O futuro da memória (I)

“Politics is the mortar between the bricks of history.”

Elsdon Ward

A crise da história e a crise da memória são um perigo. A civilização europeia está carregada não só de história, mas também de um certo sentido histórico. O início da modernidade europeia, que se associaria ao declínio da sociedade feudal e ao advento dos Estados nacionais, assistiu à afirmação de duas categorias interpretativas e científicas, a política entendida como reflexão sobre uma técnica, isto é, sobre um instrumento necessário para ordenar a vida social (basta pensar em Maquiavel) e a história entendida como um instrumento de construção do presente, necessário para a legitimação dos Estados nacionais nascentes. Pelo menos até ao século XIX, o nascimento e o desenvolvimento dos Estados europeus eram indissociáveis da reflexão historiográfica. O objectivo foi sempre o de apresentar a comunidade de referência como solidamente ancorada nas suas raízes históricas. Figuras como Michelet e Thierry em França ou Ranke na Alemanha são exemplos de escola. Na modernidade, em suma, a história era parte integrante da política.

No século XX, em parte devido ao suicídio iniciado pelas nações europeias com a I Guerra Mundial, algo alterou. Em particular, o sentido estoico das nações europeias mudou, pois começaram a cortar os laços com o seu passado após os dramas do século passado. No coração da Europa há uma espécie de mancha negra, o nazismo, mas também os vários fascismos e, na Europa de Leste, os anos do comunismo soviético que ainda paira sobre a nossa consciência e identidade. Vivemos numa espécie de tempo sem história, dada a dificuldade em aceitar a crise que a nossa civilização viveu no século XX. É uma verdadeira crise de memória. Temos dificuldade em reconciliarmo-nos com o nosso passado. Um factor decisivo, frequentemente tematizado, foi então enxertado neste húmus cultural. O da mitologia americana da “city on a hill”. A ideia de uma civilização nascida sem pecado e baseada no desprendimento da “Velha Europa” tornou-se extremamente poderosa e atractiva para os Estados europeus, que tiveram enormes dificuldades em enfrentar as suas dramáticas vicissitudes.

Mas este mito, que descreve um poder hegemónico imaculado e acima das misérias da história, corre o risco de gerar nos americanos a ilusão de poderem viver uma vida meta-histórica, se não mesmo anti-histórica. Isto é extremamente perigoso, porque aqueles que não se preocupam com a história correm o risco de a repetir. Esta tendência pode ser observada actualmente. Vemos a olho nu como a história se está a repetir. O confronto do século XVIII entre a talassocracia britânica e o império russo revive hoje no terror anglo-americano de um poder terrestre que não estabelece fronteiras. E que, além disso, tem o defeito de ter os pés bem assentes na História, fundando-se desde o tempo de Pedro, o Grande em mitologias imperiais e religiosas que se reproduzem mesmo séculos depois. Como não pensar, por exemplo, na carga histórica presente nos grandes filmes de Serguei Mikhailovitch Eisenstein, tão importantes para mobilizar os russos na guerra contra os nazis?

No entanto, por muito anti-histórica que seja a América, é preciso ter em conta que os pais fundadores se referiam frequentemente ao império romano ou à cultura grega. De facto, esta prática era típica das revoluções do século XVIII. A questão é que esses mitologismos foram empregues mais por necessidade do que por qualquer outra coisa. Quando os pais fundadores se viram a fundar um novo mundo baseado na liberdade individual, não tinham simplesmente modelos, porque os Estados europeus estavam todos organizados hierarquicamente e por classes. O único modelo possível era o da liberdade republicana da Roma antiga, embora certamente reinventado e adaptado ao contexto. Durante o século XX, a anti-historicidade estrutural da América causou sérios problemas. Foi esta característica que facilitou o desenvolvimento da ideia, fundamentalmente oitocentista, de direito natural, segundo a qual a ocorrência de certas condições objectivas só pode ser seguida da realização efectiva dos direitos naturais e, em última análise, das condições necessárias ao desenvolvimento do Estado de direito e do capitalismo.

O erro foi acreditar que, na história universal, a democracia liberal e o sistema capitalista eram a norma e não a excepção. A democracia é algo muito raro e muito difícil de alcançar, enquanto o capitalismo surgiu de uma convergência de factores ideais, materiais e políticos que se combinaram num determinado momento na Europa e que poderiam muito bem não se ter combinado. Acreditar que para realizar o capitalismo e a democracia basta criar condições objectivamente adequadas ao seu desenvolvimento é uma enorme ingenuidade.

O capitalismo ou a democracia não podem ser ensinados numa secretária. Os políticos ocidentais e os homens do Banco Mundial que tentaram explicar aos russos o que era o capitalismo não conseguiram mais do que o sacrifício de uma ração genética e a imposição da autocracia de Putin que conduziu a restaurar autocraticamente a ordem no país, enquanto hoje tenta também restaurar a sua honra perdida com a invasão da Ucrânia.

(continua)

4 Set 2024

A física quântica e a previsão do tempo

Segundo Demócrito, filósofo grego nascido por volta de 460 antes de Cristo, toda a matéria era constituída por partículas chamadas átomos, os quais consistiam na menor porção possível de matéria1. Só passados mais de dois mil anos é que se provou que tal não era verdade, quando J. J. Thomson2 descobriu, em 1897, o eletrão.

O conceito de Física Quântica surgiu no início do século passado. Entre os vários físicos que se dedicaram ao estudo deste ramo da ciência, sobressai Max Planck (1858-1947)3 quando, em 1900, procurava explicar questões não resolvidas pela Física Clássica, relacionadas com as micropartículas que compõem os átomos.

Mais tarde, Ernest Rutherford4 descreveu o átomo (1911) como se tratasse de um minúsculo sistema solar, em que o núcleo corresponderia ao sol e os eletrões a planetas orbitando em seu redor. O núcleo teria como constituinte uma partícula com carga positiva que só mais tarde, em 1917, Rutherford comprovou a sua existência e que designou por protão. Niels Bohr5 (1885-1962), melhorou este modelo de átomo, acrescentando, em 1913, que os eletrões se distribuíam em camadas, ou órbitas, às quais correspondiam níveis de energia diferentes. O neutrão, o outro constituinte do núcleo, foi detetado pela primeira vez por James Chadwick6, em 1932.

A convicção de que os núcleos dos átomos eram constituídos apenas por protões e neutrões só foi desfeita na década de sessenta do século passado, quando se descobriu que, afinal, são divisíveis em partículas ainda menores, designadas por quarks. Para esta conclusão teve grande importância a invenção do ciclotrão por Ernest Lawrence7, em 1929. Com base nesta invenção, foram construídos aceleradores de partículas mais aperfeiçoados, o que permitiu a descoberta dos quarks que, por sua vez, constituem os hadrões, os quais formam os protões e os neutrões.

Planck e outros físicos seus contemporâneos, verificaram que as leis da Física Clássica não se aplicavam a essas partículas. Surgiu então um novo conceito, o de “quantum”, que não é mais do que a menor quantidade de qualquer grandeza física envolvida numa interação. Consiste, em Física Quântica, na quantidade mínima de energia que constitui a radiação eletromagnética. Assim, Albert Einstein (1879-1955) considerou, em 1905, que a luz não é mais do que um conjunto de quanta8. Neste caso o quantum toma a designação de fotão. Segundo Einstein, os fotões, e os outros quanta, são caracterizados por dualidade de comportamento, ora tendo características de partículas, ora comportando-se como ondas.

Ao longo dos anos, tantos foram os cientistas laureados com o Prémio Nobel da Física devido à descoberta de novas partículas constituintes dos átomos, que Robert Oppenheimer (1904-1967), conhecido como o líder do Projeto Manhattan e apelidado “Pai da Bomba Atómica”, teria comentado certa vez, talvez com um toque de amargura, que tal prémio deveria ser entregue ao físico que não descobrisse nenhuma nova partícula.

Com base nos conceitos da Física Quântica, estão a ser testados computadores quânticos, que são incomensuravelmente mais rápidos, atendendo a que não trabalham com séries de bits (zeros e uns), mas sim com qubits (ou bits quânticos) com recurso a partículas subatómicas, como o fotão e o eletrão. Enquanto os bits só se apresentam no estado 0 ou no estado 1, os qubits, graças às propriedades da física quântica, podem existir em vários estados sobrepostos.
Poder-se-á perguntar, que tem a ver a Física Quântica com a previsão do tempo e a climatologia? Por enquanto a relação ainda não é muito evidente, mas prevê-se que, num futuro não muito distante, os computadores quânticos substituirão os computadores digitais para efeitos de previsão do tempo.

(continua)

Referências:

Joseph John Thomson (1856-1940) – físico britânico, prémio Nobel da Física em 1906
Max Planck (1858-1947) – físico teórico alemão, Prémio Nobel da Física 1918
Ernest Rutherford (1871-1937) – físico e químico neozelandês. Prémio Nobel de Química 1908
Niels Bohr – Cientista dinamarquês. Prémio Nobel da Física em 1922
James Chadwick (1891-1974) – físico britânico, prémio Nobel de Física em 1935
Ernest Orlando Lawrence (1901-1958) – cientista nuclear americano, prêmio Nobel de Física de 1939
“Quanta” é o plural da palavra latina “quantum”

4 Set 2024

Direito de resposta – Grupo Wai Hung Holdings Limited

Request for Correction and Apology Concerning Inaccuracies Related to Wai Hung Group Holdings Limited in light of right of response according to existing governing laws.

 

I am writing on behalf of Wai Hung Group Holdings Limited, specifically addressing concerns regarding the article published by your newspaper on 2 September 2024, which discusses the recent auditor change and subsequent events involving our company. We believe that this article contains several inaccuracies that could mislead readers and unfairly tarnish the reputations of Ms. Rita Santos and Mr. Wu Chou Kit, among others associated with our company.

The core inaccuracies we wish to address are as follows:

1.Misrepresentation of the Task Force’s Intentions and ActionsThe article states that the task force chaired by Ms. Rita Santos opposed the investigation recommended by Deloitte. This is a mischaracterization. The task force, after a thorough review, deemed a forensic investigation premature based on the information and context available at the time. This decision was made with professional prudence, not opposition to transparency or accountability.

2. Oversimplification of Complex IssuesThe article simplifies complex legal and financial issues into what could be perceived as intentional wrongdoing by individuals mentioned, without sufficient context or explanation of these complex processes. It is essential to understand that decisions were made in a nuanced business environment, which the article fails to convey adequately.

3. Allegations Without SubstantiationThe presentation of allegations as facts concerning the supposed violations of law related to foreign exchange controls is misleading. Such statements were part of ongoing discussions and investigations and were not established facts at the time of your report

Clarification on Payment Transactions – It is crucial to highlight, as detailed in our prior communications and reinforced by findings from the independent forensic investigation, that no actual financial disbursements to the subcontractors have occurred. The reported Deposits, initially categorized under ‘Accounts Receivable’, were internally reclassified as ‘Prepayments’ in the company’s accounting records without an associated cash outflow.

This reclassification involved purely internal accounting entries, as confirmed by the independent forensic examination. No funds were transferred out of the company’s bank accounts in relation to these Deposits, negating any actual payment transactions to the subcontractors. This accounting treatment has been thoroughly reviewed and substantiated by the Independent Forensic Accountant, ensuring full compliance with financial reporting standards and corporate governance practices.

In light of the above, we respectfully request that your esteemed publication take the following actions immediately:

-Issue a Formal Retraction: For the specific segments of the article that misrepresent the actions and intentions of Ms. Rita Santos and Mr. Wu Chou Kit.

-Publish an Apology: We believe it is in the interest of fairness that an apology be extended to Ms. Rita Santos, Mr. Wu Chou Kit, and Wai Hung Group Holdings Limited for the potential harm done to their professional reputations and business operations. We trust that your newspaper values accuracy and fairness and will therefore address our concerns promptly. We are prepared to provide further details or documentation should you require them to facilitate a swift resolution to this matter.

Thank you for your attention to this serious issue. We look forward to your prompt response and actions to rectify the inaccuracies reported and be published this whole letter. Yours sincerely,For and on behalfof Wai Hung Group Holdings Limited

Wong Sze Lok – Company Secretary

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Comentário à Carta Publicada

O HM publica integralmente a carta que tem como remetente o Grupo Wai Hung por considerar que reforça vários dos aspectos relatados no artigo com o título “Suspeitas Públicas” que foi publicado a 2 de Setembro.

O artigo do HM limitou-se a relatar o papel desempenhado por Rita Santos e Wu Chou Kit, tendo por base a informação prestada pelo próprio grupo Wai Hung à Bolsa de Hong Kong, a deontologia e as boas práticas jornalísticas.

Numa “visão preliminar” o grupo de trabalho presidido por Rita Santos, que também era constituído pela Comissão de Auditoria, integrada por Wu Chou Kit, opôs-se à investigação independente das contas. A frase utilizada no artigo é uma passagem de um comunicado de 17 de Maio de 2022¡. Não há qualquer “descaracterização” das acções do grupo de trabalho nem das intenções, mais não seja porque estas intenções nunca são mencionadas no artigo. E se houvesse qualquer “descaracterização” das acções do grupo de trabalho, esta teria partido da comunicação do Grupo Wai Hung que nunca corrigiu o comunicado que enviou à Bolsa de Hong Kong e que o HM citou no artigo em questão.

O artigo não faz considerações sobre se a decisão foi a correcta ou errada, limita-se a apresentar o relato das cartas escritas pela Wai Hung. O que se sabe, devido à informação divulgada pelo Grupo Wai Hung, é que nessa altura a Deloitte considerou que a decisão de não realizar uma auditoria independente era motivo para deixar de auditar as contas do grupo. Também mais tarde o Grupo Wai Hung teve de fazer uma investigação independente, a pedido do supervisor da bolsa de valores de Hong Kong, para assegurar que as suas acções poderiam voltar a ser transaccionadas.

A carta acusa o jornal de ter feito uma simplificação excessiva que “pode transmitir a ideia que os indivíduos mencionados cometeram irregularidades de forma intencional”. Nunca é referido que Rita Santos ou Wu Chou Kit cometeram irregularidades nem que tiveram essa intenção. O HM apresenta factos numa sequência temporal. Não nos compete fazer considerações sobre a actuação das pessoas mencionadas.

Sobre as acusações de “alegações sem fundamento”, o HM nunca escreveu que a lei do Interior da China sobre controlo de câmbio foi violada. O que consta no artigo são os avisos deixados pela Deloitte para essa possibilidade, e que, mais uma, vez foram relatados pelo próprio Grupo Wai Hung em comunicado à Bolsa de Hong Kong.

Em relação aos pagamentos, em dois momentos do artigo consta que foram realizados, nas outras passagens são apresentados como parte da contabilidade. As duas menções não deveriam ter sido feitas, dado que a investigação das autoridades foca efectivamente os métodos de contabilidade da empresa.

O HM lamenta a posição estranha, e pouco lógica, em que se encontra na sequência de ser acusado de cometer várias imprecisões, quando se limitou a reproduzir fielmente os relatos feitos pelo próprio grupo.

Hoje Macau

¡- “The preliminary view of the Task Force, wich is agreed by the Company and the Audit Comitee, is that a forensic investigation is unnecessary and/or pre-mature since the Matter should be considered by looking at the contractual and pratical aspects in the practice of the constructor industry.”

4 Set 2024

Início do semestre

“Bom dia classe, podem sentar-se. Hoje é a cerimónia de abertura deste semestre. Imaginem como vão estar elegantes quando daqui a uns anos se vestirem a rigor no dia da vossa formatura. Primeiro têm de pagar as imprescindíveis propinas e depois espera-vos um ano de trabalho árduo. O dia de amanhã trará sempre um novo semestre. ”

A melodia “Opening Ceremony” (Cerimónia de Abertura) da cantora de Hong Kong Hacken Lee, pode sempre despertar em inúmeros alunos o entusiasmo e a ânsia de aprender. A sociedade, os professores e os pais também continuam a encorajar os jovens para estudarem com aplicação. Mas o que é que isso significa? Qual é o objectivo de estudar aplicadamente?

Se andarmos para trás na História, um pequeno episódio que teve como protagonista Euclides, o matemático grego e o pai da geometria, talvez nos possa servir de inspiração. Um estudante perguntou-lhe que benefícios lhe poderia trazer a aprendizagem da geometria. Em resposta Euclides limitou-se a pedir ao criado que lhe desse algumas moedas e mandou-o embora. Mais tarde, Euclides explicou que “a aprendizagem não traz benefícios monetários.” Este episódio fez com que as declarações do matemático ficassem famosas e popularizou a geometria na Grécia. O imperador veio pedir-lhe conselhos. Confrontado com o pedido do imperador para encontrar o caminho mais curto para aprender, Euclides sorriu e disse: “Aprender matemática é como aprender qualquer outra ciência. Não existem atalhos. Para aprender matemática, todos têm de pensar de forma independente.”

As palavras de Euclides revelam de forma profunda a verdade sobre a aprendizagem, “Quer se trate de matemática ou de qualquer outra matéria, os alunos têm de estudar constante e aplicadamente. Não existem atalhos.” Talvez possam perguntar, porque é que temos de nos esforçar para estudar? Não vamos obter benefícios monetários. Talvez possamos ver esta questão a partir de um outro ângulo, o que vai acontecer se não nos esforçarmos? Basta pensar nisto. Os médicos não podem de repente olhar para os livros e diagnosticar uma doença numa consulta. Os advogados não podem verificar as disposições legais à pressa quando estão a defender alguém em tribunal. Estes exemplos salientam como o conhecimento é indispensável na vida diária. Os profissionais que irão beneficiar futuramente a sociedade são os estudantes que hoje estudam afincadamente para poderem aprender.

No entanto, será a aprendizagem escolar uma mera acumulação de conhecimentos? A resposta é, não. Euclides também salientou a importância do pensamento independente e do pensamento lógico. A geometria está interligada com a lógica e cada progressão resulta de uma dedução lógica. A geometria não se limita a desvendar os mistérios dos planos e dos triângulos, mas também cultiva as capacidades do nosso pensamento lógico. Capacidades semelhantes são também desenvolvidas com o estudo de outras matérias. Enquanto aprendem as várias disciplinas, os estudantes devem procurar entender as capacidades que cada uma delas os vai ajudar a exercitar. Estas capacidades, quais asas invisíveis, acompanham-nos e ajudam-nos a voar ao longo das nossas vidas. Se pudermos combinar diferentes capacidades, possuiremos um valor inestimável que conseguiremos usar para sempre.

Na vida diária, a importância do pensamento lógico é evidente, mas nem sempre podemos depender da lógica. Tomando o direito como exemplo, um simples pensamento lógico pode tornar-se ineficaz porque não tem em conta factores chave como a intenção e a motivação. Por exemplo, porque as impressões digitais de alguém estão na arma do crime, essa pessoa é acusada de ser o assassino. Esta dedução lógica tem lacunas. Porque a arma tem as impressões digitais do suspeito, apenas podemos inferir que ele a segurou, mas não significa que tenha sido o assassino. Existem ainda mais questões que têm de ser clarificadas. Qual o motivo do assassínio? A vítima foi morta pela arma que o suspeito segurou, etc.? Apenas compreendendo totalmente os detalhes do caso e expandindo o raciocínio podemos revelar os mistérios e descobrir a verdade. É precisamente esta sabedoria que o direito nos dá – como manter uma mente lúcida e fazer julgamentos correctos em situações complexas.

A honestidade é também uma parte integrante do processo de aprendizagem. Nos inquéritos policiais, as declarações falsas levantam frequentemente mais suspeitas e por regra afectam a decisão do juiz – afinal de contas, ninguém acredita num mentiroso. Da mesma forma, copiar nos exames, embora possa permitir que o burlão tenha temporariamente bons resultados, vai afectar o seu caracter e a sua reputação, e também coloca uma bomba prestes a explodir na sua carreira futura. Não podemos deixar de mencionar que um médico que copiou nos exames não vai conseguir curar os pacientes. Os advogados que copiam nos exames dificilmente terão capacidades analíticas. Como é que os clientes os podem contratar para litigar? Não é vergonhoso ter más notas nos exames. Desde que o aluno se aplique e volte a tentar, pode fazer progressos. Copiar é sinónimo de mau carácter e significa que se está disposto a fazer qualquer coisa para atingir os objectivos. Se se fizer isto na escola, o que é que vai acontecer depois da formatura? Este tipo de comportamento egoísta trará consequências negativas para os demais e deve ser evitado.

Por conseguinte, “o objectivo do estudo não é obter notas altas.” Esta frase não é apenas um slogan, mas indica-nos qual deve ser a atitude correcta de quem está a aprender e quais devem ser as suas metas. O propósito do estudo não é apenas a aquisição de conhecimentos, mas também a obtenção de capacidades que as matérias estudadas nos dão e saber aplicá-las na vida diária, para que a aprendizagem possa ter sido significativa. Se tiverem bom carácter, os estudantes de hoje podem naturalmente vir a brilhar na sociedade de amanhã.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

2 Set 2024

Pensionistas são lixo

Não escrevo sobre a minoria dos pensionistas que recebem mensalmente mais de dez mil euros. Esses, são os privilegiados de Portugal, alguns que até passaram por Macau e que têm pensões escandalosas que agridem a realidade geral dos restantes pensionistas.

É preciso em primeiro lugar sublinhar que temos cerca de dois milhões de compatriotas que vivem ao nível da pobreza. E a maioria desse número são os chamados pensionistas de miséria. O que é? É sobreviver com 150, 200, 300 ou 400 euros por mês de pensão. É sobreviver sem poder ter uma casa decente arrendada, porque comprar um imóvel é simplesmente um sonho até ao dia da morte. É sobreviver sem possibilidade de comprar todos os medicamentos que precisam. É sobreviver sem poder pagar a renda da casa sem o apoio dos filhos, familiares ou amigos. É sobreviver sem ter a possibilidade de comprar um esquentador, fogão ou frigorífico novos, muito menos pagar a conta da energia, da água ou do telefone. É sobreviver a pagar uma estação de televisão estatal que apenas produz programas para atrasados mentais, informação governamental e que exerce censura absolutamente idêntica à da escabrosa PIDE/DGS. É sobreviver sem poder ter um dia de férias num local fora de casa nem que seja numa aldeia onde tenham familiares. É sobreviver a visitar um supermercado e levar para casa um terço dos produtos que necessita. É pedir constantemente ajuda aos amigos e família, quando existem familiares porque há pensionistas a viver sozinhos em residências onde chove no seu interior e nem têm um familiar que lhes possa valer. A lista para compreenderem o que é um pensionista de miséria podia ser infindável, mas os leitores já devem ter compreendido que os políticos apenas desejam que hajam cada vez mais pobres e que os velhos sofram e que morram o mais rápido possível para que a poupança estatal seja maior.

Os pensionistas foram tema de comentários televisivos na semana que passou porque, mais uma vez, foram alvos da ingratidão dos seus governantes. O Governo decidiu reduzir o IRS aos pensionistas até ao rendimento de pouco mais de mil euros. Uma redução em Setembro e Outubro para começar, mas de imediato os pensionistas tiveram conhecimento que essa redução não será accionada em Setembro, mas apenas em Outubro. Em Outubro também o Governo anunciou que os pensionistas receberão um bónus de 200 euros. Debalde. Passados dois dias o Governo veio contradizer o anúncio e pormenorizar que o bónus não seria de 200 euros para todos. Os pensionistas que tenham uma pensão, milhares deles os tais com pensão de miséria, paga pela Segurança Social e outra pensão de viuvez recebida pela Caixa Geral de Pensões receberão em função do quantitativo global da junção das duas pensões. Isto, é vergonhoso e revoltou os pensionistas que recebem no total cerca de mil euros.

Ser pensionista em Portugal é sentir-se de alguma forma simplesmente lixo. É que isto tudo, de bónus inúteis e de promessas de aumentos não cumpridos leva-nos a pensar que no ano em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, o Movimento das Forças Armadas anunciou essencialmente que o golpe militar tinha como objectivos principais a devolução da liberdade e a melhoria de qualidade de vida do povo. Onde está a liberdade dos cidadãos se não existe quase uma rua sem câmaras de vídeo vigilância pelas cidades fora e os telemóveis são os novos sistemas de escutas telefónicas contra toda e qualquer liberdade de expressão. Quanto à qualidade de vida está à vista de todos nós e é sobre isso que descrevemos a situação dos muitos pensionistas. Um governo que estivesse disposto a acabar com os pensionistas de miséria apenas tinha de decidir o que já foi avançado pela presidente da Associação dos Pensionistas e por diversas pessoas nas suas páginas do Facebook, referindo que os pensionistas de miséria deviam ser aumentados para o mesmo nível do salário mínimo nacional.

Então, os pensionistas com 70 ou mais anos são mesmo lixo. Mesmo um pensionista que ganhe dois mil euros mensais e que tenha conta em qualquer banco e peça um crédito pessoal mínimo, não lhe é concedido devido a já ter 70 anos. E isto não é discriminação social, não está contra a Constituição? Pelos vistos, o Banco de Portugal quer lá saber dos pensionistas e não se decide por proibir as instituições bancárias de discriminar os cidadãos mais velhos.

Na semana que findou o primeiro-ministro anunciou a nova comissária europeia que irá representar Portugal na Comissão Europeia. Imaginem só como ficou a mente de um pensionista de miséria quando ouviu na televisão dizerem que Maria Luís Albuquerque, ex-ministra do PSD de triste memória, vai ganhar mais de 30 mil euros por mês e outras mordomias… Os pensionistas de miséria desesperam todos os meses para enfrentar as despesas inerentes à sua sobrevivência. Um país que trata assim os seus filhos é verdadeiramente um país do terceiro mundo.

2 Set 2024

Cada coisa a seu tempo

“Sob as estrelas do céu, tudo tem um tempo e uma hora marcada.” Esta citação foi retirada do Capítulo 3 de Eclesiastes da Bíblia Hebraica e descreve bem a próxima eleição para o sexto mandato do Chefe do Executivo.

Muito antes de Ho Iat Seng anunciar que não se candidataria à reeleição por motivos de saúde, já se insinuava um sucessor em mensagens postadas online. Na verdade, tudo se desenrolou como previsto por pessoas bem informadas. Após Sam Hou Fai, Presidente do Tribunal de Última Instância, ter recebido autorização para se demitir, a 28 de Agosto, Sam Hou Fai deu de imediato uma conferência de imprensa para anunciar que se iria candidatar à eleição para o sexto mandato do Chefe do Executivo. A data da eleição mantem-se a 13 de Outubro e é esperado que o único candidato seja eleito pela maioria dos eleitores.

Ser o Chefe do Executivo é uma honra, mas também implica assumir uma enorme responsabilidade. Para ser presidente da Assembleia Legislativa e presidente do Tribunal de Última Instância de Macau é necessário cumprir os deveres profissionais. Em comparação com o cargo de Chefe do Executivo, têm menos áreas sob a sua responsabilidade e gerem menos conflitos de interesses. Para exercer o cargo de Chefe do Executivo, a lealdade absoluta e o apoio ao Governo Central são primordiais, para assegurar o poder pleno de governação do Governo Central e que o princípio “dos patriotas que governam Macau” seja respeitado e organicamente integrado com o “elevado grau de autonomia e governação do povo de Macau”.

Pode dizer-se que ser Chefe do Executivo é uma tarefa ingrata; qualquer pequeno desvio pode levar a acusações de uso do poder para ganhos pessoais ou para favorecimentos. No sentido oposto, se aderirmos estritamente aos princípios, vamos certamente desagradar a alguns grupos com interesses instalados. Assim, espero que, depois de Ho Iat Seng ter desistido de concorrer à reeleição, a sua saúde possa em breve recuperar totalmente.

Desde que Sam Hou Fai anunciou a intenção de concorrer às eleições, tenho notado que alguns meios de comunicação têm usado a expressão “substituindo o local pelo nomeado” para descrever as mudanças na governação da RAEM pelo Governo Central. O falecido Bispo da Diocese de Macau, Domingos Lam, uma vez referiu-se a Macau como uma “cidade de imigrantes,” observando que é muito raro alguém descender de três gerações nascidas em Macau. De acordo com o Intercensos 2016, cerca de 40,7 por cento dos residentes nasceram em Macau, enquanto 43,6 por cento nasceram na China continental. E desde que seja residente permanente em Macau, preencha os critérios de elegibilidade para candidatura à eleição do Chefe do Executivo, e seja um “patriota” e não um “patriota traidor”, o local de nascimento não deve ser um problema.

Macau deverá vir a ser governado por uma pessoa que há muito é responsável na área jurídica. A sua falta de experiência administrativa é simultaneamente uma fraqueza e uma força, enquanto a ausência de “heranças pesadas” é de facto uma vantagem.

A eficácia da governação regional depende da capacidade de liderança e da força da equipa. A composição da futura equipa dirigente e a qualidade dos seus conselheiros devem ser considerações fundamentais.

Olhando para o trabalho da Assembleia Legislativa nos últimos dez anos, para além das alterações à Lei Relativa à Defesa da Segurança do Estado, à Lei Eleitoral para o Chefe do Executivo e à Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, as leis que tiveram maior impacto em Macau e que envolveram mais conflitos de interesses devem ter sido, sem dúvida, a “Lei do Planeamento Urbanístico”, a “Lei de Terras” e a “Lei de Salvaguarda do Património Cultural”, todas promulgadas em 2013. O desempenho dos dois últimos Chefes do Executivo de Macau na defesa destas três leis correspondeu às expectativas do Governo Central. Mas só o tempo nos dirá se Macau se pode vir a tornar numa sociedade regulada pelo estado de direito ou permanecer uma sociedade dominada por associações e organizações.

30 Ago 2024

O colapso do Ocidente (II)

“Western nations are strongly advocating absolute Globalist universalism at the cost of themselves-pushing for a world where everything is mindless consumerism for the lowest common denominator and all virtue is condemned. Unchecked Social Capitalism dismantles any form of human other then a producer of labor and rampant technology alienates people from their religious and spiritual roots.”
Mikhail Bridgefell

 

Tão genuíno é o afluxo civilizacional que leva Rudyard Kipling a abençoar a empresa colonial britânica, enquanto a Companhia das Índias Orientais escraviza os colonizados. O universalismo é inerente ao Ocidente cristão, como a qualquer monoteísmo. Mais uma vez, com os destroços da União Soviética ainda a fumegar, surge a perigosa convicção de que o Ocidente é um destino inelutável, porque lhe faltam alternativas, logo desejável por todos e em todo o lado. Uma realidade meta-histórica que não admite excepções, mesmo na sua forma económica, o capitalismo na versão neoliberal que se afirmou nos Estados Unidos a partir dos anos de 1980 e no seu centro de irradiação, a América. A par do fatídico triunfo sobre a União Soviética, a dinâmica sino-soviética selou a globalização sob o signo da supremacia americana, na ideia de que a unificação produtiva e comercial era o viaticum de uma progressiva mas definitiva ocidentalização dos sistemas políticos, morais e culturais.

Assim, a 2 de Outubro de 2001, menos de um mês após os atentados terroristas, Tony Blair juntamente com Bill Clinton, talvez a figura política mais emblemática dessa fase arengava no Partido Trabalhista, em Brighton que “Há quem pergunte como pode o mundo ser uma comunidade? As nações agem no seu próprio interesse! Claro que sim, mas hoje os nossos interesses estão inseparavelmente ligados. Esta é a política da globalização. No mundo da Internet, das tecnologias da informação e da televisão, a globalização será cada vez maior. E no comércio, o problema não é o excesso de globalização, mas a sua insuficiência. A questão não é como parar a globalização, mas como torná-la mais justa. Porque a alternativa à globalização é o isolamento. É por isso que as nações do mundo estão a unir-se. Está a ser criada uma nova relação entre a Rússia e a Europa. E quando a Índia e a China tiverem desenvolvido suficientemente as suas economias, reconfigurarão o nosso mundo.”

Na altura, a administração Clinton e grande parte da elite político-económica americana acreditavam piamente que a economia podia redimir a política, consolidando a democracia liberal e corrigindo as trajectórias geopolíticas dos Estados. Washington imaginava a abertura chinesa como uma via de sentido único no sentido ideológico, o galope da China para a democracia; no sentido material, a abertura desse vasto mercado para garantir um enorme afluxo de recursos para a América, pivot do sistema financeiro e monetário mundial e, por isso, o único sujeito capaz de tirar pleno partido da expansão do paradigma capitalista. A da China era uma promessa composta por diferentes elementos, todos eles decisivos para empurrar Washington e Pequim um para o outro. Bens a baixo preço para sustentar o poder de compra do consumidor americano, corroído pela estagflação dos anos 1970-1980 e pela aplicação incipiente das teorias do “capitalismo accionista” de Milton Friedman, que privilegiavam a remuneração do capital em detrimento da do trabalho.

Um vasto mercado interno carente de quase tudo, porque ainda atrasado. O horizonte de um comércio bilateral com enormes receitas para as empresas americanas e, em perspectiva, ganhos para as congéneres chinesas, a serem transformados como já acontecia com o Japão em capital para financiar a dívida soberana dos Estados Unidos, o que aconteceu de forma crescente nos trinta anos seguintes. Desta dinâmica resulta uma vasta interdependência. Pequim depende dos Estados Unidos para as suas exportações e para apoiar o renminbi através de reservas. Washington depende da China para o fluxo de importações económicas que sustenta o poder de compra e os lucros das empresas, mas também para a colocação de uma dívida crescente com a qual compensa a risível taxa de poupança interna, que a partir dos anos de 1960 mas sobretudo a partir do final dos anos de 1970 entra em colapso devido à estagnação dos rendimentos médios e ao arranque do consumo privado.

Numa némesis histórica, a economia “Made in China” é para os trabalhadores americanos o que o ópio foi para os britânicos e para os chineses no século XIX, uma droga que amortece parcialmente a descida do nível de vida. Ao preço, porém, da dependência das mercadorias cuja produção foge da América, desindustrializando-a e alimentando o mal-estar socioeconómico se for entregue a um número cada vez maior de asiáticos. Chegamos assim, resumidamente, às crises gémeas dos últimos anos. Primeiro, a Grande Recessão de 2008, desencadeada pelo incumprimento maciço das hipotecas, que revelou à China a fragilidade crescente do sistema americano e a angústia da sua classe média endividada, em cujo consumo Pequim tinha apostado durante trinta anos. Depois a Covid-19, que recorda brutalmente aos Estados Unidos o peso, em muitos aspectos já excessivo, da (inter)dependência estratégica em relação a um país em cujas intenções, sistema político e práticas já não se pode confiar. Por fim, numa tempestade perfeita, veio a invasão da Ucrânia.

Tomada de surpresa, irritação e preocupação pela China, que temia com falsas suposições à partida a derrota completa da Rússia e o consequente reforço da contestada ordem americanocêntrica, a guerra acabou por cessar o estranho casal sino-russo. Acima de tudo, alimentou a inventividade para contornar os circuitos económicos, financeiros e regulamentares dominados pelos Estados Unidos, num esforço para escapar às sanções draconianas impostas a Moscovo. Desde 2022, segundo um relatório do Gabinete do Director dos Serviços de Inteligência Nacional dos Estados Unidos (ODNI na sigla inlesa) certificado no ano passado, a China “tem oferecido um apoio cada vez mais firme ao esforço de guerra russo, fornecendo a Moscovo tecnologias-chave para armas e equipamento utilizados na Ucrânia”. As indústrias de defesa estatais chinesas enviaram sistemas de navegação, peças de aviões de combate e outros componentes aos seus homólogos russos.

Em Março de 2023, a China tinha enviado drones e respectivos componentes no valor de mais de doze mil milhões de dólares para a Rússia. A China também aumentou drasticamente as suas compras de petróleo, gás e outros produtos energéticos russos, utilizando os seus próprios circuitos financeiros para permitir a Moscovo “contornar a proibição dos sistemas de pagamento ocidentais”, como o Swift. A China e a Rússia também aumentaram a parte do comércio bilateral realizada em yuans em Setembro de 2022, as exportações russas pagas em moeda chinesa tinham aumentado de 0,5 por cento do total anterior à guerra para 14 por cento, e desde então tem crescido ainda mais. As duas potências revisionistas que desconfiam uma da outra tanto ou mais do que desconfiam dos Estados Unidos, a China e a Rússia uniram-se, apesar de tudo, para minar a hegemonia americana, cujos valores rejeitam antes dos meios. Valores vistos como ameaçam à sua integridade territorial, aos seus sistemas políticos e aos seus interesses nacionais.

Neste desafio cada vez mais aberto, pretendem fazer incursões no ponto fraco da globalização centrada nos Estados Unidos, pois os muitos países que, cansados da lógica neocolonial mas demasiado fracos para desafiar as influências euro-americanas, se recusam a tomar partido e a abrir-se aos actores não ocidentais, principalmente Pequim e Moscovo. Isto inclui muitos Estados do Sudeste Asiático e da África do Norte e Subsaariana, mas também da América Latina. Os países maiores ou mais bem equipados, como a Índia, a Turquia e várias monarquias árabes do Golfo, estão a tentar criar perfis autónomos para não caírem de uma dependência para outra. O que emerge é uma globalização cada vez mais fragmentada, em que os vencedores económico-financeiros se confrontam com lógicas estratégicas divergentes e variáveis crescentes. Pequim e Moscovo jogam contra Washington, a Índia vê-se como o fiel da balança entre os Estados Unidos e a China, mas mantém uma relação importante com a Rússia, Ancara joga em todas as frentes, com um pé na NATO e outro fora, o Irão vence o cerco árabe-americano-israelita, tirando partido do “eixo da resistência”.

Entretanto, o Brasil, a Argentina e o México namoriscam com a China, desafiando abertamente a Doutrina Monroe, enquanto a antiga África francófona se volta para Moscovo para se libertar da tutela francesa. Em pano de fundo, a deslocação do fulcro demográfico mundial do eixo transatlântico para a Ásia e, em perspectiva, para África. Zonas cheias de problemas, tensões e traições, mas povoadas por regimes cujos traços autoritários, nesta fase, parecem muitas vezes ser benéficos para a coerência estratégica. Enquanto a opinião pública ocidental lamenta a inclusão das classes políticas sujeitas à compulsão do ciclo eleitoral, no Leste proliferam as “visões” programáticas. Visão 2030 para a Arábia Saudita e o Qatar, Visão 2035 para o Kuwait, Visão 2040 para Omã, Visão 2050 para os Emirados Árabes Unidos. Em deferência ao plano “Made in China 2025” (revelado em 2015), Pequim está agora a inundar o mundo com alta tecnologia barata sobretudo baterias, carros eléctricos, painéis foto voltaicos e rotores eólicos.

No imediato, para compensar, com um mercantilismo agressivo, o risco de rebentamento da enorme bolha imobiliária; em perspectiva, para assumir a liderança nas principais vertentes industriais. A grande limitação do decisionismo económico e, de um modo mais geral, do dirigismo mais ou menos paternalista que caracteriza estes sistemas, é que não admite a contradição e é hostil aos artifícios aleatórios, fruto da liberdade de pensamento, de empreendimento e de organização. Esta é talvez a seta mais afiada no arco das sociedades abertas, cuja efervescência é frequentemente confundida com anarquia fatal pelos seus adversários, mas também pelos seus defensores nas suas fases mais hostis. No entanto, a afasia estratégico-conceptual que caracteriza as grandes democracias ocidentais nesta conjuntura aumenta a sua incoerência e mina a sua credibilidade, mesmo e este é talvez o maior problema aos olhos dos seus cidadãos. Como todas as fases históricas, também esta tem os seus símbolos.

O assustador acidente que levou o porta-contentores Dali a derrubar a ponte Francis Scott Key, em frente ao porto de Baltimore, a 26 de Março, provocando o seu encerramento, custou cerca de quase dois mil milhões de dólares por dia em perdas de receitas, excluindo os danos directos. Isto deve-se ao facto de o porto se situar na foz da Baía de Chesapeake, um dos maiores estuários do mundo e a zona mais densamente povoada dos Estados Unidos. Na tempestade de controvérsia que se seguiu ao desastre, argumentou-se, entre outras coisas, que os navios porta-contentores daquela dimensão não deviam manobrar tão perto de infra-estruturas cruciais. Seria preferível que atracassem em portos menos problemáticos e, a partir daí, utilizassem o transbordo doméstico com navios mais pequenos. No entanto, nos termos do Jones Act de 1920, qualquer navio que transporte mercadorias entre dois portos americanos deve ser de fabrico americano por razões de segurança.

É pena que, após quarenta anos de deslocalização, a indústria de construção naval americana tenha atrofiado ao ponto de não produzir navios de guerra suficientes, quanto mais navios porta-contentores. Isto limita mesmo a circulação interna de gás liquefeito extraído por fracking (fracturação hidráulica), um trunfo estratégico importante nos últimos anos. Então, por que não permitir que o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos Estados Unidos e actualmente entre os melhores construtores navais do mundo, tenham acesso ao mercado naval americano? Porque isso exigiria políticas claras e expeditas de friendshoring, ao passo que o recente veto da administração Biden (Março de 2024) à aquisição da U.S. Steel pelo grupo japonês Nippon Steel vai contra a estratégia de contenção anti-chinesa.

Não é que Washington repudie uma tal estratégia, mas a ausência de política industrial gera monstros. A América vê-se assim confrontada com grandes concentrações anti-concorrenciais em sectores-chave, em nome da segurança (ver Boeing e Starlink), mas sem uma visão que a liberte da escravidão dos fluxos de caixa trimestrais e dos interesses particulares, permitindo-lhe o planeamento a médio e longo prazo necessário às políticas industriais. Nesta confusão estratégica, que a América partilha com a maioria dos seus aliados europeus, insinua-se a desglobalização. Os protagonistas desta, reentrando na cena internacional após fases mais ou menos longas de esquecimento geoestratégico, não rejeitam o armamento económico-industrial que lhes é oferecido pelo Ocidente como instrumento de prosperidade e de poder. No entanto, orientam os seus meios para outros fins, para outros interesses. Com base em agendas que já não são “ocidentais”. Neste sentido, é muito provável que a globalização, tal como a conhecemos, tenha acabado.

29 Ago 2024

Agosto

A gosto nos encontramos nestes dias quentes de um farto Agosto, ignição, que desde que descobrimos o fogo fomos deixando que ele se apoderasse de nós, e de tão hipnotizados nem demos conta que a Terra arde, conspira, e ele nos hipnotiza em nossa frágil condição. Vivemos numa constante combustão, recriamos círculos de fogo, e nas horas festivas utilizamos o artificial. Não há água de artifício, nem ar, nem terra, porém há fogo, e nessa expressão festiva estamos a louvar o elemento que mais nos encanta.

A partir daquele tempo remoto em que à volta das fogueiras construímos sociedades humanas, cozinhámos alimentos e afastámos as feras, que o fogo é todo nosso em tragédia, festejo e renovação. Ele seria ainda um baptismo para o banditismo atmosférico das mentes inquisitoriais que banharam com labaredas os relapsos, os não-alinhados, e tantos outros que renunciando às águas baptismais seriam purificados pelas grandes labaredas. Foram espectáculos públicos fortemente carregados de púrpura e “santificados” por altas pressões (mais tarde foram as câmaras de gás, bastante escondidas, disfarçadas, mas tendo por base, e sempre, a fornalha)

Agosto honra o Imperador Augusto, e os imperadores têm sempre esplendor, esse reflexo apolíneo, e hoje mesmo nasceu Napoleão ao meio-dia – sol no zénite – e sua mãe disse que fora tão rápido que caiu num tapete com motivos militares e de lá não sairia até pegar fogo a um continente inteiro.

Nasceu de uma rajada em forma de incêndio, que o mês ficou-lhe nas veias. Há que atestar que nestas dimensões olímpicas a generosidade também impera (por isso, imperador) só que a vida está presa à carroçaria das delongas que se decompõem docemente, embora haja seres que entrem também em combustão sentados nos seus cadeirões. Há muitos relatos de pessoas que arderam sem que um fósforo tivesse presente, que os afogados em mágoas são o que mais há.

Mas voltemos o olhar para os combustíveis, as energias fósseis, o arranque ígneo de uma civilização terrestre que se funda na travessia de tudo o que arde, e ei-la agora no centro do furacão sem conseguir controlar a paixão que a norteou. Como se o fogo tivesse ouvidos, visão e vida própria, aproxima-se agora de todos nós sem que o saibamos controlar, sem culpa, que ele braseia até à Cidade.

Estamos queimados – vamos à praia – mas os que atravessam desertos também se queimam, embora seja mais fácil as águas arderem que a vasta areia que só pega fogo por guerras sem fim, em todo o caso, curtidos pelas fortes ignições solares, parecemos que utilizamos o ardor dos raios para serviço lúdico. Mas é um erro. O que se passa não é já do domínio estético ou lúdico, é um martírio imposto a uma humanidade como um todo que periga a sua existência.

Pela primeira vez em nossas vidas repensamos os mitos, tentamos interpretar o que falhou pois nunca nos sentimos tão vulneráveis. O fogo avança mais rápido que a ciência, a cidadania, e a nossa mais chã compreensão. Nós sempre iremos insistir nesta tarefa da oliveira dando o seu fruto para nos alumiar a um tempo talvez onírico em que controlávamos o fogo e os elementos concordavam, em que o fogo era luz… mas hoje estamos barricados. Se não arder, aquece. Mas quanto mais aquece, mais arde. Se não vem em superfície vem dos vulcões que prometem estar activos em muitas frentes e fronteiras. Estamos numa caldeira para a qual as mais fundas lendas com suas neblinas já não podem ser interpretadas.

A gosto com o vosso gosto, nos diz Agosto. Que um velho adágio ainda nos adverte como mês do desgosto.

27 Ago 2024

Mais fácil atar o nó que desatá-lo II

A semana passada analisámos as alterações ao Regulamento do Registo Matrimonial contidas na Proposta de Lei apresentada pelo Governo Central da China. As duas alterações que chamaram mais à atenção foram o período de 30 dias de reflexão antes da efectivação do divórcio e a obrigação de informar o futuro cônjuge de qualquer doença grave, antes do casamento. Nas menos significativas estão incluídas a eliminação da necessidade de um registo do agregado familiar para o certificado de casamento e a obtenção do “acesso a nível nacional”, ou seja, o registo de casamento pode ser feito em qualquer local da China continental.

O objectivo da criação dos “30 dias de reflexão” é muito claro. Dá uma oportunidade aos cônjuges para reflectirem e comunicarem entre si. Durante este processo, podem ambos rever os bons momentos que passaram juntos, pensar sobre os problemas do seu casamento e tentar encontrar uma solução.

A outra alteração importante contida na Proposta de Lei é a notificação de doenças graves. Segundo o Artigo 12 da Proposta de Lei, alguém que sofra de uma doença grave tem de informar o futuro cônjuge da situação antes do casamento. Se isto não se verificar, pode ser requerida a anulação do matrimónio. A introdução desta clausula não só reforça o direito de ambas as partes à informação, como aumenta a transparência e a equidade no casamento.

Esta alteração parece simples, mas existem vários aspectos que devem ser considerados.

Primeiro, a julgar apenas pelas disposições da Proposta de Lei, se um homem for infértil, tem obrigação de informar a mulher antes do casamento, e sobre ele recai o ónus da prova caso venha a ter lugar um processo jurídico. Portanto, em tribunal, se o homem quiser demonstrar que cumpriu a lei, tem de provar que informou a mulher da sua infertilidade, antes do casamento. Nesse caso, como é que ele pode provar que informou a mulher atempadamente? A mulher tem de assinar um documento que o comprove? Terá o homem de gravar o momento em que informa a mulher da sua infertilidade? Ou precisará de uma testemunha?

Segundo, a Proposta de Lei não define claramente o conceito de “doença grave”. Não são facultados padrões específicos para a definição de “doença grave”. Hoje em dia, a prática jurídica na China continental remete para os tribunais a decisão de classificar uma doença como “grave” e essa decisão é baseada na “Lei de Cuidados Materno Infantis da República Popular da China”. No entanto, devido a limitações das disposições da Lei dos Cuidados Materno Infantis quanto ao âmbito dos exames de despistagem de doenças pré-natais a nível da saúde mental, apenas são referidas a “esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva e outras doenças mentais graves”, mas não existe regulação sobre o distúrbio de ansiedade e depressão, a mania da perseguição e outras doenças que podem ter um impacto negativo no cônjuge. Existem algumas dúvidas sobre se estas últimas perturbações são consideradas como doenças graves na Proposta de Lei.

De acordo com os objectivos da Proposta de Lei, é esperado que os futuros esposos estejam a par da condição física e mental um do outro, antes de casarem. Segundo esta perspectiva, qualquer doença que possa afectar a vida a dois deve ser revelada antecipadamente à outra parte. No entanto, a interpretação da lei pode estar sujeita a diferentes análises e interpretar a Proposta de Lei à luz do seu objectivo original é apenas uma das formas de o fazer. Na medida em que existem várias formas de interpretar a lei, se o devemos ou não fazer de acordo com o propósito original já é outra questão.

Algumas pessoas sugerem que deveriam ser listadas todas as doenças consideradas “graves”; outras acreditam que devido à sua enorme variedade e às complexas e variadas situações, é difícil fornecer um padrão unificado. Ambos os argumentos têm o seu mérito. Aparentemente, será apenas através da prática jurídica que este sistema será gradualmente clarificado e aperfeiçoado.

Terceiro, na China continental, desde 2003, os exames de saúde pré-nupciais deixaram de ser obrigatórios. Em certa medida, a exigência destes exames resolveria o problema. Mas como este sistema já não está implementado, vai depender do casal encontrar outras formas de o solucionar. Em nenhuma das duas Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau existem disposições que obriguem os futuros esposos a informar a outra parte, antes do casamento, de qualquer “doença grave”, nem são exigidos exames médicos pré-nupciais. É questionável se nestas regiões se pode pedir a anulação do casamento se alguém só vier a saber que o cônjuge sofre de uma doença grave depois do casamento.

Nas outras alterações estão incluídas a eliminação da necessidade de um registo do agregado familiar para o certificado de casamento e a obtenção do livre “acesso a nível nacional”. O propósito é claramente facilitar o casamento. Antigamente, o casamento tinha de ser registado no local de origem. À luz da Proposta de Lei, os casamentos podem ser agora celebrados em qualquer localidade da China continental. Se compararmos com a necessidade dos 30 dias de reflexão antes do divórcio, não admira que os internautas acreditem que uma das funções da Proposta de Lei é ajudar as pessoas a manter os seus casamentos. Não deixa de ser verdade dizer que o casamento é mais fácil do que o divórcio.

A lei estabelece a necessidade de informar o futuro cônjuge de qualquer doença grave de que se padeça, mas é difícil regular a franqueza e a confiança. Num casamento, devem ser ambos honestos um com o outro. Quem está doente informa do seu problema e ao outro cabe aceitá-lo. Isto é um sinal de confiança. A franqueza e a confiança são elementos essenciais num casamento bem-sucedido e são também uma solução eficaz para o problema da obrigação de “notificar a outra parte de uma doença grave”.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

26 Ago 2024

Fogo na Madeira, Albuquerque a banhos

Escrevo estas linhas no passado sábado quando já arderam mais de cinco mil hectares de floresta na ilha da Madeira ao longo de 10 dias. A Madeira não é um bailinho. A Madeira não é fogo de artifício. A Madeira não é uma offshore. A Madeira não é um porto de cruzeiros internacionais.

A Madeira não é o reinado de um partido político há cinquenta anos. A Madeira não é um cortejo carnavalesco, no qual se gastam milhões de euros. A Madeira é um território nacional com uma cordilheira florestal considerada património mundial. A Madeira é uma região autónoma que recebe milhões de euros do continente. A Madeira está a arder e o vento tem premiado as populações não virando as chamas para cima de dezenas de casas e da Central Hidroeléctrica.

Quando o incêndio teve início o seu presidente do Governo Regional estava a banhos no Porto Santo, a gozar férias imerecidas e afirmou: “Está tudo tranquilo e debaixo de controlo”. Miguel Albuquerque não tem seriedade política para governar a Madeira nem competência. Há décadas que os especialistas afirmam que é necessária uma organização e gestão da floresta e nada tem sido feito. O fogo continua a consumir o património natural e a assustar as populações que não dormem há uma semana. Miguel Albuquerque só quando lhe disseram que a situação era muito grave é que despiu o fato de banho e deslocou-se até junto dos incompetentes responsáveis pela Proteção Civil da região. Miguel Albuquerque desde que governa nunca se apercebeu que tinha de exigir ao governo central, pelo menos, que a Madeira tivesse cinco helicópteros e um avião Canadair.

O crime natural está à vista e um dos melhores especialistas em ciência de florestas afirmou na televisão que “Miguel Albuquerque é um inculto sobre a defesa do ambiente e das suas populações. O maior problema não é o que ele diz ao sublinhar que o fogo não provocou mortos, feridos nem destruiu casas. O presidente do Governo da Madeira não faz a mínima ideia do que pode vir a acontecer às populações da ilha porque com as serras sem vegetação, quando chegar o Inverno, as grandes chuvadas não serão contidas e vão provocar grandes e possíveis inundações catastróficas”. Esta, é a grande verdade relativamente a um homem que preferiu as praias de Porto Santo em vez de se sentar no seu gabinete a solicitar ao Governo do continente, logo no início do fogo, dois aviões Canadair e mais helicópteros. E não pode vir com a desculpa de que esses meios aéreos faziam falta ao continente em caso da existência de fogos florestais. E porquê? Porque no caso de o continente vir a ser alvo de algum incêndio florestal grave requisitavam-se de imediato a Espanha dois Canadair, tal como aconteceu agora que o fogo na Madeira começou a transmitir preocupações trágicas.

O fogo na Madeira está há 10 dias sem controlo e a situação tem agora melhorado devido à acção dos Canadair espanhóis. Contudo, nenhum responsável madeirense apresenta quaisquer perspectivas de quando o fogo estará extinto.

Até a nível europeu o incêndio na Madeira já foi abordado e a presidente da Comissão Europeia mostrou a sua perplexidade e preocupação com um incêndio de tão grandes proporções. Os moradores não cessam de indicar os culpados e a irresponsabilidade do Governo Regional ao longo dos anos no que concerne à gestão da floresta com algumas árvores classificadas e únicas, que nem daqui a duas décadas voltarão a existir nas cordilheiras madeirenses. No continente são vários os políticos que já manifestaram muitas críticas à ministra da Administração Interna e aos governantes madeirenses, propondo mesmo uma audição parlamentar para a obtenção de responsabilidades na ineficácia do combate a tragédia tão grave.

Um outro facto, que tem chocado os portugueses, é o comportamento do Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa que se desloca a todo o lado para as mais díspares ninharias eventuais, também preferiu estar no Algarve como peixe a gozar a água quentinha da praia, em vez de se deslocar de imediato à Madeira e demonstrar a sua solidariedade ao povo madeirense e observar in loco que o fogo já podia ter ceifado dezenas de vidas. Como diz o povo, Marcelo fala, fala, mas não convence… Para que a sua imagem fique ainda mais degradada acabou por dizer aos jornalistas que irá à Madeira quando o fogo terminar. Isto, quando ninguém sabe quando terminará o incêndio. Ai, Portugal, Portugal…

P.S. – No momento em que terminámos de escrever esta crónica, o fogo piorou no local Ponta do Sol, deixando os moradores em pânico porque as residências estavam em perigo de ser atingidas.

26 Ago 2024

Extermínio em curso

Desde o dia 7 de outubro de 2023, as tropas israelitas matam por dia, em média, 130 pessoas, na Faixa de Gaza e nos territórios ocupados da Palestina, sendo já mais de 40 005 o número de mortos contabilizados, além de 107 mil feridos. Isto segundo os dados divulgados pelo Ministério da Saúde de Gaza, que parecem muito restritivos, já que, na contabilidade publicada pela revista britânica “Lancet”, o número de mortes diretas e indiretas será da ordem dos 186 mil.

Convém lembrar que o número de mortes na Faixa de Gaza se aproximava das 20 mil, em Dezembro último, segundo a ativista Sally Habed, cidadã israelita de origem palestiniana que, em declarações em Haifa, Israel, disse não querer “falar de números, de estatísticas”, porque recusava que as mortes, ou seja, que a “nossa humanidade apareça como “tópico para debate”, mas reconheceu que os palestinianos mortos nesta guerra já serão mais de 40 mil.

Já a organização Airwars ligada à Goldsmiths (Universidade de Londres, que se dedica a documentar mortes de civis em guerras por drones dos EUA e do Reino Unido, identificou 3 000 palestinianos nos primeiros 17 dias de outubro de 2023, segundo declarou ao “The Guardian” e ao “The New Iork Times” acrescentou que a maioria dos nomes dos mortos coincide com a lista do Ministério da Saúde de Gaza.

Por outro lado, na carta com o título “Couting the dead in Gaza: dificult but essential, assinada por Rasha Khatib, do Advocate Aurora Research Institute, em Milwaukee (EUA) e do Instituto de Saúde Pública e Comunitária da Universidade de Bizeit, Ramallah, MartinMckee, do Departamento de Saúde Pública da London School of Hygiene and Tropical Medicine, de Londres, e Salim Yusuf, do Instituto de Investigação de Saúde Populacional da McMmaster Univertcity, e Hamilton Health Sciences, em Ontário, Canadá, faz-se uma apreciação da tragédia que considera recuados os números expressos no diversos relatos, se se tiver em conta as vítimas dos bombardeamentos e as causadas pela deslocação forçada e pela falta de salubridade que podem causar doenças, bem como pela falta de tratamentos e por outras condições mórbidas.

Acontece que Israel troça da “propaganda palestiniana”, mas os seus serviços secretos acham fiáveis os números do Ministério da Saúde de Gaza, segundo um artigo saído na “Vice” que cita o jornalista israelita Yuval Abraam, da revista “+972”.

Para que conste.

PRISÕES convertidas em campos de tortura são cada vez mais em Israel e nos colonatos sionistas da Palestina ocupada, onde já há mais de 2 milhões de deslocados errantes, 8 mil desaparecidos e, segundo as Nações Unidas, 163 trabalhadores humanitários foram mortos na Faixa de Gaza pelas forças armadas de Israel.

Uma organização não governamental (ONG) israelita acusa as autoridades penitenciárias de Telavive de reduzirem a quantidade de alimentos aos presos palestinianos até ao ponto de levarem a fome a um extremo fatal.

O Centro de Informação Israelita para os Direitos Humanos no Territórios Ocupados (B’Tslem) revelou que testemunhos de palestinianos libertados confirmam que mais de uma dezena de instalações prisionais foram convertidas numa rede de campos de tortura. Como parte da campanha, “foram reduzidas as rações de alimentos até ao ponto de provocar inanição”, alertou.

A B’Tsalem informa também que o ministro da Segurança Nacional, Itamar Bem Gvir, está à frente da operação, indicando que este extremista de vezo nazi aproveitou os acontecimentos de 7 de outubro do ano passado para implementar o seu plano já muito avançado de esmagar “os direitos básicos e a dignidade de todos os prisioneiros palestinianos”

A referida ONG publicou um relatório de 90 páginas que contém testemunhos de 55 ex-presos palestinianos logo após a respetiva libertação. Entre os vexames cometidos, o relatório inclui agressões sexuais, humilhações, fome deliberada, más condições sanitárias, tortura do sono (estátua), impedimento da prática de culto religioso e falta de atenção médica.

De facto, ao longo dos anos, desde 1948, Israel encarcerou centenas de milhares de palestinianos nas suas masmorras que sempre foram utilizadas como ferramentas de opressão e do controlo da população árabe, aplicando raivosamente, à sua maneira, muito do que aprenderam na sua desgraçada passagem pelos campos de Hitler.

23 Ago 2024

O colapso do Ocidente (I)

“The West in its present state is weak. Leadership is poor, priorities are wrong and more than anything else most Westerners can’t even articulate what our civilization stands for. Jihadism will not bring down the West but the inability to champion our exceptionality and defend the essence of what we have on all fronts will most certainly do. We no longer believe in ourselves and this is tragic.”
Gavin Kanowitz

 

O refluxo da globalização, temido ou esperado, é uma crise do primado ocidental sob a égide de Washington. Do barco a vapor britânico ao século americano, passando pelas crises gémeas de 2008-2009, as glórias e as incógnitas de uma supremacia estão na balança. O “Sul Global” em que a China e o Brasil pretendem dominar não existe e a tendência para se pensar o centro do mundo é típica das mentalidades imaturas ou patologicamente narcisistas, dois traços que coexistem frequentemente. A ilusão pode ser acentuada quando se ocupa uma posição de poder, público ou privado, que reforça a convicção de ser intelectual ou afectivamente inatingível, insubstituível.

O narcisista afortunado morre serenamente, na plena convicção isto é, na auto-ilusão de que é aquilo em que acredita. O infeliz sucumbe às duras réplicas da realidade, quando não aos seus próprios delírios de omnipotência. Será este último o caminho seguido pelo Ocidente? O debate sobre a desocidentalização não começou agora e Oswald Spengler publicou “O Declínio do Ocidente” em 1918, numa Viena em que o fim do império se anunciava. Se esse debate está hoje de novo a escurecer, é porque o Ocidente chegou ao fim. Após a II Guerra Mundial, a redução brutal da Europa em consequência de duas guerras mundiais e a subsequente perda drástica de colónias beneficiaram os Estados Unidos e, em menor grau mas não negligenciável, a União Soviética. Após o colapso desta última, o “momento unipolar” viu Washington erguer-se como a indiscutível “Quarta Roma” (deixemos o numeral anterior para Moscovo, logo a seguir a Bizâncio).

As antigas potências europeias, reduzidas a actores regionais nem sempre resignados (o narcisismo prospera com a negação), contemplam ansiosamente estas oscilações, mais ou menos intimamente satisfeitas quando o pêndulo pára na América, filha e apoteose do Ocidente, hegemónico “benévolo” porque familiar, não certamente porque inofensivo. Uma superpotência consanguínea que “faz sempre a coisa certa depois de esgotar todas as alternativas”, dizia Churchill. A coisa certa é o interesse do Ocidente, mesmo quando este precisa de ser salvo de si próprio. O que torna o nosso momento ansioso é a crise da América e a sua projecção externa, na ausência de outro Ocidente semelhante em dimensão, determinação e capacidade, pronto a assumir o comando.

Isto acarreta o fenómeno conexo da desglobalização com implicações geoestratégicas e o afrouxamento contraditório mas tangível dos laços transnacionais económico-financeiros-produtivos cimentados no casamento de interesses de quarenta anos entre a China e os Estados Unidos. Um processo de desintegração incubado ao longo das últimas duas décadas, precipitado pela Grande Recessão de 2008-2010 e acentuado por acontecimentos recentes, incluindo a Covid-19 e a guerra na Ucrânia. A tentação, defendida por muitos, é concluir apressadamente que esta dinâmica beneficia o “Sul Global”. Mas o “Sul Global” tem (pelo menos) três inconvenientes. Em termos estritos, é um oxímoro, ou melhor, uma sinédoque impossível, na medida em que associa uma parte (Sul) a um todo (global) que não pode ser compreendido. Em termos estratégicos, é um disparate, pois as diferenças e idiossincrasias entre as componentes mesmo que nos limitemos às principais desta entidade superam as afinidades, impedindo a delineação de uma nova e clara hegemonia.

Em termos conceptuais, trata-se de uma iteração linear, que toma como irreversíveis os traços marcantes da globalização e, assim, se limita a transferi-los para outra entidade, deixando de estar em causa a primazia indiscutível dos Estados Unidos. Um olhar problemático, talvez mais verdadeiro, parte de uma questão igualmente radical: globalização acabou? Para aventurar uma hipótese a este respeito, é preciso primeiro compreender o que é (era?) a globalização. Uma resposta directa e circunscrita passa por alguns momentos-chave: 1972 (primeira visita de Richard Nixon a Pequim), 1981 (eleição de Ronald Reagan para a Casa Branca), 1991 (colapso da União Soviética), 2001 (entrada da China na Organização Mundial do Comércio), 2008 (falência do Lehman Brothers e início da Grande Recessão). Estas etapas condensam a história da relação funcional criada, contra todas as probabilidades, entre os Estados Unidos e a China numa função anti-soviética primeiro, anti-inflacionária e anti-sindical depois.

Uma história sem a qual não estaríamos a falar de globalização e a questionar o seu futuro. No entanto, as passagens recordadas representam o epílogo de um movimento mais vasto, cuja inversão estrutural teria todas as características de um divisor de águas epocal. A ocidentalização do mundo no sentido contemporâneo é frequentemente atribuída à revolução industrial. No início do século XIX, o PIB das potências ocidentais ultrapassava o das potências asiáticas, embora a população da Europa fosse apenas um quarto da Ásia. Mesmo antes de a indústria ter desenvolvido todo o seu potencial de produção e de guerra, as potências coloniais europeias já tinham subjugado vastas áreas da Índia e territórios do Extremo Oriente que eram tributários da China. No entanto, só com o pleno desenvolvimento da navegação motorizada, em navios metálicos, produto da nova indústria naval industrial movidos pela força propulsora dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo), é que a Europa “globalizou” verdadeiramente o mundo, tecendo com as suas colónias a densa rede de trocas que estruturou o comércio contemporâneo.

Entre os efeitos mais consequentes desta primeira globalização conta-se a plena integração da América do Norte nos circuitos económicos mundiais. Um resultado decisivo, porque uma vez alcançada a independência da Grã-Bretanha (1776) e terminada a Guerra Civil (1861-1865), foram os Estados Unidos que, após a II Guerra Mundial, assumiram o testemunho do poder “global” da Europa, desenvolvendo um poder económico e marítimo inigualável, mesmo no auge da fortuna soviética durante a Guerra Fria. A partir desse momento, o Oeste americano tornou-se um protótipo da modernidade, um modelo económico e, muitas vezes, sócio-institucional a seguir na busca da prosperidade, da independência e do dinamismo. Durante a Guerra Fria, a alternativa soviética de um partido único e de uma economia planificada foi imposta ou imitada de várias formas nas partes do mundo afastadas da influência directa dos Estados Unidos (o bloco de Leste), ou naquelas que eram contestáveis (os conglomerados dos não-alinhados).

No entanto, em retrospectiva, a divisão Leste-Oeste revela-se mais de natureza geoestratégica do que cultural. A matriz histórico-concetual dos dois “impérios” que se confrontam, o americano e o soviético, é de facto a mesma, ou seja, o positivismo iluminista e a lógica hegeliana, que informam a abordagem teleológica da história e dos assuntos internacionais das lideranças americana e soviética, bem como o fascínio de ambas pela ciência e pela tecnologia. O modus também tem muito mais em comum do que é frequentemente apreciado. O produtivismo, que a partir dos anos de 1980 atingirá excessos paroxísticos mas que continua a ser um ingrediente teórico e ideológico fundamental do sucesso capitalista, no sistema comunista tem uma organização e beneficiários diferentes, mas pelo menos nas suas intenções os mesmos fins. O excesso de trabalho de Aleksej Stakhanov não lhe aumenta o salário, a mina em que trabalha e a pá que maneja pertencem ao Estado e não a um magnata privado, o objectivo que o motiva não é o sonho americano mas o paraíso dos trabalhadores.

Mas o sistema de produção em que se insere é o hiper-industrial que a estalinização tomou de empréstimo à Europa, primeiro, e à América, depois. À custa do atraso. Do ponto de vista económico, a Guerra Fria não é, portanto, um confronto “entre capitalismo e comunismo”, mas entre capitalismo privado e capitalismo de Estado. O primeiro vence graças a um sistema de incentivos superior, que promete ao indivíduo usufruir plenamente dos frutos do seu trabalho para ser próspero e livre de carências e arbitrariedades. Por esta razão, a vitória esmagadora do bloco capitalista encontra um mundo globalmente predisposto a adoptar o seu modelo e mesmo a aceitar a sua égide. No início dos anos de 1990, as antigas sociedades comunistas não são sociedades pré-modernas. São sociedades permeadas por um capitalismo industrial que o calcanhar de ferro de um perestatismo autoritário e ineficaz tornou economicamente pobre, politicamente subserviente e psicologicamente apático.

Nestas sociedades, décadas de modernidade industrial logo, ocidental lançaram as sementes da globalização americanocêntrica, que é aceite e prosseguida apesar de criar enormes desequilíbrios sociais. Enquanto isso, na China, as reformas de Deng Xiaoping desbravaram o espírito mercantil do país, que desde os anos de 1990, mas ainda mais desde 2001, com a sua entrada na Organização Mundial do Comércio se tornou a fábrica do mundo. Se é sobretudo a América que cai na armadilha do “fim da história” (Fukuyama) que imagina o binómio democracia liberal-capitalismo como a forma final e mais elevada da história humana é todo o Ocidente que se apaixona por si próprio. De tal modo que escorrega, sem suspeitar, no paradoxo da afirmação de valores ocidentais “universais”. Assim destorcidos e divorciados das suas próprias esferas geográficas e culturais, estes valores tornam-se um fetiche e um puro instrumento de hegemonia. Isto não é novidade. Ao lado do aventureirismo e da sede de riqueza, é também um sincero espírito evangélico que anima muitos cruzados na sua luta contra o Islão.

22 Ago 2024

Parsifal

– O Verão no hemisfério norte faz-nos sonhar com nevoeiros, brumas bretãs e povos escondidos no verde-escuro das montanhas em ritos tão longínquos quanto encantados, faz-nos ir até às sombras de um tempo mítico, à ilha das Maçãs, sonhar com reis Pescadores e visitar Morgana; a saga brumosa ajuda a quebrar a intempestiva luz estival com hora marcada para festejos grotescos. E vamos até lá com nossos vestidos de vento e cotas de malha. Parsifal ou o romance do Graal é o «magum opus» de Chrétien de Troyes, trovador e pioneiro dos romances de cavalaria, e toda a sua obra é uma extensa narrativa do ciclo arturiano, a chamada Matéria da Bretanha que este poeta francês do século XII elabora em directa influência com a canção de gesta mas dando-lhe mais elegância na sua busca amorosa que vai desaguar no amor cortês. Ele inicia a narrativa do Graal numa elaboração amorosa até aí muito pouco exercitada.

– Parsifal está unido a uma profecia redentora anunciada pelo mago Merlim como alguém de pouco eficiente, belo, valente, e desconhecedor de realidades em seu redor, coabitando entre várias aventuras sem saber de suas causas e origens, mas com uma chave preciosa, a pureza, sendo por isso designado por cavaleiro sem mácula. O seu casual encontro com o rei-Pescador vai encaminhá-lo para a confirmação da profecia: ele escuta o chamamento de dois homens que estavam numa barca, ajudando-os na travessia vai até ao castelo onde as feridas do rei não saravam, e passa por rituais onde nada pergunta: parte para a corte de Artur com o propósito de voltar ao castelo de Corbenic para indagar finalmente a estranha maravilha daquela vez – muitos procuraram- ele não o fez, e foi então o único que viu o Cálice do Graal. Só perguntando a origem da ferida o rei seria curado, e neste Ciclo Arturiano, ele era aquele que vira o Cálice, e na metáfora do cristianismo o vemos aparecer ainda como um Cristo e seus apóstolos pescadores, que no relatar da narrativa inacabada de Chrétien de Troyes lembrará num memorável trocadilho «pêcher/ pécheur».

– É claro que antes do mito cristão pelas terras enevoadas da Bretanha todas estas personagens já se tinham feito sentir, estamos em pleno reino celta onde as vozes da floresta nos indicam que os desertos, embora mais sublimes, são incapazes de esconder os injustiçados e não narram vegetais palavras que ninguém entende, tal como nunca se entenderá as setenta e duas designações do nome de Deus, porém, há sombras frescas para esconder os que fogem das perseguições do chumbo, que o lugar onde Merlin desenhou um círculo era apenas um outro pedaço de terra que também recebia sol. Se Morgana é emblemática, Madalena não o foi menos, uma e outra integram a consciência sempre um pouco turva do herói, Perceval era filho de Sir Lancelote, morto em combate com o seu irmão, e só quando conhece a realidade dos factos é capaz de ser encaminhado para escutar as feridas de todos que o porão na via de uma descoberta e da razão do porquê das coisas serem feitas. Parsifal era o menos ardiloso dos cavaleiros, talvez por isso tivesse a componente que seria indispensável para encontrar o que todos procuravam.

– Parsifal é um curandeiro, dito assim, parece mais um mago em busca de uma panaceia, mas todo o seu encanto reside numa certa inocência, em termos de similitude ele será o anti-herói dos nossos tempos, um desconhecido de nós mesmos, aquele alguém onde todos falhamos por excesso de zelo. Porém, ele ergue-se pelos tempos fora, convocam-no, inspira, e Wagner, que até pode ter sido uma má pessoa, mas (fundamental) um grande artista, vai buscá-lo para nos deslumbrar de beleza que afinal esta nossa humanidade transporta. É inspirado o drama musical num poema de Wolfram von Eschenbach. Foi a sua última obra, como Oscar Wilde no De Profundis. São os cenários redentores.

(E quando nas Olimpíadas aparece a barca de fogo sobre as águas com aquela voz cristalina em «Imagine» todos ainda julgáramos ver o rei Artur na sua última morada)

21 Ago 2024

Mais fácil atar o nó que desatá-lo

No passado dia 13, o Governo Central da China anunciou as alterações ao “Regulamento do Registo de Casamento (Rascunho a ser comentado e revisto)” (a que nos passaremos a referir como “Projecto de lei”). O Projecto de Lei introduz muitas alterações ao Regulamento do Registo de Casamento, sendo que as duas mais significativas são a criação de um período de 30 dias de reflexão antes do divórcio ser declarado e a obrigação de informar o futuro cônjuge antes do casamento de qualquer doença grave de que se possa padecer. Nas menos significativas estão incluídas a eliminação da necessidade de um registo do agregado familiar para o certificado de casamento e a obtenção de “acesso a nível nacional”, ou seja, o registo de casamento pode ser feito em qualquer local da China continental.

Muitos internautas acreditam que o objectivo do Projecto de Lei é reduzir o número de divórcios e consequentemente aumentar o número de nascimentos. De acordo com as estatísticas divulgadas recentemente na China continental, pelo Ministério dos Assuntos Civis, registaram-se 3,43 milhões de casamentos a nível nacional na primeira metade de 2024, cerca de 50 por cento dos enlaces registados no mesmo período de 2014, o número mais baixo da última década. Ao mesmo tempo, verificaram-se 1,274 milhões de divórcios a nível nacional sendo actualmente a taxa de separações de 37.1 por cento, o que representa um aumento quando comparado com 2023. Tendo em conta este cenário, a sociedade passou a estar mais atenta ao Projecto de Lei.

Nos Artigos 16 a 19 do Projecto de Lei foi acrescentada a regra do “período de reflexão de 30 dias” antes do divórcio. No período de 30 dias após a conservatória receber a requisição do divórcio, qualquer uma das partes pode anular o pedido e o processo é cancelado. Uma vez expirado o período de 30 dias, o casal pode divorciar-se.

O objectivo da criação dos “30 dias de reflexão” é muito claro. Dá uma oportunidade aos cônjuges para reflectirem e comunicarem entre si. Durante este processo, podem ambos rever os bons momentos que passaram juntos, pensar sobre os problemas do seu casamento e tentar encontrar uma solução. Simultaneamente, o período de reflexão também ajuda a reduzir os efeitos negativos das decisões precipitadas, tais como os danos provocados nos filhos e nos outros membros da família. Além disso, também pode guiar a sociedade a formar um conceito do casamento mais racional e saudável. Afinal de contas, o casamento não é fácil. Porque não dar mais um tempo para resolver os problemas?

Outra importante alteração que consta do Projecto de Lei é a disposição relativa à notificação de doenças graves. Segundo o Artigo 12 do Projecto de Lei, se alguém sofrer de uma doença grave terá de informar o parceiro antes do casamento. Se isto não acontecer, a outra parte pode pedir ao tribunal a anulação do casamento. A alteração a esta cláusula não só fortalece o direito de cada pessoa a estar informada sobre a vida daquele que escolheu para ser o seu consorte, como também aumenta a transparência e a equidade dentro do casamento.

No actual Regulamento do Registo de Casamento, a expressão usada é “notificar o outro”, mas o Projecto de Lei acrescenta a palavra “parte” e reformulou a frase para “notificar a outra parte”. Podemos demonstrar o impacto destas alterações com um exemplo simples. Suponhamos que um homem e uma mulher se casam. O homem sabe que é infértil. De acordo com o Regulamento do Registo de Casamento, antes do enlace, só revelou esse problema aos pais da noiva, mas não a ela. Estará a cumprir os requisitos legais?

O entendimento de “notificar o outro” é, evidentemente, informar o futuro cônjuge. Mas na prática jurídica, uma das interpretações pode ser informar os ‘pais ou os membros da família do outro’. O motivo desta interpretação é que o casamento não diz apenas respeito ao casal, mas também aos seus familiares. Do ponto de vista genérico, se o homem informasse os parentes da mulher de que é infértil, cumpria os requisitos legais estipulados no Regulamento do Registo de Casamentos. Posteriormente, quando a mulher requeresse a anulação do casamento por não ter sido informada de um problema de saúde do marido, é provável que surgissem litígios.

O Projecto de Lei elimina as interpretações generalistas ao acrescentar a palavra “parte”. O homem deve claramente informar a mulher de que é infértil. Se mesmo assim ela continuar a concordar com o casamento, claro que não existirá qualquer problema. Mas se a mulher só vier a saber disso depois do enlace, tem o direito de requerer a anulação do casamento. A maior vantagem desta alteração é a clarificação dos direitos de ambas as partes à informação. A partir daqui, ninguém pode pedir a anulação do casamento alegando que não sabia dos problemas de saúde do cônjuge, antes de se casar. O casamento não será posto em causa pela existência de doenças pré-nupciais e a sua estabilidade aumentará devido às disposições acrescentadas pelo Projecto de Lei.

Na próxima semana, vamos analisar os tópicos a que devemos prestar mais atenção no Projecto de Lei.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

20 Ago 2024

“O binho é qu’induca”

Há cerca de 20 anos visitei Bragança a fim de conhecer os usos, costumes e tradições daquela região. No primeiro dia que me desloquei a um café pedi uma sandes de presunto e um copo de leite. Do meu lado esquerdo ouvi logo uma voz, de um homem cheio de rugas na face e as mãos como se estivessem inchadas do trabalho no campo, que me disse: “Leite? Ó amigo, de manhã, se quer viver muitos anos o binho é qu’induca!”. Estava iniciado um diálogo que foi longe e que acima de tudo o companheiro de balcão do café, com 83 anos de idade, e fresco para as curvas, transmitiu-me que desde que se conhece que pela manhã, depois de comer uma “bucha” em casa, vai à tasca ou ao café ingerir um copo de vinho tinto e um bagaço. Limitei-me a acreditar que o vinho tinto dá alguma saúde a mais do que o normal.

Passados muitos anos tive conhecimento que o médico cardiologista mais famoso na China tinha afirmado na televisão que um copo de vinho tinto às refeições era o melhor medicamento para o coração. O que constatei é que os chineses que bebiam copos cheios de conhaque e brandy às refeições, começaram a pretender beber vinho tinto. Bem, foi um fartote de importação de contentores oriundos de Itália, França e Austrália. Mais tarde, soube através de um amigo que tem uma herdade no Alentejo e que produz vinho, que até Macau estava a importar dezenas de contentores de toda a espécie de vinho português com destino à China. Por sinal, também soube que alguns inúteis residentes em Macau vieram a ficar riquíssimos com a importação do vinho português do Douro, Beira e Alentejo, onde realmente são produzidos vinhos de alta qualidade, alguns, mesmo melhores que os franceses e italianos.

O vinho tem vários segredos ao longo da sua produção, incluindo o modo como são plantadas as videiras e como são retiradas as uvas. A indústria do vinho já é uma das maiores do mundo e temos garrafas que ultrapassam o preço de 100 mil patacas. Um antigo residente de Macau, que mora aqui perto de mim, disse-me que uma vez foi convidado para jantar em casa do senhor David Chow e que ele abriu uma garrafa de vinho francês avaliada em 120 mil patacas.

Mas, neste momento da vossa leitura, perguntarão “onde é que este tipo quer chegar com esta conversa do vinho, eu que adoro beber um copo às refeições”? Têm razão em querer saber e digo-vos de imediato. Li numa revista inglesa que, em 2023, Portugal foi o país do mundo que consumiu mais vinho. Fiquei de boca aberta.

Na verdade, pensando bem, tem de se beber muito em Portugal se atendermos às centenas de marcas que o mercado apresenta. Praticamente em todo o país produz-se bom vinho, os enólogos de hoje sabem da poda e as condições das adegas são quase semelhantes a hotéis de luxo. Mas, a moeda tem duas faces. Nós, os portugueses, podemos ser o povo que mais bebe vinho. No entanto, não sabemos beber. Muito poucos são aqueles que bebem para apreciar o que lhe foi posto no copo. A maioria bebe até já não saber o que diz. Não tem a noção se bebeu um vinho com 13,5%vol, 14% ou 14,5%. Para essa gente tanto se lhe dá como se lhe deu. O que interessa é estacionar o carro ou a moto à beira da estrada onde se situa um restaurante e vá de esvaziar garrafa atrás de garrafa. E depois? Depois temos, segundo a GNR, que a maioria dos acidentes rodoviários é devido ao excesso de álcool no sangue. Tem sido de uma imensa dificuldade convencer os condutores portugueses que se estão ao volante não podem ingerir nenhuma bebida alcoólica.

Há dias, vi um camionista fora de mão e de repente lá guinou para o seu lugar correcto. Ou estava com sono ou com uns copos a mais. Não aconteceu nenhuma tragédia porque naquele momento não rodava nenhum veículo em sentido contrário. O vinho tanto pode dar um grande prazer como pode constituir uma desgraça. Um médico transmitiu-me que não existe pior droga que o álcool e se nos dermos ao trabalho de investigar quem são as pessoas que estão internadas em instituições de recuperação, concluiremos que são alcoólicos. Infelizmente, nenhum governo desde o 25 de Abril de 1974 se preocupou com a situação psicológica de antigos combatentes que passaram anos a ver mortos e feridos graves. Esses antigos militares ficaram traumatizados e um grande número deles está alcoolizado. É no vinho ou em outras bebidas alcoólicas que se refugiam para esquecer as cenas tristes que lhes vão na mente. Estão completamente transtornados, batem nas mulheres, nos filhos e conduzem o carro bêbedos.

Portugal foi o país que mais vinho consumiu em 2023 e certamente que entre este número estonteante estiveram milhares de condutores de camiões, carros e motos. Os acidentes são semanais e ultimamente têm morrido muitos jovens em acidentes de motos e quendo as autoridades investigam são informadas que os condutores estiveram num bar ou numa discoteca a beber demasiado. “O binho é qu’induca” desde que saibamos que apenas podemos beber um copo por refeição, no máximo, se de seguida formos pegar no volante. Portugal tem de caminhar para o primeiro lugar mas é dos países com menos acidentes nas estradas.

19 Ago 2024

Candidato único

A eleição do Chefe do Executivo do VI Governo de Macau terá lugar a 13 de Outubro. A menos que ocorra algo de inesperado, apenas se apresentará um único candidato.

Esta eleição foi agendada para uma data posterior àquela em que foram realizadas as anteriores. A eleição de 2014 teve lugar a 31 de Agosto e a de 2019 a 25 desse mês. Não se sabe ao certo se este adiamento está relacionado com o prolongamento do período de licença do actual Chefe do Executivo, num total de 39 dias, devido à necessidade de ser submetido a exames médicos, mas é certo que o cumprimento dos deveres públicos requer boa forma física.

Dado que a tónica foi colocada no princípio “Macau governado por patriotas”, a Lei Eleitoral para o Chefe do Executivo e a Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa foram alteradas, para alcançarem o aperfeiçoamento do sistema eleitoral de Macau. Além disso, com o cancelamento da eleição para o Conselho de Assuntos Municipais e do Conselho Consultivo de Assuntos Municipais, a administração municipal está firmemente sob controlo. Se todas estas alterações conduzirão a melhoramentos efectivos nos negócios das pequenas e médias empresas e à redução do encerramento de lojas situadas nas zonas não turísticas, é uma questão que vai depender da capacidade de inovação e da criatividade dos principais membros do VI Governo de Macau.

Na eleição dos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo (CECE) de 2024, dos 6.265 representantes de pessoas colectivas com capacidade de voto, apenas 5.521 cumpriram essa obrigação. O seu voto é entendido como uma “obrigação” porque estes 6.265 eleitores têm uma importante responsabilidade, quando comparados com a restantes população de 320.000 eleitores. Portanto, uma percentagem de 88.12 por cento não pode ser considerada particularmente elevada. Idealmente, deveria ser de pelo menos 98 por cento. Houve 348 candidatos de três sectores, que, no seu conjunto, representavam sete sub-sectores, disputando 344 assentos da CECE, dos quais o número de candidatos de cinco dos sete sub-sectores não foi contestado, enquanto em relação aos outros dois, cada um deles apresentava dois candidatos para um lugar. Não se pode dizer que esta eleição tenha sido muito competitiva, mas fizeram-se vários esforços para que a eleição se tenha vindo a tornar um tópico de debate público.

Se Macau deve ser definida como uma “sociedade dominada por associações/organizações”, então aqueles a quem foi concedido o direito de voto devem ser representantes dessas associações/organizações. Macau é uma cidade pequena, mas o número de associações/organizações podia constar do Livro de Recordes do Guinness. E mais, o número actual de membros dessas associações/organizações que participam na votação e nas eleições é provavelmente desconhecido mesmo das próprias associações/organizações!

O resultado da eleição do Chefe do Executivo do VI Governo de Macau só será oficialmente anunciado depois de 13 de Outubro. O processo de nomeação e as actividades de campanha prosseguirão conforme planeado, e certamente não haverá competição que se compare à que acontece actuamente nas presidenciais norte-americanas. Dado que o limite de despesas que cada candidato pode efectuar com a respectiva campanha eleitoral para o cargo de Chefe do Executivo do ano 2024 é fixado em 6.439 847,85 patacas, sugiro que se aplique essa verba na realização de espectáculos de variedades, para que o público em geral possa participar.

De acordo com os princípios de “salvaguardar com firmeza o poder pleno de governação do Governo Central” e “Macau governado por patriotas”, a RAEM vai dar as boas vindas ao seu sexto Chefe do Executivo. Quer o actual Chefe do Executivo venha a ser reeleito, quer o cargo venha a ser entregue a alguém acabado de chegar, o mais importante é que possa servir o povo de Macau, e embora se possa sentir bem consigo próprio, deve garantir que os demais também compartilhem desse sentimento.

16 Ago 2024

O Clube da Luta (IV)

“What is stopping Israel from taking Palestine? Two reasons: Palestinians don’t want to become Israeli citizens. Palestinian Arabs (mostly Muslim) would outnumber Israel Jews in a generation or two, turning the Jewish state into an Arab Muslim state where Jews are the minority. Seeing how minority Jews have been treated in every single Arab or Muslim country, Israel Jews have no desire to do this.”
Terrence Levine

 

O mantra pilatesco dos dois Estados e o reconhecimento verbal do inexistente Estado da Palestina, caminho em que se lançaram a Espanha, a Irlanda, a Noruega, seguida da Eslovénia e talvez outros, apenas confirmam a impotência daqueles que pretendem contribuir para a paz fugindo da realidade. Se fossem uma nação ou algo semelhante, os palestinianos não reagiriam como (não estão a reagir) à retaliação israelita. A Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) é um clã impotente sustentado por Jerusalém, Washington e doadores europeus. Ninguém tem qualquer interesse em tratar essa maquineta de papel pelo que ela é. Contraprova da impossibilidade de ser Palestina. As facções palestinianas continuam a dividir-se, à espera que alguém reinvente o guarda-chuva da OLP para substituir a unidade que não existe. Quanto ao Hamas, é provável que ganhasse qualquer eleição nos territórios palestinianos, se estes permanecessem.

Em vez de se compactar na hora suprema, que se manteve durante anos também graças ao financiamento de governos israelitas demasiado astutos para se aperceberem de que estavam a engordar os organizadores do pogrom, revela-se uma galáxia de grupos e milícias semi-independentes. Os dirigentes alojados nos hotéis climatizados de Doha foram surpreendidos desde 7 de Outubro de 2023, enquanto as Brigadas al-Qassam perderam o controlo do seu próprio raid, com a segunda e terceira vagas infiltradas pela Jihad islâmica e por habitantes de Gaza agitados pelo desejo de vingança. É esclarecedora a falta de empatia dos palestinianos israelitas com os seus “irmãos” de Gaza, impiedosamente bombardeados pelo seu próprio Estado. Nesta guerra, agora de verdade, comportam-se mais como israelitas do que como árabes. O recente inquérito realizado pelo influente Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS na sigla inglesa) de Telavive revela três verdades surpreendentes.

Em primeiro lugar, os árabes e os judeus israelitas partilham quase em uníssono (45 e 48 por cento) o sentimento de que as tensões no seio da sociedade israelita são mais perigosas do que as ameaças externas à sua segurança. Em segundo lugar, apenas 19 por cento dos árabes não apoiam de todo a guerra de Israel contra Gaza, enquanto 54 por cento a apoiam em graus variáveis e 26 por cento se abstêm. Dados que devem fazer reflectir a grande parte dos judeus israelitas que consideram os árabes incompatíveis com o Estado do qual continuam a ser cidadãos de segunda classe. Enquanto a alternativa for viver sob o domínio do Hamas ou da ANP, apesar do assédio e dos direitos espezinhados, Israel é um paradigma invejável. Mas a pressão da ultra-direita racista pode virar a minoria árabe contra as instituições. O INSS adverte que “Na sociedade árabe, as pessoas sentem-se perseguidas pelo Estado, incluindo as agências de segurança. Os árabes israelitas acreditam que o Estado está constantemente a demonstrar a sua natureza antidemocrática pela forma como trata os seus cidadãos árabes”.

O historiador israelita Tom Segev explica que “A natureza irracional do conflito foi a principal razão pela qual nunca foi resolvido. Forçar uma solução que não existe é uma receita para a guerra permanente, afirmando que “A principal razão pela qual a guerra continua não é nem a opressão israelita sobre os palestinianos nem o terrorismo palestiniano, mas a adesão irrevogável dos dois povos a uma terra indivisa. Estes absolutismos tornaram-se cada vez mais a essência das suas respectivas identidades colectivas. Qualquer compromisso seria provavelmente denunciado por importantes comunidades israelitas e palestinianas como uma traição nacional e religiosa”. Segev retira daqui que a irresolubilidade do rebus implica a obrigação de o gerir. Tentar desvendá-lo implica um luto sem fim. Guerras sem termo porque sem objectivo. Do belicismo assassino ao suicídio colectivo, o passo não é necessariamente longo.

Dado o estado (e o não estado) em que se encontram os palestinianos, caberá a Israel dar o primeiro passo para o regresso à política, condição para a gestão não violenta do conflito. O impulso teocrático da extrema-direita e dos colonos, para quem a conquista de toda a Terra de Israel é um mandato divino, reduz ao mínimo a margem de manobra. Se os palestinianos não são uma nação, os israelitas estão ocupados a minar a sua própria nação. Ou, pelo menos, o actual governo, sobrecarregado de extremistas, está a tentar fazê-lo. Poucas horas após o atentado do Hamas, Netanyahu declarou em directo na televisão, dizendo que “Estamos em guerra. E na guerra é preciso manter a cabeça fria”. A sua deve ter uma temperatura peculiar, pois entrou imediatamente na espiral da guerra sem saída, apesar do aviso de Biden para não “repetir os nossos erros”. Para não cair na armadilha da guerra contra o terrorismo, invencível por definição, com a qual a administração Bush Jr., nas mãos dos neocons convencidos de que podiam americanizar o mundo, iniciou o declínio da superpotência.

Israel está nas piores condições para se lançar numa guerra infrutífera contra adversários que só precisam de continuar a existir para ganhar. De facto, eles já ganharam, independentemente de como termine a campanha das FDI em Gaza ou fora dela. É impressionante como, no espaço de algumas semanas, Jerusalém dispersou o capital de simpatia que adquiriu com o massacre do Hamas. Até ao ponto de o transformar num ódio generalizado a Israel, nunca tão solitário. E nunca esteve tão dividido internamente. As tribos já quase não se falam, à espera do confronto quando a catástrofe de Gaza for totalmente revelada. Apenas um israelita em cada dez acredita na vitória total, se é que isso significa alguma coisa.

O Estado judeu sem estratégia combate-se a si próprio. Não encontra alternativa à lei da retaliação. Pratica uma vingança indiscriminada em grande escala. O instinto privado é elevado à função de Estado de uma entidade avassaladora que esmaga milicianos e civis sem perder tempo com subtilezas. Quase como se o Hamas e os palestinianos em geral representassem uma ameaça existencial para Israel. Como se fossem o Irão. Uma enorme publicidade para os terroristas. É impressionante como o medo de ser apanhado numa espiral que pode iniciar a autodestruição do Estado sionista e desencadear novos pogroms contra as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo agita o debate público e as conversas privadas entre os judeus, em Israel e na diáspora. Em causa está o significado de um Estado criado para proteger os judeus. Um postulado violado pela operação Dilúvio de al-Aqsa. Entre os mais assustados, embora não o admitam, estão os estrategas do Irão.

Sem o “Pequeno Satã”, o regime perderia o inimigo necessário para legitimar a rede imperial de clientes árabes, então restituídos à realidade de farpas de uma roda descentrada cujo pivot era a coexistência opositora de Israel e do Irão. Pior, os aiatolas e os pasdarans teriam de organizar celebrações grandiosas para confortar a propaganda de “Morte a Israel! Morte à América!” que reverbera nas reuniões de massas. Os convidados especiais seriam os líderes do Hamas, clientes duvidosos erigidos em heróis do império. A República Islâmica cambalearia sob o peso de tal vitória. As almas sensatas jurariam ter visto o fantasma de Aristóteles a vaguear pelo bazar, com um sorriso de escárnio a cortar-lhe o perfil. Resta saber se Israel é mais louco por querer resolver a irresolúvel questão palestiniana, um erro agravado pelos seus métodos mortíferos e pela sua indiferença ostensiva em relação às vítimas civis ou o Irão por confiar num cliente árabe sunita que já o traiu na Síria, em 2011, ao aproveitar a onda destinada a varrer Bashar al-Assad, que rapidamente se transformou numa corrente de ar.

Até ao ponto de guerrear com o Hezbollah, que tinha treinado as suas milícias. Entretanto, a Turquia, o terceiro adulto da antiga “Aliança da Periferia”, passou, em poucos dias, de um aperto de mão público entre o seu presidente e o primeiro-ministro israelita, uma estreia, à exaltação do Hamas. A praça muçulmana exige este preço. Erdogan e o seu Estado teriam preferido não o pagar, porque queriam reavivar o entendimento secreto com Israel. Será que vão tentar de novo? Os três tecelões de estratégias paralelas de controlo dos clientes e dos actores árabes já não se procuram. De potências indispensáveis a potenciais bombistas suicidas. Vítimas dos seus próprios excessos de astúcia, sobretudo do apoio sub-reptício de Israel ao Hamas desde o nascimento até à madrugada de 7 de Outubro de 2023.

Chamemos-lhe a vingança dos mandatários. Provisória. Quando o nevoeiro da guerra se evaporar e o sol iluminar as ruínas do campo de batalha, a balança voltará a marcar o peso específico de cada um e a despertar a sua consciência estratégica. Desde que ele sobreviva. Nessa altura, cada lado do triângulo retirará as suas próprias lições. Uma, pelo menos, deveria uni-las, pois fora com os clientes, dentro com os patrões, difusa ou esbatida não é aristotélico. O ameaçador rejeita a bivalência seca do verdadeiro/falso. Cultiva a aproximação. Simpatiza com a realidade. Reflecte-a. Especialmente se for do Médio Oriente, que é o mais difuso possível. Para Lotfi Zadeh, o verdadeiro e o falso estão separados e unidos por graus de verdade parcial. Como a sua identidade. É filho de um pai iraniano de origem azeri (turca) e de uma mãe judia russa. Estudou numa escola americana em Teerão, licenciou-se em engenharia electrotécnica e depois mudou-se para os Estados Unidos.

A sua lógica difusa também o tornou famoso pelas numerosas aplicações industriais baseadas na matemática que trata informações vagas e ambíguas. Em 2016, técnicos japoneses construíram o primeiro robot com inteligência artificial baseado na teoria de Zadeh. O suficiente bastante para o eleger herói epónimo da tese de que a pacificação (muito relativa) no antigo “Grande Médio Oriente” implica um compromisso entre os poderes internos de Israel, Irão e Turquia. Os actores árabes são demasiado frágeis. Em rigor, não são verdadeiros Estados e muito menos nações. Quando muito, são patrimónios de famílias desavindas. Antes de estabilizarem os outros, terão de se estabilizar a si próprios. Quanto aos Estados Unidos, China e Rússia, precisam da sua bênção ou pouco mais, porque têm outras prioridades.

14 Ago 2024

Diversificação das gorjetas

A semana passada, uma notícia escaldante atraiu por todo o lado a atenção dos internautas. O motivo da polémica foi a adição nas contas de alguns restaurantes norte-americanos de uma taxa designada por “kitchen appreciation fee” (KAF) (gorjeta para o pessoal da cozinha), que representa aproximadamente 2 por cento do total do consumo. Muitos clientes estranharam quando receberam a conta e ao tentaram ser esclarecidos não receberam uma resposta clara dos empregados.

O incidente ocorreu num restaurante em Maryland, EUA. O cliente pediu dois pequenos almoços, dois sumos de laranja e um cocktail, o que perfazia 56 dólares. Mas quando recebeu a conta, percebeu que também teria de pagar a KAF.

De acordo com as notícias que circulam online, a KAF não é novidade nos Estados Unidos. Antes da pandemia, alguns restaurantes já a incluíam. O montante desta taxa adicional, que pode variar entre 2 por cento e 10 por cento do valor da conta, destina-se ao pessoal da cozinha que tem salários baixos e está sob grande pressão económica.

Simultaneamente, as notícias online também mencionam a cultura das “gorjetas”, semelhante à KAF, mas que tem uma longa história. A KAF destina-se ao pessoal da cozinha, enquanto a “gorjeta” é entregue ao empregado que serve à mesa. “Gorjeta” é o pagamento extra dado pelo cliente à pessoa que o atendeu. O montante habitual varia entre 10 por cento a 25 por cento do consumo e representa o reconhecimento do trabalho do empregado que serve à mesa. Esta tradição teve a sua origem em Londres no século XVIII. Existia uma taça na mesa de hotel com uma etiqueta que dizia “para garantir um serviço imediato”. Os clientes só precisavam de pôr algumas moedas na taça e eram rápida e atenciosamente atendidos.

À medida que os tempos foram mudando, estas taças foram sendo substituídas por caixas registadoras, mas a cultura das “gorjetas” permaneceu. Quando a conta do cliente é feita, no ecrã da caixa registadora aparecem opções pré-definidas para as gorjetas, com percentagens de 15 por cento, 20 por cento, 25 por cento. Para não fazerem má figura, muitos clientes dão grandes gorjetas mesmo que não tivessem vontade de o fazer. Alguns estudos também provam que uma gorjeta inferior a 20 por cento é considerada “uma ninharia”.

As pessoas têm opiniões diferentes sobre o sistema das gorjetas. De acordo com os dados de uma empresa de serviços financeiros, 66 por cento dos inquiridos têm uma opinião negativa do sistema das “gorjetas”, 41 por cento disseram que os patrões deveriam pagar melhor aos empregados e não depender das gorjetas para compensar salários baixos. Além disso, mais de 30 por cento eram absolutamente contra as percentagens de gorjeta pré-definidas e afirmavam que este sistema estava fora de controlo.

Inesperadamente, na América, este assunto tornou-se uma questão inclusivamente ao nível político. Donald Trump, um dos candidatos à presidência dos EUA, propôs que as gorjetas fossem retiradas da declaração de rendimentos dos empregados para lhes reduzir a carga fiscal. Embora esta proposta tenha causado controvérsia, também reflecte a grande influência do sistema de consumo na sociedade norte-americana.

Voltando à KAF e às gorjetas propriamente ditas, estas duas taxas servem como fonte de rendimento adicional para os funcionários dos restaurantes. Embora sirvam em certa medida para aliviar o seu fardo económico, também acarretam várias questões sobre as quais vale a pena reflectir.

Em primeiro lugar, a incerteza sobre a quantia que recebem através da KAF e das “gorjetas” causa instabilidade aos empregados, que já têm dificuldades financeiras. O método ideal é, seguramente, aumentar os ordenados e tornar os seus rendimentos estáveis. Mas os salários fazem parte das despesas operativas dos restaurantes. Se forem aumentados, os custos também aumentam, por isso proprietários têm de considerar essa possibilidade com cautela.

Em segundo lugar, quer o pessoal da cozinha, quer o pessoal das mesas, são pagos pelo seu trabalho. A KAF e as “gorjetas” são rendimentos secundários que advêm dos seus serviços. Por isso, se o dono do restaurante não concordar, os funcionários deixam de poder receber a KAF e as “gorjetas,” porque não podem usufruir de dois rendimentos por um trabalho único.

Em terceiro lugar, a situação agrava-se se os trabalhadores se esforçarem mais e servirem melhor o cliente depois de cobrarem a KAF e a “gorjeta.” Do ponto de vista administrativo, os empregados devem prestar o mesmo serviço a todos os clientes, por isso quem gratifica melhor não deve ser mais bem servido. Basta pensar, se o cliente põe a “gorjeta” na taça, para ser mais bem atendido, quebra-se a “igualdade” com que os clientes devem ser servidos. De forma a evitar problemas desnecessários, algumas grandes empresas proibiram as “gorjetas”.

Em quarto lugar, para o pessoal da cozinha e das mesas, a KAF e as “gorjetas” representam parte do seu rendimento e por isso são colectáveis. O patrão também tem a responsabilidade de comunicar às Finanças o montante em KAF e “gorjetas” recebido pelos empregados, caso contrário será suspeito de omissão na declaração de impostos. Mas na verdade, se os clientes gratificassem directamente os empregados, o patrão não teria forma de saber o valor que recebiam e não poderia informar as Finanças. Se assim fosse, o Governo cobraria menos impostos.

Os montantes da KAF e das “gorjetas” não são elevados, mas levantam muitas questões. Vale a pena manter esta prática? E como se deve defender os interesses dos accionistas? Como é que pode ser melhorado? Vale a pena pensar sobre isso.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

12 Ago 2024

A hipocrisia na suspensão das férias

As férias são designadas como o período de descanso a que têm direito os trabalhadores, funcionários públicos, estudantes e demais profissões. Provém do latim ‘feria, -ae’ que significava entre os antigos romanos, o dia em que, por prescrição religiosa, não se trabalhava.

Hoje em dia, as férias são algo que transmite felicidade, descanso, alegria, tristeza e problemas. Tristeza, porque nem todos os cidadãos podem ter uns dias de descanso e são tão pobres que são obrigados a trabalhar os 365 dias do ano. Conhecemos uma senhora que trabalha em limpeza de residências e de escritórios que nunca teve férias. O ripanço inerente às férias é merecido para todos quantos passam o ano a trabalhar arduamente. Institucionalizou-se, por maioria, que as férias fossem gozadas no mês de Agosto, talvez por ser o mais quente e as famílias poderem levar a pequenada a banhos pelas praias do país ou do estrangeiro. Famílias, que muitas vezes, são as férias que lhes criam problemas graves no futuro. Acontece que decidem ir conhecer Punta Cana ou Bali e, para isso, contraem um empréstimo bancário e depois é que são elas, porque o crédito fica difícil de ser pago por uma ou outra razão, especialmente se algum membro do casal, entretanto, ficou desempregado. Há muita gente que consegue mensalmente pôr de parte uma certa quantia para que no mês em que decide ter férias, o dinheiro não é problema para que o corpo e a mente possam descansar das dificuldades laborais durante o ano.

Em Portugal, as férias têm um outro lado da moeda. Os funcionários públicos vão quase todos em debandada e os serviços ressentem-se de tal forma que nos tribunais, hospitais, segurança social e finanças, quase tudo fica por decidir em Setembro. Neste sentido, existe uma classe que também não falha ao seu gozo de férias: os políticos. Os destinos são os mais variados e como o rendimento é bom podem escolher um hotel no Algarve topo de gama. O nosso principal político, o Presidente da República, não dispensa o Algarve. Todavia, o que mais detesto na política é a hipocrisia, a mentira e a propaganda. Marcelo rebelo de Sousa estava feliz e contente a banhos algarvios e, de repente, suspendeu as férias para se deslocar a Lisboa a fim de vir, a convite do primeiro-ministro, assistir à abertura de uma maternidade no Hospital de Santa Maria que, risivelmente, está fechada…

A atitude do Presidente Marcelo roçou o ridículo e o povinho ficou a pensar que daqui para a frente todas as obras que Luís Montenegro venha a inaugurar irá ter o Presidente a dar a sua bênção.

Mas, a maternidade no Hospital de Santa Maria tem história. Na cerimónia que decorreu na passada quinta-feira o Presidente Marcelo e o primeiro-ministro foram recebidos pela ministra da Saúde, Ana Paula Martins, precisamente a mesma pessoa que encerrou a maternidade no hospital quando era gestora do mesmo e quando pediu a demissão a António Costa, porque não conseguia comandar um barco quase a naufragar. Com a ministra lá estiveram alguns médicos e outros profissionais afectos ao PSD e ao CDS a receber as mais altas individualidades que foram inaugurar a abertura de uma maternidade fechada por falta de médicos e enfermeiros. E agora coloca-se outro problema, o qual diz respeito ao funcionamento futuro da maternidade que foi alvo de obras. Referimo-nos aos médicos e enfermeiros que têm de ser requisitados ao barreiro, a Almada, a Setúbal e a outros hospitais. A ministra deu-lhe para discursar e salientar que se tratava de uma obra “histórica”, quando não passa de um mamarracho de cimento fora do contexto arquitectónico da monumental fachada do principal hospital português. A ministra referiu que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) estava a melhorar em todos os aspectos, mas esqueceu-se de mostrar aos ilustres convidados o caos que reina mesmo por baixo da nova maternidade, onde no Centro de Colheitas, o povinho sofre pela sua hora de atendimento, e como se trata de análises clínicas, há pessoas diabéticas que estão ali quase a desmaiar por estarem em jejum há mais de quatro horas. A ministra esqueceu-se igualmente que, à mesma hora que discursava, encontravam-se vários serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia encerradas pelo país e onde muitas grávidas interrogavam-se onde ter os partos. Já não referindo o caso tristíssimo e grave de negligência médica que se verificou nas Caldas da Rainha onde uma mulher, por duas vezes, foi-lhe negada a assistência médica e veio a abortar e a morrer. A hipocrisia de se suspender férias para nada, a mentira de se anunciar a abertura de algo que continua encerrado e a propaganda de afirmar que o Governo está cada vez a trabalhar melhor que o anterior são temas que levam os portugueses normais e atentos ao que se passa à sua volta a pensar que Portugal irá continuar na mesma: um país que não passa da cepa torta.

12 Ago 2024

O Clube da Luta (III)

“I have ordered a complete siege on the Gaza Strip. There will be no electricity, no food, no fuel, everything is closed,” Gallant says following an assessment at the IDF Southern Command in Beersheba. We are fighting human animals and we are acting accordingly”.
Defense Minister Yoav Gallant, in The Times of Israel, 09.10.2023

 

É claro que décadas de sanções, guerras, ineficácia e corrupção pesam sobre a saúde do aparelho produtivo iraniano, especialmente no sector crucial da energia. Mas a República Islâmica contorna a maior parte das restrições impostas por Washington, de tal forma que oferece aos russos tutores não gratuitos sobre como triangular e criar procedimento financeiros e comerciais de emergência. Nascidas temporárias, estas manobras tecem redes alternativas à influência americana. Originalmente postos de primeiros socorros, transformam-se em hospitais de campanha e, amanhã, talvez, em alternativas permanentes à “ordem baseada em regras”, uma imagem de marca do Ocidente cheio de estrelas. Mais limitativo é o clima político interno, onde a transição das origens teocrático-territoriais para o regime actual é bastante instável.

A incompatibilidade entre os jovens progressistas e as estruturas repressivas que respondem ao Pasdaran e ao Basiji, dotadas de vistosas agências de espionagem e de polícia, é chocante. Será que a sucessão do Guia Supremo, que em breve atingirá a idade de Ali Khamenei, de 85 anos, será a faísca que incendiará o material inflamável acumulado dentro e à volta do regime? O confronto poderá ser desencadeado ainda mais cedo. O descontentamento em relação ao sistema (nezam) exprime-se na abstenção eleitoral galopante, na ausência de candidatos alternativos aos pré-seleccionados pelos apparatchiks. O sucessor do falecido Presidente Raisi, presumível moderado, logo se tornará realidade pelo cair da máscara. Até à eventual reforma ou mudança do sistema, a pergunta rainha permanecerá sem resposta. A estratégia do império persa ignora ou depende da ideologia do regime do momento? Kissinger perguntava-se em público se o Irão era uma nação ou uma causa. Traduzindo que é um actor racional, portanto disposto a comprometer-se com a América, ou subversivo.

Em privado, a resposta foi “uma nação com a sua própria causa”. Talvez um elemento útil para a análise seja a relação entre o último Xá e o seu subversivo. Ambos muito mais pragmáticos do que pareciam. O primeiro pró-ocidental, mas não o fantoche anglo-americano descrito pelos revolucionários marxistas-islamistas. O outro, mais nacional-imperial na sua teologia. Se os barões da inteligência sobrevivessem nalgum departamento de ciências políticas da Ivy League, ofereceriam a Mohammad Reza Pahlevi e a Ruhollah Khomeini diplomas honorários duplos ad memoriam na teoria do realismo aplicado. A estratégia de qualquer grande potência é manter-se nessa posição. O mesmo se aplica ao império persa, que se considera como tal, mesmo que não possua todos os seus atributos. Incluindo a bomba atómica. O fio vermelho que liga o projecto atómico do Xá, lançado nos anos de 1950, ao da República Islâmica traça a continuidade estratégica entre dois regimes com uma genealogia imperial comum. Ambos se reclamam herdeiros da dinastia Aqueménida (cerca de 550-330 a.C.). O cilindro de Ciro entusiasma tanto o Xá como Khomeini e os seus sucessores.

O desenvolvimento da energia atómica desejado pelo Rei dos Reis fala em termos civis e pensa em termos militares. Os juristas xiitas que lideram a revolução insistem nesta ambiguidade. O líder supremo confirma a opção civil ao mesmo tempo que aprova o programa secreto de enriquecimento de urânio, de modo a poder desenvolver um arsenal atómico associado a mísseis balísticos hipersónicos com um alcance de mais de 1500 quilómetros. Capazes de atingir Israel numa dúzia de minutos. Teerão será uma potência nuclear quando decidir fechar o círculo. Basta-lhe uma luz verde do Guia ou de quem quer que seja. Será conveniente para o Irão tirar a máscara e desafiar os dois Satãs? Não me parece que seja o caso. O regime de dormência nuclear permite a Teerão explorar as vantagens da dissuasão suprema sem se expor a retaliações israelitas e americanas.

A menos que Israel, determinado a manter o seu monopólio regional da bomba atómica, arrisque um ataque preventivo, com riscos e custos catastróficos. Incluindo uma ruptura com a América. Em Jerusalém, alguns ultras apelam acabar com o Hamas lançando a bomba atómica sobre Gaza. Nas instituições iranianas, levantam-se vozes que põem em causa a prudência estratégica e sugerem o lançamento imediato da bomba atómica, ignorando que o anúncio seria seguido de uma retaliação israelita, encoberta ou não por Washington. E os sepulcros caiados na região ficariam expostos, a começar pela Arábia Saudita, que aponta silenciosamente para a bomba atómica e que perderia então toda a contenção. Entre as elites persas e israelitas, prevalece o princípio de que uma é inimiga irremediável da outra. A lição da “Aliança da Periferia” ecoa neste postulado de que Israel e o Irão são antípodas e simbióticos.

A ameaça persa é útil para evitar que a maionese tribal israelita enlouqueça e desintegre o Estado judaico a partir do seu interior. O Pequeno Satã, associado ao Grande, desempenha uma função coesiva semelhante no império persa. Jogo de espelhos. Depois de 7 de Outubro de 2023, cada vez mais no fio da navalha. Testado em Abril de 2024 pelo primeiro ataque e contra-ataque directo Israel-Irão. Trata-se de uma mudança de paradigma? Conta mais a quebra do tabu ou o facto de não ter causado baixas por ter sido executado em co-produção indirecta israelo-iraniana não declarada e patrocinada pelos Estados Unidos? A interpretação conservadora lê o combate como uma sequência interna de dissuasão entre inimigos perfeitos. Intocáveis porque sem alternativas.

A ideia evolucionista trata-a como um salto quântico que, em ambos os campos, faz baixar as defesas imunitárias contra uma infecção galopante de mania agressiva. A dança da inimizade do Médio Oriente é acompanhada por uma música envolvente. Depois do Hamas ter invadido Israel para desencadear um pogrom de uma selvajaria assustadora e expor os palestinianos à vingança impiedosa de um povo sitiado pela memória da Shoah, uma recordação eficaz e permanente, a lógica utilitária até então destilada pelos estrategas é posta em causa. O atordoamento melódico é dominado pela tempestade de emoções. Já nada é impossível. Incluindo o duplo suicídio. É o factor humano! Enquanto se aguarda a produção de um futuro volume sobre a raiz geopolítica da filosofia enquanto investigação sobre a pretensão de uma lógica universal, o estudo de caso é ideal para ensaiar a sua premissa.

Nos espaços que por convenção continuamos a baptizar de Médio Oriente, Aristóteles não duraria um minuto. O venerado princípio da não-contradição, segundo o qual uma proposição e a sua negação não podem ser ambas simultaneamente verdadeiras, é aqui irregularmente refutado. Traduzindo, não é válido. Mas não de forma absoluta, porque a negação total pode parecer confirmatória. Como ocidentais tardios, munidos de tal advertência, um convite à modéstia, constatamos que um sistema contraditório é também baptizado de princípio de explosão. Assim avisados, voltamos à luta. Verdadeiramente paradoxal é o gatilho que, a 7 de Outubro de 2023, provocou as explosões à queima-roupa que agitam o arquipélago sem centro do Médio Oriente. Referimo-nos à questão palestiniana. Alteração de Kissinger, causa sem nação. Tragédia humanitária insuportável também pelo seu absurdo. Não deve ser confundida com um problema geopolítico. Não tem solução, logo não tem problema. Era esta a convenção implícita na forma como todos os intervenientes tinham retirado o dossier palestiniano, que estava no congelador da diplomacia internacional há vinte anos.

A começar por Israel, o mais interessado em mantê-lo em naftalina e em garantir a mão livre para não determinar as suas próprias fronteiras. Mantendo assim todas as opções em aberto enquanto avança na Judeia e Samaria (Cisjordânia) de acordo com o princípio da menor resistência equilibrado com a prioridade do carácter judaico do Estado. Parado nas directrizes do governo, segundo as quais “o povo judeu tem um direito exclusivo e inalienável a toda a Terra de Israel”. Seguiram-se os regimes árabes, muito mais atraídos por uma relação positiva com Israel e o Ocidente do que pelos direitos dos palestinianos. No entanto, obrigados a recitar o salmo dos dois Estados, uma vez estabelecido que nada seria feito a esse respeito. Um refrão cativante, deliberadamente repetitivo, cantado pela “comunidade internacional”, ultra-maioritária na ONU e considerado evidente pelos meios de comunicação social liberais americanos e europeus. Dois povos, dois Estados. Intuitivo. Tão óbvio que não pode ser aplicado. Em primeiro lugar, porque nem israelitas nem palestinianos estão dispostos a renunciar ao seu direito a toda a terra entre o mar e o rio, o Mediterrâneo e o Jordão.

Depois, porque Israel é um Estado armado até aos dentes para não ceder um metro quadrado daquilo que possui. Empenhado, quando muito, em expandir-se, graças ao impulso dos colonos, incitados pelo próprio governo. A Palestina não é um Estado, nem sequer uma nação, mas o sonho de um povo humilhado, composto por comunidades e mini-potências que competem entre si e não com o Estado judaico. Dois milhões de palestinianos possuem passaportes israelitas. Contra os restantes, após 7 de Outubro de 2023, foi desencadeada a máquina de guerra do Tzahal, que trata os ghazianos como “animais humanos”, segundo as palavras do ministro da Defesa Yoav Gallant.

8 Ago 2024

Retorno do investimento

O Verão não é apenas a altura de os estudantes aproveitarem uma pequena pausa depois de um ano lectivo, mas também o momento ideal para a toda a família viajar. Para os investidores, esta estação traz igualmente algumas expectativas, ou seja, receberem os juros das suas aplicações financeiras. Muitas empresas cotadas em bolsa pagam dividendos duas vezes por ano, e o Verão é uma delas, o que proporciona mais satisfação aos investidores.

Em Taiwan, China, uma empresa de sushi cotada em bolsa anunciou que vai lançar um plano de recolha de dividendos na forma de “cupões dos accionistas”. Isto significa que desde que os accionistas possuam um determinado número de acções, podem candidatar-se a receber estes cupões, sendo o limite máximo para cada um deles de cinco mil dólares. Os “cupões dos accionistas” são equivalentes a moeda e podem ser usados em todas as lojas da empresa, não existindo limite para o número que pode ser usado por cada compra, o que facilita bastante o consumo para os seus detentores. Segundo a empresa, a taxa de resgate dos “cupões dos accionistas” durante os últimos três anos foi de 90 por cento. Este método não só incentiva os accionistas a converterem-se em clientes leais, como também pretende levar mais clientes a tornarem-se accionistas.

Do ponto de vista do retorno do investimento, esta empresa de sushi proporciona benefícios monetários, na forma de dividendos, e ainda benefícios ao consumo na forma do “cupão dos accionistas”, obtendo-se assim um duplo retorno ao garantir “dinheiro para gastar e qualquer coisa para comer”.

No que respeita a “ter dinheiro para gastar”, quem compra acções de uma empresa e se torna seu accionista tem a expectativa de aumentar o capital investido devido à valorização do negócio no mercado bolsista, além disso os dividendos que recebe também representam uma importante fonte de rendimento. Os dividendos decorrem de uma distribuição proporcional dos lucros obtidos pela empresa pelos accionistas, em função do número de títulos que cada um possui, e são uma forma de a empresa lhes agradecer pelos seus investimentos. O pagamento de dividendos representa o reconhecimento da empresa e a compensação pelos investimentos. Pode encorajar mais pessoas a comprarem acções da empresa, atraindo assim mais fluxo de capital, promovendo a expansão e o crescimento do negócio e criando uma situação em que saem a ganhar tanto os investidores como a empresa.

Convém sublinhar que o pagamento de dividendos está directamente relacionado com a rentabilidade da empresa. Regra geral, só quando o negócio corre bem e os lucros são substanciais é que a empresa pode distribuir dividendos pelos accionistas. Por outro lado, se uma empresa continuar a pagar dividendos mesmo que não tenha tido lucro ou mesmo que tenha perdido dinheiro, estará a enviar uma mensagem errada para o mercado e a enganar os investidores.

Os cupões para obter “qualquer coisa para comer” são também uma demostração da filosofia comercial da empresa de sushi. Há medida que o tempo passa, a atenção que os investidores dão às empresas não decorre apenas dos números, porque estão preocupados de uma forma mais multidimensional e abrangente com os lucros empresariais, com a relação da empresa com os accionistas e com as responsabilidades sociais corporativas. Ao gerir os seus negócios, as empresas têm de tomar em linha de conta simultaneamente várias áreas e de ter em consideração os diferentes tipos de accionistas. A distribuição de “cupões de accionistas” pode aproximar a empresa dos investidores, e também promover inteligentemente a penetração do produto no mercado.

Os “cupões dos accionistas” proporcionam aos investidores sushi gratuito. Desde que a qualidade do sushi seja elevada, é muito provável que os accionistas se tornem clientes fixos desta empresa de restauração, o que irá aumentar o seu volume de negócio, impulsionando o aumento do desempenho da empresa, o que beneficia ambos os lados. Depois de desfrutar de um delicioso sushi, os clientes irão recomendá-lo aos amigos, criando um excelente efeito publicitário pelo método “boca a boca”. Numa era onde imperam as redes sociais, a recomendação dos clientes é mais útil que os anúncios publicitários.

Resumindo, esta estratégia da Empresa de Sushi não só enriquece a forma de retorno do investimento dos accionistas, mas também aperfeiçoa subtilmente a sua relação com os investidores, aumentando a confiança que depositam nos produtos da empresa o que permite que a promovam com mais empenho. Além disso, também se destina a conquistar os potenciais clientes da empresa.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

6 Ago 2024

Função Pública nas ruas da amargura

Gostava imenso de escrever uma crónica a contar-vos os benefícios que a Função Pública tem proporcionado ao povo. A melhoria dos serviços. O atendimento telefónico eficiente. A rapidez no despacho dos requerimentos solicitados. O atendimento pessoal eficaz. A gentiliza e eficiência com que os cidadãos são atendidos no IMTT (especialmente para as cartas de condução). As casas de banho limpas nos departamentos públicos. A resposta aos e-mails enviados a entidades governantes. Gostava. Mas não posso.

O contrário absoluto é que vos posso descrever para mal de todos os portugueses. Os funcionários públicos reivindicam anualmente aumento de salários e outros benefícios, nisso, são lestos e em toda a conversa queixam-se do seu baixo rendimento. Trabalham muito? Em alguns departamentos estatais e autárquicos, muitos funcionários depois de se sentarem um pouco na secretária e verificarem no telemóvel particular se têm mensagens de amigos e de verem no computador se não existe nenhuma indicação do chefe, vão tomar café, muitas vezes ao exterior, lêem o jornal desportivo e discutem as transferências nos seus clubes de futebol. Passado uma hora e meia voltam à secretária, fazem uns telefonemas que nada têm a ver com o serviço e chega a hora de almoço. À tarde, resolvem um ou dois problemas pendentes, mais um café e mais uma conversa, desta vez sobre política. Chega a hora de saída e ficou na sala um cheiro a suor…

Praticamente em todos os serviços, se os cidadãos telefonam para serem informados de qualquer problema, ouvem uma gravação que lhes indicam os números respectivos dos assuntos, após o que se fica 10, 15 e por vezes 40 minutos a ouvir um tipo de música, normalmente horrível. No fim de todo esse tempo a chamada cai e o atendimento já era.

Se o cidadão vai a um serviço estatal depara-se com uma fila enorme para obter uma senha e é quando o “segurança” não lhe diz que já não há senhas de atendimento.

Se o cidadão se dirige à Autoridade Tributária e Aduaneira (Finanças), bem, é melhor nem ir porque duas horas de espera para ser atendido é o tempo mínimo de espera.

Se o cidadão consegue ser atendido pela linha geral da Segurança Social Directa, uma funcionária com muita cordialidade agenda o dia e a hora para o assunto que o cidadão deseja resolver. No dia e hora marcados, o cidadão vai 20 minutos antes, para que não haja qualquer falha. Chegado à sede da Segurança Social, em Lisboa, apresenta-se ao balcão, diz que tem um agendamento e a funcionária pública entrega-lhe uma senha. O cidadão vai sentar-se a aguardar a sua vez de atendimento. Passam 15 minutos da hora agendada, passam 30, passam 45 minutos e o cidadão desloca-se ao referido balcão de atendimento e pergunta a razão do atraso do agendamento, se as pessoas que estiveram na fila e não agendaram já foram atendidas? A resposta foi simples: “isto está um pouco atrasado”, ao que o cidadão retorquiu: “Atrasado, deve ser só para alguns assuntos”. Ao fim de uma hora o cidadão foi atendido, apresentou a documentação devida, a funcionária atendeu com muita cordialidade e quando o cidadão lhe perguntou: “Tem uma ideia de quando obterei uma resposta?”, a funcionária respondeu: “Sabe, isto agora vai tudo de férias e, portanto, lá para Setembro começam a analisar os processos e em Outubro deve receber uma carta”. Leram bem? “DEVE”, não deu a certeza que seja em Outubro.

Se um cidadão envia um e-mail para uma vogal de uma autarquia, a senhora deve pensar que é a primeira-dama da Nação. Responder ao nosso e-mail. Nem pensar.

O maior desespero da população, especialmente a idosa que não usa computador, é a falta de atendimento telefónico por todo o lado. E já não são só os serviços públicos. Muitas empresas privadas já copiam o estilo desprezível da Administração Pública.

Na Câmara Municipal de Lisboa mente-se com todos os dentes que tem na boca, mesmo que sejam implantes. Pergunta-se, quando um prédio inicia as obras dos alicerces (futuras garagens para os residentes) que género de habitação municipal se trata e respondem que se destina a habitações de renda acessível. O cidadão tenta inscrever-se para tentar obter uma habitação de renda acessível, porque o seu rendimento mensal cifra-se nos 700 euros. De imediato obtém uma resposta: “que as futuras habitações já foram destinadas a pessoas de fracos recursos”. Tudo bem? Não, tudo mal. O prédio ficou pronto e começou a ser habitado. Por quem? Por cidadãos que entram para a garagem com os seus carros de marca Tesla, BMW, Mercedes, Lexus e Nissan. Vocês acham que proprietários de veículos de topo de gama são pessoas de fracos rendimentos e que precisam de uma casa com renda acessível?…

A mesma edilidade lisboeta abriu um concurso para conceder um subsídio de renda, os cidadãos em dificuldades inscreveram-se de imediato, mas qual não foi o seu espanto quando lhes era exigido um tal número de documentos que levaram logo os pretendentes a desistir do pedido de subsídio.

Por outro lado, sejamos justos e temos de salientar que há um serviço público que está a funcionar com grande profissionalismo e gentileza. Trata-se das diferentes Lojas do Cidadão, onde se é atendido com satisfação pele rapidez.

P. S. – Neste último fim de semana verificou-se o caos de norte a sul do país em muitas urgências hospitalares encerradas.

5 Ago 2024

A dupla Hong Kong/Macau

A 18 de Fevereiro de 2019, o Conselho de Estado da China anunciou oficialmente as Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, posicionando Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau como os principais motores do desenvolvimento regional. Recentemente, a resolução da Terceira Sessão Plenária do 20.º Comité Central do Partido Comunista, referindo-se a Hong Kong e Macau, apela a esforços para “tirar partido dos pontos fortes institucionais do princípio ‘um país, dois sistemas’, de forma a reforçar e melhorar o estatuto de Hong Kong como centro financeiro internacional e como centro de navegação e comércio. Apela ainda ao apoio a Hong Kong e a Macau para que as duas regiões se tornem centros internacionais na formação de quadros de alta qualidade, aperfeiçoem a logística em causa e possam desempenhar um papel mais determinante na abertura da China ao mundo exterior”.

Passado cinco anos, são evidentes as conquistas obtidas por Shenzhen e por Guangzhou. O transporte de contentores nos portos destas duas cidades já ultrapassou o do Terminal de Contentores Kwai Tsing, em Hong Kong. E após a abertura do “Corredor Shenzhen-Zhongshan”, o papel do Porto de Shenzhen torna-se cada vez mais importante. Mas, qual ó o ponto da situação dos outros dois motores principais, Hong Kong e Macau?

No passado dia 30 de Julho, o Index Hang Seng de Hong Kong permanecia nos 17.000 pontos, não tendo conseguido reverter a tendência negativa apesar dos espantosos desempenhos dos atletas da cidade nos Jogos Olímpicos de Paris. Com a implementação da “Lei da República Popular da China para a Salvaguarda da Segurança na RAEHK” (doravante designada por Lei de Segurança Nacional de Hong Kong), a promulgação de leis pela própria região para a salvaguarda da segurança nacional, de acordo com o Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong, o aperfeiçoamento do sistema eleitoral e a governação ao nível distrital, devem ter dado saltos em frente rumo ao princípio “avançar da estabilidade para a prosperidade”. Infelizmente, o mercado imobiliário de Hong Kong continua em queda e a confiança dos cidadãos ainda não foi recuperada. Qual será o motivo que provoca tudo isto? Talvez a recente controvérsia em torno de um artigo possa lançar alguma luz sobre esta questão.

O Professor Johannes Chan Man-mun, antigo reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong, e advogado de nomeada, escreveu um artigo de opinião intitulado “Efeito Retrospectivo” publicado no passado dia 24 no jornal de Hong Kong Ming Pao.

Johannes Chan analisava as alterações à Lei de Salvaguarda da Segurança Nacional de Hong Kong no que diz respeito ao aumento de tempo para a libertação antecipada das pessoas condenadas por porem em perigo a segurança nacional, e se estas alterações têm efeitos retroactivos para os infractores não condenados ao abrigo da Lei de Segurança Nacional. Argumentava que “um réu condenado por um crime cometido no passado não deve receber uma pena mais pesada apenas porque actualmente a lei aumentou a penalização para esse tipo de crime. Este princípio é salvaguardado pela Declaração dos Direitos Humanos”. O objectivo deste artigo de opinião era lançar um debate jurídico.

No entanto, na parte da tarde de dia 24, o Departamento dos Serviços Correccionais de Hong Kong emitiu de imediato um comunicado de imprensa que condenava vivamente Johannes Chan pela publicação deste artigo, afirmando que os “dois pontos mencionados no artigo e apelidados de “controversos” eram factualmente imprecisos. A Secção 7 da Lei de Salvaguarda da Segurança Nacional dá-nos uma clara definição de ‘Infração que põe em risco a segurança nacional’. No entanto, nada do que foi escrito no artigo cai dentro dessa definição, portanto o “Comissário dos Serviços Correcionais decidiu por si próprio alargar o âmbito das infrações que põem em risco a segurança nacional”.

Mais tarde, numa entrevista, Johannes Chan disse, “Há não muito tempo, o nosso Chefe do Executivo afirmou que a liberdade de expressão em Hong Kong não tinha sido reduzida e que o Governo pode ser criticado. Mas agora vemos um exemplo vivo de como por meramente expressar uma opinião diferente se é contundentemente condenado pelo Governo. Como é que esta situação é compatível com liberdade de expressão? Não foi exactamente a isto que Jonathan Philip Chadwick Sumption (antigo Juiz Não-Permanente do Supremo Tribunal de Hong Kong) se referiu por altura da sua reforma antecipada, ao afirmar que o Governo tinha ficado preconceituoso e em estado de pânico?”

O incidente com o artigo de Johannes Chan reflecte a falta de interacção positiva na sociedade durante a transição de Hong Kong da “estabilidade para a prosperidade”, indicando que ainda há um longo caminho a percorrer até à completa recuperação, ficando a sociedade dependente do espírito de “amor e perdão”. Em Macau, não houve conflitos sociais semelhantes aos de Hong Kong nos últimos anos, no entanto, o impacto da COVID-19 e as rápidas mudanças no cenário político conduziram a uma diminuição significativa da possibilidade de expressar opiniões diferentes.

A Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin foi inicialmente um excelente plano, mas infelizmente sofreu alterações sem precedentes. Liderado por uma abordagem orientada para o sector imobiliário, o desenvolvimento da Zona de Cooperação Aprofundada resultou numa situação do tipo “fazer a sementeira no Inverno. Os investimentos substanciais do Governo de Macau na Zona de Cooperação Aprofundada não obtiveram os efeitos pretendidos. A possibilidade de o Novo Bairro de Macau na Zona de Cooperação Aprofundada poder vir a alojar 60.000 residentes da cidade até 2029, não vai depender de tratamento preferencial, mas sim da economia da cidade. Com a aproximação do 25.º aniversário do regresso de Macau à soberania chinesa, quando as corridas de cães e de cavalos acabaram e as receitas da taxação ao sector jogo sofrem um declínio, é possível que o Chefe do Executivo Ho Iat Seng esteja a pensar sobre o futuro do próximo Governo da RAEM, durante as suas férias de 39 dias.

Afinal de contas, como motores principais da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, Hong Kong e Macau têm de fazer ajustes rapidamente para se porem a par do desenvolvimento geral da Grande Baía!

2 Ago 2024

Reforma da China na Nova Era: Oportunidades para o Mundo

Por Liu Xianfa

O 20.º Comité Central do Partido Comunista da China (PCCh) concluiu com sucesso a sua terceira sessão plenária em Beijing. A Decisão do Comité Central do Partido Comunista da China sobre um Maior Aprofundamento Integral da Reforma em Busca da Modernização Chinesa é o resultado mais importante da Sessão, que constitui um novo plano para a reforma e abertura da China, enviando uma forte mensagem ao mundo sobre o firme compromisso da China com a reforma e a abertura, bem como com a criação de mais oportunidades para o mundo na nova era.

A reforma e abertura é um instrumento importante para as causas do Partido e do povo chinês alcançarem os tempos a passos largos. A 3ª sessão plenária do 18º Comité Central do PCCh também marcou época e deu início a uma nova jornada de aprofundamento integral da reforma e de sua promoção conforme um plano sistemático e holístico na nova era, abrindo assim um novo capítulo da reforma e abertura da China. Nessa sessão, o Comité Central criou a Comissão para o Aprofundamento Integral da Reforma, tendo o Secretário-Geral Xi Jinping assumido a liderança e presidido 72 reuniões da comissão desde então. Foram introduzidos mais de 2000 programas para reforçar, ampliar e aprofundar a reforma. As medidas da reforma em vários sectores levaram a abertura da China a um nível significativamente mais elevado.

Desde a criação de 22 Zonas Piloto de Comércio Livre e do Porto de Comércio Livre de Hainan, à assinatura e entrada em vigor da Parceria Económica Regional Abrangente, à construção de uma rede orientada a nível mundial de zonas de comércio livre de alto padrão, desde o encurtamento repetido da lista negativa para o investimento estrangeiro, à redução das restrições de acesso ao mercado nos sectores das telecomunicações, da saúde e de outros serviços, desde a promoção da cooperação de alta qualidade da Faixa e Rota até ao estabelecimento de plataformas de cooperação internacional para intercâmbios comerciais e económicos, como a Exposição Internacional de Importação da China, a Feira Internacional de Comércio de Serviços da China e a Expo Internacional de Produtos de Consumo da China, estas importantes medidas para expandir a abertura de alta qualidade beneficiam a comunidade internacional através do desenvolvimento da China e dão ao mundo motivos para optimismo sobre as perspectivas de crescimento da China. A China continua a ser o maior comerciante mundial de bens durante sete anos consecutivos, e o maior exportador e segundo maior importador mundial durante 15 anos consecutivos. Tem estado entre as três principais fontes mundiais de investimento externo durante 11 anos consecutivos. 155 países e regiões de todo o mundo são beneficiários do financiamento fornecido pela China.

A modernização chinesa é promovida constantemente durante a reforma e abertura e terá certamente uma perspectiva ampla nesse processo. O presente e o futuro próximo constituem um período crítico para o nosso esforço para construir um grande país e avançar no sentido do rejuvenescimento nacional em todas as frentes através da modernização chinesa. Para lidar com ambientes complexos, tanto a nível interno como externo, adaptarmo-nos à nova ronda de revolução científica e tecnológica e de transformação industrial e corresponder às novas expectativas do nosso povo, é vital que continuemos a avançar nas reformas. Foi salientado na Terceira Sessão Plenária do 20.º Comité Central do PCCh que os objectivos gerais de aprofundar ainda mais a reforma de forma abrangente são continuar a melhorar e desenvolver o sistema de socialismo com características chinesas e modernizar o sistema e a capacidade de governação da China.

Até 2035, a China terá concluído a construção de uma economia de mercado socialista de alto padrão em todos os aspetos, melhorado ainda mais o sistema de socialismo com características chinesas, modernizado em geral o nosso sistema e capacidade de governação e, basicamente, realizado a modernização socialista. Tudo isto estabelecerá uma base sólida para transformar a China num grande país socialista moderno em todos os aspectos até meados deste século. Para avançarmos de forma constante nas reformas, concentrar-nos-emos na construção de uma economia de mercado socialista de alto padrão, na promoção da democracia popular em todo o processo, no desenvolvimento de uma forte cultura socialista na China, na melhoria da qualidade de vida das pessoas, na construção de uma China Bonita, no avanço da Iniciativa da China Pacífica e melhorar a capacidade do Partido para a liderança e governação a longo prazo. Para concretizar estes objectivos de reforma, a Resolução elabora planos de reforma em domínios específicos como a economia, a política, a cultura, a sociedade, a conservação ambiental, a segurança nacional e a defesa nacional e militar, envolvendo mais de 300 medidas concretas. Ficou claro que as tarefas de reforma estabelecidas na Decisão deverão estar concluídas quando a República Popular da China celebrar o seu 80.º aniversário em 2029.

A modernização chinesa segue o caminho do desenvolvimento pacífico. A Decisão afirma solenemente que a China se mantém firme na prossecução de uma política externa independente de paz e está empenhada em promover uma comunidade humana com um futuro partilhado. Continuaremos comprometidos com os valores comuns de toda a humanidade, prosseguiremos a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa de Civilização Global, e apelaremos a um mundo multipolar igualitário e ordenado e a uma globalização económica universalmente benéfica e inclusiva. Aprofundaremos as reformas institucionais relacionadas com o trabalho dos negócios estrangeiros e envolver-nos-emos na liderança da reforma e do desenvolvimento do sistema de governação global. Salvaguardaremos resolutamente a soberania, a segurança e os interesses de desenvolvimento da China e promoveremos um ambiente externo favorável para aprofundar ainda mais a reforma de forma abrangente para promover a modernização chinesa.

Além disso, surgirão mais oportunidades de desenvolvimento devido à reforma e à modernização da China. As importantes medidas de reforma consagradas na Decisão incluem a constante expansão da abertura institucional, o aprofundamento da reforma estrutural do comércio externo, a reforma adicional dos sistemas de gestão do investimento interno e externo, a optimização da disposição para a abertura regional e a melhoria dos mecanismos para uma cooperação de elevada qualidade. Acredito que a implementação destas medidas irá melhorar várias instituições e mecanismos, remover obstáculos, proporcionar uma fonte constante de dinamismo para a modernização chinesa e criar mais oportunidades para a China e o resto do mundo aprofundarem a cooperação mutuamente benéfica e prosperarem e prosperarem juntos. No primeiro semestre de 2024, a economia da China registou um melhor desempenho em termos de velocidade e qualidade, com o PIB a crescer 5% e o investimento nos setores de alta tecnologia a aumentar 10,6%.

O Fundo Monetário Internacional reviu em alta a sua previsão para a taxa de crescimento económico da China em 2024. A comunidade empresarial global também expressou um optimismo mais forte sobre as perspectivas económicas da China, com as novas empresas estrangeiras na China a aumentarem 14,2 %. A China saúda todos os países a integrarem-se activamente no mercado chinês e a partilharem as oportunidades de desenvolvimento da China, de modo a alcançar o desenvolvimento comum e proporcionar benefícios a todas as pessoas do mundo.

Macau desempenha um papel fundamental no aprofundamento abrangente da reforma da China. A Decisão sublinha o apoio a Hong Kong e Macau na construção de centros internacionais para talentos de alto calibre, na melhoria dos mecanismos relevantes para ver as duas RAE desempenharem um papel mais importante na abertura da China ao exterior e no incentivo à cooperação entre Guangdong , Hong Kong e Macau na Grande Baía, promovendo um alinhamento mais estreito de regras e mecanismos.

O Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros apoiará plenamente todos os sectores da sociedade de Macau na implementação do espírito da Terceira Sessão Plenária do 20ºComité Central do PCCh, aproveitando ainda mais as vantagens únicas de Macau proporcionadas pelo princípio “Um País, Dois Sistemas” e o seu papel como plataforma de cooperação internacional. Daremos também um impulso aos esforços de Macau para desenvolver novas forças produtivas de qualidade, promover a diversificação económica adequada, em conformidade com o seu plano 1+4, através da inovação tecnológica e da modernização industrial, e desenvolver a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e a Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin.

Há 25 anos desde o seu regresso à pátria, Macau tem gozado da maior vantagem constitucional – “Um país, dois sistemas”, horizontes abundantes para o desenvolvimento, um ambiente de negócios altamente internacionalizado, uma base económica sólida, a vantagem do multiculturalismo e uma cultura tradicional.

Acredito que com estas vantagens e ao abraçar as novas oportunidades criadas pelo aprofundamento da reforma e da abertura, o cartão de visita dourado de Macau como metrópole internacional pode e será ainda mais polido!

2 Ago 2024