identidade cultural e a satisfação do turismo de massas é complexo. O anterior Chefe do Executivo de Macau, Ho Iat Seng, defendia iniciativas que promovessem o turismo cultural, com o objectivo de mostrar o rico património de Macau a par das suas atracções modernas. Estes esforços incluem projectos de conservação do património e promoção do artesanato local, permitindo aos residentes interagir com os turistas de forma autêntica e respeitosa.

Por outro lado, o sentimento local pode ser um desafio, uma vez que alguns residentes expressam frustração com a presença esmagadora de turistas. A crescente população de turistas cria aglomeração nos espaços e instalações públicas, levando à insatisfação dos habitantes locais. A resolução destas tensões é essencial para manter uma coexistência harmoniosa entre residentes e visitantes. O impacto ambiental do turismo de massas é outro aspecto crítico que merece ser discutido. A rápida urbanização de Macau conduziu a alterações ecológicas notáveis. A construção de resorts e casinos resultou na perda de habitats e no aumento da poluição. O aumento do número de turistas diários contribui para a produção de resíduos (onde os ratos vão proliferando e invadindo também as lojas no Centro Histórico incluindo as que servem alimentos) e para a utilização excessiva dos recursos locais, o que suscita preocupações de sustentabilidade.

Os esforços recentes iniciados pelo governo de Macau centram-se na atenuação destes efeitos negativos através de regulamentos ambientais e iniciativas ecológicas. Com o objectivo de promover práticas de turismo sustentável, as propostas incluem o incentivo à utilização de transportes públicos (insuficientes e onde os utentes são encaixotados por empregados das concessionárias na Praça Ferreira do Amaral e motoristas como se de gado se tratasse aos gritos e onde as malas de grande porte dos turistas ocupam o lugar dos utentes e os ferem por vezes sem que ninguém proíba tal prática) e a promoção de iniciativas de construção ecológica para novos empreendimentos. Estas políticas reflectem uma consciência crescente da necessidade de preservar o ambiente de Macau a par das suas ambições económicas.

Várias personalidades influentes moldaram a paisagem turística de Macau. Entre elas encontra-se o saudoso Dr. Stanley Ho, uma das figuras mais proeminentes da indústria dos casinos e um dos principais arquitectos da transformação de Macau num centro global de jogo.

A sua visão e investimentos tiveram um impacto duradouro na região, levando à construção de vários marcos que são agora sinónimos do turismo de Macau. Além disso, os líderes dos sectores público e privado são cruciais na promoção de práticas de turismo responsável que os residentes exigem. Os profissionais da hotelaria e gestão do turismo devem defender estratégias sustentáveis para equilibrar o crescimento económico e a conservação do ambiente. Os seus esforços devem contribuir para as discussões em curso sobre a manutenção de um modelo de turismo viável face às mudanças na dinâmica do mercado.

As perspectivas sobre o turismo de massas em Macau variam muito entre as partes interessadas. Os funcionários do governo enfatizam frequentemente os benefícios económicos, vendo o turismo como um motor vital para o crescimento. Promovem políticas que atraem investimentos e operadores turísticos, argumentando que estas medidas criam oportunidades de emprego e melhoram as infra-estruturas. Por outro lado, os residentes locais podem ter uma percepção mais crítica do turismo.

Salientam os efeitos negativos na sua qualidade de vida, incluindo a diluição cultural e o aumento do custo de vida. As suas vozes ilustram a necessidade de uma abordagem mais inclusiva do desenvolvimento do turismo que dê prioridade à participação e ao feedback da comunidade. Do ponto de vista empresarial, os operadores do sector do turismo são apanhados entre as necessidades dos turistas e as preocupações da comunidade local. Embora se esforcem por atrair visitantes, têm também de considerar a sustentabilidade a longo prazo das suas operações. Se o sentimento local continuar a azedar, isso pode acabar por pôr em risco os seus negócios.

Olhando para o futuro, Macau enfrenta vários desafios de desenvolvimento. A pandemia da COVID-19 teve um impacto dramático no turismo global, incluindo em Macau, onde o número de visitantes caiu significativamente desde o início de 2020. As estratégias de recuperação devem agora alinhar-se com os objectivos de desenvolvimento sustentável. O governo está a explorar a diversificação para além do jogo e do turismo de massas, promovendo o turismo cultural, os eventos desportivos e as atracções familiares como vias alternativas. Com a retoma das viagens, Macau tem a oportunidade de reconceptualizar o seu modelo de turismo. A adopção de iniciativas de ecoturismo e culturais pode ajudar a atrair um maior número de visitantes. Estratégias de marketing inovadoras que realcem o património cultural único e a beleza natural de Macau podem aumentar a sua atracção e, ao mesmo tempo, atenuar os aspectos negativos do turismo de massas.

A colaboração sectorial entre os organismos governamentais, as comunidades locais e o sector privado será crucial para moldar uma paisagem turística futura que beneficie todas as partes interessadas.

O envolvimento das populações locais no planeamento do turismo e na tomada de decisões pode criar um sentido de propriedade partilhado, conduzindo, em última análise, a um quadro turístico sustentável e inclusivo. A relação entre a evolução cultural de Macau e o fenómeno do turismo de massas revela uma dinâmica multifacetada e complexa.

O ano da Serpente serve de reflexo ao crescimento e transformação neste contexto. Embora o turismo de massas tenha gerado benefícios económicos significativos, também apresenta desafios relacionados com as consequências sociais, ambientais e culturais. Para garantir uma abordagem equilibrada, as partes interessadas devem trabalhar em colaboração para navegar nos meandros do desenvolvimento do turismo, assegurando que Macau mantém a sua identidade única, ao mesmo tempo que beneficia economicamente.

À medida que a paisagem turística evolui, a adopção de práticas sustentáveis e a promoção do envolvimento da comunidade serão fundamentais para preservar a essência de Macau para as gerações futuras.

13 Fev 2025

Ano da serpente e ofiússa

Lunar, o calendário chinês não deixa margem para dúvidas que ao conquistar o mundo imprimiu em nossas vidas arquétipos adormecidos e características marcantes onde todos ganhamos nessa vasta esteira de culturas e civilizações. Há já algum tempo que também festejamos este ciclo extremamente belo e iniciático como se incorporássemos mais um rito àqueles conhecidos e deles nos tornássemos cúmplices e por isso mais fraternos.

Começa na primeira Lua-Nova do calendário gregoriano aprovado pela China em 1912, e como de um calendário lunar se trata em seu bestiário, ele reinará por um ano a Oriente, enquanto nós, vamos ainda demarcando mês a mês o código astral em nossas Estações onde o ponteiro roda em ciclo solar. Existe porém neste novo ano uma chamada de atenção para as nossas ancestrais raízes numa fascinante e estranha simbologia, que quanto à parte tangível, há ainda que saber diferenciar uma serpente de uma cobra.

Ofiússa ou a Terra Das Serpentes! — Pois bem, assim foi denominado pelos gregos em tempo muitíssimo remoto o actual território português, a terra dos «ofis», um povo montanhoso que vivia mais a norte indo até à Galiza e que provavelmente se situava também na foz dos rios (foz de Ofir).

Para os gregos este local era no mar desconhecido, mas Ulisses, o bravo herói, não se deixava amedrontar pela vastidão marítima, e crê-se que aportou nestas costas, e tanto ele como seus homens ficaram estarrecidos pela beleza destas terras, onde se crê, reinava uma rainha de vontade indómita com aparência de serpente, fascinante, sedutora, e extremamente afável para os que descobriam o seu reino vindos de extremidades distantes, ela parece ainda uma espécie de Urizen quando do alto das colinas onde hoje é Lisboa, dizia: «Sou eu rainha para toda a eternidade». Mas, e não raro, os fascinantes também se apaixonam, que ao ver Ulisses, caíra na própria armadilha da sua carga magnética. Ulisses, que agora à distância nos parece ter sido um homem difícil, recusou-a, mas não sem antes por amor ao local que considerou o mais belo do mundo, o ter nomeado de Ulisseia, em pleno território da Serpente, a magnífica.

Muito mais tarde quando o manuelino imperou, nós iriamos recuperar esse condão lendário em cordas -serpentes aladas- correntes que sobem, fios que descem, círculos e sinuosidades, encontrando de facto uma das mais eloquentes manifestações artísticas que impregnaram o nosso olhar e jamais nos subjugariam a uma linha recta.

A perfusão de todo este elenco para se colocar de pé com os pesos que uma certa horizontalidade transporta, talvez tenha sido, e é, a deriva da Serpente que em nós se não esgotara (que no fundo sempre fomos muito pouco góticos). Na modalidade psíquica foi diabólica, e poderemos sentir-lhe ainda a inércia, a falta de critério que devora tudo que lhe sai ao caminho, e essa paz medonha de quem se crê hipnótico, características próprias de demónios a “rebentar pelas costuras” com pupila sagaz para um estranho rastejar que não é subserviência mas uma incrível e tenaz produtora de “venenos”.

Também a arquitectura octogonal que nos foi tão querida nos remete para o bastão de Mercúrio e suas duas serpentes entrelaçadas que ao formarem inúmeros oitos quase desaguam nas nossas muito ilustres Capelas Imperfeitas. A razão por terem sido nomeadas assim, prende-se, quem sabe, a esse estranho mundo sem abóbodas, tectos e telhas, que nos remete para um movimento anti-foguetão e a uma impressão que se inscreve na mandala do infinito sempre em círculo, que afinal, tudo no vasto universo parece serpenteante. Quanto a nós, ao sermos dúbios não significa ainda ser maléfico, cabemos na dualidade e mutabilidade das nossas percepções, mas o que outrora nos fora propostos era mesmo uma triangulação que superasse a definição redutora de um certo conceito binário.

«Ophis» em grego, mas também a vara de Moisés nos indica que um objeto estanque e a direito se pode converter numa outra coisa quando se transforma em flexibilidade e superação. As serpentes gostam de leite, e há passagens belíssimas de como respondem ao chamamento de terrinas repletas, como aquelas que Ernst Junger nas «Falésias de Mármore» nos descreveu, dizendo que se dispunham nesse banquete fazendo um ardente símbolo solar.

Quem nunca a viu diante de si? Caleidoscópica… fascinante…imprópria, mas nunca banal. Afinal, nem foi ela que matou Jesus, ao que consta, apenas lhe fez companhia. Quem o matou foram os homens.

Um grande Ano para o mundo.

12 Fev 2025

Austrália interdita redes sociais a menores de 16 anos (II)

A semana passada, mencionámos que o Parlamento Australiano aprovou a alteração à Lei da “Segurança na Internet (Idade Mínima para Acesso às Redes Sociais) a 28 de Novembro de 2024, interditando o acesso de menores de 16 anos à maioria das redes. O conteúdo da lei é simples, mas do ponto de vista da sua operacionalidade, existem várias questões que merecem ser debatidas.

Antes de mais, a Austrália não é o primeiro país a legislar esta matéria. Na Europa, muitos países já restringiram o acesso de crianças às redes sociais. A idade mínima estabelecida varia de país para país, mas geralmente, situa-se entre os 13 e os 17 anos.

Em segundo lugar, na Flórida, Estados Unidos, a restrição do acesso de menores de 13 anos às redes sociais desencadeou um processo por limitação da liberdade de expressão. O mesmo pode vir a acontecer na Austrália depois da implementação da nova lei e esse será um risco que o Governo australiano terá de correr.

Em terceiro lugar, quando se identifica um menor que transgride a lei, só a empresa que gere a rede social é punida. O menor e os pais não são considerados responsáveis. Neste sentido, a lei falha enquanto disciplinadora. Esta abordagem pode conduzir a conflitos em torno da atribuição de responsabilidade quando entrar em vigor. Alguns questionam se isso significa colocar toda a culpa nas empresas de redes sociais, ignorando as responsabilidades pedagógicas das famílias.

Pode haver duas razões pelas quais a nova lei não responsabiliza criminalmente os infractores. Primeiro, como as redes sociais são muito populares, as pessoas em geral usam-nas e os menores de 16 anos são facilmente influenciados. Segundo, as leis podem prever idades mínimas diferentes para que os infractores assumam a responsabilidade criminal. Na Austrália, A idade de responsabilidade penal situa-se entre os 10 e os 14 anos, o que significa que certos transgressores com idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos podem assumir um certo grau de responsabilidade penal. A nova lei aumenta a maioridade penal em dois anos, aparentemente para permitir que os utilizadores com menos de 16 anos evitem ser responsabilizados e para impedir que mais crianças infrinjam a lei devido à sua tenra idade. Mas, por outro lado, se apenas punirmos as empresas de redes sociais que fornecem as ferramentas para as crianças violarem a lei, a responsabilidade vai recair apenas nestas empresas? Isto não é uma forma de pôr o carro à frente dos bois?

Na Austrália, há uma nova lei em vigor à qual as empresas de redes sociais têm de obedecer. No entanto, em países onde não existem restrições à utilização das redes sociais por crianças, as empresas de tecnologias pessoais podem considerar estabelecer algumas restrições para negar o acesso de menores a essas redes. Por exemplo, o TikTok, o Facebook e o Snapchat estipularam a idade mínima de 13 anos para os seus utilizadores. As restrições impostas por estas empresas podem beneficiar a sua imagem e reduzir as críticas pela permissão de acesso das crianças às redes. A auto-regulação da indústria é uma forma eficaz de reduzir o impacto da utilização das redes sociais nas crianças.

Em quarto lugar, a nova lei exige que as empresas de redes sociais tomem medidas para verificar a idade dos usuários. Actualmente, existem três métodos viáveis de verificação da idade: análise biométrica, verificação de actividades online e verificação dos documentos de identidade. A análise biométrica implica que os usuários enviem uma foto para a plataforma para que o software determine a sua idade. Não se sabe se a foto será eliminada depois do processo de determinação de idade estar concluído. A verificação de actividade on-line exige que os usuários forneçam sua conta de e-mail e, a partir daí, será feita uma análise com base nas actividades relacionadas com a conta. A verificação dos documentos de identidade é outra possibilidade de determinação da idade dos usuários.

É improvável que se possa avaliar com precisão se um utilizador tem mais de 16 anos com base em fotos ou com base na sua actividade online. Contudo, A nova lei estipula claramente que os utilizadores não podem carregar documentos de identidade nas plataformas das empresas de redes sociais, o que vai dificultar o processo de determinação da sua idade. Se os três métodos de determinação da idade tiverem problemas, é questionável que a nova lei possa ser implementada sem sobressaltos.

Não admira que a Meta, a empresa mãe do Alphabet’s Google, do Facebook e do Instagram, tenha declarado numa apresentação feita no Parlamento australiano que espera que a nova lei seja adiada até que o teste de idade seja concluído. Um porta-voz da Meta disse que o Facebook respeita a lei australiana, mas que está preocupada com o processo em que se apressaram a aprovar legislação para garantir um limite de idade de acesso às redes sociais, mas ignorando as opiniões de outros.

Na próxima semana, prosseguimos a nossa análise.


Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.

11 Fev 2025

A (in) justiça que temos

Há muitas décadas conhecemos um juiz, tínhamos estudado juntos, que era homossexual. Um magistrado de excelência, de um virtuosismo profissional a toda a prova, introvertido, nunca tomou qualquer atitude menos digna para com os seus subordinados e até chegou a condenar severamente um indivíduo assumidamente homossexual que tinha abusado sexualmente de um menor. Naquele tempo era um escândalo se se viesse a saber que o juiz era homossexual e certamente seria expulso da magistratura. Um dia, confessou-me que tinha um companheiro único e secreto quase da sua idade. Fingi que não dei importância ao desabafo e sempre tive a facilidade de obter informações importantes sobre processos judiciais que o referido juiz tinha a amabilidade de me fornecer como jornalista. Os meus camaradas ficavam surpreendidos como é que eu tinha fontes judiciais tão credíveis e chegaram-me a perguntar a origem. Obviamente que nunca obtiveram qualquer resposta da minha parte.

Isto, vem a propósito de que na Justiça em Portugal temos juízas e juízes de elevadíssimo grau de competência, seriedade e independência. Absolutamente incorruptíveis. E temos outros que simplesmente cumprem a sua missão com o objectivo de obter o maior pecúlio possível. São corruptos, deixam-se manobrar pelos lóbis de escritórios de advogados poderosos e, infelizmente, se são homossexuais tomam posições de um grau deplorável. Chegam ao ponto de mandar avisar o arguido suspeito de violência doméstica ou de abuso sexual de menores, no sentido de saberem qual a quantia possível que os arguidos podem pagar se forem inocentados na hora do julgamento. Estes factos, têm acontecido ao longo de décadas. Antes e depois do golpe militar do 25 de Abril de 1974. Recentemente, todos tivemos conhecimento da vergonhosa atitude do juiz Rangel que chegou ao ponto de entregar a uma advogada estagiária a redacção dos acórdãos que lhe eram distribuídos. Acórdãos esses, que Rangel ou nem lia ou apenas fornecia à estagiária as indicações que lhe convinha. Como teria de acontecer, Rangel foi expulso da magistratura.

A Justiça em Portugal sempre foi liderada por um corporativismo absurdo, onde nenhum órgão de soberania teve poderes para intervir numa mudança estrutural. A Justiça em Portugal nos dias de hoje, – para não falar do passado onde chegou-se ao ponto de uma juíza estagiária a fim de obter a sua promoção foi vista por um escrivão a fazer sexo oral a um juiz sénior no seu gabinete – é manifestamente uma justiça para os cidadãos muito ricos. Nenhum pobre tem qualquer hipótese de pagar a um advogado para que a sua defesa seja digna e justa. Naturalmente que sabemos da existência dos defensores oficiosos, que na maioria das vezes pouco se interessam pelos processos em causa, mas faça-se justiça que existem excepções. Nós, por experiência própria, tivemos um defensor oficioso excepcional, de uma competência peculiar e que se dedicou ao processo como se estivesse a receber imenso dinheiro.

Na semana passada, o país teve conhecimento de um escândalo relacionado com um juiz acusado de pagar a menores pobres para sexo. Um magistrado jubilado dos Açores pagava 25 euros a menores de cada vez que tinha sexo. Não há memória de que um magistrado tenha sido acusado e investigado pelo tribunal de um crime alegadamente de tanta gravidade. Um homem chegou a relatar que o juiz atraía menores para sexo com gelados e pizzas e que o juiz recorria à prostituição de menores pagando para fazer sexo oral depois de abordar os menores na rua e que viviam em condições precárias. O juiz irá ser julgado por recorrer a prostitutos menores. As conclusões de um caso desta gravidade podem levar os portugueses a pensar o que teria sido a carreira deste juiz. Teriam havido sentenças manobradas a troco de sexo homossexual? Teria o magistrado recebido quantias de dinheiro quando lhe apareceram na barra do tribunal réus acusados de violação de menores? Terá o magistrado deturpado acórdãos que acusavam violadores sexuais de menores? Tudo poderá ser considerado em face de um comportamento ignóbil que veio a público praticado por um juiz jubilado.

Estamos a aguardar se a melhor revista portuguesa que aborda todos os problemas sociais e judiciais, a “JustiçA com A”, dirigida por uma juíza desembargadora de grande prestígio, irá abordar este tema numa próxima edição. Acontece que a temática que envolve juízes incompetentes, corruptos e agora pedófilos não pode ficar impune e deverá ser alvo do maior debate por parte da sociedade. O juiz jubilado Manuel Mota Botelho está agora a ser julgado por 16 crimes de recurso à prostituição de menores. Os crimes terão ocorrido entre 2019 e 2023 em São Miguel, nos Açores. O juiz conselheiro jubilado está reformado mas terminou a carreira como juiz conselheiro do Tribunal de Contas, tendo esta instituição decidido convocar a Comissão Permanente para analisar a situação do juiz conselheiro açoriano acusado de ter abusado de seis menores ao longo de quatro anos. A Comissão Permanente tem competência para instaurar processos disciplinares e aplicar sanções.

Há muito que na esfera política se pede uma reforma estrutural da Justiça e nada tem sido feito. O corporativismo continua a ser uma realidade e o país está farto de assistir a processos que demoram mais de uma década para serem finalizados, especialmente quando se trata de cidadãos “importantes”. O importante na Justiça é que no dia em que as leis forem desenvolvidas por pessoas honestas, a justiça será feita.

10 Fev 2025