Hoje Macau Confeitaria Contos e histórias PolíticaDesemprego | Ma Io Fong alerta para “grave situação” dos jovens O deputado Ma Io Fong alertou ontem para o desemprego jovem, que diz ter atingido uma proporção de 28,8 por cento, entre o total da população desempregada. O assunto foi abordado ontem na Assembleia Legislativa, numa intervenção antes da ordem do dia. “Com a retoma económica, a situação do emprego melhorou […] No entanto, a situação de emprego dos jovens vai no sentido contrário. Segundo o inquérito ao emprego referente ao terceiro trimestre deste ano, a taxa de emprego só diminuiu nos grupos etários dos 16 aos 24 anos e dos 25 aos 34 anos; este último grupo apresentou a taxa de desemprego mais alta, 28,8 por cento”, alertou. “E 42,4 por cento da população desempregada têm habilitações académicas do ensino superior. Estes números demonstram a grave situação de emprego dos jovens”, sublinhou. Sem criticar directamente a falta de ineficácia do que afirmou terem sido as medidas lançadas pelo Governo para promover o emprego dos jovens, Ma Io Fong não deixou de destacar que “há quem entenda que faltam medidas complementares” e que “o apoio é insuficiente em termos da eficácia e duração”. O legislador da bancada da Associação das Mulheres alertou também para os impactos futuros: “Esta situação não é benéfica para o desenvolvimento de novas forças produtivas de qualidade nem para a preparação dos quadros qualificados necessários à diversificação económica”, atirou.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA sensibilidade trágica perdida dos Estados Unidos (I) “Americans have forgotten that historic tragedies on a global scale are real. They’ll soon get a reminder.” Hal Brands Os Estados Unidos deixaram de imaginar a catástrofe, no meio da introversão popular e da tranquilidade da classe dirigente. O declínio do pensamento estratégico foi substituído por teorias hiper-racionais. O moralismo da juventude e a cultura popular niilista em que tudo pode ser dito sobre os Estados Unidos nos últimos trinta anos, excepto que mantiveram uma abordagem estratégica equilibrada. Pode mesmo dizer-se que fizeram o contrário. De que outra forma pode-se definir a destruição da classe média (rejeitada com há sempre vencedores e vencidos), o envolvimento crónico em guerras intermináveis, a pretensão de ocidentalizar a China, a ilusão de antagonizar a Rússia sem pagar o preço, a extensão descuidada dos compromissos face a uma contracção consciente dos meios? Como foi possível negligenciar a tal ponto uma visão prudente e clarividente? E porque é que a América parece hoje paralisada? Concentramo-nos aqui num factor entre muitos, mas raramente observado. Desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos deixaram de pensar em termos trágicos. De imaginar uma possível catástrofe. De prever as consequências mais devastadoras das suas acções e omissões. De agir com sentido de proporção. A sensibilidade trágica é uma caraterística essencial do pensamento estratégico. “A arte de governar não pode ser praticada na ausência de perspicácia literária”, escreveu Charles Hill, um mestre e veterano da diplomacia americana. A literatura e a tragédia fornecem lições cruciais sobre como manter uma comunidade saudável. Cultivam uma forma de sabedoria que é o oposto do cinismo, porque mantém unido o peso da força e da indignação perante a injustiça. Dão elasticidade mental para apreender as condições da história, fundidas na realidade e não em teorias abstractas. Alimentam o método geopolítico, com o seu confronto com as razões de cada um. Contam histórias que são também úteis à população, para compreender e legitimar os dilemas dos poderosos ou para os criticar responsavelmente. Estas lições não são agora ouvidas. Três gerações após a última guerra mundial, os americanos já não vivem a morte e a devastação em grande escala. A memória das catástrofes anteriores está a definhar. A classe intelectual e política tem dela apenas um conhecimento académico, formal e preciso, e também frio, sem humanidade e empatia. Qualidades que se obtêm através dos clássicos. Educação, no entanto, cada vez mais negligenciada nas universidades e na cultura popular. Uma condição comum nas suas premissas a muitos países ocidentais, mas única nas suas consequências. Porque, se não for corrigida, a ausência de sensibilidade trágica pode causar os cataclismos que a América já não consegue imaginar. A amnésia da tragédia suscitou um debate limitado mas influente na América. Segundo alguns, o problema é a população. Esta imagina o presente como eterno, dá por garantida a base geopolítica da sua prosperidade e tem relutância em sacrificar sangue e tesouros. Para outros, a falha é da classe dirigente. Aplicou de forma irresponsável a supremacia dos anos 1990-2000 e corroeu a solidez da República, as fontes de poder e a credibilidade, e por conseguinte a capacidade de dissuasão, dos Estados Unidos. Para os primeiros, o pecado original é o da negligência; a introversão. Para os segundos, o pecado original é o da arrogância; a extensão excessiva. O debate gira em torno de dois volumes recentes como “The Lessons of Tragedy: Statecraft and World Order” de Hal Brands e Charles Edel (2019) e “The Tragic Mind: Fear, Fate, and the Burden of Power” de Robert Kaplan (2023). Ambas obras são de íntimos do poder. Mas muito diferentes, não só pelas teses quase opostas que defendem. Kaplan, de 72 anos, é um famoso repórter de guerra dos Balcãs e do Médio Oriente, um apoiante irredutível da invasão do Iraque, um amante da geografia política (chama-lhe geopolítica) e autor de estudos para o Pentágono. Brands e Edel, ambos na casa dos 40 anos, sempre educados em Yale no altamente selectivo programa de grande estratégia do historiador John Gaddis, pertencem à nova geração de intelectuais. O primeiro, Hal Brands, titular da cátedra Henry Kissinger na Johns Hopkins e editor do texto de referência “The New Makers of Modern Strategy: From the Ancient World to the Digital Age”. O segundo, Robert Kaplan, reservista da Marinha e figura de proa do emblemático Centro Segurança Internacional e Estudos Estratégicos. Para ambos, uma passagem de dois anos pelos gabinetes de planeamento dos Departamentos de Defesa e de Estado, em meados da década de 2010. Para Brands e Edel, a tragédia é a catástrofe. A tragédia é o medo da catástrofe e a sua função é educar os cidadãos para os interesses estratégicos da comunidade. Para os gregos, escrevem, “o teatro e outras representações dramáticas eram educação pública. As tragédias serviam para admoestar e aterrorizar os cidadãos e para os inspirar. As elites acreditavam que Atenas só poderia ascender a grandes alturas se o público compreendesse o abismo em que se poderia afundar sem grande esforço, coesão e coragem”. A melhor definição deste papel estaria nas “Rãs” de Aristófanes. Por que razão admirar os poetas, pergunta Ésquilo a Eurípides; resposta é que “Para o juízo sábio, para o conselho correcto para que possamos converter os nossos concidadãos ao bem”. As virtudes da tragédia, estabelecem os autores, citando a “Retórica” de Aristóteles, residem na arte da persuasão, na prontidão para o sacrifício, ao aceitar a autoridade do Estado para preservar a ordem da desordem. Embora reconheçam que o teatro grego incutia lucidez e humildade no público, insistem no seu apelo à força e determinação comuns. Mesmo numa peça como “Os Persas”, em que Ésquilo faz com que o público se solidarize com a queda do inimigo, salientam a sugestão do autor de que a vitória de Atenas não foi mérito de heróis individuais, mas de uma comunidade unida capaz de evitar os erros de cálculo do adversário. Segundo Brands e Edel, a trágica perda de sensibilidade da América reside no fracasso da vontade popular de defender o império. Algo está quebrado nos Estados Unidos, pois os cidadãos já não querem pagar os custos inerentes ao papel de garante da ordem. Mas, ao fazê-lo, deitam tudo a perder, porque o “Número Um” não pode fazer menos sem induzir um colapso mais geral. A base deste afastamento remonta ao fim da Guerra Fria em que a população exige e obtém uma redução de algumas despesas do império para se concentrar na frente interna; entretanto, a classe intelectual e empresarial convence-se de que a globalização é a lei e o destino da humanidade, a natureza dos seres humanos está a mudar para melhor, a guerra é coisa de arquivos e o sistema internacional sustenta-se mesmo sem a América (John Ikenberry). (continua)
Tânia dos Santos Sexanálise VozesJogar “Badminton” em Hong Kong O badminton tornou-se um nome de código para sexo entre os jovens em Hong Kong. Aprendi isto num evento de comédia em Hong Kong, um Comedy Game Show Panel (se quiserem saber mais podem procurar por Hong Kong as F*ck) que, em inglês, satirizam as notícias da semana aos sábados à noite. A associação entre sexo e badminton tem origem numa iniciativa governamental. Tudo começou com um manual sobre adolescentes e relações íntimas lançado para auxílio dos professores nas aulas de educação sexual com os jovens do secundário. O objetivo do manual é claro: prevenir sexo pré-marital a todo o custo. Lá se explanam as consequências do sexo pré-marital como uma gravidez indesejada, as consequências legais quando se trata de menores de 16 anos, e até o desconforto emocional que pode surgir da experiência. Se os jovens sentirem a vontade de ter sexo, o manual sugere que eles procurem alternativas, como jogar badminton. Todo o aconselhamento escolar é feito no sentido de identificar os estímulos e circunstâncias que levam à excitação e aconselhar os jovens a evitá-las ao máximo. Em sala de aula, o professor e alunos discutem possíveis cenários para melhor compreender o percurso que vai do estímulo ao comportamento. Por exemplo, analisam o impacto de estímulos ambientais, visuais e sensoriais de quando ela optou por vestir uma blusa com os ombros à mostra, quando estavam sozinhos em casa, que levou a uma excitação indesejada. De seguida, debatem-se as estratégias para lidar com essas situações: 1) evitar (por exemplo, sair de onde se está) ou 2) criar atividades alternativas que consumam energia de modo a criar uma distração, como irem jogar badminton. O manual está repleto de “pérolas” que tanto servem de material para comédia como como são extremamente explícitas e utilitárias. A cereja no topo do bolo é a minuta de contrato que é sugerida como atividade para que os jovens definam, por escrito, com os seus parceiros, as condições para a sua intimidade, e as estratégias que irão utilizar para que não tenham fantasias e comportamentos “inapropriados” antes do casamento. O contrato pede assinatura de uma testemunha para verificar o compromisso de ambas as partes. A formalidade e o decoro são, claramente, elementos fundamentais no processo. Em reposta, os jovens, os grandes contribuidores para a contra-cultura, começaram a usar emojis de badminton para falar sobre sexo. É um clássico exemplo de resignificação que nos indica como estes conteúdos estão a ser reinterpretados e disseminados por uma audiência mais complexa, com outras opiniões e experiências. Um manual para jovens para a abstinência não é o pior dos problemas. Ao folheá-lo, percebe-se que aborda questões importantes, como os limites que os jovens podem querer traçar no seu próprio caminho da intimidade. No entanto, várias secções são motivo de desconforto. A constante responsabilização das raparigas pela excitação masculina, sugerindo que não devem vestir-se de forma “provocatória”, ou a repressão sistemática da masturbação, impede a discussão de outros temas fundamentais que os jovens precisam de abordar. Além disso, não se encontram no manual conteúdos sobre contraceção, prazer ou consentimento explicados de forma aprofundada, nem qualquer tentativa de desafiar o discurso heteronormativo predominante na abordagem à sexualidade e à intimidade. Os jovens em Hong Kong aprendem essencialmente a dizer “não”, mas não recebem ferramentas ou espaço para compreender as formas saudáveis de vivenciarem a sua sexualidade e as transformações do seu corpo, não só neste período crítico, como ao longo da sua vida. O “sim” não é uma ode à libertinagem sexual. O “sim” pressupõe um leque de nuances que envolve informação, reflexão e espaços seguros de discussão, algo que muitos jovens não têm oportunidade de explorar — nem em Hong Kong, nem, atrevo-me a dizer, noutras partes do mundo.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDar a vida pelos outros No passado dia 13, em Melbourne, Austrália, uma professora morreu ao tentar salvar os seus alunos. O incidente ocorreu porque o condutor de um camião que transportava um depósito de água se sentiu mal pelo que o veículo se despistou e embateu contra as instalações de um jardim infantil. Bryant, uma terapeuta da fala de 43 anos, ignorando a sua segurança fez todos os possíveis para afastar as crianças da trajectória do camião, mas acabou por ser atingida e teve morte imediata. A polícia declarou que se Bryant não se tivesse sacrificado, muito mais crianças teriam morrido ou ficado feridas. Toda a comunidade teve rapidamente conhecimento da acção heroica de Bryant e os residentes locais deslocaram-se à cena do acidente para depositar flores e expressar a sua admiração infinita e as suas condolências. Bryant deixou um marido que a amava profundamente, um filho de 11 anos e uma filha de 9 anos. A família ficou destroçada. Em contrapartida, registou-se um caso oposto com o professor Fan. No terramoto de 2008 em Wenchuan, na província de Sichuan, China, este professor foi o primeiro a sair da aula quando se apercebeu do abalo. Só depois é que os estudantes evacuaram a sala, um atrás do outro. O professor Fan disse à comunicação social: “Escolhi viver, só me sacrificaria pela minha filha. Mesmo que a minha mãe estivesse em perigo, não queria saber, porque não consigo transportar um adulto. Em momentos de crise, só se pode salvar uma pessoa de cada vez.” Estes comentários causaram indignação na Internet e o professor foi alcunhado de “Fan Run Run” (“Corre, corre, Fan”). O Ministro da Educação chinês reviu subsequentemente o “Código de Ética Profissional dos Professores do Ensino Primário e Secundário” de forma a incluir disposições para a “protecção da segurança dos estudantes.” Presentemente, o Código estipula que os professores devem “cultivar sentimentos nobres.” Posteriormente, o professor Fan pediu desculpa pelas suas declarações à imprensa. Mas anos mais tarde, ainda afirmava que faria o mesmo se voltasse a haver um incidente idêntico. Não tem remorsos porque sabe que era incapaz de salvar todos os alunos. Diz que admira heróis, mas que não é um deles. Aprecia sobretudo a própria vida. Confrontados com duas opções completamente diferentes, qual devemos escolher? Como devemos avaliar? Talvez uma história Budista nos possa ajudar a encontrar a resposta. Havia na floresta um elefante com seis presas. Era gentil, forte e diligente. Certo dia, salvou um caçador seriamente ferido e levou-o para a aldeia. Depois de o caçador recuperar dos ferimentos, viu um édito do rei, que dizia: Quem caçar um elefante de seis presas e me trouxer como tributo o marfim será recompensado. O caçador ficou ganancioso, disfarçou-se de médico bondoso, entrou sorrateiramente na floresta, aproximou-se e atingiu o elefante com setas venenosas. O elefante das seis presas caiu ao chão por causa do veneno. Os outros elefantes cercaram rapidamente o caçador, mas o elefante das seis presas pôs as patas dianteiras em torno do caçador para o proteger e para dar sinal aos outros para se retirarem. O elefante das seis presas perguntou ao caçador: “Porque é que me feriste?” O caçador ficou envergonhado e contou-lhe a verdade. O elefante partiu as suas presas e deu-as ao caçador, dizendo-lhe: “Com este donativo, podes entender o lado glorioso da vida. Se eu me tornar um Buda, voltarei para te salvar e retirar as três setas venenosas do teu coração: a ganância, o ódio e o engano.” Esta fábula ilustra o verdadeiro significado do amor. O amor e a bondade do elefante das seis presas são incondicionais, tal como o amor de muitas mães pelos seus filhos, que se sacrificam para os proteger em alturas difíceis. O amor de Bryant pelos seus alunos, como o amor maternal, aquece os corações, ajuda as crianças a crescerem harmoniosamente e faz a escola brilhar. Assim sendo, os professores têm a obrigação de se sacrificarem pelos seus alunos? Na perspectiva de Fan Run Run a profissão de professor não implica sacrificar a vida. Mas, em certas circunstâncias, o cumprimento do dever do professor pode custar-lhe a vida. Professores que arriscam a vida para salvar os alunos praticam actos heroicos e demonstram ter os mais altos padrões morais. Mas também devemos compreender que os professores não têm obrigação de sacrificar a vida. Uma das principais prioridades dos professores é a protecção da vida dos seus alunos, mas isso não significa que tenham de se sacrificar. Como optar? As escolhas das pessoas baseiam-se nos seus valores e experiência de vida, por isso deixo ao leitor a capacidade de julgar. Mas prestemos aqui a mais alta homenagem à dedicação de Bryant que sacrificou a vida para salvar e iluminar os seus alunos. Amamo-la e sentimos a sua falta. A sua família está extremamente orgulhosa dela. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal Vozes11 mortos sem importância Ai, Portugal, Portugal onde acontece tudo o de mais inacreditável referindo apenas os aspectos sociais e políticos. Morreram 11 portugueses por alegada falta de socorro do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Custa a acreditar, não custa? Mas foi o caso mais grave e mais triste da semana passada neste jardim mal plantado à beira-mar. O Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-hospitalar, uma profissão que inventaram e que não é carne nem peixe, ou melhor, esses técnicos não são enfermeiros nem médicos – mas alguns têm raiva aos enfermeiros -, só porque aprenderam a executar os primeiros socorros quando uma ambulância se dirige a um paciente que esteja mal de saúde num acidente rodoviário, em casa à beira de um ataque cardíaco ou noutra situação qualquer incluindo confirmarem a morte do socorrido, resolveram reivindicar o pagamento das horas de trabalho extra e, vai daí, decidiram fazer uma greve, como se moralmente os enfermeiros, médicos e técnicos de saúde devessem ter o direito à greve, quando está em causa a vida das pessoas. E não venham com a conversa da treta dos serviços mínimos. Foi por causa dos serviços mínimos que morreram 11 portugueses sem socorro de emergência. Como assim? Passo a explicar: o referido sindicato enviou para o presidente do conselho de administração do INEM, para a secretária de Estado da Saúde, para a ministra da Saúde e para o Gabinete do primeiro-ministro um aviso de pré greve às horas extraordinárias, que são imensas. Todas as entidades que receberam o pré-aviso de greve não ligaram nenhuma ao assunto, tomaram conhecimento e assobiaram para o lado. No dia da greve começaram a chover centenas, ou mais, de telefonemas oriundos dos mais diversos locais do país a pedir o habitual socorro do INEM. Mas, os tais serviços mínimos não tinham sido accionados e neste ponto, em nosso entender, a culpa não é só das autoridades avisadas, mas também do sindicato. As senhoras e senhores técnicos de emergência pré-hospitalar tinham a obrigação de ser humanistas e pensarem que estava em causa uma única coisa, a vida dos portugueses. Obviamente que sem serviços mínimos não haveria socorro e os pedidos de emergência clínica chegaram a ter uma resposta entre meia hora e duas horas, acabando por morrer 11 portugueses alegadamente devido à causa efeito da greve dos técnicos do INEM. Permitam-me um parêntesis apenas para vos dizer que ainda me recordo que todas as ambulâncias do INEM em socorro tinham uma equipa constituída pelo motorista, que algumas vezes era assistente de enfermagem, um médico e um enfermeiro. Depois, devido à falta de médicos e de enfermeiros, formaram estes técnicos que chegam ao local onde se encontra o doente ou sinistrado, medem a tensão arterial, fazem algumas perguntas ao doente quando este pode falar, registam toda a situação que encontraram num computador e transportam o doente para a ambulância e vão a caminho do hospital mais próximo. Voltando ao grave acontecimento de 11 mortes por alegada culpa de uma greve de técnicos do INEM e de políticos incompetentes, saliente-se que está tudo preparado para que a culpa morra solteira. O primeiro-ministro pouco ou nada disse sobre o caso, aliás, disse que não podia haver uma ambulância em cada prédio… que horrível para um chefe do Executivo. A ministra da Saúde quando toda a gente começou a exigir a sua demissão foi à Assembleia da República pronunciar umas baboseiras, entre elas, que não se demitia porque não mentia, não se escondia e que ia assumir a total responsabilidade e a pasta do INEM. Houve deputados que riram para não chorar. A secretária de Estado da Saúde ficou de boca aberta quando soube pela televisão que tinha ficado sem a tutela do INEM, ficando absolutamente fragilizada politicamente e, nem assim, pediu a demissão do cargo. O presidente do INEM, o quarto presidente do INEM nomeado pela ministra desde que o Governo tomou posse, nem sabia o que dizer aos jornalistas, para além de mais parecer um “menino de copo de leite”… E o sindicato que foi para a greve e que provocou alegadamente a morte de 11 portugueses por falta de socorro médico? Bem, o Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-hospitalar é um caso sui generis. Em primeiro lugar, nunca tinha visto uma entidade sindical a louvar uma ministra. Afinal que raio de sindicato é este politicamente? Defende os seus trabalhadores, a greve ou um governo de direita com aliados da extrema direita? Mas que raio de sindicalismo é este? Ou os sindicatos agora têm cada um a sua cor de política partidária? Este sindicato, depois dos factos graves que vos descrevi, louva a ministra e atira as culpas para a secretária de Estado. Coisa feia e inadmissível para uma instituição que apenas devia defender os direitos dos trabalhadores. Um presidente de sindicato que aparece nas televisões de fato e gravata como se fosse um ministro e a “explicar” o que ninguém entende… E afinal, de quem é a culpa das 11 mortes sem socorro? A secretária de Estado da Saúde, ao tirar a água do capote, teve o desplante e a pouca vergonha de afirmar que a culpa era do anterior Governo… Ai, Portugal, Portugal ao que chegámos. Então a senhora está a governar há mais de oito meses, mandou embora outros presidentes do INEM e a culpa da falta de socorro em Novembro de 2024 é do Governo de 2023? Absurdo, para não lhe chamar um nome feio. Resumindo: a ministra terminou a semana dizendo que terá de se aguardar pelo resultado dos inquéritos que decorrem sobre as 11 mortes dos portugueses sem socorro, quando todos sabemos que normalmente a abertura de um inquérito tem a intenção de fazer esquecer o assunto grave acontecido e deixar passar um qualquer resultado sentencioso para as calendas. Neste particular, recordando que a ex-ministra da Saúde, Marta Temido, se demitiu quando morreu uma mulher grávida num hospital por alegada assistência negligente, resta dizer-vos que estamos absolutamente convencidos que a culpa irá morrer solteira e os 11 mortos para toda esta gentinha não tiveram qualquer importância… P.S. – O Governo nem sequer se pronunciou sobre eventuais indemnizações aos familiares das vítimas por falta de socorro estatal.
Carlos Coutinho VozesO imperador e a escritora. Sem olhos em Gaza. No seu leito de morte, o imperador Adriano ainda escreveu ou ditou um poema, talvez o último da sua vida irrepetível: Animula vagula blandula Hospes comesque corporis Qua nunc abibis in loca Palidula, rigida, nudula Nec, ut solles, dabis locos. Ou seja, em português de lei: Pequena alma terna flutuante Companheira e hóspede do corpo Agora se prepara para descer a lugares Pálidos, árduos, nus Onde terás mais dos devaneios costumeiros. (Tradução da historiadora Letícia de Andrade) Andei anos até saber quem era o autor destes versos e nem a Marguerite Yourcenar, aquela extraordinária escritora belga que foi viver para os EUA e pertence ao grupo dos meus imprescindíveis teve a caridade de dizer. Mas em “De Olhos Abertos” disse a Matthieu Galey: “Quando se ama a vida, eu diria sob todas as suas formas, tanto as do passado como as do presente – pela simples razão de que o passado é maioritário, como diz não sei que poeta grego, sendo mais longo e mais vasto do que o presente, sobretudo este estreito presente de cada um de nós –, é normal que se leia muito. Por exemplo, durante anos li a literatura grega, às vezes de uma forma mais intensa, durante longos períodos, ou ao contrário, aqui e ali, viajando com este ou aquele filósofo ou poeta grego na bolsa. No final, reconstruí a cultura de Adriano: sabia mais ou menos o que Adriano lia, a que é que se referia, a maneira como olhava certas coisas através dos filósofos que lera. Não disse a mim própria: ‘Preciso de escrever sobre Adriano e informar-me acerca do que ele pensava.’ Julgo que nunca se chega lá desta maneira. Acho que temos de nos impregnar de um assunto por completo até que ele saia da terra, como uma planta cuidadosamente regada.»” Depois da morte do pai, em 1929, Yourcenar decidiu gastar a herança numa vida de boémia, passada entre Paris, Lausana, Atenas, as ilhas gregas, Constantinopla, o Cáucaso e Bruxelas. Teve relações amorosas com algumas mulheres e apaixonou-se por um homossexual, André Fraigneau, escritor e editor da Grasset. Em 1939, o seu conhecimento da Alemanha nazi e a falta de recursos levaram-na a partir para os EUA, juntando-se a Grace Frick, sua companheira havia dois anos, e com quem viveu até à morte desta, em 1979. A partir de 1950, instalou-se com Grace na ilha de Montes Desertos, designando a sua casa em madeira por “Petite Plaisance”. O que lhe permitiu deixar a sua atividade docente foi o êxito internacional de “Memórias de Adriano” (1951). Em meados dos anos 60 visitou Lisboa, Sintra, Évora e a Madeira. Antes de falecer, a 17 de dezembro de 1987, ainda escreveu para sempre “A Obra ao Negro”. Está enterrada no Cemitério de Brookside, em Somerville, no Maine, EUA. Já de Adriano eu apenas sabia que teve um amante chamado Antino e, quando este se afogou no Nilo, em 130 d.n.e., ficou por se saber se ele caiu nas águas do rio, se cometeu suicídio ou se foi empurrado, mas, depois da sua morte, Adriano imediatamente o declarou um deus e fundou em sua memória a cidade de Antinópolis, no Egito, no local onde o cadáver do seu namorado foi encontrado. Adriano nasceu provavelmente em Itálica, na Hispânia. Foi um imperador viajante, visitando quase todas as províncias e passando muito tempo longe de Roma. Era um amante da cultura grega e procurou fazer de Atenas a capital cultural do Império, ordenando a construção de vários templos sumptuosos na cidade. O seu casamento com Vibia Sabina, sobrinha-neta do Imperador Trajano, foi infeliz e não produziu filhos. Em 138 adotou Antonino Pio e nomeou-o seu sucessor. Faleceu no mesmo ano em Baías. Foi divinizado por Antonino, a despeito da oposição do Senado, que sempre o considerou distante e autoritário. Adriano tem suscitado opniões divrgentes entre os críticos, descrito como enigmático e contraditório, capaz tanto de atos de grande generosidade como de extrema crueldade, dominado por uma curiosidade insaciável, pelo orgulho e pela ambição. O renascimento do interesse contemporâneo pela sua figura deve muito ao romance “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar , publicado em 1951. A sua primeira viagem foi em 121, visitando a Gália, a Germânia e a Britânia, uma província agitada por rebeliões, onde iniciou a construção da célebre Muralha de Adriano, destinada a conter as invasões e migrações de bárbaros. Em Roma supervisionou a reconstrução do Panteão e terminou a sua ‘villa’ de repouso, em Tivoli. Caçou leões no deserto da Líbia e morreu em 10 de julho de 138, em Roma, depois de uma longa doença. O seu corpo foi depositado num mausoléu que veio a ser transformado no atual Castelo de Santo Ângelo, em Roma. * MUITO antes do “bom samaritano” que Lucas não nomeou, de Anne Frank, de Aristides de Sousa Mendes, de Ho Chi Min e de Mohammad Arafath, já Aristóteles perguntava: “Haverá flagelo mais terrível do que a injustiça de armas na mão?” De facto, antes e depois do jogo de futebol entre o Ajax de Amesterdão e o Maccabi Tel Aviv, ocorreu variado e abundante vandalismo que a nossa televisão não mostrou de um certo lado, o dos israelitas, e empolou do outro, o dos árabes ou originários de países muçulmanos. Vimos israelitas a entoar canções que enaltecem o comportamento das IDF (Forças de Defesa sionistas) na Palestina ocupada e arrancando as bandeiras palestinianas que iam encontrado na sua marcha por Amsterdão. Muitos de nós viram também “mouros” corajosos a retaliar de forma por vezes igualmente violenta. A Comissão Europeia condenou estes atos e ignorou a selvageria hebraica. Para Von der Leyen, a islamofobia pode ser um modo natural de respirar no mundo em que vivemos. Surpreendentemente, até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no Norte da a Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força”. E mesmo que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completarem a separação das comunidades do Norte das do Centro da cidade de Gaza!”. Completando o horror da situação, um residente local contava no mesmo dia a “The Washington Times”: “Antes comíamos erva, agora nem isso temos. A cidade é agora um cemitério.” E isto quando até em Israel, o “Haaretz”, um jornal visceralmente sionista, mas avesso a Netanyahu e ao pior de Biden, Harris e Trump, afirmava no dia de S. Martinho, em editorial, que “o Exército israelita está a levar a cabo uma operação de limpeza étnica no norte da Faixa de Gaza” e que os poucos palestinianos no local estão a ser levados à força” e que “foram destruídas casas e infraestruturas bem como há estradas largas a ser construídas para completar a separação das comunidades do norte das do centro da cidade de Gaza!. (…) Parece que foi atingido por um desastre natural.” E Lousie Waterige, responsável da UNRWA, o organismo da ONU que Israel nunca respeitou, disse neste fim-de-semana “não há maneira de dizer onde a destruição começa ou acaba. Não interessa de que direção se entra na cidade de Gaza. Casas, hospitais, escolas, clínicas, mesquitas, apartamentos, restaurantes, está tudo totalmente arrasado”. A cidade e tudo à volta parecem, de facto, “um cemitério em que as vítimas são, sobretudo, mulheres e crianças. Segundo um relatório publicado na sexta-feira pelo supracitado Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, estas “representam quase 70% dos mortos na Faixa Gaza”, uma análise feita com base em 8 119 mortes identificadas durante os primeiros seis meses de guerra. Ainda segundo este mesmo relatório, também citado por “The Washington Post”, cerca de 80% dos mortos estavam em casas ou outro tipo de habitação, dados estes que “dão peso às alegações de que Israel tem atacado indiscriminadamente”.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesPensar em termos estratégicos “Strategic thinkers don’t just make decisions; they assess and communicate their broader potential effects.” Brenda Steinberg & Michael D. Watkins A América perdeu o talento intelectual para pensar em termos estratégicos. Já não consegue gerir uma política externa coerente. Se continuar a descer esta encosta, será a guerra. Uma coligação para controlar a Eurásia. A incapacidade dos Estados Unidos de fornecer uma modesta assistência militar e financeira à Ucrânia é uma vergonha moral e estratégica. A América está envolvida numa luta amarga pelo controlo da Eurásia, que terminará com um vencedor. Os lados são claros e os Estados Unidos com os seus parceiros insulares ou peninsulares, os europeus, Israel, algumas potências árabes e Estados ao longo do litoral asiático contra uma coligação frouxa de potências revisionistas continentais, nomeadamente a China, o Irão e a Rússia. O resultado desta disputa definirá a história mundial para o resto do século. É por demais evidente que os Estados Unidos têm de competir em todas as regiões da Eurásia. Pensar em dar prioridade estratégica a uma ou a outra não só carece de substância como é perigoso. Tais argumentos criam divisões nebulosas, fictícias e principalmente retóricas, quando a natureza da Eurásia está, pelo contrário, profundamente interligada económica e militarmente. O “centro de gravidade económica mundial” pode muito bem ter-se “deslocado para a Ásia” em termos puramente de PIB. Mas a produção asiática depende de recursos, capital e tecnologias de muito mais longe, como a China bem sabe e como a Rússia aprendeu à sua custa após a invasão da Ucrânia. Os laços euro-asiáticos implicam que o que acontece num extremo da massa bicontinental repercute-se no outro. Israel e o Irão estariam a enfrentar-se mesmo sem a guerra na Ucrânia, mas a agressão de 7 de Outubro de 2023 e as crises subsequentes não se teriam desenrolado como se desenvolveram sem a erosão da credibilidade estratégica americana e a insistência israelita numa relação com a Rússia. O mesmo acontecerá quando a guerra se estender à Ásia, o que muito provavelmente acontecerá. Temos de ultrapassar a nossa perplexidade perante a ideia de um conflito euro-asiático e aceitar os desafios que temos pela frente. Caso contrário, a causa da civilização terá ainda mais dificuldades em sobreviver. As más escolhas estratégicas dos Estados Unidos contribuíram para esta situação. Não é intenção diminuir o papel dos outros actores. Os países europeus não conseguiram, mais ou menos, alimentar adequadamente as suas defesas desde a queda da União Soviética, facto que limitou grandemente a coerência da sua resposta ao expansionismo russo na Ucrânia ou a sua capacidade de agir independentemente da assistência estratégica americana. É claro que as potências revisionistas também contam muito e uma justifica a agressão aos seus vizinhos com base na crença bizarra de que a semelhança linguística exige unidade política; outra conduz subversões híbridas no Médio Oriente; outra ainda pressiona os parceiros asiáticos dos Estados Unidos. No entanto, o factor-chave é o fracasso da política externa americana, uma vez que só os Estados Unidos têm a perspectiva estratégica para lidar com os problemas daquilo a que se poderia chamar a coligação da Orla Eurasiática. O Reino Unido e a França podem ter armas nucleares; o Japão, a Austrália, a Alemanha e a Itália podem ser economias prósperas e ter capacidades militares não negligenciáveis. Mas só os Estados Unidos têm os meios, os aliados e os interesses ao longo de todo o arco da Eurásia. Há já algum tempo que Washington saiu da tutela estratégica britânica, que durou grande parte da Guerra Fria, durante a qual o Reino Unido, ainda com a sensação de ser um império com alcance euro-asiático, podia dar conselhos coerentes aos decisores americanos. Actualmente, os Estados Unidos estão sozinhos. Nenhum dos seus aliados cultiva uma perspectiva propriamente euro-asiática necessária para liderar uma coligação num desafio pela supremacia. O fracasso não está de modo algum escrito. A política externa europeia cometeu certamente erros mesmo durante a Guerra Fria. Entre eles, a bofetada de Eisenhower na cara de Paris e de Londres na crise do Suez, a retirada do Vietname e a cedência de Cuba a Moscovo. Mas, de um modo geral, a Europa foi liderada por estadistas lúcidos e eficazes. Mesmo a presidência de Carter, justificadamente criticada, deu uma viragem a partir de 1979, lançando as bases para a expansão militar da era Reagan que acabou por levar os soviéticos à exaustão. Kennedy permitiu a crise de Cuba, mas geriu-a bem para evitar uma catástrofe. A administração Nixon perdeu o Vietname do Sul, mas conseguiu uma política hábil para o Médio Oriente que transformou a região e fez de Israel o ponto central de uma estratégia coerente a longo prazo. Estes êxitos resultaram, em parte, do próprio Presidente dos Estados Unidos. Mas o processo burocrático é imensamente complicado. Longe vão os tempos em que um pequeno grupo de conselheiros, os ministros dos Negócios Estrangeiros, da Defesa, as altas patentes das Forças Armadas e funcionários civis seleccionados podiam tomar decisões com a confiança de que seriam implementadas de forma coerente nos vários ramos administrativos. Actualmente, o Estado é uma máquina burocrática que se rege por práticas rigorosas e estruturadas de recolha, tratamento, análise e divulgação de informações que facilitam a tomada de decisões. Ao longo do último século, o tipo de personalidade necessária no topo mudou. Uma figura como Henry Kissinger, algures entre um burocrata e um académico, continuaria a ser desejável, mas teria de combinar sensibilidade histórica e bom senso com qualidades de gestão e políticas. Figuras como ele são excepcionalmente difíceis de encontrar e cultivar em qualquer sistema educativo. O melhor que se pode aspirar é a burocratas experientes, alguns bons em gestão, outros bons em análise, outros bons em estratégia. Esta é a principal diferença entre o establishment da política externa de ontem e o de hoje. Uma diferença que explica os muitos erros recentes. Qualquer estudante sério de história estratégica compreende imediatamente que as teorias da “gestão de conflitos” aplicadas à Ucrânia são meros exercícios pseudo-intelectuais. No entanto, ideias como estas tornam-se populares precisamente porque a actual elite burocrática foi educada num pequeno círculo de universidades como Harvard ou Yale, por vezes com um diploma adicional de Oxford, onde os mesmos mandarins do acaso ensinam. Pessoas agarradas a concepções convencionais e obsoletas, que inculcam nos seus alunos uma profunda aversão ao confronto. Aqueles que podem discordar da interpretação ortodoxa de uma crise como a de Cuba ou estão mortos como Bill Rood e Donald Kagan ou estão fora do circuito como Doug Feith por razões de temperamento e de auto-selecção profissional. Quando, por outro lado, frequentamos os arquivos diplomáticos do fim da Guerra Fria e do período imediatamente a seguir, ficamos impressionados com a presciência de certas pessoas, como Dick Cheney, na altura Secretário da Defesa, que pouco se importava com o mal-estar russo face à expansão da NATO. E que reconheceram que, mesmo depois da era soviética, Moscovo representaria uma ameaça tal que mesmo os cenários mais calmos exigiriam décadas de contenção. Mesmo os seus opositores, como o muito elogiado Brent Scowcroft, operavam a um nível de sofisticação sem paralelo nos decisores e formadores de opinião actuais. Resumindo, os Estados Unidos e os seus aliados estão numa má situação porque a América e os seus parceiros, consequentemente perderam o talento intelectual para pensar em termos estratégicos. Isto levanta duas questões para os países europeus que têm interesse em manter a actual ordem euro-asiática. Um interesse que diz respeito a todos os actores do continente, da Ucrânia a Portugal, incluindo o húngaro Orban, o eslovaco Fico e o sérvio Vucic, porque a realidade é que mesmo os chamados soberanistas só sobrevivem porque são mantidos pela União Europeia e pela segurança proporcionada pelo sistema UE-NATO. A primeira questão é se estamos a assistir a um declínio da América. A resposta é um sim categórico. Não há outra maneira de explicar quinze anos de uma política externa cada vez mais inconsistente. Em todas as áreas, a situação era sempre recuperável, como a administração de George W. Bush ironicamente demonstrou ao recapturar o desastre iraquiano com o surto, um facto sempre ignorado por um revisionismo intelectual motivado mais pela ignorância e antipatia ideológica do que por uma análise aprofundada dos factos. Depois, porém, a administração Obama abandonou o Iraque, reduziu as despesas militares, procurou um desanuviamento quimérico com a Rússia e a China, apoiou tacitamente a expansão do Irão em detrimento de Israel e dos países do Golfo. A presidência de Trump fez algumas correcções substanciais, com uma postura mais agressiva em relação ao Irão e a prestação de ajuda militar à Ucrânia; mas nunca considerou um aumento concreto das despesas de guerra, dando antes prioridade às despesas sociais numa altura em que os Estados Unidos estavam a entrar numa fase de turbulência internacional. A administração Biden continuou na mesma linha, achatando efectivamente o orçamento do Pentágono em termos reais, enquanto abandonava o Afeganistão, procurava outro acordo com o Irão e se recusava a articular uma verdadeira estratégia para a Ucrânia, permitindo que a guerra se arrastasse, a um preço cada vez maior em termos de vidas. Este é um retrato de declínio manifesto. Significa que os aparelhos burocráticos foram totalmente incapazes de enfrentar os desafios actuais, por razões intelectuais, morais e políticas. A continuar a trajectória actual, não só se acabaria numa grande guerra euro-asiática, como provavelmente se perderia. Ou talvez fosse possível ganhar, mas com imensos custos humanos e económicos. É claro que há uma ressalva. Nunca enfrentámos as condições de hoje, mas já defrontámos condições igualmente adversas e recuperámos. Antes da II Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham decisores mais prudentes, apesar de um clima popular muito contrário ao envolvimento na Eurásia. No entanto, embora possuíssem um enorme poder industrial, não tinham qualquer acesso diplomático ou estratégico às potências euro-asiáticas; consequentemente, organizar o envio de forças de combate para o estrangeiro era uma tarefa formidável, muito mais do que a retrospectiva nos diria. Além disso, no passado, um grande choque estratégico despertou normalmente no povo americano uma consciência nacional mais profunda que ajudou a colocar os Estados Unidos na direcção certa. Actualmente, outro choque deste tipo poderá ter o mesmo efeito, especialmente se incluir um custo em termos de vidas americanas. A segunda questão é ainda mais importante, pois face ao declínio americano, o que é que os países europeus devem fazer? A resposta mais fundamentada, e difícil, é que devem passar por uma transformação intelectual para produzir uma verdadeira estratégia a longo prazo para a Eurásia. Só assim a Europa, poderá sobreviver sem os Estados Unidos. Uma Europa unida, uma evolução da actual União Europeia, pode ser parte da solução, mas não é a solução. O obstáculo é intelectual. Se os Estados Unidos têm falta de burocratas capazes de conduzir um verdadeiro sistema político, os europeus têm um défice ainda maior neste domínio. Existem indivíduos talentosos, não faltam instituições académicas, bem como alguns políticos, advogados e analistas competentes. Mas não há infra-estruturas para uma verdadeira abordagem de síntese que cultive sistematicamente a capacidade de pensar e desenvolver uma estratégia para a Eurásia. Este tipo de capacidade só pode vir de governos nacionais que se interessem seriamente por certas secções da massa bicontinental. Neste domínio, a Europa pode desempenhar um papel central. Kissinger observou que a sua política externa consiste em encontros sorridentes com importantes estadistas; muito correctos, dada a necessidade de fazer malabarismos com uma política interna sempre frágil. Todos os países da Europa Ocidental, estão subdimensionados e não estão optimizados para o combate sustentado. No entanto, dispõem de unidades rapidamente destacáveis, forças especiais de elevada qualidade (especialmente anfíbias) e vários veículos sofisticados. O centro da abordagem da Europa deve ser o apoio público e coberto à Ucrânia e especialmente a Israel, dado o papel central de Jerusalém no Médio Oriente sistémico mas estratégico e dada a importância deste quadrante para a segurança europeia. Depois, a Europa seria prudente se continuasse a sua abordagem musculada à China e se integrasse com alguns países da cintura Intermarium, incluindo a Ucrânia. O que precede não substitui a liderança americana. Os Estados Unidos continuam a ser indispensáveis até um certo ponto. A coligação Rimland não existiria sem a liderança americana e os seus meios para facilitar as operações de ponta a ponta na Eurásia. No entanto, a vantagem desta coligação é a possibilidade de os seus membros individuais darem impulsos decisivos, desde que estejam rodeados por um ambiente que lhes proporcione enquadramento, prudência, conhecimentos especializados e uma visão comum do mundo. A República Checa é um exemplo disso, pois Praga forçou recentemente o braço de Berlim, reforçou a nova proactividade da França, obrigou Macron a aceitar a aquisição de munições não europeias e forneceu um apoio indispensável às capacidades de defesa ucranianas. A ameaça na Eurásia não diminuiria se a América regressasse a casa. Só aumentaria. A Rússia, a China e o Irão continuariam a exercer pressão sobre um Ocidente distorcido. Serão necessários nervos, habilidade e, acima de tudo, inteligência para conduzir os europeus na direcção certa.
Amélia Vieira VozesE. E. Cummings Desarmar, recriar, inventar e dar à língua um fôlego renovado, é a missão mais comprometida de um poeta, que recriará novas semânticas e valências a partir de um equilíbrio constante em seu não menos intenso labor. Cummings acaba por agregar todos estes atributos numa obra que muitos consideram deveras desconcertante. Vejamos que a nível do grafismo e dos sinais de pontuação começa por subverter toda a composição estabelecida como correta, expondo desse modo o leitor a um processo dinâmico para seguir a composição; não é fácil, e por isso se torna apaixonante seguir a desconstrução aparente de uma ideia que vem em estilo poético, mas que parece absolutamente legítima, que é o de buscar para o centro do labirinto o próprio leitor, que como muita gente sabe, é um agente passivo à espera de projectar os seus anseios no tecido da escrita que outros fizeram. Estamos nos anos vinte do século passado e as vanguardas estão na ordem dos dias, onde ele ocupa um espaço dominante, e é no embrião do Surrealismo que edita o primeiro livro e integra os primeiros movimentos do século, mas desviado de um certo estruturalismo, e sua marcha não foi fácil, sua aceitação, difícil, e a nível da publicação sofrerá ainda interditos. Só a partir dos anos cinquenta vai existir um alvorecer instigado pela poesia concreta que lhe dá asas tendo a reciprocidade deste vínculo uma importância decisiva. É considerado um dos mais inventivos poetas da linguagem, e isso, é trabalho que terá de ser feito sempre por poetas. Ou seja, pela estrutura da sua natureza, que quem quiser escrever “poemas” terá toda a liberdade de o fazer, evidentemente, que de escriturários autores estamos cheios, e seus sentimentos eles que os sintam. Falamos, claro está, de outra coisa. Há coisas que por mais que nos consumam atenção, seguidas logo como moléstia pelo tempo perdido, vamos recuperá-las em pequenos prodígios como este [não te importes com o mundo, com quem faz a paz e a guerra, pois deus gosta de raparigas e do amanhã da terra] e estamos lavados das imundices. A linguagem pode ser imunda, sim, sem nenhuma retórica escatológica para movimentar os paralisados da ordenação correcta acerca daquilo que se deve ou não dizer. Deve-se e pode -se dizer tudo, a diferença está somente naquele que sabe fazê-lo. A língua portuguesa, essa, está entregue a uma minoria tão silenciosa, que pensamos que sejam seitas telepáticas em confronto com as vicissitudes da linguagem tangível dos quotidianos acontecimentos. E por falar em telepático, há muito que não viajava por E.E. Cummimngs (aliás, até o nome é todo ele repleto de minúsculas e maiúsculas como se nos baralhasse o sentido intitular, que o aparelho fonético aderiu tanto ao cérebro que “chuta” para trás o que lhe é estranho mencionar) não é que me caiu aos pés, impulsionado por movimentos felinos, o seu livro de poemas?- Tudo junto, livrodepoemas, exatamente no dia 14 de Outubro que o acaso quis fosse o seu aniversário. Tinha sido em 1894. Aqueles instantes onde a linguagem continua, e falamos. Mas falamos como, de quê? Nestes casos pode ser uma certa “aeroglifisação” que nestas coisas o poema é sempre mais adiante, e acontece pronto. Morreu com sessenta e sete anos, tão perto de ti, de mim, de nós…
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesLicença parental As leis laborais de alguns locais, contemplam a “licença parental” destinada a facultar aos trabalhadores com filhos mais tempo livre para se ocuparem das crianças e de assuntos familiares, de forma a ser obtido um maior equilíbrio entre o trabalho e a vida familiar. Tomando o exemplo de Guangxi, na China, os “Regulamentos para o Planeamento da População e da Família da Região Autónoma de Guangxi Zhuang” estipulam que cada um dos membros do casal tem direito a dez dias de licença parental por ano até que os filhos atinjam os três anos de idade. Se os dois progenitores tiverem 20 dias de licença parental todos os anos, têm a possibilidade de lidar com vários assuntos relativos à criança e à própria vida familiar. Olhando para Hong Kong e para Macau, verificamos que em Macau não existe actualmente licença parental. Nas linhas para a governação, recentemente apresentadas, o Governo de Hong Kong propõe-se implementar a partir de Abril de 2025 a licença parental anual para funcionários públicos com crianças até 3 anos de idade. Um estudo realizado em Hong Kong mostrou que perto de 80 por cento dos inquiridos acredita que criar um filho até aos 22 anos custa pelo menos 6 milhões de dólares de Hong Kong. Este tipo de pessoas espera que as empresas possam ter mais flexibilidade laboral. Os inquiridos ainda acrescentaram que se pensarem ter um filho num período em que estão muito ocupados, para se dedicarem totalmente ao trabalho e atingirem os seus objectivos, podem ter de adiar ou desistir dessa ideia. Os resultados do referido estudo demonstram que mesmo que as pessoas queiram ter filhos, a sua principal preocupação é a questão económica. Se a situação económica for boa, a hipótese de virem a ser pais mais melhora relativamente. Se a empresa que os emprega lhes proporcionar medidas que os ajudem a tratar das crianças e dos problemas familiares esse factor será certamente tomado em conta. As notícias não mencionavam se, para além da licença parental a ser atribuída aos funcionários públicos, o Governo de Hong Kong irá tomar outras medidas para ajudar a coordenar as relações entre o trabalho e a família. Mas podemos encontrar outros exemplos na sociedade de Hong Kong que ilustram estas medidas. Para que os empregados lidem melhor com as questões familiares, uma empresa permitiu que coordenassem com os seus superiores horas e locais de trabalho flexíveis e, ao mesmo tempo, aumentou as licenças parentais. Esta empresa criou também o “Dia de Levar o Filho para o Trabalho” para permitir que a próxima geração tenha contacto com o mundo empresarial e ainda para aumentar e cultivar o relacionamento entre os empregados e os seus filhos. Durante o “Dia de Levar o Filho para o Trabalho”, a empresa proporciona actividades para pais e filhos, tais como brincadeiras com balões, espectáculos de magia, confecção de sobremesas, etc., para assegurar que o trabalho dos pais não afecta a vida familiar. Licença parental, disposições para a flexibilização do trabalho, licença paterna, “Dia de Levar o Filho para o Trabalho”, etc. são todas medidas favoráveis implementadas no local de trabalho. “Ambiente de trabalho amigável” é sinónimo de reconhecimento por parte das empresas dos diversos talentos dos seus elementos, pelo que lhes proporcionam cuidados extensos, não discriminatórios e justos, para que eles possam trabalhar sem preocupações, dar o seu melhor e usar as suas capacidades a bem dos empregadores e da produtividade da empresa. Um ambiente de trabalho amigável contem três elementos: diversidade, igualdade e inclusão. Podemos dar como exemplo típico de diversidade uma empresa que emprega diferentes tipos de pessoas; mais velhas, mais jovens, pessoas de diferentes etnias e nacionalidades, etc. Uma empresa que pratica a igualdade trata todos os funcionários com equidade e submete todos aos mesmos procedimentos. Uma empresa inclusiva ouve e respeita as opiniões dos empregados. Por exemplo, algumas universidades realizam todos os semestres sessões de perguntas e respostas com funcionários e estudantes para ouvir as suas opiniões. Para alcançar estes três elementos, diversidade, igualdade e inclusão, uma empresa não deva apenas proporcionar licenças parentais, trabalho flexível, licenças paternas, etc, mas também ter em termos gerais um código interno que proíba os vários tipos de discriminação. Estas medidas ajudam os empregados a compreender que a criação de um ambiente de trabalho amigável faz parte da cultura ética da empresa. Ambiente de trabalho amigável é uma designação que surgiu nos últimos anos. As disposições e medidas que implementa permitem que os empregados tenham espaço para as suas famílias, e evoluíram do conceito de “equilibrar o trabalho com a família” para “integrar o trabalho e a família”, tornando assim os empregados mais devotados ao trabalho, aumentando a produtividade e a competitividade das empresas, e, por conseguinte, alcançando uma situação vantajosa para todos. São medidas que vale a pena a sociedade vir a considerar. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesPor favor Por favor, amigos leitores, regozijem-se por ler este diário dirigido pelo jornalista e escritor de excelência Carlos Morais José. Recebo diariamente o jornal em PDF e posso dizer-vos, sem sombra de dúvidas, que é o melhor jornal em língua portuguesa. Graficamente não conheço melhor no panorama nacional e internacional em língua portuguesa. Um jornal com o conteúdo literário e de uma paginação muito apelativa. Escrevo estas linhas porque em Portugal a imprensa escrita, e mesmo a comunicação em geral, está pelas ruas da amargura. Temos diários, semanários e revistas. Todos essas publicações têm vindo a degradar o seu conteúdo e aspecto gráfico. O jornalismo tem de ser uma profissão nobre, de liberdade, de competência e transparência. No nosso país temos vindo a assistir a um negativismo jornalístico em todos os aspectos. Os jornalistas jovens acabam os cursos de duvidosa qualidade e aceitam as condições mais que precárias para ingressarem nos jornais, nas televisões e nas rádios. Na imprensa o visionamento é cada vez mais desinteressante. Os jovens jornalistas não têm um conhecimento profundo do que aconteceu desde o 25 de Abril de 1974, não têm um acervo da história sobre os acontecimentos decorridos ao longo de 50 anos de democracia nem sabem o que de bom deixaram a Portugal diversas personalidades como Palma Carlos, António Spínola, Costa Gomes, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Magalhães Mota, Pinto Balsemão, Ramalho Eanes, Mário Soares ou Álvaro Cunhal. Quando precisam, abrem a wikipédia e lêem o que por vezes é absolutamente deturpado e insuficiente, para se poder escrever com conhecimento de profundidade. O semanário Expresso tem vindo a perder leitores, ano após ano, e algumas vezes a própria manchete é um tema que já é do conhecimento de todos. O Diário de Notícias vive momentos de interrogação sobre o seu futuro, tal como os órgãos de comunicação social do grupo económico que nem paga os salários a tempo e horas. O Público foi o diário de referência, hoje é uma banalidade de mau jornalismo. O Jornal de Notícias era o menino querido do norte do país, e nos dias de hoje as gentes do norte compram o Correio da Manhã. Correio da Manhã que é um chorrilho de páginas dedicadas ao crime, aos casos passionais, à vida dos pimbas e, pelos vistos, os potenciais compradores é disso que gostam porque o jornalismo português global baixou muito de qualidade e nunca se preocupou em diminuir o número de analfabetos em política, em história e em cultura. O semanário Tal&Qual reapareceu, mas apresenta um populismo de bradar aos céus, sem o mínimo de credibilidade noticiosa. O i era o diário com mais impacto gráfico e com qualidade jornalística, não aguentou e hoje apenas se publica às terças-feiras. O Sol é um porta-voz do Governo, vale pela qualidade de alguns cronistas. No aspecto político toda a imprensa gere-se pela mesma batuta: há que agradar ao Governo. Estamos certos que Luís Montenegro, chefe do Executivo, espalha a sua propaganda política por todos os jornais a troco de financiamento aos patrões dos grupos de comunicação social. Um facto, que demonstra bem que a linha editorial das publicações é mera apoiante de quem está no poder. E já não falamos dos jornais e rádios regionais, que sem dinheiro, apresentam uma falta de qualidade jornalística impressionante e uma musicalidade quase total de timbre pimba. Os jornalistas com quem temos contactado trabalham frustrados. Chegam ao ponto de investigar e escreverem textos de grande interesse e deparam-se com a “ordem” das chefias de que esses trabalhos não podem ser publicados porque vão colidir com os interesses de quem financia os jornais. O jornalismo tem acima de tudo de ser regido sobre o símbolo da liberdade de expressão. Sem liberdade não existe jornalismo sério e apelativo. Por favor, amigos leitores, apreciem bem este diário e vejam a diversidade de temas, os colaboradores de enorme qualidade que deixam a sua sapiência nas páginas do jornal nos mais variados temas, como história portuguesa, história chinesa, política local, nacional chinesa, nacional portuguesa e internacional, sexologia, mudanças climáticas, obras literárias e outros temas de grande interesse. Sobre a cultura chinesa não existem páginas centrais, a cores, como as do HOJE MACAU e os leitores que em Macau e no estrangeiro leem o que é publicado, admiram-se como é que um diário de Macau consegue apresentar uma literatura cultural chinesa de tão grande envergadura. Estas minhas palavras não se devem ao convite que me fez o ilustre director para vos enviar semanalmente umas linhas sobre o que se passa em Portugal. Não, com toda a sinceridade vos informo que estas linhas se devem apenas ao facto da tristeza que os portugueses que compravam jornais constatam que nos dias de hoje não vale a pena. As vendas, na verdade, têm diminuído assustadoramente. Há mesmo quem pense que daqui a poucos anos apenas haverá um diário e um semanário. É triste. Para onde vão os jornalistas que sonharam com a sua nobre profissão? Obviamente para o desemprego, para um qualquer escritório de advogados, para uma agência de comunicação, para um gabinete de imprensa de uma empresa poderosa ou para assessor de um ministro, de um secretário de Estado ou de qualquer grupo parlamentar da Assembleia da República. Um dos piores exemplos da derrota da imprensa e televisões portuguesas foi a última campanha eleitoral americana onde apresentaram até à exaustão Trump com o seu discurso de ódio e a desinformação em vez de fornecer ao público factos e rigor jornalístico. Por favor, amigos leitores que possuem em Macau empresas, escritórios de advocacia, cargos de direcção na função pública, por favor, acreditem que devem dar todo o seu apoio em anúncios, a um diário como este de grande qualidade e que não pode deixar de estar na nossa companhia, para gáudio da língua e dos valores culturais portugueses em terras do oriente.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA lista de Sam Ho Fai Com o recente anúncio feito pelo Governo da RAEM da lista de agraciados com medalhas e títulos honoríficos e a próxima Cerimónia de Imposição das Medalhas e Títulos Honoríficos do ano 2024, agendada para 29 de Novembro, a lista das nomeações para os diversos Secretários do VI Governo da RAEM tornou-se um tópico de grande interesse para a sociedade. Acredita-se que as individualidades e entidades a condecorar sejam aquelas que são reconhecidas pela sua contribuição para o bem de Macau e pelo apoio prestado ao Governo da RAEM. Além disso, Sam Ho Fai respondeu às perguntas dos jornalistas respeitantes aos candidatos para os cinco cargos de Secretários do VI Governo da RAEM, enunciando os sete requisitos necessários às funções. Embora Sam Ho Fai tenha elencado os requisitos, ainda não é claro se a lista de candidatos a anunciar irá conquistar o apoio e a aprovação do público. Uma publicação mensal chinesa incluiu uma reportagem especial intitulada “Nós e Ho Fai”, que analisava o “conceito de governação” do novo Chefe do Executivo. Um dos colunistas convidados chegou mesmo a avaliar o desempenho de cada um dos actuais cinco secretários, assinalando as suas insuficiências e inadequações, o que é muito pouco habitual no meio das críticas positivas que costumam aparecer na comunicação social. Dado o actual clima político de Macau, trata-se, de facto, de uma tarefa difícil encontrar profissionais talentosos e respeitáveis para preencher cargos de grande responsabilidade. Sam Ho Fai já deve estar ciente da avaliação pública dos actuais cinco secretários, mas a aprovação final dos candidatos propostos será da responsabilidade do Governo Central. A partir da minha análise pessoal, penso que o actual Secretário para os Transportes e Obras Públicas, Raimundo Arrais do Rosário, deve provavelmente renunciar honrosamente ao cargo. Nascido em 1956, Rosário serviu directa ou indirectamente durante muitos anos o Governo português e o Governo da RAE. Ele é não só um funcionário público sénior como também alguém que conhece a arte da governação. Em termos de trabalho realizado, Rosário utilizou eficazmente as suas competências e adaptou-as às circunstâncias prevalecentes, tentando resolver os problemas que tinham sido deixados pelos Governos anteriores. Desde que tomou posse em 2014, o sentido de humor de Rosário e a sua vontade de assumir as responsabilidades solucionaram inúmeros conflitos, nomeadamente alguns problemas da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. Actualmente, os projectos que ele supervisiona, incluindo a habitação pública, o transporte de Metro Ligeiro e as construções na Zona A dos Novos Aterros Urbanos, estão basicamente encaminhados e está na hora de poder tirar algum tempo para si próprio e desfrutar de uma reforma confortável. Quanto ao Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, já que Macau está consistentemente estável sob a vigilância de olhos no céu, poderá seguir os passos do seu antecessor, Cheong Kuoc Vá, e assegurar firmemente outro mandato de cinco anos, durante o qual devem ser tomadas medidas para encontrar um sucessor adequado. O Artigo 5 da Lei Básica de Macau estipula “na Região Administrativa Especial de Macau não se aplicam o sistema e as políticas socialistas, mantendo-se inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes”. Ao longo dos últimos 25 anos, a par do progresso social, Macau tornou-se diferente, quer política quer economicamente. Sam Ho Fai, sendo o novo Chefe do Executivo de Macau e tendo ocupado por muito tempo o lugar de Presidente do Tribunal de Última Instância, defende e apoia naturalmente a Lei Básica, especialmente o Capítulo 3, que salienta os direitos e deveres fundamentais dos residentes. Quanto aos candidatos a novos secretários, além de terem de conquistar a confiança do Governo Central e de estar à altura dos sete requisitos estabelecidos por Sam Ho Fai, também devem ser capazes de cumprir e manter o espírito da Lei Básica de Macau.
Olavo Rasquinho VozesPrós e contras da transição energética ou presos por ter cão e presos por não ter Para quem segue com atenção os problemas associados às alterações climáticas, a transição energética é um assunto de primordial importância. É, sem dúvida, uma das maiores preocupações dos decisores políticos, pois a tomada de decisões nesta área afeta a vida quotidiana dos cidadãos e é frequentemente motivo de protestos contra o custo de vida, em grande parte devido ao aumento dos preços dos combustíveis. Por vezes esse aumento não está relacionado com custo na origem, mas sim com a aplicação de taxas tendo em vista incentivar a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e promover a transição para uma economia mais sustentável e neutra em carbono. Nos países democráticos a taxa de carbono é frequentemente tema de crítica por parte dos partidos da oposição. Quando um dos partidos alternantes nos governos das democracias sobe ao poder, recorre a esse tipo de taxas não só para o fim para que foram criadas, mas também para equilibrar as finanças do Estado. Quando na oposição, esses partidos voltam a criticar o aumento do preço dos combustíveis. Sem dúvida que os combustíveis fósseis deram, desde meados do século XVIII, forte impulso ao progresso da humanidade. No entanto, passados pouco mais de 250 anos, desde o início da revolução industrial, é discutível que o balanço entre os benefícios do uso desses combustíveis e os prejuízos seja positivo. Os prós são muitos, mas os contras poderão ser mais significativos, considerando que a sua utilização tem sido a causa do aquecimento global e do aumento da poluição da atmosfera, dos recursos hídricos e dos oceanos, levando à degradação do ambiente, pondo em causa a sustentabilidade do nosso planeta. Através da história da Terra, o sistema climático tem sofrido alterações significativas. Na realidade, durante muitos milhares de anos ocorreram vários períodos glaciais intercalados com períodos interglaciais, devido a vários fatores, tais como variações na inclinação do eixo da Terra, movimentos tectónicos, vulcanismo, variações do albedo (reflexão da radiação solar). Na transição dos períodos glaciais para os interglaciais a temperatura média do ar subiu alguns graus, mas essa transição demorou milhares de anos. A grande diferença entre as alterações que então ocorreram e as que estão a decorrer, consiste no facto que o aquecimento global estar a acontecer desde há menos de 300 anos, não restando dúvidas de que tal se deve ao aumento de concentração dos gases de efeito de estufa devido a causas antropogénicas. Quanto mais quente está a atmosfera, maior quantidade de vapor de água pode conter, o que implica maior quantidade de precipitação em algumas regiões. Noutras regiões, a evaporação é mais intensa, o que é a causa de perda de humidade do solo, o que facilita períodos de seca mais longos e frequentes. Por outro lado, a circulação geral da atmosfera não distribui essa maior quantidade de vapor de água de maneira equilibrada. Estamos, na realidade, perante uma situação de extremos – excesso de água e água a menos. Segundo o relatório da OMM “Estado dos Recursos Hídricos Globais” (“State of Global Water Resources”), os caudais dos grandes rios têm sofrido forte diminuição, o que implica redução da água disponível para as comunidades, agricultura e ecossistemas. Também os glaciares têm sofrido grande perda de massa. Tudo isto pode ser o reflexo do aquecimento global que continua a não abrandar. O ano transato, 2023, foi o mais quente à escala global, desde que há registos, e o segundo ano consecutivo em que os glaciares sofreram maior degelo. Foi também um ano de contrassensos, caracterizado por secas em extensas regiões e por inundações severas noutras. A transição de La Niña para El Niño contribuiu provavelmente para que tivessem ocorrido esses extremos hidrológicos. Perante esta realidade, os governos estão a tomar consciência de que é necessária a aceleração da transição energética, de modo a diminuir as emissões dos GEE. No entanto, apesar do Protocolo de Quioto, do Acordo de Paris e das já 28 Conferências das Nações Unidas sobre o clima (COP), a concentração na atmosfera desses gases não deixa de aumentar. As medidas já tomadas e as que são imprescindíveis a breve trecho, não são populares. Os movimentos populistas, essencialmente negacionistas, estão a aproveitar o descontentamento das populações menos esclarecidas. Provavelmente o avanço da extrema-direita à escala mundial tem sido, e poderá continuar a ser, potenciado pela necessidade de acelerar a transição energética. Esses movimentos aproveitam as legítimas preocupações dos cidadãos para propagandearem que as alterações climáticas são uma falácia e que, consequentemente, não é necessária a mudança de paradigma no que se refere aos combustíveis fósseis. Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas 2023/2024, cerca de 25% dos países estão sob regimes com características que se podem classificar como populistas. As Nações Unidas, através de algumas das suas agências especializadas e programas, tais como a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO) e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (United Nations Environment Programme – UNEP), continuam a insistir na necessidade de acelerar as medidas de mitigação das alterações climáticas e de adaptação a essas alterações. Mas as dificuldades são imensas. Os governos assinam acordos no sentido da redução dos GEE, mas, na realidade, continuam a autorizar novas explorações de petróleo. Também os atuais conflitos constituem obstáculos à transição energética, pondo em risco o cumprimento da Agenda 2030 da ONU, cuja concretização tem em vista alcançar um mundo mais sustentável e próspero. Esses conflitos atuam como um travão à sustentabilidade. Outro obstáculo consiste nos danos colaterais inerentes à exploração de energias renováveis sobre a natureza, nomeadamente no que se refere à biodiversidade, agricultura, exploração florestal, paisagem, etc. Por exemplo, o impacto dos geradores eólicos sobre as aves, o abate de árvores ou a utilização de terrenos agrícolas para a instalação de painéis solares contribuem para a degradação do ambiente. Outro exemplo de interesses que se chocam consiste nas altas taxas impostas pela União Europeia aos veículos elétricos exportados pela China. Em princípio até seriam bem-vindos, atendendo a que são significativamente mais baratos, o que ajudaria na transição energética. Mas os interesses dos fabricantes europeus de veículos elétricos seriam seriamente afetados, pois a mão de obra europeia é muito mais cara, o que implicaria uma queda drástica no seu fabrico e, consequentemente, o despedimento de largos milhares de trabalhadores da indústria automóvel. Por outro lado, as energias renováveis não são exploráveis ininterruptamente. Por exemplo, à noite não é possível a captação de energia solar; quando não há vento os geradores eólicos não funcionam; em situações de seca hidrológica a produção de energia hidroelétrica é escassa, etc. É, portanto, necessário o recurso a baterias. Estas, por sua vez, requerem para a sua fabricação minerais críticos, tais como lítio, cobalto, níquel, manganésio, grafite e terras raras, cuja extração e processamento podem implicar impactos ambientais significativos, com graves consequências sociais. Em Portugal já há projetos de extração de lítio, nomeadamente o Projeto Barroso, no norte do país, que tem levantado grande oposição por parte da população, devido aos impactos ambientais. Perante esta situação, os líderes políticos têm de decidir entre optar pela continuação da exploração dos combustíveis fósseis ou pela extração mineira dos minerais críticos. No primeiro caso, estarão em conflito com os movimentos ambientalistas e contribuindo para o aquecimento global, contrariando os compromissos assumidos em acordos internacionais (Protocolo de Quioto, Acordo de Paris, etc.). No segundo caso, terão a oposição das populações, agricultores, e ainda dos ambientalistas. Ou seja, presos por ter cão e presos por não ter. Na China dir-se-ia “进退两难” (jìn tuì liǎng nán). Meteorologista
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesRevogação da pena de morte Na antiguidade, um criminoso só podia ser executado depois do Imperador o ordenar. O Imperador, enquanto “Filho Celestial”, administrava o seu povo em nome de Deus, incorporando o conceito tradicional do “direito divino dos monarcas.” Hoje em dia, esse conceito já não existe. Nos países que ainda aplicam a pena de morte, o poder de revogar a sentença de morte foi transferido para as autoridades judiciais e tem de ser exercido de acordo com o Código Penal. O procedimento jurídico japonês obedece ao sistema de “três níveis e três tentativas”. Depois de o Supremo Tribunal deliberar, o réu tem o direito de requer novo julgamento se a sentença lhe desagradar. O Artigo 420, parágrafo 1, do Código Penal japonês estipula que o pedido de novo julgamento deve por regra assentar na apresentação de novos factos e novas provas que possam vir a inocentar o réu ou a reduzir a sua pena. Recentemente, um prisioneiro japonês condenado à pena de morte consegui um novo julgamento ao fim de 48 anos e foi finalmente inocentado. Foi o prisioneiro que passou mais tempo com uma condenação à morte em todo o mundo. O seu nome é Hakama Tianyan e tem 88 anos. Em 1966, foi acusado de roubar e matar o dono de uma fábrica de miso e quatro pessoas da sua família. Nessa altura, Hakamada, um jogador de boxe profissional, foi preso porque tinha uma mão ferida e o pijama sujo de sangue. Nos 20 dias que se seguiram, foi interrogado pela polícia numa média de 12 horas por dia e finalmente confessou o crime. Além disso, mais de um ano após o incidente, a polícia encontrou cinco peças de roupa manchadas de sangue nos barris de miso que estavam dentro da fábrica, que foram usadas como provas materiais do caso. Em Setembro de 1968, o Tribunal do Distrito de Jinggang considerou Hakamada culpado e condenou-o à morte. Em 1981, o Supremo Tribunal do Japão confirmou a sentença de morte. Hakamada pediu repetidamente, desde 1981, um novo julgamento. Teve de esperar 23 anos até ser julgado de novo e, entretanto, ocorreram muitas peripécias. Como acima foi referido, no Parágrafo 1º do Art. 420 do Código Penal, a razão que justifica um novo julgamento é o surgimento de novas provas que possam inocentar o réu ou reduzir a sua pena. Por conseguinte, a defesa de Hakamada mergulhou peças de roupa sujas de sangue num barril de miso, comparou-as com as peças originais e apoiou-se nesta experiência para requer um novo julgamento. Além disso, para apresentar novos factos, a defesa solicitou o acesso aos ficheiros para examinar as provas apresentadas pela acusação. No entanto, vale a pena salientar que no sistema de acusação japonês, as provas que não são utilizadas no processo não constam dos ficheiros. Este método beneficia sem dúvida os advogados de acusação porque podem escolher as provas mais incriminadoras e sonegar as outras. Por outro lado, a defesa do réu, como não tem acesso a todas as provas, não pode escolher as que lhe são mais favoráveis. Depois de Hakamada submeter muitos pedidos, o delegado do ministério público permitiu finalmente que a defesa tivesse acesso a todas as provas. No passado dia 8 de Outubro, a acusação declarou que não iria recorrer da decisão do Tribunal e Hakamada tornou-se o quinto prisioneiro japonês do período pós-guerra a ser inocentado depois de um novo julgamento. Em contrapartida, o sistema de investigação criminal de Hong Kong é mais transparente. Quando a polícia de Hong Kong investiga casos criminais, as provas que encontra, quer venham ou não a constar dos processos, são entregues à defesa para serem analisadas. Este método assegura que a defesa pode usar todas as provas a favor do réu. Claro que, desta forma, a acusação vê reduzidas as suas possibilidades de ser bem-sucedida, mas, ao abrigo do direito consuetudinário, o réu só pode ser condenado “para além de qualquer dúvida razoável”. A polícia entrega todas as provas à defesa antes do julgamento para garantir que o réu não seja condenado sem que se estabeleça que é culpado “para além de qualquer dúvida razoável”. Este método reduz também a possibilidade de virem a ocorrer julgamentos injustos. A possibilidade do caso de Hakamada ter acontecido em Hong Kong é extremamente baixa. O caso de Hakamada foi sem dúvida para os japoneses condenados à pena de morte uma luz ao fundo do túnel, dando-lhes esperança que, através de novos julgamentos, possam vir um dia a ser exonerados e terem as penas comutadas. Mas também aumentou a pressão sobre os órgãos judiciais japoneses em relação a novos julgamentos. Tudo tem seus prós e contras. Os novos julgamentos dão esperança aos condenados à morte de verem as suas penas exoneradas ou reduzidas, mas é um processo frequentemente muito longo e difícil. Para os condenados à morte, a longa espera e a incerteza sobre a decisão que será tomada no novo julgamento são simultaneamente um raio de esperança e uma forma de tortura. Este processo vale a pena? Isso vai depender das escolhas e da atitude de cada um destes prisioneiros. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO papel da história (Continuação) Mas cada ciência, a começar pela geometria e pelas ciências naturais, necessita de uma higiene histórico-filológica própria, quer no que respeita aos contextos sociais que determinaram essa vertente particular do pensamento e da investigação, quer no que respeita ao desenvolvimento dialéctico do seu conhecimento específico, segundo a dicotomia entre história “externa” e “interna” intuída em 1668 por Leibniz a propósito da história do direito. Esta tarefa não pode ser realizada de forma interdisciplinar, pois não se trata de comparar as duas perspectivas, histórica e científica, em paralelo, mas de historicizar a ciência e, assim, dominar seriamente ambas. Isto requer a formação de disciplinas especiais, como a história do direito e de outras ciências. Em si mesmo, o procedimento científico não é refractário à historicização e os textos populares sobre matemática, física e biologia nunca deixam de ilustrar os caminhos internos e externos que conduziram aos conhecimentos e problemas actuais. A maior resistência vem, no entanto, das ciências sociais, porque aqui vigora o princípio “protestante” e democrático do “livre exame”. Qualquer pessoa pode folhear o “Grande Livro da História” para retirar as inspirações e as lições de que necessita. E se a história, como dizia Cícero, é sobretudo “narração”, e se os historiadores são, na sua maioria, pedantes e desleixados, é preferível que a história seja tratada por profissionais da comunicação. O mesmo se aplica à literatura estratégica e geopolítica, uma combinação, mais eclética do que interdisciplinar, de diferentes saberes e perspectivas, que conhecemos e praticamos hoje em dia, sobretudo na declinação particular impressa pela não-ficção geo-imperialista e pelo jornalismo estratégico-militar do século britânico. O próprio termo “estudos estratégicos” foi formalizado em 1958 com a criação, em Londres, do Instituto Internacional para os Estudos Estatégicos (IISS), seguido em 1962 pela criação, em Washington, do similar Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais similar (CSIS) da Universidade de Georgetown. Abordagens que na Europa da Guerra Fria quase não se ouvia falar nos círculos militares e diplomáticos, mas que depois de 1992 também se difundiram entre nós nos meios de comunicação social, nos conselhos governamentais e na cultura militar, em resultado tanto do terceiro-mundismo neoconservador como das guerras neovitorianas do pós-Guerra Fria. E, com quarenta anos de atraso em relação às universidades americanas, também as nossas europeias incorporaram cursos de geopolítica e de estudos estratégicos, enquadrando-os no domínio da ciência política, como uma especialização das “relações internacionais” e, em particular, dos “estudos de segurança”. Mas esta tentativa de anexar, ou melhor, de subjugar a não-ficção “geopolítica” e a jurisprudência (política, estratégica, económica, género, etc.) à ciência política acabou por distorcer e empobrecer ambas. Com todas as devidas excepções, o efeito prático da proliferação de cursos académicos de estratégia e geopolítica tem sido o de encorajar a ideia de que, para abordar questões que intersectam uma pluralidade de competências, é suficiente copiar e replicar hibridações anteriores. Assim, tendo afastado a transferência e a modéstia, muita da produção autorreferencial da estratégia e da geopolítica parece ser uma espécie de “revolta” que, ao grito de “viva a anarquia! “impecou os filósofos políticos e especialistas em geoestratégia desde o século XVII até ao presente, e inflamou livremente os tradutores de Sunzi a Clausewitz, mastigando os seus fetiches e cuspindo as suas frases. O passo seguinte foi a anexação bárbara da ciência política, da história e do direito (também da economia e da sociologia, mas por estas últimas devemos sentir menos compaixão) por esta sub-literatura. Com cenas revoltantes de pilhagem dignas de soldados putinianos, despojos incomensuráveis de conceitos descontextualizados em vez de máquinas de lavar desmontadas. E assim se sucedem as saraivadas de exemplos históricos, analogias e anacronismos, arrastados, talvez das reminiscências inconscientes dos peplums de Hollywood, na lixeira de escavações historiográficas anteriores. Aquilo a que o falecido general Poirier chama, com cândido orgulho, a sua “biblioteca estratégica universal” e a que um filólogo crítico contemporâneo de Políbio chamou uma “floresta sem caminhos”, acrescentando que era precisamente a tarefa titânica da historiografia pô-la em ordem. Mas mesmo nisto não há nada de novo. Quando a Santa Aliança liberal que administra o Ocidente há trinta anos se espelha na síntese ateniense entre democracia e imperialismo, repete, sem querer, uma das analogias históricas que sustentaram o triunfalismo e a boa consciência do século britânico. A história é sempre história contemporânea, mas não no sentido que Benedetto Croce pretendia, mas sim no da crítica de Nietzsche (Segunda Actualidade) à história monumental, isto é, ao culto pedagógico e tendencioso de uma determinada memória. Como ensina Santo Agostinho sobre o tempo, a história é também experiência subjectiva, não conhecimento. Nada pode ser descartado dela, nem mesmo a pilhagem bárbara da estrategoteca. Mesmo o que é inconsciente não acontece por acaso, tudo, todos os aspectos contêm um sentido a ser revelado. Esta é talvez a semente de sabedoria contida no “passado presente” de Gramsci e na “profecia sobre o passado” cunhada por Aristóteles para definir o rito catártico de Epiménides e que Santo Mazzarino erigiu como emblema do trabalho historiográfico. A única história que posso afirmar conscientemente conhecer, pelo menos em parte, é a da mudança que o trabalho historiográfico lentamente produziu em mim, e a que por vezes sou vangloriosamente tentado a chamar “consciência histórica”. Um sentido simultaneamente de total estranheza e de total partilha, de dor e de esperança infinitas, de ver não só o passado no presente, mas o presente como se já fosse passado.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO papel da história “The history that transcends time is what is important such as the history of ideas, beliefs, and traditions that are non-tangible.” Dean Aly A produção historiográfica, em crescimento exponencial graças à Net, escapa à procura social de sentido e produz esquemas intemporais, repertórios de juízos esmagados no presente. O festival do “geo-plus” cruzou-se com a ciência política e os seus efeitos devastadores. Segundo a política externa, a tendência de décadas para desvalorizar os cursos de história nas universidades americanas (nalgumas europeias) põe em risco a segurança nacional, porque ameaça produzir uma geração de políticos e consultores cuja visão do mundo é cada vez mais, e perigosamente, superficial. Não só não está em declínio, como, graças à Internet, está a crescer exponencialmente. Existe, talvez, uma correlação entre os dois fenómenos, porque quanto mais se escreve e aparece, menos se ensina e menos se estuda. Mas a crise do ensino da história não é nova, pois há trinta anos, já se refutava o preconceito de que a história era mais bem apoiada e ensinada nas escolas. E, embora os políticos e os conselheiros de 1914 soubessem certamente mais de história (que era mais curta do que em 2024) e de capitais (muito menos do que hoje), podemos dizer que eram realmente menos “superficiais” e “sonâmbulos” do que os seus homólogos actuais? Os quadros académicos e os financiamentos públicos são certamente indispensáveis para a qualidade científica da historiografia, mas não garantem a originalidade e a prodigalidade. Quanto ao ensino escolar da história, a sua função é a educação nacional ou cívica, e o sistema permite as contra-histórias, não o espírito crítico. Lembram-nos a intrincada história dos manuais escolares do Estado, bem como o ataque de Lynne Cheney (1994) ao “National History Standards”, parte dos “critérios nacionais” para o ensino politicamente correcto dos estudos sociais; ou a história da “EuroClio”, a associação europeia de professores de história (educadores), fundada em 1992 e co-financiada pela União Europeia, que visa criar materiais educativos transnacionais e narrativas históricas novas e mais inclusivas. E se o ensino escolar e universitário da História está hoje a ser definido, é apenas porque a finalidade social é melhor assegurada pelos media, produtores e vendedores de história monumental, antiquariado, memórias e jornalismo de investigação, com crescente interacção e sinergia académica. O efeito prático é iludir a exigência social de história (que é também uma exigência política inconsciente e potencialmente subversiva de sentido), orientando-a para um passado amputado de devir e reduzido a um repertório de juízos, figuras e silogismos retóricos (princípios, leis, lições, analogias, exemplos), material de erudição, entretenimento, curiosidade, identificação e passatempo. Esta não é uma forma completa, mas a forma natural como a história é não só percepcionada pelo senso comum, mas também necessariamente concebida e estudada pelo método científico. Quanto ao senso comum, a ideia do presente como ponto culminante e fim da história precede as proclamações hegelianas, socialistas e liberais porque, felizmente, o instinto de sobrevivência prevalece sobre a percepção crepuscular do devir e, portanto, da nossa relatividade e transitoriedade. Essa tomada de consciência súbita de que se está sentado, maldito, entre os outros malditos é, felizmente, uma experiência muito rara. Por isso, a certeza biológica de sermos o apogeu e o fim da história não só não mata a historiografia académica, como a utiliza como certificação científica, melhor se crítica e desperta, da história pública progressista, que projecta o nosso presente tanto para trás, no caminho percorrido, como para a frente, nas trajectórias e ameaças residuais, com a hagiografia anexa dos precursores e pioneiros e a profilaxia das regurgitações, resistências, revisões. E revoluções. A incorporação da historiografia científica nas visões presentocêntricas da história não exige, em si mesma, nenhuma profissão de fé particular, porque a profissão do historiador consiste, em última análise, na reconstrução rigorosa e controlável do passado e da sua documentação. A contínua releitura crítica das fontes conhecidas, a descoberta de novos critérios de interpretação e a “invenção” de novas fontes, o teste de hipóteses e o apuramento de questões e dados controversos são rotineiros, e o sistema sabe como suavizar inovações excessivamente perturbadoras. As disputas académicas, como o “Historikerstreit” alemão, as guerras históricas australianas e canadiana ou a “fatwa” antirrevisionista dos “guardiões da memória”, bem como as voltas dadas pelo alargamento de perspectivas ou pelo justicialismo histórico em que se baseia a cultura canónica, têm a ver com avaliações éticas e ideológicas subjectivas e/ou com a correcção científica, e não com métodos científicos para determinar como, propriamente, as coisas aconteceram. A maioria dos historiadores é demasiado verificadora de hipóteses para o como as coisas aconteceram. Além disso, a maioria dos historiadores é demasiado céptica ou tímida para se envolver em generalizações (como a extracção de princípios, constantes, regularidades, tendências) ou na crítica de interpretações e na descoberta de novos temas, abordagens (como a história global) e paradigmas (como as aplicações historiográficas de viragens culturais e linguísticas). Na maior parte das vezes, somos sigma (segundo o eufemismo inclusivo que nos é atribuído a nós, nerds) muito poucos entre nós são alfas capazes de se manterem na ribalta, lançando-se nos juízos e antecipações que as pessoas acabam por esperar da História, plácida mestra da vida e/ou cassandra da desgraça. De facto, a tarefa de extrair generalizações, sentenças e antecipações é o objectivo das ciências sociais, contidas em embrião no género historiográfico inventado por Heródoto e “normalizado” (não sem controvérsia) por Tucídides, do qual se ramificaram gradualmente. (continua)
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesTrabalho para estudantes não residentes No passado dia 18, o Governo de Hong Kong anunciou oficialmente que irá implementar um programa que permite aos estudantes vindos de outras localidades trabalharem na cidade sem qualquer tipo de restrições. Esta medida vai ao encontro do programa político recentemente divulgado pelo Governo, que pretende fazer de Hong Kong um local de eleição para a formação de estudantes oriundos de outras regiões. Este programa destina-se a estudantes que não sejam residentes permanentes de Hong Kong e que frequentem Universidades acreditadas, a fazer licenciaturas que têm geralmente a duração de quatro anos. Esta decisão é uma ramificação da política introduzida pelo Governo em Novembro de 2023. Simultaneamente, os estudantes de pós-graduação não residentes têm autorização para trabalhar, sem restrição de horário nem de funções. O Executivo afirmou que devido à falta de pessoas qualificadas em Hong Kong, esta medida pode atrair quem tem mais capacidades e aumentar o seu desejo de se fixar na cidade depois da licenciatura, podendo ainda vir a atrair mais estudantes internacionais a formarem-se em Hong Kong. Os estudantes internacionais têm a possibilidade de diversificar os seus conhecimentos ao ficarem expostos a uma outra cultura e a um outro estilo de vida. Se a região de Hong Kong puder proporcionar mais oportunidades de emprego aos estudantes que vêm de fora eles terão mais vontade de se fixarem após a formatura. E o que pensam os pais destes estudantes da nova política do Governo de Hong Kong? Imaginemos que depois dos filhos terem terminado o ensino secundário, os enviam para Hong Kong para se licenciarem. A seguir, podem querer fazer o mestrado. Os programas de mestrado de Hong Kong são divididos em dois tipos e têm uma duração que varia de um a dois anos. Neste caso, os estudantes completam a sua formação num período de cinco a seis anos. Se os resultados forem muito bons, os jovens poderão querer fazer o doutoramento, o que implica uma permanência de nove anos na Universidade. Durante este período, se os estudantes puderem trabalhar a tempo parcial em Hong Kong, não só podem adquirir experiência e desenvolver as suas capacidades competitivas, como também podem ter oportunidade de virem a obter a residência na cidade. Esta medida é, sem dúvida, atractiva. Em Macau, a taxa de natalidade diminuiu nos últimos anos, a população está a envelhecer e há falta de mão de obra. Devido a estas circunstâncias, deverá Macau considerar a adopção de políticas semelhantes? Macau e Hong Kong têm políticas diferentes. Em Macau, mesmo ao fim de mais de sete anos de trabalho, não é possível obter residência permanente. Embora esta política não seja favorável aos trabalhadores vindos de fora da região, protege as oportunidades de emprego dos residentes de Macau. O mesmo se aplica aos estudantes internacionais que se formam na cidade. Macau tem “Regulamentos para a Proibição do Trabalho Ilegal” para lidar com esta questão. De um modo geral, os estudantes não residentes têm de ter uma permissão especial emitida pela Polícia de Segurança Pública, que os autorize a permanecer e a estudar em Macau, durante o período estipulado. Este documento não é uma permissão de trabalho. Os estudantes não residentes não têm autorização para trabalhar em Macau, durante o período em que frequentam a Universidade. O programa universitário pode ser considerado um “estágio” e o estágio pode ser equivalente a trabalho, mas isso é uma situação que não pode ser generalizada. Portanto, em Macau, ao contrário de Hong Kong, os estudantes não residentes não podem trabalhar, nem a tempo inteiro nem a tempo parcial. Para perceber se ao autorizar os estudantes não residentes a trabalhar iremos resolver o problema do déficit do mercado laboral é necessário fazer estudos mais profundos. Existe ainda mais um ponto a salientar. A Portaria para o Emprego de Hong Kong estipula claramente que um empregado que trabalhe para o mesmo patrão durante pelo menos quatro semanas consecutivas, com um horário mínimo de 18 horas semanais, fica abrangido por um “contrato a termo incerto” e pode desfrutar dos benefícios que constam na Portaria para o Emprego. Estas pessoas são consideradas “trabalhadores a tempo inteiro” em Hong Kong, ao passo que aqueles que não reúnem estes requisitos são considerados “trabalhadores a tempo parcial”. A Legislação Laboral de Macau não especifica a definição de trabalhadores a tempo parcial. Se em Macau os estudantes não residentes forem autorizados a trabalhar a tempo parcial, poderá ser necessário definir melhor este conceito. O que é necessário é a sociedade de Macau manter uma mentalidade aberta, considerar cuidadosamente a viabilidade e o impacto de cada sugestão e tomar decisões baseadas na situação real da região. Não deve seguir cegamente as tendências e copiar o que é feito noutros locais. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal VozesGrande Lisboa a ferro e fogo Violência e detenções em vários Concelhos Quando nós éramos adolescentes já ouvíamos falar nos bairros da lata onde viviam em condições precárias muitos imigrantes das ex-colónias portuguesas. E recordo-me de o ‘Diário de Lisboa’ apresentar em manchete um título sobre a situação que dizia “Barril de Pólvora”. Passaram décadas e os bairros com gente oriunda de África pululam por toda a área metropolitana de Lisboa e da Margem Sul do Tejo. Na semana passada assistimos ao caos nas ruas de muitos Concelhos com actos de violência nunca vistos. Até sábado passado foram cinco noites de tumultos. A “bolha” rebentou parque um agente da polícia disparou contra um homem negro e este morreu. De imediato levantou-se uma onda de revolta de certos grupos de imigrantes que vivem nesses bairros estigmatizados e degradados. Antes de mais, dizer-vos que os políticos portugueses deviam ter vergonha do espectáculo verbal ignóbil que têm levado a cabo. O partido neofascista Chega, pela voz de André Ventura teve o desplante de pedir que o agente policial que matou um cidadão fosse condecorado e o seu líder parlamentar afirmou que “se a polícia matasse mais teríamos mais ordem no país”. Os dois já foram alvo de uma queixa-crime de um grupo de cidadãos. Só por isto, podemos concluir da provocação que André Ventura provocou para que os distúrbios alcançassem o inimaginável. Por outro lado, o Bloco de Esquerda defendeu que em Portugal existe racismo claro e que as Forças de Segurança sempre trataram com violência os cidadãos moradores nos bairros sociais. Toda a semana não se falou de outra coisa e até o Presidente da República se pronunciou dizendo alguns disparates, porque apelou à eficácia da polícia, como se a PSP nunca tivesse actuado em casos difíceis. Os distúrbios violentos levaram ao roubo e incêndio de três autocarros da Carris, veículos que faziam uma falta enorme à maioria dos moradores desses bairros que diariamente tem de se deslocar para o trabalho e regressar a casa. Dezenas de automóveis ardidos, centenas de caixotes do lixo e mobiliário urbano foram queimados. Ouviram-se muitos tiros durante duas noites e as populações desses bairros viveram momentos de pânico. A situação durante três dias esteve completamente descontrolada. Nas redes sociais lemos apelos desses grupos com alguma índole de tom terrorista. Numa das noites informaram-nos que até no bairro de Campo de Ourique no centro de Lisboa estavam caixotes de lixo e paragens de autocarro a arder. Deslocámo-nos ao locar para confirmar. Deparámo-nos com alguns jovens, uns deles encapuzados, e a conversa foi tensa: – Ouve lá ó cota, o que é que queres daqui? – Vou apenas a passar para casa. – Ouve meu, descola rápido… antes que leves uma facada! – Calma, eu sou casado com uma senhora negra. – Se é assim, tudo bem, nada de bocas e segue rápido para casa. A violência foi muito grave. No bairro do Zambujal, na Amadora quando roubaram um dos autocarros esfaquearam três passageiros e em Loures ao pegarem fogo a outro autocarro deixaram o condutor a arder e está no hospital em estado crítico. Os directores da PSP tiveram um encontro com os jornalistas, mas pouco foi adiantado, a não ser que vão passar a ser mais duros. No entanto, deixo-vos uma informação em primeira mão a nível de toda a comunicação social portuguesa: a PSP na noite de quarta para quinta-feira passada conseguiu fazer abortar uma acção terrível onde certos grupos iriam destruir todas as montras das avenidas da Liberdade e de Roma, em Lisboa. Para terem uma ideia da organização desses grupos violentos, os distúrbios verificaram-se nos bairros de Zambujal, Portela e Cova da Moura, na Amadora, em Odivelas, Camarate, Loures, Queluz, Carnaxide, Campo de Ourique, Massamá, Lumiar, Carnide, São Domingos de Rana, Oeiras, Sintra, Damaia, Cascais, Almada, Barreiro, Seixal e Costa de Caparica. Não temos dúvidas que à semelhança de França e de outros países com muita imigração, o problema social é muito grave e os governos têm descurado soluções mínimas para reduzir as precárias condições de vivência dessa gente. Não chega o primeiro-ministro Luís Montenegro dizer que vai reunir com os autarcas e associações de moradores. O que o chefe do executivo devia fazer era sentar-se com o ministro das Infraestruturas e decidir que em todos esses bairros, onde chove dentro das casas, se irá restaurar as casas, criar jardins, parques infantis, creches, centros de saúde e imóveis para entretenimento, formação cultural e lazer. Esses bairros têm de ter dignidade e condições úteis para quem lá reside, especialmente para as crianças e adolescentes. E vocês perguntarão: e com algo tão benéfico como se faz o tráfico de droga? Pois é, mas não podemos esquecer que o tráfico de drogas, de seres humanos, de armas e de tabaco faz-se em qualquer lado de qualquer cidade portuguesa, seja Lisboa, Porto, Coimbra, Évora ou Portimão. Para cúmulo de tudo isto foram autorizadas manifestações para o sábado passado ao Chega e aos moradores dos bairros com problemas para o mesmo local, o que poderia ter sido uma tragédia, mas uma das manifestações mudou o local. O importante é mudar o paradigma miserável em que os imigrantes vivem e a pressão que sofrem constantemente pelas forças policiais e outras autoridades, mesmo no âmbito da Função Pública. O que não podemos negar é que em Portugal existe profundamente a prática de racismo.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesQuatro votos em branco Dos 398 boletins de voto depositados na urna pelos membros da Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo, quatro estavam em branco. No entanto, embora a percentagem de votos em branco não seja alta não deixa de ser significativa. Existe um antigo ditado chinês que reza o seguinte, “a complacência provoca o mal, ao passo que a humildade traz o bem”. Sam Hou Fai estava indubitavelmente destinado a vencer no dia da votação, e não teria constituído qualquer surpresa se todos os votos lhe tivessem sido favoráveis, já que isso faria parte da meticulosa concepção do processo eleitoral. No entanto, os quatro votos em branco serviram para revelar algumas possíveis questões subjacentes. Outro ditado chinês diz o seguinte, “ninguém é perfeito e o ouro não pode ser 100% puro”. Esta afirmação reflecte a realidade dos resultados da votação. Os quatro votos em branco podem relacionar-se com o “espaço em branco” que se encontra na composição da pintura chinesa. Depois da eleição de Sam Hou Fai, os jornalistas locais louvaram a validade dos resultados, no entanto ainda se sente penosamente a falta de uma análise dos dados mais equilibrada. À primeira vista, a economia de Macau continua estável, dando origem ao PIB per capita mais elevado da Ásia e ao segundo maior do mundo. No entanto, face à onda de integração de Macau na Zona da Grande Baía, o crescente número de lojas que fecham as portas nas áreas residenciais da cidade são testemunhos das dificuldades que enfrentam as pequenas e médias empresas. Para além de ser necessário ter em conta o alargamento do fosso entre pobres e ricos, também é preciso aumentar os níveis de felicidade dos cidadãos de Macau. Estas questões foram deixadas em aberto pelo anterior Executivo e passarão a fazer parte da agenda de Sam Hou Fai, a partir do momento em que tome posse. Em Hong Kong, desde que a “Lei de Segurança Nacional da RAEHK” entrou em vigor em 2020 e, no início deste ano, a Portaria para a Salvaguarda da Segurança Nacional da RAEHK, o Governo local envidou cada vez mais esforços para que a região transitasse da “estabilidade para a prosperidade”. O tema escolhido pelo Chefe do Executivo para o seu discurso de apresentação do programa político de 2024 foi “Reformas para Incrementar o Desenvolvimento e Construir um Futuro Conjunto”. Se compararmos com o tema de 2023 que foi “Uma Economia Vibrante Para Uma Comunidade Solidária”, aparenta que Hong Kong ainda está a uma grande a “distância” de atingir a meta da transição da “estabilidade para a prosperidade”. Voltando a Macau, os quatro votos em branco para a eleição do Chefe do Executivo podem corresponder a certas exigências e expectativas. Na minha opinião, se Sam Hou Fai conseguir completar as seguintes quatro tarefas depois de tomar posse, poderemos vir a preencher os quatro espaços em branco: Nomear as pessoas certas: melhorar a eficiência dos sistemas administrativo, legislativo e judicial para criar um Governo orientado para o serviço público. Associar o PIB de Macau ao Índice Nacional de Felicidade (RNB): garantir que os cidadãos possam beneficiar do crescimento económico de Macau. Construir uma sociedade regida pela lei e salvaguardar a segurança nacional. Evitar que a lei seja usada como ferramenta para silenciar pessoas com opiniões diferentes, e procurar a unidade no seio da diversidade garantindo assim a segurança nacional e a estabilidade. Focar Macau no projecto da Zona da Grande Baía: capitalizar ao máximo as suas características únicas para que a região venha a ser uma componente importante do desenvolvimento nacional da China. Os quatro votos em branco dão a Sam Hou Fai espaço para vir a causar impacto.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA guerra pós-moderna (II) “Casi inmediatamente, la realidad cedió en más de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.” Ficciones Jorge Luiz Borges (Continuação) O princípio da realidade diz que a Grande Guerra é uma guerra de transição hegemónica. Em jogo está a hegemonia americana. Casus belli profundo que é a fraqueza dos Estados Unidos, percebida (e explorada), por enquanto, pelos russos e iranianos. Amanhã, talvez pelos chineses. O princípio da irrealidade diz que a Grande Guerra não é um conflito sistémico. O que está em jogo é a resiliência das democracias e dos valores ocidentais. Casus belli é a loucura de líderes autoritários como Putin (mas também Netanyahu), o antissemitismo e o ressurgimento do terrorismo islâmico (Hamas), bem como a violência ontológica do regime iraniano. Solução de acordo com o princípio da irrealidade é a derrota total da Rússia na Ucrânia (retirada do Donbas) sem intervenção directa da NATO e entrada de Kiev na família democrática europeia; libertação de Gaza do Hamas, afastamento de Netanyahu do governo de Israel e prosseguimento da solução dos dois Estados; mudança de regime em Teerão, com o derrube dos aiatolas pelos movimentos de contestação (primavera iraniana). Este breve esboço ilustra o hiato entre as palavras e as coisas. Resulta de um erro metodológico fundamental, nomeadamente a incapacidade de nos colocarmos no lugar do inimigo e de compreendermos o ponto de vista do outro. Sem isso, não há estratégia. E as histórias tomam conta da realidade, destruindo também qualquer raciocínio baseado em factos e condições objectivas. Dois exemplos, um centrado nas questões materiais e outro no desrespeito pela opinião dos outros. Primeiro, o de acordo com o princípio da irrealidade, a guerra na Ucrânia deve ser resolvida com a retirada da Rússia do Donbas sem intervenção atlântica. Isto é considerado um imperativo moral, decorrente da violação do “direito internacional” por Putin. Por conseguinte, deve ser oferecido a Kiev todo o apoio de guerra necessário, tanto em termos de armas como de munições. À luz do princípio da realidade, esta solução parece improvável. Não tanto porque faltem armas aos ucranianos. Mas porque há falta de homens capazes de as utilizar. A narrativa valorativa e moralista sobre a guerra segundo a qual esta é, antes de mais, um conflito de visão do mundo fez-nos esquecer um simples facto da realidade e de que para combater, são necessários seres humanos dispostos a morrer em combate. São estes que estão a faltar em Kiev. E não porque os ucranianos não queiram combater, mas porque os que já estão a combater e são cada vez menos devido à dinâmica de fricção da guerra. Resultado e de acordo com os factos, o objectivo fixado pelo princípio da irrealidade implicaria a entrada dos países da NATO no conflito. Uma hipotética contraofensiva levantada de novo por Zelensky só poderia ser uma contraofensiva atlântica. Realidade versus narrativa. Estamos preparados para lidar com ela? Segundo exemplo, a solução de dois Estados na Terra Santa. Uma “solução” histórica, frequentemente repetida pelas elites ocidentais. Uma posição aparentemente equilibrada que tem também em conta o ponto de vista dos palestinianos. Mas será que é mesmo assim? Ou será mais uma história que nos estão a contar? Se virmos bem, estes últimos tão exasperados com os abusos de que são alvo por parte do Estado judaico prefeririam tornar-se cidadãos israelitas (como a minoria árabe), para terem pelo menos alguns direitos reconhecidos. E isto aplica-se aos palestinianos da Cisjordânia. Os de Gaza viveram de facto num outro Estado, governado pelo Hamas, até 7 de Outubro de 2023. Como é que isso aconteceu? Além disso, a narrativa dos dois Estados dá como certo não se sabe bem em virtude de quê, que estes dois Estados não se guerreiam, que o Estado palestiniano confia no Estado judeu (e vice-versa) e que, de repente, surge uma tal amizade entre os dois povos que as provocações, os atentados terroristas e as tensões de vária ordem são impossíveis. Como se as nossas histórias pudessem apagar setenta anos de história com um só golpe. Por fim, uma pequena experiência de pensamento e imaginem pedir a um palestiniano e a um israelita que desenhem as fronteiras do seu Estado. É muito provável que produzam o mesmo mapa. Assim, a solução dos dois Estados é irreal porque é impossível de traçar, a não ser que se queira deixar de fora os desejos de um ou de outro lado. Mas, nesse caso, voltaríamos à estaca zero. Isto no que respeita a alguns casos específicos. Mas voltemos à Grande Guerra enquanto tal. Por que razão insistimos no seu carácter sistémico? Simples, porque se trata de actores não ocidentais. Os russos, os chineses e os iranianos depois de um esforço para penetrar na alma americana e através da observação de certas tendências históricas de curto e longo prazo concluíram que os Estados Unidos já não têm força nem vontade de manter o seu posto mundial, extremamente dispendioso. Isto não significa que estes actores não recorram a narrativas retóricas. Pensemos no mito do “Sul Global”. Uma expressão oximorónica de como pode o Sul ser global? Um vazio sem sentido, comparável a tantas construções de tipo ocidental. Mas a diferença reside no facto de esta narrativa se enquadrar numa estratégia revisionista mais vasta, que se baseia em factos incontestáveis, como o cansaço americano, a fraqueza europeia e as tendências demográficas inexoráveis. É um significante vazio, é certo, mas capaz de gerar consensos, porque é capaz de coagular em torno de si aspirações e lutas que decorrem de questões reais e não imaginárias, conseguindo assim gerar alguma forma de consenso e hegemonia cultural. Tal como, após a II Guerra Mundial, a narrativa do “american way of life” pareceu irresistível no Ocidente europeu. Em termos práticos, o Ocidente não tem estratégia porque se perde nas histórias, e perde-se nas histórias porque não tem estratégia. Um círculo vicioso do qual é difícil sair. Ao dividirmos o mundo em bons e maus e ao insistirmos no carácter dos líderes inimigos, criámos para nós próprios um universo fictício que não só nos torna vulneráveis, como também nos impossibilita de abordar o caos do novo mundo. Em conclusão, aplica-se a parábola contada por Marx no início de “A Ideologia Alemã” de que era uma vez um orador que imaginava que os homens se afogavam na água apenas porque estavam obcecados com o pensamento da gravidade. Se tivessem tirado essa ideia da cabeça, mostrando, por exemplo, que era uma ideia supersticiosa, uma ideia religiosa, ter-se-iam libertado do perigo de se afogarem. Durante toda a sua vida, lutou contra a ilusão da gravidade, de cujas consequências nefastas cada estatística lhe oferecia novas e abundantes provas. Tal como o aluno do liceu descrito pelo filósofo de Trier, o Ocidente pensa que só pode tratar da Grande Guerra com base nas suas próprias histórias e narrativas, marcando qualquer análise que tome o seu ponto de vista como conspiratório ou conivente com o inimigo. Mas não basta libertar-se do pensamento da gravidade ou da natureza sistémica da Grande Guerra para evitar os seus efeitos. A solução deve ser outra. Para Marx, tratava-se de voltar a fazer assentar a dialéctica sobre os pés e não sobre a cabeça, como fizera Hegel. Nós, parcialmente inoculados contra os argumentos metafísicos, contentar-nos-íamos com um resultado mais modesto, o de fazer com que a geopolítica se apoie de novo nos pés do princípio da realidade e não na cabeça do princípio da irrealidade. Um ponto de partida para repensar o fim da Grande Guerra. Assim, o seu fim.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO Consentimento Entusiástico Nos últimos anos, o debate sobre consentimento sexual tem sido intenso. Depois de todos os escândalos de assédio sexual, o consentimento é agora encarado de forma bem mais complexa. Uma abordagem mais contemporânea, já discutida na cultura popular e televisiva, é a do consentimento entusiástico. Este conceito visa complexificar o que se entende por consentimento. Baseia-se no seguinte: o sexo e todas as interações íntimas devem ser baseadas numa resposta clara e entusiástica de vontade, em vez de simplesmente não haver resistência. O consentimento entusiástico exige uma atenção cuidada à interação sexual, à forma como os corpos se sentem, e ao nível de disponibilidade e vontade durante a interação. Isto não significa que todas as interações íntimas se resumam a ambas as partes estarem igualmente interessadas e comprometidas com a experiência íntima, sem qualquer dúvida, pressão ou hesitação. O que importa é que ambas as partes estejam sintonizadas com possíveis mudanças, e que questionem a pessoa com quem estão: “isto sabe bem?”, “como te sentes?”. O consentimento, o simples, é preconizado pelo sim. Mas o sim pode ser mecânico ou resultar de pressões sociais ou emocionais. Pretender que o consentimento seja entusiástico para melhor aferir se uma relação sexual foi abusiva ou não, é apenas reforçar que o sim precisa de contextos, predisposições emocionais e comunicação para que se refira a uma intenção genuína. Este é um modelo para garantir que as relações íntimas sejam seguras, respeitosas e prazerosas para todas as partes envolvidas. Acima de tudo, serve para assegurar o respeito pela autonomia pessoal, permitindo uma comunicação clara e inequívoca sobre o que se quer e o que se sente confortável em fazer. As preocupações de que o sexo deixe de ser espontâneo e divertido são infundadas. Querer estar presente e atento à forma como se envolvem reforça relações de confiança e maior intimidade. O sexo não “acontece” simplesmente; ele é o resultado de uma negociação, que é verbal e física. Poderá ter existido a fantasia de que, em relações heterossexuais, as mulheres precisariam de alguma “persuasão” para se envolverem no sexo. E isso criava uma situação delicada: os homens achavam que este era um passo necessário, e as mulheres sentiam-se pressionadas, ficando o consentimento perdido algures no meio desta confusão. No mundo da libertação sexual, este é um cenário cada vez menos plausível, diria o meu otimismo. Não só porque as representações de género são cada vez mais complexas e matizadas, como também porque a natureza das relações e a forma como se encara o sexo têm mudado. Idealmente, o sexo é cada vez mais entendido como a oportunidade de sentir prazer entre duas pessoas, e terá de existir uma disponibilidade física e emocional para isso. Há quem, contudo, tenha criticado o facto de o consentimento entusiástico ainda depender de “pistas” sobre como as pessoas se sentem e se encontram disponíveis. E, de facto, a avaliação destas “pistas” pode não ser suficiente. Para pessoas que se identifiquem como assexuais, bem como para a comunidade BDSM, a questão do consentimento já há muito é trabalhada: o uso da palavra para explicitar limites é o melhor recurso para evitar mal-entendidos. Esta questão do consentimento entusiástico é particularmente importante junto dos jovens que estão na exploração da sua sexualidade. O conceito representa uma forma necessária de encarar as relações íntimas. Ao colocar a comunicação, o respeito e o entusiasmo no centro da experiência sexual, todos beneficiam. Não é apenas uma nova regra ou exigência, mas sim uma oportunidade de construir espaços de segurança para a exploração, baseados na igualdade e no respeito mútuo. Para jovens e para todas as idades.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAumentar a idade da reforma Se tiver chegado à idade da reforma e não se conseguir sustentar, como é que vai resolver o problema? Se as pensões públicas forem aumentadas, os impostos sobem inevitavelmente. Aumentar as contribuições mensais das entidades empregadoras e dos trabalhadores pode impor um encargo demasiado pesado a ambas as partes. O apoio dado pelos familiares aos aposentados varia consoante as situações e não pode ser generalizado. A forma mais segura de garantir uma reforma digna depende do próprio aposentado. Será que a sociedade não tem realmente maneira de lidar com esta questão? Claro que não. Em face deste desafio global, os diferentes países e regiões adoptaram estratégias particulares com base nas suas próprias circunstâncias. De entre as medidas adoptadas destaca-se o aumento da idade da reforma, política que está gradualmente a ser implementada em diversas zonas. França deu o primeiro passo, e alterou a lei para passar a idade da reforma dos 62 para os 64 anos, medida que foi implementada a 1 de Setembro de 2023. Embora esta medida vise a redução dos encargos do Governo, também fez desencadear discussões a nível global sobre direitos dos trabalhadores e equidade social. Simultaneamente, Taiwan, na China, fez alterações mais detalhadas às leis laborais. No passado dia 20 de Julho, a comunicação social assinalou que tinha sido revisto o artigo 54 do Direito das Normas do Trabalho. O Direito das Normas do Trabalho de Taiwan, na China, inclui dois modelos de regulação do regime de aposentadoria. O modelo obrigatório estabelece os 65 anos como idade da reforma. No entanto, se a pessoa se quiser aposentar antes desta idade a sua reforma será regulada pelo modelo voluntário. O modelo obrigatório do regime de reformas mudou depois da lei ser revista. As entidades patronais não podem obrigar os trabalhadores a reformar-se aos 65 anos, esse momento tem de ser negociado por ambas as partes. O modelo voluntário não foi alterado. Os trabalhadores podem solicitar à entidade patronal a aposentação em qualquer altura e não precisam de esperar pelos 65 anos. A China Continental também anunciou a maior alteração de sempre da idade da reforma a 15 de Setembro do corrente ano. Está planeado um aumento gradual, efectuado ao longo de 15 anos e com início a 1 de Janeiro de 2025. A idade da reforma dos homens aumentará dos 60 anos actuais para os 63 e a das mulheres dos 50 e 55 anos actuais para os 55 e 58 respectivamente. No entanto, o aumento da idade da reforma não é uma panaceia que possa ser alcançada de um dia para o outro. Há duas questões a que é necessário prestar atenção. Em primeiro lugar, há que reconhecer que nem todos os trabalhadores estão dispostos ou em condições de prolongar a sua vida activa. A idade da aposentadoria não pode ser prolongada só porque algumas pessoas recebem pensões insuficientes. Mas o mais importante é que o momento da reforma não pode apenas ser decidido a partir do valor das pensões. A saúde do pensionista, as necessidades familiares, os desejos pessoais, etc. são todos factores que o trabalhador deve tomar em conta no momento de decidir quando se vai reformar. Em segundo lugar, o que aconteceu em França pode alertar-nos para o facto de os ajustes na idade da reforma puderem vir a desencadear conflitos sociais e insatisfação. Por conseguinte, deve optar-se por uma abordagem cautelosa e gradual, que tome plenamente em conta os problemas sociais que podem surgir quando se aumenta a idade da reforma. Talvez o modelo de Taiwan, na China, seja uma solução mais exequível e moderada, que se espera poder vir a solucionar o primeiro problema e o segundo. Este modelo, enquanto aumenta a idade da reforma, mantem as condições da reforma voluntária e dá algum espaço às pessoas para tomarem as suas próprias decisões. Não só demonstra respeito pela vontade de cada trabalhador, como ajuda a minimizar a resistência aos ajustes na idade da reforma. Quanto ao período de aumento da idade da reforma, é uma questão de precisa de ser estudada em profundidade com base nas actuais condições económicas e níveis de desenvolvimento de cada país e região. No Reino Unido, as pessoas reformam-se aos 66 anos e passarão progressivamente a reformar-se aos 67. Entre 2044 e 2046, a idade da reforma vai subir para os 68 anos. Actualmente, Hong Kong, na China, e Macau, na China, estabelecem políticas diferenciadas a esse respeito baseadas nos diferentes cargos e responsabilidades dos funcionários públicos e, para os trabalhadores do sector privado não existe uma idade padrão. Os funcionários públicos de Hong Kong reformam-se aos 55, 60 e 65 anos consoante os critérios acima referidos. Em Macau, os funcionários públicos reformam-se aos 65 anos, mas podem pedir a reforma antecipada. Aumentar a idade da reforma significa dilatar o período de vida activa dos cidadãos, permitindo-lhes ganhar mais dinheiro e prepararem-se para a aposentadoria, reduzindo desta forma a pressão exercida na sociedade, nos próprios reformados e nas suas famílias. Ao promover esta política, os decisores políticos devem manter a lucidez e não considerarem apenas o efeito a longo prazo e a sustentabilidade da medida, mas também respeitar plenamente os desejos e direitos pessoais dos trabalhadores. Se, à semelhança do Artigo 54 de Taiwan, a Lei das Normas Laborais da China, conceder aos trabalhadores um certo espaço de auto-ajuste no quadro da moldura legal, a sociedade estará mais receptiva à mudança. O problema do aumento da idade da reforma será então resolvido. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
André Namora Ai Portugal Vozes140 estivadores despedidos estão na miséria Antes de mais, permitam que vos transmita uma declaração de interesse: tenho uma enorme consideração por todos os estivadores, porque durante uma fase da minha vida em que fiquei desempregado apenas encontrei trabalho como estivador. Foram dois amos duros e amargos vividos no cais de Alcântara, em Lisboa. Sei bem da dureza e sacrifício da referida profissão. Posto isto, venho escrever sobre uma situação em Portugal do mais triste e degradante que ninguém imaginaria. Em 2020 foram despedidos 140 estivadores no porto de Lisboa. Passados quatro anos esses estivadores e as suas famílias encontram-se na miséria. Tiveram de vender as suas casas, os seus carros e as poupanças terminaram. Os seus filhos têm passado as maiores dificuldades e os que já tinham ingressado na universidade tiveram de abandonar os estudos por impossibilidade financeira de continuarem os estudos. Conversámos com um dos despedidos. Os estivadores despedidos e os vossos familiares manifestaram-se em frente à Assembleia da República. Qual o principal motivo? Nós encontramo-nos numa situação de miséria a vivermos de um subsídio irrisório da Segurança Social e outros nem isso, depois de terem acabado de receber o subsídio de desemprego. Exigimos que o Governo tome uma posição junto das empresas que operam no porto de Lisboa e que nos despediram no sentido de sermos reintegrados. Essas empresas ganham milhões de euros e nunca compreendemos a razão do nosso despedimento. Numa democracia como a nossa nem queremos acreditar no que nos foi confidenciado no sentido de que fomos despedidos porque éramos comunistas que podíamos promover greves reivindicando melhores salários. Isto, é infame e custa a acreditar. Mas vocês não tinham equacionado acções em tribunal contra essas empresas? Sim, os nossos advogados entraram com acções em tribunal, mas a nossa justiça é idêntica a um caracol… Vocês têm vivido, segundo, diz a imprensa, com as maiores dificuldades. Exacto. O senhor nem faz ideia como temos vivido. Da esmola de amigos e de alguns familiares, aqueles em que a família os pode ajudar porque há outros que a família não pode. Eu tive de vender a minha casa, o carro e um terreno que tinha perto de São Pedro do Sul. Com o pagamento do aluguer de uma casita e o sustento dos três filhos o dinheiro já se foi quase todo e até já tenho o pagamento de dois meses da renda em atraso. Não sei mesmo, eu e os meus camaradas, como poderemos viver mais nesta situação. Sei de alguns que comem por dia apenas sopa. E conseguiram alguma resposta do Governo? A nossa delegação e o nosso advogado já mantiveram reuniões com um membro do Governo e o que lhes foi dito é que o nosso problema vai ser equacionado. É triste que 140 famílias estejam há quatro anos a serem esquecidas e desprezadas depois de um despedimento injusto e incompreensível. Após o despedimento destes 140 trabalhadores houve empresas portuárias que tiveram a desfaçatez de contratar novos trabalhadores, uma prova de que a razão do despedimento não era falta de dinheiro por parte das empresas. Por exemplo, as empresas PORLIS e ETE Prime contrataram 28 novos trabalhadores que foram reforçar o efectivo do Porto de Lisboa. Segundo Diogo Marecos, administrador da Sotagus, uma das sete empresas de estiva do Porto de Lisboa, duas empresas de cedência de mão-de-obra às empresas de estiva já contrataram cerca de 30 trabalhadores. A ETE Prime já contratou oito trabalhadores e a PORLIS assinou contratos de trabalho com 20 e pretende contratar mais 20. A pergunta que se faz é sobre a razão efectiva dos 140 despedimentos se estão a contratar outros homens para a estiva em substituição dos despedidos. Com uma agravante: os novos contratados não possuem experiência teórica e prática no exercício da estiva e têm de receber formação por uma empresa certificada para o efeito no Terminal de Contentores de Santa Apolónia, em Lisboa. Por seu lado, o Sindicato dos Estivadores e Actividade Logística (SEAL) tem contestado os despedimentos, que considera ilegais e defende que o processo de insolvência da empresa que despediu os trabalhadores nunca esteve concluído, ao contrário do que têm alegado as empresas de estiva do Porto de Lisboa. Enfim, o que está em causa é a situação degradante de 140 famílias que vivem em condições deploráveis e desumanas sem terem qualquer luz ao fundo do túnel, restando-lhes a esperança que o Governo, caso o Orçamento de Estado seja aprovado e que não haja uma crise política que leve o país para eleições antecipadas, possa fazer alguma coisa em benefícios destas centenas de portugueses que levaram uma vida numa das profissões mais duras e complexas. P.S. – Tal como escrevemos aqui em crónica anterior em primeira mão, o Partido Socialista decidiu abster-se e viabilizar o Orçamento do Estado.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA mudança do século A 10 de Outubro de 1911, eclodiu um tiroteio na zona de Wuchang, mais precisamente na cidade chinesa de Wuhan, marcando o fim do reinado imperial da dinastia Qing, que durou 268 anos, e o início da Revolução Xinhai. A 23 de Julho de 1921, o Partido Comunista Chinês foi fundado em Xangai, dando entrada no palco da História do país, Em 1949, o PCC derrubou o Governo Nacionalista e instituiu a República Popular da China. A 18 de Setembro de 1931, o Exército Kwantung do Japão, estacionado ao longo da Linha Férrea do Sul da Manchúria, lançou um ataque ao nordeste da China sob o pretexto de ter ocorrido uma explosão na ferrovia, tendo ocupado posteriormente três províncias (Liaoning, Jilin e Heilongjiang) do nordeste da China, e ajudado o destronado imperador Qing a estabelecer o estado fantoche de Manchukuo. A guerra de resistência contra a invasão japonesa durou uns longos 14 anos. A 7 de Dezembro de 1941, o Serviço Aéreo da Marinha Japonesa lançou um ataque surpresa à base dos EUA no Pacífico, a Frota americana fundeada em Pearl Harbour. Este ataque provocou a declaração de guerra da América ao Japão, no quadro da II Guerra Mundial que só terminou em 1945. Um século mais tarde, a história parece repetir-se. Muitas pessoas estão preocupadas com a possibilidade da operação militar especial da Rússia contra a Ucrânia puder vir a desencadear uma guerra nuclear, ou seja, a III Guerra Mundial. Relativamente às grandes mudanças que acontecem uma vez em cada século, Macau também enfrenta os seus próprios desafios. A decisão de Ho Iat Seng de renunciar à reeleição quebrou a tradição de o Chefe do Executivo de Macau ter garantido um segundo mandato desde o regresso de Macau à soberania chinesa. Actualmente, apesar da retórica optimista do Governo, a receita fiscal de Macau nos primeiros oito meses de 2024 é apenas 77 por cento da correspondente ao mesmo período de 2019. A mudança da demografia turística e a redução das sofisticadas salas de jogo VIP dos casinos vão dificultar a obtenção de receitas fiscais semelhantes às do período pré-pandémico. Quanto à iniciativa conceptual de Diversificação das Indústrias “1+4”, podemos ter uma ideia da extensão dos seus benefícios ao olharmos para a resposta do Governo às perguntas dos deputados da Assembleia Legislativa a respeito da utilização dos terrenos onde o “agora defunto” Macau Jockey Club estava sediado. Na resposta, o Governo declarou que ainda não havia um plano de construção concreto para o local, evidenciando a eficácia limitada desta iniciativa. A 28 de Setembro, Sam Hou Fai, o candidato único à eleição para Chefe do Executivo de Macau, apresentou a sua agenda política aos deputados da Comissão de Assuntos Eleitorais do Chefe do Executivo (CAECE), destacando quatro visões e cinco abordagens principais no que diz respeito à administração da cidade o que, ao nível das palavras, foi aparentemente muito promissor. Sam Hou Fai, também envidou esforços para reunir com organizações e associações comunitárias e visitou vários distritos de Macau. Segundo relatos de alguns jornalistas, nas visitas à comunidade, está frequentemente rodeado de rostos familiares, sugerindo que estas visitas se assemelham mais a uma inspecção in loco do que a uma tentativa genuína de entender os diversos aspectos sociais da cidade. Alcançar a diversificação económica no contexto da natureza mono-política de Macau, será o grande teste a Sam Hou Fai, caso venha a ser eleito. A queda de mais de 2.000 pontos do Índice Hang Seng de Hong Kong a 8 de Outubro serve bem de exemplo. Desde o final de Setembro, depois de o Governo chinês anunciar uma série de medidas de estímulo económico, em particular duas políticas monetárias estruturais que montam a 800 mil milhões de yuans, os mercados de acções da China e o de Hong Kong subiram. No entanto, a 8 de Outubro, devido ao efeito de “apropriação de lucros”, o Índice Hang Seng de Hong Kong registou uma queda histórica de 2.172 pontos, ao passo que os índices de Shenzhen e de Xanghai continuavam a subir. Efeitos tão opostos, a par da aparente calmaria do mercado imobiliário e do mercado monetário, fazem-nos pensar se se perfila no horizonte outra grande mudança. O ano de 2024 tem sido repleto de incertezas. Até que ponto serão significativos para Macau o impacto da guerra comercial entre os EUA e a China e as alterações na cadeia global de fornecimento depois da pandemia? A minha maior expectativa é que o próximo Chefe do Executivo possa garantir que Macau navegue em segurança através das águas agitadas das grandes mudanças.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA guerra pós-moderna (II) “Casi inmediatamente, la realidad cedió en más de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder.” Ficciones – Jorge Luiz Borges No chamado momento unipolar, não havia necessidade de criar estratégias. A história ou melhor, o seu fim tinha decretado a vitória da América. Assim, não havia necessidade de estabelecer objectivos. Bastava concentrarmo-nos no desenvolvimento dos meios tecnológicos, bélicos e de comunicação para eternizar o presente. No entanto, quase numa inversão dialéctica, a ausência de narrativas estratégicas abriu a porta ao desenvolvimento de um número infinito de narrativas sem fundamento e sem relação com o princípio da realidade. A narrativa estratégica está, por definição, presa aos factos. Até porque a estratégia implica cartografia, uma actividade que se prende à realidade e não deixa espaço para a lucubração. A distinção geopolítica entre a narrativa estratégica autêntica e a retórica esfumada reside precisamente na possibilidade da cartografia. Uma estratégia, por mais ornamentada que seja em termos narrativos, deve poder ser desenhada num mapa. Uma narrativa por si só, por outro lado, não o pode ser. Nem mesmo o mais hábil cartógrafo seria capaz de desenhar os objectivos da “guerra global contra o terrorismo” (que não pode existir) ou a realidade concreta da “era da paz democrática” (que, querendo ser eterna e universal, abole o espaço e o tempo). Quando as palavras não podem ser mapeadas, isso significa que estão em contradição com as coisas. E quando a relação entre significante e significado é quebrada, então as narrativas podem multiplicar-se precisamente porque perdem toda a referência à realidade. Para os romancistas, isto pode ser uma proeza e pense-se na estrutura gótica e labiríntica de “If One Winter’s Night a Traveller”, de Italo Calvino. Mas para aqueles que se dedicam à geopolítica, significa nadar no mar do nada. Significa renunciar à realidade para se perder nas histórias, transformando-se num leitor ingénuo da irrealidade. Perigosamente convencidos de que estão a lidar com a verdade. Esquecendo que para uma consciência à mercê da falsidade e da irrealidade nada de verdadeiro e real pode aparecer. E é precisamente aqui que reside o paradoxo da era dita “pós-moderna”. Ao rejeitar e desconstruir o próprio conceito de grande narração, deixa o campo aberto à explosão de um número infinito de micro-narrativas e jogos linguísticos que não comunicam entre si. A explosão de histórias e narrativas é um sintoma da ausência de história e de grandes narrativas, pois hoje, toda a gente fala de narrativas. E, no entanto, paradoxalmente, o próprio facto de as narrativas serem utilizadas em todas as esferas é um sinal de uma crise da experiência narrativa. A enxurrada de narrativas totalmente alheias à realidade gera confusão e caos e ninguém fala todas estas linguagens, elas não admitem uma metalinguagem universal. É o asilo na Babilónia descrito em “The Man Without Qualities” por Robert Musil, do qual se ressalta que “A vida à nossa volta é desprovida de conceitos ordenadores. Os factos do passado, os factos das ciências individuais, os factos da vida elevam-se sobre nós desordenadamente (…). É um manicómio babilónico; de mil janelas que gritam simultaneamente ao transeunte mil vozes, mil pensamentos, mil músicas diferentes, e é claro que o indivíduo em tudo isto se torna o cadinho de motivos anárquicos e a moral dissolve-se juntamente com o espírito”. A nossa vida quotidiana, os nossos devaneios, o nosso sentido de nós próprios são todos construídos como histórias e encontramo-nos, portanto, inundados por uma multidão de mini-narrativas, individuais ou colectivas, e, em muitos casos e predominantemente, narcísicas e para nosso próprio uso. As palavras enterram as coisas, a retórica ultrapassa a dialéctica, as histórias obliteram a realidade, e as narrativas autistas e idiotas no sentido grego, tomam o lugar das narrativas fundacionais e estratégicas. Estamos em plena geopolítica pós-moderna; um pensamento fraco que, privado de qualquer acesso à coisa em si, tem de se mover no oceano das narrativas. Reina o princípio da irrealidade. Procuramos uma síntese. O princípio da realidade não foi morto sic et simpliciter pela narração. Pelo contrário, foi precisamente o desaparecimento das grandes narrativas que o deixou à mercê das micro-narrativas individuais e retóricas, em si mesmas incapazes de gerar laços sociais e perspectivas estratégicas. Não há nenhum assassino do princípio de realidade. Tal como no “Assassinato no Expresso do Oriente” de Agatha Christie, o princípio da realidade caiu sob os golpes da multiplicidade de narrativas que se desenvolveram na sequência do colapso das grandes narrativas. Por isso, é difícil apontar um culpado. E talvez seja também inútil. Depois de termos feito o diagnóstico, é altura de nos concentrarmos no prognóstico. O que é que acontece quando a guerra deixa de ser travada ao nível do princípio da realidade e passa a ser travada com base no princípio da irrealidade? Ou, para ser mais preciso, que tipo de guerra é a guerra pós-moderna, desprovida de estratégia e travada apenas em nome de (micro) narrativas? Poderá afirmar-se que a guerra pós-moderna não tem regras predefinidas nem um código de conduta. É um espectáculo. Na historilândia, a guerra perde a sua natureza clássica, Clausewitziana. Já não é um meio para um fim politicamente definido (certo ou errado). Torna-se pura narrativa, desvinculada de qualquer estratégia. Sem a causa final pela qual é travada, a guerra torna-se guerra pela guerra. Ou melhor, a guerra pela narração e a narração pela guerra, num círculo vicioso e tautológico em o carácter fundamentalmente tautológico do espectáculo deriva do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo também os seus fins. Neste contexto espectacularizado, o espectáculo é uma mera narração, uma narração pela guerra. Neste contexto espectacularizado, não havendo estratégias, o objectivo da guerra pós-moderna passa a ser o de usar o poder para definir o que pode ser conhecido. Na prática, já não se trata de obter resultados concretos, mas sim de narrar e legitimar decisões tomadas não com base numa análise da realidade, mas, mais uma vez, com base numa história. Que, pelo facto de ser repetida, se tornou verdade. Depois de ter enterrado a realidade, o espectáculo afirma-se como uma enorme positividade inquestionável e inacessível. Não diz mais de o que aparece é bom, e o que é bom aparece. Um exemplo escolar disto é o espectáculo do conflito no Afeganistão produzido pelo general americano David Petraeus. Dada a natureza astronómica das guerras do Médio Oriente na altura, os Estados Unidos tinham de encontrar uma forma de as narrar. Mas como fazê-lo, dado que a vitória na ausência de estratégia é impossível de definir? A solução para este dilema foi o próprio Petraeus, que montou uma estratégia de comunicação extremamente peculiar. Uma vez que não existia um objectivo final, enfatizou os “avanços” individuais que estavam a ser feitos pelos militares americanos. Obviamente, amplificando-os e apresentando-os como mais difíceis de alcançar do que eram na realidade, de acordo com a táctica de “under promise and over deliver”. Petraeus, sempre rodeado de jornalistas, utilizou assim conscientemente o princípio da irrealidade para esconder a ausência de estratégia. Perante a impossibilidade de vitória, preferiu narrar uma guerra sem fim, ou seja, um conflito caracterizado exclusivamente por avanços espectaculares e nunca por um momento decisivo. O exemplo de Petraeus é instrutivo porque mostra claramente como, na ausência de estratégia, surge a necessidade de desenvolver narrativas, úteis para legitimar a guerra mas totalmente desligadas do princípio da realidade. Neste sentido, o avanço das histórias e do espectáculo deve ser considerado, antes de mais, como um sintoma da ausência de estratégia, pois a inflação dos modelos narrativos trai a necessidade de lidar com a contingência. Estamos perante uma tentativa, talvez inconsciente, de fuga à realidade e de refúgio num horóscopo coerente e tranquilizador, em que a mudança súbita das coisas não obriga os decisores a repensar as suas palavras de ordem. O espectáculo está no coração do irrealismo da sociedade real. Reflecte a ausência de realidade, ao mesmo tempo que a produz, num processo diaclético de mistificação em que omitida qualquer referência às coisas a relação entre o que é e o que é dito é literalmente subvertida pois no mundo verdadeiramente desorganizado, o verdadeiro é um momento do falso. O que é dito como “verdadeiro” só o é contra o pano de fundo de uma narrativa que, transcendendo a realidade, é, no entanto, intimamente falsa. No mundo “verdadeiramente invertido” da historilândia, para ser breve e brutal, a resolução de problemas é de facto impossível. Todas as questões já estão mal colocadas. Parte-se de dados errados. Ou melhor, parte-se da história que se quer confirmar. A guerra pós-moderna, como Petraeus demonstrou magistralmente, é, portanto, um exercício de irrealidade, uma tentativa de ganhar a guerra sem a ganhar e apenas contando-a. É um exercício retórico, não dialéctico, porque impõe a coerência com a minha história e recusa o confronto. Mas a realidade tende a morrer duramente. Mais cedo ou mais tarde, volta para desferir os seus golpes. Ao minar as narrativas baseadas em nada. Esta deveria, talvez, ter sido a principal lição afegã a ser aprendida. Mas os Estados Unidos e o Ocidente não a aprenderam. E hoje encontram-se a combater a Grande Guerra, a mais moderna das guerras de transição, com as armas da guerra pós-moderna. Arriscando-se a perder tudo sem sequer se aperceberem. Como um sapo a ferver na água.