A visita de Xia Baolong a Macau

Xia Baolong, o director do Gabinete de Trabalho de Hong Kong e Macau do Comité Central do Partido Comunista da China e director do Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado, terminou a sua visita de sete dias a Macau, onde se deslocou para uma inspecção dentro do âmbito do seu Gabinete, tendo sido excelentemente recebido e acolhido pelo Governo da RAEM. Se esta visita de inspecção obteve os resultados esperados, é uma questão a que só poderá responder o director Xia.

O director Xia Baolong esforçou-se para visitar vários locais, considerando que o tempo estava muito quente e húmido. A Ponte Macau, que o Director Xia visitou no primeiro dia, é indubitavelmente o acesso principal entre a Zona A dos Novos Aterros Urbanos e COTAI. Se o director Xia tivesse sido levado a visitar os trabalhos de construção da Zona A dos Novos Aterros Urbanos, especialmente a construção das habitações económicas da Zona A dos Novos Aterros Urbanos, que em breve estará terminada, teria sido informado sobre os detalhes destes blocos residenciais e das ligações rodoviárias feitas propositadamente para aceder à zona, e assim teria tido um conhecimento mais aprofundado sobre as capacidades administrativas do Governo da RAEM.

Um jornal entrevistou cidadãos sobre a visita do director Xia a Macau. Alguns expressaram a esperança de que o director Xia pudesse vir a visitar vários bairros e que falasse informalmente com os seus residentes, para escutar as suas opiniões. Possivelmente por razões de segurança, o director Xia não teve muitas oportunidades para estabelecer um verdadeiro contacto com o público durante a sua visita, mas o Governo da RAEM tomou medidas para que um total de nove membros do Conselho Consultivo de Serviços Comunitários da Zona Norte e do Conselho Consultivo de Serviços Comunitários da Zona Central acompanhassem o director Xia nos chás matinais de estilo chinês.

Antes do regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade tinha duas assembleias municipais, sendo uma parte dos seus membros eleita por sufrágio directo. Quando o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) foi criado em 2002, as câmaras e as assembleias municipais de Macau foram abolidas. Em 2019, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais foi restruturado para se tornar o Instituto para os Assuntos Municipais (IAM), de acordo com a Lei Básica de Macau, e a eleição por sufrágio directo para a escolha dos membros dos vários Conselhos do IAM deixou de ser possível. Todos os membros passaram a ser nomeados, embora o Governo da RAEM tenha declarado que aceitava recomendações de candidatos feitas por terceiros. Antes de 2019, duas pessoas que se dedicavam a assuntos de ordem social tiveram uma boa hipótese de se tornarem membros do Conselho Consultivo do IACM através da eleição por sufrágio directo. Ambas me pediram que as recomendasse, mas foi obviamente uma diligência feita em vão. Existe um velho ditado na China, que diz o seguinte “é necessário ouvir várias opiniões diferentes para distinguir o certo do errado e tomar as decisões correctas”. Se ao informar o director Xia sobre os aspectos favoráveis de Macau, se tivessem ouvido mais opiniões do público, acredito que ele teria ficado com um conhecimento mais vasto e uma visão mais representativa do povo de Macau.

Embora o director Xia não tenha podido visitar vários bairros devido a restrições de tempo, visitou a Escola dos Moradores de Macau na Zona Norte, onde foi calorosamente recebido. Só me pergunto 1) se as pequenas e médias empresas da Zona Norte tivessem tido oportunidade de explicar ao director Xia o impacto que estão a ter as deslocações para a província de Guangdong das pessoas de Macau que aí vão fazer compras e estabelecer os seus próprios negócios.

2) se os comerciantes da Zona Norte tivessem tido oportunidade de informar o director Xia sobre os benefícios reais da realização do Carnaval de Consumo para o sector comercial desta Zona?

Os residentes da Zona Norte foram de alguma forma abençoados porque, pelo menos, o carro do director Xia passou devagar pelas ruas habitualmente muito movimentadas da sua Zona. Quanto aos trabalhos rodoviários do Bairro da Praia do Manduco, acredito que o director Xia não tenha tido oportunidade de os ver pessoalmente, e interrogo-me se assistiu ao encerramento da Travessa do Padre Narciso ao tráfego quando se deslocou à Sede do Governo para ouvir o relatório das obras apresentado por muitos funcionários da RAEM.

O director Xia preocupa-se com Macau. Durante a sua visita, afirmou que Macau tem um “cartão de visita dourado” e mencionou que Hengqin pertence a Macau. No que diz respeito aos 106.46 km2 da Ilha de Hengqin, o Chefe do Executivo Ho Iat Seng respondeu aos repórteres dizendo que esta ilha pertence a Macau em termos conceptuais e não em termos físicos. Acredito que como o Governo Central entregou Hengqin a Macau em termos conceptuais, deve ter grandes expectativas para o futuro desenvolvimento integrado entre Hengqin e Macau. Na verdade, quando o director Xia inspeccionou Hengqin, deve ter notado os arranha-céus abandonados perto do Posto Fronteiriço. Todos os locais encontram dificuldades no seu processo de desenvolvimento e Hengqin não é excepção. Da integração orgânica de Macau e Hengqin, e da capacidade de superar dificuldades e alavancar as potencialidades complementares, vai depender se o “cartão de visita” de Macau será de folha dourada ou de ouro genuíno e quanto ouro esse “cartão de visita” irá conter.

Após a visita de inspecção do Diretor Xia, os trabalhos de acompanhamento que esperam a RAEM serão abundantes e pesados!

24 Mai 2024

O terrorismo Huti

“We have repeatedly stated without hesitation that supporting Palestine and resistance groups is on the agenda of the Islamic Republic’s policies”

Iranian President Ebrahim Raisi, in 14.01.2024

Apesar do crescente apoio de Teerão, os “Partidários de Deus” estão a prosseguir a sua agenda que é independente do Irão traduzida na rivalidade com Saná, normalização com uma Arábia Saudita cansada de guerra e uma paz em Gaza que não estabilizará o Mar Vermelho. Desde 19 de Novembro de 2023, dia do sequestro do cargueiro “Galaxy Leader”, o Mar Vermelho voltou a estar no centro da cena internacional. O ataque ao cargueiro ligado ao magnata israelita Abraham “Rami” Ungar pelo movimento iemenita político-religioso Ansar Allah, (Partidários de Deus), mais conhecido como ” Hutis”, marcou o início de uma nova e crítica fase de escalada neste ponto estratégico entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico. Nos últimos meses, os Hutis realizaram dezenas de ataques contra navios mercantes em trânsito no sul do Mar Vermelho, perto de Bab-el-Mandeb e do Golfo de Aden, lançando mais de uma centena de mísseis e ataques com drones a partir dos territórios iemenitas sob o seu controlo.

A estratégia de desestabilização das rotas marítimas internacionais e os repetidos ataques contra Israel dirigidos sobretudo contra o porto meridional de Eilat estão ligados à tragédia humanitária que se vive em Gaza e à ofensiva israelita. Embora os navios mercantes não pertencentes ao Estado judaico também tenham sido alvo dos Hutis, o grupo iemenita tem, de facto, sublinhado repetidamente que o bloqueio marítimo e as acções militares no sul do Mar Vermelho dizem respeito a navios comerciais ligados a Israel ou destinados a portos israelitas, condicionando a cessação das hostilidades ao “levantamento do cerco de Gaza”. Num comunicado oficial de 6 de Janeiro de 2024, o movimento foi mais longe, declarando que as suas “operações” estão em conformidade com o direito internacional, especificamente o artigo 1.º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948).

A imprensa e a articulada máquina mediática pró-Huti elevam as acções do movimento a uma “batalha de apoio” à libertação dos territórios palestinianos ocupados. O líder Abdul-Malik al-Houthi, num discurso proferido no final de Dezembro de 2023, apelou aos “países vizinhos” para que abrissem as suas fronteiras a fim de permitir aos seus “Mujahidin” (combatentes da jihad) “entrar na Palestina”. Para além da retórica, são os interesses regionais especiais e os cálculos internos que orientam a estratégia político-militar de Ansar Allah relativamente à guerra de Gaza, bem como a escalada no Mar Vermelho. A nível regional, os Hutis viram no conflito da Faixa de Gaza uma oportunidade para reforçar os laços com o “eixo de resistência” liderado pelo Irão, que inclui Hezbollah, o governo sírio de Bashar al-Asad, as milícias xiitas iraquianas e o grupo palestiniano Hamas.

Mas também uma oportunidade importante para reforçar a sua posição negocial nas conversações de paz em curso com a Arábia Saudita, a fim de obter o reconhecimento internacional e legitimar o seu poder. Ao mesmo tempo, pretendem aproveitar a onda de indignação e tornar-se o porta-voz do sentimento “pró-palestiniano” no mundo árabe-islâmico, a fim de aumentar o consenso interno. Os Hutis, agindo como Estado, organizaram desde 7 de Outubro de 2023 mais de um milhar de manifestações a favor da Palestina nos territórios que controlam e recrutaram pelo menos 25 mil novos combatentes nas Brigadas Al-Qassam, provavelmente para serem utilizados contra o governo iemenita reconhecido internacionalmente. Algumas semanas antes do início da guerra entre Israel e o Hamas, os Hutis organizaram uma grande parada militar na capital Saná, exibindo o seu arsenal de drones e mísseis de longo alcance para demonstrar as suas capacidades militares adquiridas.

Assim, não é de excluir que o movimento aproveite os recentes acontecimentos no Mar Vermelho, bem como a tragédia em Gaza, para lançar ataques contra o governo do Iémen (o Conselho Presidencial) em zonas estrategicamente importantes como al-Dali, al-Hudayda, Marib, Sabwa e Taizz. Os Hutis, confrontados com fortes protestos populares devidos principalmente à desastrosa situação humanitária e económica no Iémen, querem tirar partido da guerra em Gaza e da crescente mobilização no Mar Vermelho para aumentar o consenso interno. O ataque conjunto dos Estados Unidos e do Reino Unido em 12 de Janeiro de 2024 contra alvos militares jogou a favor dessa estratégia e centenas de milhares de iemenitas saíram às ruas, inclusive na capital Saná, para condenar os ataques, agitando bandeiras do Iémen e da Palestina e gritando “Deus é grande, morte à América e a Israel, amaldiçoando os judeus e vitória ao Islão”, era o slogan oficial do movimento.

No entanto, mais do que um acto de fé para com os Hutis, estas manifestações de “apoio” popular são muitas vezes uma expressão de hostilidade partilhada em relação a Israel e a qualquer intervenção militar estrangeira em território iemenita. O Irão pode estar mais do que satisfeito com a actual escalada no Mar Vermelho. As ações militares perpetradas pelo Hutis enquadram-se perfeitamente na estratégia do Irão de exercer pressão sobre os Estados Unidos e Israel no quadro da guerra em Gaza, evitando o risco de um confronto directo. Em visita a Teerão em Dezembro de 2023, o porta-voz oficial de Ansar Allah, Muhammad Abdul Salam conversou com altos funcionários iranianos, incluindo o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional, Ali Akbar Ahmadian, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Hussein Amir-Abdollahian, recebendo “apreço e agradecimentos” pelo seu apoio “forte e autoritário” ao povo palestiniano. Para o Irão, que desde a eclosão do conflito reafirmou o seu compromisso de fornecer apenas apoio político e não militar, os Hutis representam um trunfo importante no apoio ao “eixo da resistência”.

Isto reafirma, em parte, o desejo do Irão de evitar uma guerra regional em grande escala. Esta escolha foi também partilhada por Sayyid Hassan Nasrallah, político libanês, Secretário-Geral do partido e organização armada xiita Hezbollah, que agradeceu publicamente aos Hutis e à resistência islâmica no Iraque pelo seu empenho. Ansar Allah está a revelar-se um importante trunfo estratégico para o Irão, quase ao mesmo nível do Hezbollah. A localização do Iémen adquire um valor militar importante, pois o país é uma plataforma ideal para lançar ataques contra navios em trânsito e desestabilizar o comércio internacional ao longo de Bab-el-Mandeb e do Mar Vermelho. A distância que separa Saná de Israel impede que os Hutis o ameacem, mas permite operações militares destinadas a aumentar a pressão sobre o Estado judaico. No entanto, interpretar as opções estratégico-militares dos Hutis como uma simples implementação da vontade do Irão cujo envolvimento no Mar Vermelho continua a ser muito matizado é enganador, pois não permite compreender os seus interesses e necessidades particulares a nível local.

A imagem dos Hutis como agentes do Irão é um produto do conflicto no Iémen e da sua leitura como terreno de confronto irano-saudita. Esta imagem foi principalmente alimentada por Riade para justificar a sua intervenção militar em 2015. Deve, portanto, ser inscrita na mudança do equilíbrio de poder no mundo árabe, que encontrou um importante ponto de ruptura nas “Primaveras Árabes” (2010-2011). A consolidação da profundidade estratégica do Irão na zona do Médio Oriente que culminou em 2015 com a assinatura do acordo “Jcpoa (Joint Comprehensive Plan of Action)” com os Estados Unidos e a percepção do afastamento americano da região iniciado com Obama, continuado com Trump e Biden consolidaram a imagem do Iémen como teatro da guerra por procuração entre o Irão e a Arábia Saudita. A política externa dos Hutis, que se dizem os verdadeiros representantes do Estado iemenita, é assim posta de lado, se não mesmo obliterada. A cooperação entre Ansar Allah e o Irão baseia-se numa insatisfação comum com o status quo regional, numa ideologia islamista partilhada e numa perspetiva anti-americana, anti-sionista e terceiro-mundista. A fé não tem nada a ver com tudo isto, uma vez que o grupo iemenita não pertence à denominação xiita duodecimano, mas é uma expressão do movimento revivalista zaidita.

O projeto reformista iniciado por Hussein Badr al-Din al-Houthi, o fundador do movimento, deve provavelmente ser interpretado como uma reacção às terríveis condições políticas e económicas, aos abusos e à corrupção sistémica que caracterizaram o Iémen de Ali Abdullah Saleh entre os anos de 1990 e o início dos anos 2000. No seu seio, assiste-se ao confluir de diferentes ideologias, incluindo o khomeinismo, o islamismo da Irmandade Muçulmana e o jihadismo salafita. A onda de protestos que abalou o mundo árabe em 2010-2011 representou a primeira grande oportunidade para o Irão consolidar a sua aliança com os Hutis e transformar o Iémen numa plataforma de projecção regional. Embora, de acordo com um relatório da ONU, o Ansar Allah tenha começado a receber pequenas quantidades de armas de Teerão pelo menos desde 2009 quando estava empenhado em combater o governo central na “Batalha de Sadá ”, é a partir de 2011 que Teerão e o Hezbollah têm vindo a aumentar o seu apoio ao movimento com “financiamento, envio de armas e treino militar”. Este apoio é reforçado com a conquista da capital Saná pelos Hutis (2014) e após a operação militar liderada pela Arábia Saudita em apoio ao governo central deAbdrabbuh Mansur Hadi (2015).

Para além de fornecer ao grupo quantidades crescentes de armas ligeiras, o Irão começou a fornecer armas mais avançadas e letais (mísseis anti-navio e mísseis balísticos) e concordou com Hezbollah no reforço das suas capacidades de produção e montagem de armas (como drones) em solo iemenita, utilizando componentes iranianos. Neste casamento de conveniência, os Hutis conheceram uma integração progressiva no chamado “eixo da resistência” graças a instituições como o Conselho Islâmico da Jihad, sem, no entanto, perderem a sua autonomia decisória e operacional. Além disso, embora o apoio militar iraniano tenha certamente desempenhado um papel importante na transformação dos Hutis de uma guerrilha local numa força armada mais sofisticada, uma parte significativa do arsenal do movimento deriva da absorção (negociada ou coerciva) de unidades do exército iemenita, de aquisições no mercado negro e de alianças com milícias tribais.

(Continua)

23 Mai 2024

A dança e o sexo

No meu interesse sobre Dança Movimento Terapia (DMT) tenho-me intrigado sobre a sua aplicabilidade nas questões do sexo. Uma questão que terá surgido a poucas pessoas, dado o número escasso de artigos científicos que se debruçam sobre uma questão que me parece relevante: será que a Dança Movimento Terapia pode ser uma terapia sexual?

A DMT é uma forma de psicoterapia expressiva, tal como existe arte-terapia, musicoterapia ou psicodrama. Esta é uma de muitas técnicas que tenta trabalhar o sofrimento humano, nas suas muitas vertentes, mas fá-lo através da dança e do movimento. Sem recorrer à palavra, ou com um recurso mínimo, a DMT tenta aceder e trabalhar a experiência humana através do corpo. Pode parecer esotérico, mas as emoções alojam-se no veículo humano através de dores, posturas, posições e movimentos, como se o corpo se formatasse às suas experiências. Ele é mais honesto com a sua história e com as suas necessidades do que a própria consciência.

Em DMT exploram-se, por isso, propostas de movimento que trazem consciência a essas narrativas de vida e de como se espelham no movimento. É um processo psicoterapêutico que oferece a oportunidade de, sem filtros nem repressões, explorar o repertório de movimentos mais natural a cada um. O que apetece ao teu corpo? Mexer os braços freneticamente, balouçar as ancas, experimentar jogo de pés com ritmo? O importante é deixar o corpo expressar-se.

O sexo também é outra atividade onde o corpo, emoção e a mente se encontram, às vezes de formas mais harmoniosas que outras. E quando esse encontro não existe, as terapias verbais são úteis (e.g. psicoterapia é a forma mais eficaz de tratar disfunção erétil), mas as terapias expressivas através do movimento conseguem melhor articular um encontro entre a mente, a emoção e o corpo que tanto complica a experiência do sexo. Encarando o corpo como o espaço onde a experiência se aloja e se revive, o movimento torna-se o caminho natural para um processo de transformação.

A vivência do sexo tem muitas zonas não consciencializadas, envoltas em vergonha ou repressão social. O movimento consegue ultrapassar bloqueios e formas de resistência que podem não estar presentes no domínio verbal, e assim processar medos, ansiedades e dificuldades que envolvem o sexo. A DMT, por isso, consegue trabalhar as questões mais traumáticas da experiência, mas há benefícios mais físicos também, como trazer maior consciência corporal. A dança e movimento propostos conseguem trazer mais atenção às sensações do corpo e aos seus movimentos. De acordo com alguns estudos publicados, essa consciência corporal faz aumentar a possibilidade de sentir prazer e de atingir um orgasmo.

As ações aparentemente simples de trazer consciência para o nosso movimento em dança, ajuda a afinar essa capacidade de estar disponível para o corpo no aqui e agora. Um estado fundamental para um sexo mais prazeroso, para que os introjeções da mente não se atropelem na experiência do sexo. A dança está embrenhada nas questões de sexualidade, como veículo de sensualidade e da sedução.

Aliás, social e evolutivamente falando, a dança é uma forma de cortejar. No momento de escolha do parceiro para a coito, os pássaros e os escorpiões dançam. E se nunca viram um pássaro a dançar para atrair a fêmea, corram para a vossa plataforma de vídeos favorita para presenciar essa beleza da natureza. O romantismo e sensualidade dos bailes nas cortes há dois séculos atrás, ou das discotecas atualmente, honram o legado dos nossos possíveis antepassados mais primitivos. A dança pode permitir autenticidade e essa, por sua vez, possibilita a conexão romântica. E esse despertar dos sentidos e da sensualidade pode ser mediada por uma terapia que tenha o corpo em primeiro plano.

A dança há muito que é considerada um processo de cura em comunidade. Mas só recentemente é que tem existido mais atenção académica para esta forma de saber alojada no senso comum. A dança em contexto terapêutico (e quiçá ritualístico) pode melhorar o bem-estar, a qualidade de vida, o humor, a auto-estima, imagem, percepção corporal e a relação com os outros. Apesar de ser um processo terapêutico com eficácia comprovada em vários domínios, há poucos profissionais e pouco reconhecimento institucional que a torna numa terapia de difícil acesso. A DMT oferece uma abordagem holística e inovadora que merece mais reconhecimento e aplicação. Para quem deseja explorar novos caminhos para uma vida sexual mais saudável e satisfatória, a dança e o movimento podem ser a chave para desbloquear novas dimensões de prazer e conexão.

Dancem (e mexam-se) para perceber como o movimento pode contribuir para uma vida sexual mais feliz.

22 Mai 2024

520 / Amo-te

O Dia dos Namorados, ou Dia de São Valentim, celebra-se tradicionalmente a 14 de Fevereiro. Os homens compram flores e presentes para as suas amadas. Existem teorias diferentes sobre a origem do Dia de São Valentim. Uma delas defende que no séc. III AC, o sacerdote romano Valentim desobedeceu à ordem do Imperador que proibia a celebração de casamentos e foi mais tarde executado. Este evento passou a ser celebrado pelas gerações futuras dando origem ao Dia de São Valentim.

A sociedade dos nossos dias é indissociável da Internet. A par do tradicional Dia de São Valentim, existem também o ‘O Dia de São Valentim em Rede’, ou seja, ‘520′. Segundo a informação divulgada online, ‘O Dia de São Valentim em Rede’ vem da altura dos “pagers”, amplamente utilizados na década de 90 do séc.XX. Neste período, antes do aparecimento dos telemóveis, as pessoas usavam “pagers” para comunicar entre si e expressar o seu amor umas pelas outras. Nos ecrãs apareciam vários números, cada um com um significado diferente. Por exemplo, ‘520’ queria dizer ‘amo-te’, ‘530’ significava ‘tenho saudades tuas’, ‘1314’ era igual a ‘toda a minha vida’ e ‘1711’ do fundo do coração’, etc.

Porque é que os amantes usavam números em vez de palavras carinhosas? Não é preferível expressar o amor claramente? Isto devia-se ao facto de, nessa altura, só se puder enviar mensagens através de um operador da empresa do “pager” e as pessoas não podiam falar umas com as outras directamente. Os termos carinhosos “amo-te”, “toda a minha vida”, “do fundo do coração”, perderiam a sua doçura se fossem veiculados através de um operador. Usar os números para expressar sentimentos tornou-se uma forma romântica de os namorados manifestarem o seu amor.

Na era da Internet, o uso dos telemóveis generalizou-se e os pagers deixaram de existir. No entanto, os códigos numéricos secretos 520, 530, 1314 e 1711 permaneceram. Os seus significados estão profundamente enraizados no coração das pessoas. Actualmente, ‘520’evoluiu para o Dia de São Valentim em Rede.

Segundo informação online, os casais cortejam-se e mostram o seu amor em ‘520′. Por conseguinte, ‘520’ é também conhecido como “Dia Auspicioso para Casar”, “Dia da Declaração”, “Dia da Sedução” e “Dia do Namoro”.

Dia de São Valentim em Rede celebra-se a 20 de Maio e, na China continental, ganha popularidade a cada ano que passa. A principal razão para isto acontecer é porque em mandarim, o homófono de “520” é “Amo-te”. Por ser fácil de usar na Internet, “520” é muitas vezes usado para dizer “Amo-te.” O homófono de ‘5201314’ é ‘Amo-te para sempre’ e o homófono de ‘520320179’ é ‘Amo-te, quero amar-te e que fiquemos juntos’.

Outro motivo para a popularização deste fenómeno é o facto de alguns cantores da China continental usarem ‘520’ para intitular as suas canções. Posteriormente, ‘521’ passou a ser usado pelos amantes para dizerem “Aceito, também te amo”.

Na China continental, muitos namorados e casais celebram este dia para expressar o seu amor pelo parceiro. O dia 20 de Maio, é marcado por muitas declarações de amor e propostas de casamento. As pessoas pensam que o seu relacionamento será mais bem-sucedido se se declararem a 20 de Maio, Dia de São Valentim em Rede. Diz “520” ao teu amor nesse dia e, se a declaração for retribuída, responderá
“521”, ou seja, “Aceito”. É uma expressão calorosa e arrebatadora.

Independentemente de estarmos ou não na China continental, todos podemos expressar o nosso amor pelos nossos bem-amados neste dia especial 520. Dizer amo-te docemente, oferecer um pequeno presente requintado, um ramo de lindas flores ou uma caixa de chocolates deliciosos são formas de exprimir amor. Não importa o presente que oferecemos, desde que possa transmitir a nossa sinceridade, o outro certamente que a irá sentir!

Porque é que precisamos de expressar o nosso amor pelos nossos parceiros? As pessoas hoje em dia estão muito ocupadas com o trabalho e o mais provável é estarem todos os dias fora de casa entre 10 a 12 horas. Se quando regressam adormecerem sem falar uma com a outra, o que é que vai ser feito do seu amor? Se já tiverem filhos, em que direcção seguirá irá esta família? A declaração do 520 é uma forma de dizer à pessoa que ama que, apesar de trabalhar afincadamente noite e dia – na minha vida, continuas a ser a pessoa mais importante e estás sempre no meu coração.

Este artigo será publicado no dia 21 de Maio. Como é que vais exprimir o teu amor pelo teu bem-amado? Por palavras? Com presentes? Com flores? Com chocolates? O amor é único. Só acontece entre ti e a pessoa que amas e o melhor presente é mostrar-lhe o calor do teu coração.

Sabem o que é que vou fazer agora? Para além das palavras, dos presentes, das flores, e dos chocolates, vou enviar este artigo à minha mulher para que ela fique a saber,

‘Tu és a pessoa mais importante para mim’

‘520 1711 1314’

E fico a imaginar como é que ela irá confessar o seu amor por mim.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

21 Mai 2024

Tragédia paira sobre Lisboa mais 10 anos

Após o anúncio pelo primeiro-ministro de que a localização do novo aeroporto de Lisboa seria em Alcochete choveram os mais díspares comentários na comunicação social. Mas, o que mais me surpreendeu foram as declarações de um antigo comandante da TAP que esclareceu, inacreditavelmente, que por duas ou três vezes já esteve para acontecer uma grande tragédia em Lisboa com a queda de um avião sobre a cidade. Desconhecia por completo e ficámos a saber que o perigo continuará por mais 10 anos. 10 anos que ninguém acredita que o aeroporto estará pronto com a burocracia e derrapagens de obras que é usual em Portugal.

Em primeiro lugar, a denominação Alcochete está errada. Todo o terreno onde está projectado o novo aeroporto pertence ao Concelho de Benavente e nem um metro a Alcochete. Durante a semana passada foram divulgados por especialistas da aviação, do ambiente e da engenharia que a Comissão Independente que concluiu ser Alcochete o melhor local para o aeroporto não teve em conta que no subsolo daquele terreno existe a maior reserva de água doce de Portugal. Foi afirmado que os 10 anos anunciados para a construção é um escândalo se tomarmos em conta que o maior aeroporto da Europa, o de Istambul, acabou de ser construído em cinco anos e que, o de Beijing, um dos maiores do mundo, levou a construir apenas quatro anos.

Depois, as infraestruturas adjacentes ao aeroporto irão sobrecarregar os gastos anunciados de 10 mil milhões de euros, tomando em conta que ter-se-á de construir uma nova ponte sobre o rio Tejo com vias rodoviárias e ferroviárias. Mais se esclareceu que os portugueses poupariam um dinheirão se o aeroporto de Beja fosse ligado a Lisboa por uma via férrea rápida. Trata-se de uma estrutura já em funcionamento, com um espaço gigantesco para melhorar o que fosse necessário e serviria igualmente o turismo do Algarve, já que o aeroporto de Faro está a rebentar pelas costuras. As opiniões foram as mais diversas, salientando-se que Santarém ou Vendas Novas seriam opções muito mais baratas e mais rápidas na ligação a Lisboa.

Se hoje, a população de Lisboa protesta pela exagerada quantidade de CO2 que tem de respirar com o enorme movimento do aeroporto Humberto Delgado, daqui a 10 ou 15 anos, será a população de Alcochete e arredores – que aumenta anualmente – a protestar com o ruído e com a poluição. Há muitos especialistas que não entendem a decisão de Alcochete, aliás, de Benavente, porque se a pretensão é baseada na existência de um movimento de 90 milhões de passageiros, obviamente que a capital não suporta a chegada nem de metade. Acresce-se a particularidade de a maioria dos opinadores ligados ao bloco central político concordar com a localização, também houve logo quem dissesse que determinados blocos financeiros desse centrão já adquiriram todos os terrenos que rodeiam a localização do novo aeroporto. Nesses terrenos serão construídos hotéis, condomínios de luxo e outras estruturas de grande rendimento financeiro.

A decisão demorou 50 anos. No entanto, é necessário sermos justos e dizer que José Sócrates há mais de 10 anos quis iniciar o projecto do novo aeroporto em Alcochete. Tal como o TGV que ligasse Lisboa a Madrid e que agora o Governo anunciou que será uma obra a realizar. A questão mais premente é a interrogação sobre onde Portugal irá arranjar tantos milhares de milhões de euros para os mega projectos? Em parcerias público-privadas? E o problema da ANA que tem a concessão absurda para 50 anos da gestão de todos os aeroportos? Um facto que o Governo devia resolver de imediato no sentido de a ANA nada ter a ver com o novo aeroporto. A ANA estava obrigada por contrato a realizar obras no exterior do aeroporto da Portela, aumentar os hangares de manutenção, o estacionamento de aviões e de outras estruturas. Sabem o que a ANA faz há anos? Só tem aumentado o freeshop, isso é que lhe tem dado muito dinheiro.

O facto mais discutido é verdadeiramente o tempo anunciado para a obra: 10 anos que certamente se transformarão em 15 ou mais. Ninguém acredita que o aeroporto esteja concluído em 10 anos. Mesmo assim, é inacreditável como se decide um projecto desta natureza para 10 anos, tendo exemplos no mundo em que se constroem aeroportos modernos em quatro e cinco anos.

Todo este pecúlio gigantesco trouxe à colação de imediato a situação de pobreza em que os portugueses vivem. Cerca de quatro milhões a viver sem qualidade de vida. Os jovens sem possibilidade de comprar uma casa, os idosos em lares miseráveis onde não são tratados, mas sim abandonados. Os reformados que não conseguem ver governantes que lhes proporcionem um aumento significativo das suas reformas miseráveis entre 200 e 400 euros.

Não se constrói um bairro social com dignidade, um hospital central em Lisboa, não se resolve o problema dos professores, das forças de segurança, das forças armadas, dos oficiais de justiça, dos guardas prisionais. Porquê? Porque os governantes dizem que não há dinheiro, mas para projectos de grande envergadura o dinheiro não falta. Dirão alguns que serão os privados a pagar. Debalde. O Estado nunca poderá privar-se de ter a sua quota num aeroporto internacional que passará a ser o maior do país. A dúvida irá sempre ficar no “ar”, porque se trata de um voo de longa distância. O que não agrada aos lisboetas é ficarem mais 10 ou 15 anos a viver com o pânico da queda de um avião sobre a cidade provocando uma tragédia sem limites.

20 Mai 2024

Um amigo

ADMITO que haja e até que sempre tenha havido indivíduos de muito alta qualidade intrínseca. No caso do ouro, isso mede-se em quilates. Na espécie humana, admito que tal coisa não é nem alguma vez será mensurável, dada a natureza da matéria em questão e o seu relacionamento com o imaterial, que nunca vimos mas sabemos existir por termos constante evidência dos seus efeitos na matéria, na antimatéria, no biológico e no mineralógico, no atómico e no quântico. Substância que nem quando é imaterial – desculpem a aparente contradição nos termos – deixa de possuir um poder muito grande, como acontece com a fé e com as superstições.

Também admito que o fenómeno da erosão na espécie humana e em todas as outras, bem como em cada um dos seus indivíduos, tenha começado logo no instante seguinte ao do biguebangue – ai, como eu gosto e escrever assim! – e que, dada a reconhecida expansão física de toda a matéria conhecida, tenha sido, numericamente, cada vez maior e perceptível, enquanto que, ao invés, a sua proporcionalidade talvez seja cada vez menor, se bem que imperceptível ou inabordável.

Vem isto a propósito de me parecerem poucas, ou contabilisticamente muito poucas, as pessoas de alto valor humano e mais raras ainda as de altíssimo valor humano, ou ético – dúzias, quiçá – em todo este hemisfério –, apesar de eu ter algumas na minha arrecadação e de elas nem sequer imaginarem tal privilégio meu.

Julgo ter um amigo assim, pelo menos esse, embora ele nem sonhe que o avalio assim, e que ele não me pague com a mesma moeda.

Sei tratar-se de uma pessoa algo diferente de mim nos gostos, no percurso aquisitivo de transitórias certezas e na aprendizagem de noções e revisão de conceitos e preconceitos, na relativização do rigor matemático, na relação afetiva com canídeos, felídeos, equídeos, artiodáctilos e perissodátilos, ungulados e alados, enfim, pessoa que em várias questões tem entendimentos, valorações, metodologias de análise, capacidade de exclusão, etc.

Esse velho amigo e partícipe em vários atos dos quais não estava ausente o risco de vida e conseguia dormir angelicalmente a poucos metros de uma tonelada de trotil, e não se esquecia de levar uma rosa vermelha a alguém que era cúmplice da nós ambos, um fragilizado amigo que teve se integrar numa horda que sempre nos hostilizou de todas as formas possíveis na ordem social, um diminuído amigo que, por imperativos de sobrevivência, até foi secretariar uma pequena e muito competente empresa de palhaços e que nem sonha que penso nele neste momento é mesmo um amigo que não sei catalogar e que me parece ser cada vez mais indispensável à minha sanidade psíquica, ética e cívica.

Poucos terão amigos de tão alta qualidade. Eu tenho. Pelo menos este.

*

ALGURES, no planeta, uma agência de notícias foi encerrada por decisão governamental, por acaso aquela que era a mais visitada nos ecrãs da de todos os países da região.

Esse apagamento brutal chegou-me aos ouvidos na minha esplanada do costume, onde eu convivia descontraidamente com duas famílias amigas e tinha, na mesa à minha direita, se enfronhavam asserções e corrigendas dois fulanos meus desconhecidos, talvez quezilentos, talvez necessitados apenas de esgrimir argumentos sobre matérias em que discordavam e em que depois se percebia estarem, afinal, de acordo.

O tema em disputa era a liberdade de imprensa, “a liberdade de informar e de ser informado”, nos termos usados pelo mais velho, mas não chegou a produzir efeito durável e a conversa descambou para as banalidades do campeonato de futebol, que já tinha “vencedor garantido” e gerava maledicências de todo o tipo.

Enveredaram os doutos “treinadores de bancada” por uma competição inesperada – qual deles conhece mais aforismos? – e caíram, por fim, no terreno tantas vezes obsceno do anedotário futebolístico, em que impera o portista, terroir em que um presidente com 42 anos de poder autocrático ainda “não queria largar o osso”, como dizia o mais novo dos meus vizinhos de esplanada que, em casos como este, é consistentemente uma esplatudo.

Não tive ensejo de perguntar qual era a agência de imprensa acabada de encerrar e só em casa pude tirar a limpo que se tratava da multinacional Al Jazeera que viu subitamente os seus escritórios encerrados à força em Telavive, Jerusalém e Gaza, sendo aí cortado o pio aos repórteres e, a mais de uma dúzia, também as cabeças.

Mas só em casa consegui informa-me destes pormenores insignificantes, se o direito a atribuir-lhes significado estiver nas mãos de Biden, Ursula von der Leyen, Zelenskyi, Nethaniahu, Scholz, Macron ou qualquer outro santo europeu, mesmo os mais bem penteados, como o André Ventura, o coronel-general Isidro Morais Pereira e algumas generalas de aviário que vestem a farda virtual para irem arengar às tropas do púlpito da CNN, RTP, SIC, TVI e CM.

A esses, se tal estivesse a meu alcance, eu condenava-os a reclinarem-se num sofá da NATO, algemados de pés e mãos, alimentados a cabidela humana, com temperos hitlerianos ou tão-só salazarentos, mas confeccionada por Ana Gomes.

Desenterrados de valas comuns por funcionários da ONU, estes palestinianos mortos pelos militares israelitas ainda estavam vivos quando foram enterrados com os pulsos atados por cordas e mesmo algemas. Apresentam vários sinais de torturas e estão a ser trasladados para sepulturas normais e campas rasas, onde é proibido deixar flores, com a ajuda da sua prestimosa governanta Zita Seabra, sentença sem direito a recurso para tribunais superiores e com ternura e escombros num inferno palestiniano como o que encerra este apontamento.

17 Mai 2024

Cernuda

Um andaluz será para o mundo o grande civilizado, não o entendamos como a uma gratificação da espécie, mas apenas enquanto sentimento meridional que tudo reverte em luz, fruto de umas poderosas entranhas onde até a lua toma contornos de vasto clarão.

Esta energia nunca deixará de jorrar nos nossos sonhos pelo muito que a Terra nos deu, fecundou, e fez conciliar em terreno andaluz, seu jardim das Hespérides. Falar dos seus naturais também nos dá prazer, que neles perpassa um denominador comum difícil de ser ocultado pela graça de suas naturezas de um sul enfeitiçante. Luís Cernuda nascido em Sevilha é um dos muitos ilustres filhos da terra que nos deu a alma inteira na sua excepcional poesia. Cernuda é um imenso poeta que nos enche de reverência e encanto.

Nasceu logo no início do século vinte e foi na universidade de Sevilha que teve um professor, de seu nome Pedro Salinas, que o viria a inspirar, e definitivamente conduzi-lo a ser esse grande poeta em que se tornaria, indo então para Madrid onde nasceria o embrião da “Geração de 27” que integrou, e onde publicaria a sua primeira obra “Perfil Del Aire”.

Um grupo que marcaria um movimento moderno, revolucionário, que durante a Guerra Civil de Espanha foi a maior oposição ao fascismo, vanguarda de que nunca deixara de participar activamente nas trincheiras com a sua voz, intervenções e congressos. Cernuda era no entanto apaixonado pelos românticos, e deles certamente recebeu influências, sendo que, e ainda, vamos encontrar essa marca em sua poesia que transporta sempre o cunho dessa aura e o eleva, e como dizer – um utópico no meio da realidade do século vinte- mas os poetas são os poetas, e sem a marca de água das suas simpatias nenhum século tem nada para lhes oferecer.

Depois, parte para Toulouse, sul de França como leitor de espanhol na universidade desta cidade, mas ficaria aí por pouco tempo, fora proclamada a República, e tinha de estar presente no seu país para ajudar com seu tributo à causa que desejava livre, menos bravia e culturalmente mais humana. Não duraria muito a sua jornada em terras nacionais, a guerra instalara-se, e segue para Inglaterra inaugurando o seu exílio, e foi nele que aparecem “As Nuvens” no ano de 1940.

Estas Nuvens têm contacto com este nosso nevoeiro, as nossas, envolvem-nos de forma mais impenetrável, estão rentes ao chão e levam à cegueira o branco enquanto guia, as de Cernuda, porém, eram altas- alto- cúmulos- e falam-nos daquele que não regressa mais ao seu país e o vê por entre os céus desses flocos altos onde já não lhe é permitido tocar. Ninguém pode explicar melhor a dor que um livro de poemas assim “ya la distancia entre los dos abierta/ se lleva el sufrimento, como nube”

E agora errante, o nosso poeta parte para os Estados Unidos da América onde irá lecionar, mudando-se pouco depois para o México onde outras obras de relevo apareceriam ” Desolación de la quimera” uma continuação de “Nuvens” e todo um trabalho ensaístico em jornais e revistas mexicanas. Dos seus amigos da “Geração de 27” só Alberti chegaria a velho, muito velho, e creio que ainda manteriam contacto, aliás, ambos nasceram no mesmo ano Ano de 1902.

Afinal foi em Sevilha que o movimento começara, celebrando o mais alto instante da participação cívica nacional pela iniciativa de grandes poetas, nessa Andaluzia onde a justiça se impõe, a beleza se faz lei, e todas as formas de arte acontecem, e foi a partir de Gôngora que esta saga intrépida se juntara, também ele um andaluz, na conquista de um marco radicalmente novo e civilizacional. A sua proximidade ao surrealismo fê-lo um artesão continuado de certa intimidade, mas longe ainda do seu amigo Garcia Lorca que se fez matar em jovem idade e onde as abordagens às suas homossexualidades nem sequer coincidiram.

Enquanto amante do romantismo escreve “Pensamento poético na lírica inglesa” talvez em honra de Keats, poucos anos antes de morrer em 1963. É um poeta que a Ibéria deve tentar refletir na sua assombrosa diáspora onde nos foi dando razões sempre para partir. Mas não voltar a essa Andaluzia natal, tê-lo-á interpretado como sendo expulso do paraíso, que ela viu nascer em seu ventre os seres mais impressionantes desta nossa Península.

aos vossos escritores de hoje não os leio já.

daí o paradoxo: sem terra e sem povo, sou

um escritor muito estranho; sujeito fico ainda mais que outros

ao vento do esquecimento que mata quando sopra.

In «Aos seus compatriota», tradução e selecção de José Bento

16 Mai 2024

Injustiça Climática (continuação)

Um dos assuntos prementes que a humanidade mais atenção dedica é, sem dúvida, as implicações das alterações climáticas. É já lugar-comum associar esta realidade, cientificamente provada, com o uso abusivo dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) e a consequente contaminação da atmosfera, dos oceanos e do solo.

O petróleo está também na base da produção dos plásticos. Segundo a Plastics-Europe , a produção deste material à escala global tem vindo a aumentar, tendo atingido em 2019 cerca de 379,8 milhões de toneladas e, em 2023, aproximadamente 400,3 milhões de toneladas.

Materiais à base do plástico estão de tal forma disseminados que já foram detetados vestígios na Fossa das Marianas, no Oceano Pacífico, a cerca de 11 km de profundidade. As partículas mais pequenas resultantes da deterioração dos plásticos, comummente designadas por microplásticos já entraram na cadeia alimentar de organismos marinhos e, consequentemente, na cadeia alimentar humana.

As alterações climáticas constituem um problema que afeta não só toda a humanidade, mas também a biodiversidade, as florestas, os solos, os oceanos, ou seja, a sustentabilidade do nosso planeta. Está comprovado, no entanto, que as alterações climáticas não afetam as populações da mesma forma. A maioria das vítimas são os habitantes dos países que menos contribuíram para a degradação do clima, ou seja, os países menos industrializados.

Segundo o PNUD , entre 2010 e 2020, a taxa de mortalidade devida a fenómenos meteorológicos extremos, entre os quais cheias, secas e tempestades, foi de cerca de 15 vezes mais elevada nos países mais vulneráveis. Surgiram, assim, desde há alguns anos, movimentos para tentar remediar esta situação, de modo que os países mais afetados sejam compensados pelos que mais contribuíram para o aumento da concentração de GEE na atmosfera. Foi neste sentido que, na última Conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP 28), realizada em Dubai, em 2023, foi tomada uma decisão com o objetivo de atenuar este problema.

Tratou-se da criação de mecanismos de compensação, incluindo uma fonte de financiamento, o Fundo de Perdas e Danos (Loss and Damage Fund), para que os países em desenvolvimento possam recuperar dos prejuízos económicos e não-económicos associados a efeitos das alterações climáticas, deliberar estratégias de adaptação e mitigar as suas consequências. Perante a dificuldade de se concluir se um determinado evento é ou não consequência dessas alterações, houve o cuidado de este fundo vir a contemplar prejuízos causados por fenómenos meteorológicos extremos e eventos adversos de evolução lenta (slow onset events) como a subida do nível do mar, salinização dos oceanos, degradação do solo e florestas, perda de biodiversidade, etc., uma vez que as alterações climáticas não estão sempre na base da ocorrência de fenómenos meteorológicos extremos.

Estes sempre ocorreram muito antes do início da era industrial, ou seja, quando ainda as atividades humanas não dependiam significativamente dos combustíveis fósseis. Tudo indica, porém, que a sua frequência e intensidade têm vindo a aumentar, o que é atribuído à mudança do clima devido às atividades antropogénicas, cada vez mais intensas.

Inicialmente este Fundo será supervisionado pelo Banco Mundial, sendo a fonte de financiamento constituída por doações dos países que mais contribuíram para a degradação do clima, nomeadamente os Estados Unidos da América, Reino Unido e União Europeia. As quantias prometidas apenas ultrapassaram 700 milhões de dólares americanos, ainda muito abaixo do pretendido.

Segundo organizações não governamentais, as estimativas do custo anual de perdas e danos nos países mais vulneráveis variam entre 100 e 580 mil milhões de dólares americanos. Na opinião dos dirigentes da rede internacional Climate Action Network (CAN), constituída por mais de 1.900 organizações da sociedade civil, que promove ações de combate às alterações climáticas tendo em vista a justiça climática, as promessas iniciais de cerca de 700 milhões de dólares não passam de uma gota de água no vasto oceano das necessidades desses países.

Segundo o coordenador da estratégia política global da CAN, Harjeet Singh, o atraso de mais de 30 anos na criação deste fundo, aliado à escassa contribuição dos países mais ricos, reflete a indiferença destes perante a situação dos mais fragilizados.

Espera-se que na próxima conferência sobre o clima a ser promovida pelas Nações Unidas (COP29), em novembro de 2024 em Baku, no Azerbaijão, a justiça climática seja um dos assuntos mais relevantes a serem discutidos. É urgente que os países mais vulneráveis sejam compensados pelas perdas e danos causados pelas alterações climáticas e sejam assistidos no financiamento da transição energética, ou seja, na mudança de paradigma de uma matriz focada nos combustíveis fósseis para uma baseada em fontes renováveis.

15 Mai 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (III)

“The purely military or undiplomatic recourse to forcible action is concerned with enemy strength, not enemy interests; the coercive use of the power to hurt, though, is the very exploitation of enemy wants and fears”.

The Diplomacy of Violence
Thomas Schelling

 

 

Se os Acordos de Abraão tinham por objectivo bloquear a anexação da Cisjordânia em 2020, segundo Yousef Al Otaiba, embaixador dos Emirados em Washington, a sua extensão à Arábia Saudita poderia ter agora o duplo objectivo de mudar o curso da guerra e de relançar as negociações políticas que estão paradas há dez anos. De facto, os riscos para Israel tornaram-se mais elevados com a guerra em curso.

A situação tornou-se também mais complexa para a administração americana, que investiu os seus melhores recursos diplomáticos em torno da normalização entre sauditas e israelitas. O fim da “guerra total” em Gaza e um acordo israelo-saudita poderiam também ter um efeito positivo na campanha eleitoral do actual presidente democrata, cujas sondagens continuam a cair na perspectiva das eleições de Novembro próximo. Os Estados Unidos não escondem o seu afastamento progressivo do Médio Oriente desde a retirada do Iraque, em Dezembro de 2011, reiterada pela acção diplomática do Presidente Barack Obama no acordo nuclear internacional com o Irão e, mais recentemente, pelos Acordos de Abraão, sob a presidência de Donald Trump.

Mas o conflito em Gaza expandiu-se perigosamente na região com o ataque do Irão e Hezboolah, arrastando a América para as malhas de outros conflitos há muito não resolvidos. Em particular, os bombardeamentos britânico-americano contra várias posições militares dos Hutis no noroeste do Iémen destinam-se a travar os seus ataques contra a navegação comercial no Mar Vermelho e a travar a acção desestabilizadora do Irão, o seu improvável titereiro. Os americanos dissociaram oficialmente esta acção militar do conflito de Gaza, numa dupla tentativa de desacreditar as mensagens pro-palestinianas dos Hutis e de obter um consenso árabe que tarda em chegar.

Contrariamente à possível normalização, integração ou pacificação regional que Antony Blinken previa para o seu aliado israelita, a acção anglo-americana no Iémen arrisca-se a acrescentar mais um apêndice à guerra de Gaza, com resultados muito incertos, bem como a ressuscitar o espectro da guerra civil do Iémen e as suas ramificações regionais.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Yi Wang, não demorou a contradizer a posição americana. Numa visita ao Cairo, qualificou a tensão no Mar Vermelho como “uma encarnação das repercussões externas do conflito de Gaza” e denunciou a ilegalidade dos ataques anglo-americanos ao Iémen por não terem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Também se distanciou dos Estados Unidos e apelou, juntamente com o seu homólogo egípcio, a um cessar-fogo imediato em Gaza e a uma paz duradoura que passe pelo reconhecimento internacional do Estado da Palestina. Mas, para além das denúncias, o ministro chinês não apresentou uma solução diplomática para a insegurança no Mar Vermelho, por onde passa cerca de 12 por cento do tráfego marítimo mundial. Limitou-se igualmente a reiterar a posição chinesa a favor de uma conferência internacional sobre o conflito israelo-palestiniano, que, embora partilhada por Estados da região e da Europa, se opõe, sem sucesso, à abordagem bilateral seguida por Israel, apoiada pelos Estados Unidos, “no tratado de paz” com o Egipto negociado em 1978-1979.

No Médio Oriente em ebulição, a competição sino-americana não dividirá ainda mais os países da região, que tencionam manter-se afastados dela para maximizar os seus benefícios. Não irá incitar a UE, dividida e ausente, a assumir um papel político incisivo nos assuntos da região. Em vez disso, vai pressionar os Estados Unidos a continuar a lidar com ela.

Entretanto, o Irão lançou dezenas/centenas de drones kamikaze, mísseis de cruzeiro e lançadores balísticos a 13 de Abril contra Israel, em represália pelo bombardeamento da sede consular do regime dos ayatollah em Damasco a 1 de Abril. Trata-se do primeiro ataque directo da República Islâmica contra o Estado judaico. Teerão informou, no entanto, que tinha informado os seus vizinhos em tempo útil antes de lançar o ataque. Israel e os seus aliados tiveram, assim, tempo para preparar contra-medidas. Em todo o caso, os alvos designados não eram as zonas mais densamente povoadas. Os mísseis e os drones visavam sobretudo o Golã, o Sul e a Cisjordânia. Mas também foram efectuados ataques contra Jerusalém. De acordo com as Forças de Defesa de Israel, foram lançados cerca de 170 drones, 30 mísseis de cruzeiro e 120 mísseis balísticos.

Alguns foram dirigidos contra a base de Nevatim, onde estão estacionados os valiosos caças F-35. Com a ajuda de americanos, britânicos, franceses, jordanos e sauditas, 99 por cento dos projécteis foram interceptados. O Estado judaico avaliou a necessidade de um contra-ataque.

O gabinete de guerra presidido por Binyamin Netanyahu consideraou o tipo e o momento com as pressões americanas e dos aliados para não haver retaliação. Os dois membros do governo de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, apelaram a medidas militares pesadas. Por seu lado, o Presidente dos Estados Unidos, apelou ao “Rei Bibi” para que não retaliasse contra o ataque e considerasse os sucessos antiaéreos como uma “vitória”. Aparentemente coincidindo com o aniversário do Guia Supremo da Revolução Islâmica, Ali Khamenei, Israel efectuou uma represália limitada e simbólica contra uma base aérea perto de Isfahan.

Ainda não há uma reconstituição coerente dos factos e o ataque foi efectuado com a utilização de pequenos drones, talvez mesmo a partir do interior do território iraniano, onde há muito tempo actuam agentes dos serviços secretos do Estado judaico.

A resposta militar à agressão iraniana na noite de 13 para 14 de Abril foi feita com mísseis de longo alcance lançados de aviões segundo o “Jerusalem Post”. É certo, porém, que as defesas antiaéreas iranianas foram activadas e que se ouviram explosões, circunstâncias que confirmariam a perfeição de um ataque e apontariam para a hipótese de vectores exteriores à República Islâmica. Na ausência de mais pormenores, porém, parece possível concluir que Israel atacou efectivamente o Irão de forma a não causar vítimas, escolhendo um alvo de natureza militar e não muito distante das instalações utilizadas por Teerão para o seu programa de investigação nuclear. Assistimos a um exercício daquilo a que Thomas Schelling chamou “diplomacia da violência”.

A mensagem transmitida pelo Estado judaico é, paradoxalmente, uma manifestação de boa vontade, porque se evitaram danos irreparáveis e agora também Israel pode considerar encerrada, pelo menos, esta fase do confronto com o Irão. Mas é também um aviso dirigido aos ayatollahs e ao Pasdaran (Guarda Revolucionária Iraniana) de que uma nova infracção será punida com ataques muito mais mortíferos a que Teerão não poderá resistir.

15 Mai 2024

Cheques pecuniários em 2024

Esta semana, espera-se que a notícia mais partilhada nas plataformas online venha ser o relatório referente à distribuição dos cheques pecuniários de 2024 em Macau. À semelhança dos anos anteriores, os residentes permanentes irão receber 10.000 patacas e os residentes não permanente 6.000. Estima-se que cerca de 750.000 pessoas beneficiem desta medida, com o Governo de Macau a alocar aproximadamente 7,5 mil milhões de patacas para a sua implementação.

Com base em cálculos feitos por alto, esta medida proporciona a cada residente permanente um acréscimo mensal de 800 patacas e a cada residente não permanente um acréscimo mensal de 500. Embora estes valores possam parecer modestos, para as pessoas com mais de 65 anos, podem contribuir para um rendimento mensal de cerca de 6.300 patacas quando combinados com as pensões de velhice, os subsídios para residentes séniores, e os rendimentos do Fundo de Previdência Central. O leque de benefícios sociais oferecido pelo Governo de Macau assegura no seu conjunto uma base sólida que oferece segurança financeira aos residentes idosos.

É essencial que o Governo defina claramente as suas políticas e os seus objectivos durante as fases de formulação, comunicação e implementação. Esta transparência ajuda a identificar quem pode beneficiar destas medidas e assegura que a sua execução está em sintonia com as metas pretendidas. Além disso, permite que a sociedade monitorize a eficácia das políticas e a alocação racional de recursos, garantindo, assim, que os grupos alvo desfrutem verdadeiramente destes benefícios.

O principal propósito da distribuição de cheques pecuniários foi, desde o início, a partilha dos frutos do sucesso da economia de Macau com os seus residentes. No entanto, apesar do declínio das receitas do sector do jogo durante a pandemia, o Governo permaneceu empenhado em manter este programa, facultando benefícios aos residentes. Este procedimento demonstra claramente que esta medida se destina não só a partilhar os ganhos económicos, mas também que funciona como uma iniciativa de segurança social destinada a beneficiar os residentes de Macau.

Actualmente, o objectivo da distribuição de cheques pecuniários vai além da mera partilha do sucesso económico. Considerando esta evolução, o Governo deve reformular o programa e esclarecer melhor os seus propósitos?

Ao contrário das políticas gerais, a distribuição de cheques pecuniários é uma iniciativa de segurança social que beneficia todos os residentes de Macau. Como foi salientado pelo Chefe do Executivo em declarações públicas, o cheque de10.000 patacas anuais é uma componente importante nas finanças de muitas famílias. Por conseguinte, quaisquer mudanças neste programa iriam afectar os orçamentos dessas famílias. Neste caso, o seu objectivo é uma questão secundária; o mais importante é garantir que cada residente continue a beneficiar dele.

Se existirem discussões na sociedade em relação ao propósito desta medida, podemos também considerar o assunto a partir desta perspectiva, o que poderá ir mais ao encontro do sentimento das pessoas.

A partir de Julho, os residentes de Macau irão começar a receber gradualmente 10.000 patacas cada. Se os vão gastar ou poupar irá depender das circunstâncias e das necessidades de cada um. Valeria a pena responder às declarações do Chefe do Executivo, que afirmou: se decidirem gastá-lo “comprem uma refeição em Macau”. Desta forma, ajudam a promover a economia local, a beneficiar as empresas, os residentes e a sociedade no seu todo.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau

14 Mai 2024

Violência doméstica na rua da amargura

Nunca se falou tanto em violência doméstica em Portugal como na semana passada, devido a um caso com figuras públicas. Mas, a violência doméstica está cada vez mais pela rua da amargura com um aumento substancial de casos que incluem o homicídio. Existem vítimas que aguardam há três anos uma decisão judicial sobre o agressor. A maioria dos ou das praticantes de violência doméstica anda em liberdade.

A justiça, infelizmente, ainda não se convenceu que a violência doméstica é uma realidade sofredora, dolorosa e que por vezes acaba com a vida de muita gente. Na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica foram acolhidas 1.478 pessoas, sendo, 50,1 por cento mulheres, 48,6 crianças e 1,3 homens. Registaram-se 8.443 ocorrências participadas à PSP ou à GNR no último ano. Tivemos o registo de quatro vítimas de homicídio voluntário em contexto de violência doméstica (três mulheres e um homem). Desde o início de 2023 registaram-se 18 vítimas, entre as quais 14 mulheres, três homens e uma criança.

Muito se falou em todos os canais de televisão e jornais em violência doméstica, simplesmente porque uma criatura que nada faz há cerca de 30 anos foi suspeito e detido por alegada violência doméstica a sua mulher com 95 anos. Entremos um pouco na história da senhora que aceitou uma criatura para companheiro que horroriza as pessoas sempre que aparece na televisão repleto de feminilidade. Recuemos à Segunda Guerra Mundial para compreender a ligação entre Elisabeth Larner e Albert Grafstein, um judeu negociador de diamantes que dirigia a Grafstein Diamond Corporation.

Betty é o diminutivo de Elizabeth Larner, uma inglesa filha adoptiva de uma dama de companhia da rainha Maria, avó da rainha Isabel II. Aos 18 anos, Betty muda-se para Nova Iorque com o namorado, um playboy que pouco depois a abandona com um filho recém-nascido. Betty passou a trabalhar na Pepsi Cola, altura em que conheceu Albert Grafstein com quem viria a casar. Ela tinha 25 anos e ele 49 e já uma filha habituada ao universo da alta joalharia. Albert Grafstein viria a adoptar o filho do primeiro casamento de Betty, que é quem dirige actualmente a Grafstein Diamond Corporation. Após o falecimento do seu marido, em 1991, Betty torna-se herdeira de um império de diamantes e de uma joalharia em Nova Iorque, a qual ainda existe. E é em meados da década de 1990 que Betty conheceu José Castelo Branco, com quem casou em 1996.

Ora, na semana passada aquele que pensava ter o mundo à sua volta foi detido por alegadamente ter agredido a sua mulher Betty. Presente a um juiz de Instrução Criminal, este mandou-o em liberdade com a proibição de se aproximar de Betty. De imediato choveram declarações de várias pessoas que até agora tinham estado caladas. Um amigo do casal afirmou que Castelo Branco bate na mulher desde que casaram. Uma antiga empregada do casal veio informar que Castelo Branco batia constantemente na mulher e que chegou a bater na própria mãe. O filho de Castelo Branco recusou-se a aceitar o pai em sua casa. Os médicos do hospital onde Betty está internada apresentaram um relatório onde confirmam que os ferimentos foram devido a violência. Uma nossa fonte esclareceu-nos que o homem viveu sempre à custa do dinheiro de Betty e que a obrigava a entregar-lhe diamantes com os quais realizava negócios.

O caso parece patético e é salientado pelos média porque a criatura Castelo Branco aparecia em todo o lado e em todas as televisões rica e faustosamente vestido pendendo para o feminino. Ora, o que não se entende é que perante tantos testemunhos de amigos e ex-empregados do casal no sentido que Castelo Branco agredia constantemente a senhora e que a mesma não podia sequer dizer um “não” porque levava logo uma bofetada e estando em causa um relatório médico, o juiz de Instrução Criminal tenha decidido que a criatura alegadamente agressora fosse em liberdade, aliás, podendo fugir para os EUA porque tem passaporte americano.

Castelo Branco nega as acusações todas, mas qualquer observador não acredita nele e a verdade é que nenhum órgão de comunicação social ainda se atreveu a falar dos possíveis negócios de diamantes, onde verdadeiramente poderá estar o busílis de toda esta relação conjugal com uma senhora que tem 95 anos, frágil, obediente a todas as ordens de Castelo Branco e agora deitada na cama de um hospital com o fémur partido e tendo afirmado, para memória futura, ao juiz e ao procurador que a visitaram no hospital: “Ele é um abutre! Não o quero ver mais!”.

A violência doméstica em Portugal aumenta todos os dias à bofetada, à paulada e à facada. A justiça não possui meios para que acto contínuo possa sentenciar os agressores e existem vítimas que sofrem diariamente numa sobrevivência de medo, privação e de dor. Ou seja, a violência doméstica está mesma na rua da amargura.

13 Mai 2024

Condições ambientais extremas

As condições ambientais extremas podem verificar-se na Natureza ou na sociedade, sendo que no primeiro caso podem provocar desastres e no último destruição.

Na tarde de 30 de Abril, o tempo em Macau não estava normal, com trovoadas fortes e queda de granizo, o que já não acontecia desde 2011. A 4 de Maio, a Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos emitiu pela primeira vez, em quase três anos, o Sinal Preto referente a Chuva Intensa. Extensas zonas da cidade ficaram inundadas e as cheias na província de Guangdong foram ainda mais devastadoras. Desde a passagem do tufão “Hato” em 2017 e do subsequente super-tufão “Mangkhut”, os cientistas previram que devido à destruição do meio ambiente, os fenómenos meteorológicos extremos tornar-se-iam cada vez mais frequentes.

A Tasmânia, localizada na Austrália, tem o ar mais puro de todo o planeta. No noroeste da Tasmânia, a Australian Academy of Science e o United States Department of Energy criaram em conjunto uma estação de monitorização do ar, e a composição do ar da Tasmânia serve de base de comparação para medir as alterações nas emissões globais de gases com efeito de estufa e do dióxido de carbono. De acordo com alguns estudos, os cientistas descobriram que o dióxido de carbono na atmosfera aumentou 25% de 1978 a 2024, o que é extremamente preocupante.

Os danos causados à Natureza podem ser reparados através da protecção e da conservação do ambiente, mas as feridas infligidas na sociedade podem nunca vir a sarar completamente.

Todos sabemos que a deflagração de uma guerra nuclear ou da III Guerra Mundial podem fazer desaparecer a Humanidade da face da Terra. No entanto, a guerra neste planeta é inevitável. Em 24 de Fevereiro de 2022, tropas russas invadiram a Ucrânia, e a 7 de Outubro de 2023, um grupo de militantes do Hamas atacou Israel. Estes dois conflitos continuam a decorrer e mesmo a intensificar-se. Se as sementes do belicismo se espalharem para outras regiões do mundo, será o início de outro desastre catastrófico.

Quando ocorrem condições ambientais extremas numa sociedade, especialmente quando ocorrem comportamentos extremos na política, os assassinatos são inevitáveis. Song Jiaoren (fundador do Partido Nacionalista, Kuomintang) durante a República da China, Mahatma Gandhi (após a Partição da Índia) e Yitzhak Rabin, o antigo Primeiro-Ministro de Israell, são disso exemplo, todos assassinados às mãos de extremistas, e infelizmente as suas mortes trouxerem consigo mais mortes.

A Natureza exige um equilíbrio ecológico e a ecologia de uma sociedade também deve ser equilibrada. No 1º de Maio deste ano, não houve manifestações em Macau. Depois de três anos de pandemia, os comícios e desfiles que eram habituais há poucos anos também desapareceram. A aparente calma social representará paz verdadeira? Quererá isto dizer que os cidadãos não têm quaisquer queixas ou reclamações? Passar de um extremo a outro nunca foi bom.

Ninguém por sua vontade escolhe viver num local onde ocorram fenómenos meteorológicos extremos ou que esteja sempre em guerra. Leva muito tempo a construir um local próspero, seguro e cheio de vitalidade, mas leva muito menos tempo a destruí-lo. Eliminar os factores que causam condições ambientais extremas e restaurar a harmonia na Natureza e na sociedade deveria ser da responsabilidade de todos nós.

10 Mai 2024

Arrancar os pêlos

Como é que se começou a arrancar os pêlos? Foi esta questão que a Rebecca Herzig se debruçou no seu livro Plucked: A History of Hair Removal. A autora, com rigor académico, explora história dos pêlos e as suas práticas ao longo do tempo, principalmente em contexto norte-americano.

O fascínio pelos pêlos começou mais ou menos assim: os europeus chegaram às Américas e deparam-se com comunidades nativas com poucos pêlos. Nessa altura fizeram questão de realçar a sua superioridade através dos seus pêlos faciais. Um suposto sinal de racionalidade e capacidade intelectual. Assim se estabeleceram indicadores para hierarquias sociais, justificações para a colonização e controlo. Contudo, depois dos americanos nativos estarem devidamente controlados e separados nas reservas, outra assumpção de pêlos surgiu, em consonância com a teoria da evolução do Darwin. Ele, por sinal, era obcecado pelo tema. Dedicou alguns capítulos do seu trabalho a conjecturar como é que nos separamos dos nossos parentes primatas a esse nível. Talvez porque haveria uma escolha preferencial pela pele macia dos menos peludos? Talvez porque haveria facilidade de aguentar temperaturas altas, possibilitado a caça em horas quentes do dia? As massas rapidamente abraçaram a ideia de que a falta de pêlos seria um sinal de distanciamento primata. Quem esteve particularmente vulnerável a esta retórica foram as mulheres.

As mulheres têm o poder de parir e amamentar. São funções que as aproximam do seu legado animal, um legado do qual o ser humano muito tenta se afastar. Os pêlos são por isso um lembrete dessa ligação evolutiva. Daí a importância de limpá-los, minimizá-los ao máximo. Durante o movimento sufragista os pêlos foram altamente escrutinados. Os pêlos, os responsáveis pelas tendências emancipatórias, eram tidos como demasiado masculinos, animalescos e pouco higiénicos.

Muitos objectos e técnicas para acabar com pêlos supérfluos foram desenvolvidos desde a segunda metade do séc. XIX. Muitos cremes depilatórios foram comercializados contendo substâncias tóxicas. Há quem tenha morrido com produtos que só as desenvencilhavam da penugem por três semanas. Claro que desde cedo que se tentou descobrir formas mais definitivas de remover pêlos, como a electrose ou raio-x, que não tiveram a devida supervisão e cuidado científico. Os efeitos secundários prejudicaram muitas mulheres na altura, no início do século XX.

Apesar de uma das conclusões do livro ser que os padrões sociais estão sempre em mutação, e que o status quo é frágil e precário, os pêlos continuam a ser alvo de muito desdém actualmente. A tecnologia, contudo, já é muito mais avançada. Quem tiver meninas na família terá assistido, certamente, como se torna numa questão importante do seu desenvolvimento e entrada na adolescência. Apesar de um tópico menos contencioso, não deixa de ser um rito de passagem: a primeira vez que arrancam os pêlos.

Eu nunca me esquecerei da minha primeira vez. Tinha uma tia que era esteticista e ela já tinha tornado muito claro que as minhas pernas teriam de ser depiladas o quanto antes. Eu anuí, quem quer ser a pré-adolescente peluda? A dor, o cheio da cera, as lições tricológicas de como não aumentar ainda mais a densidade de pêlos da minha situação já precária ficaram gravadas na minha memória. O que vale é que teria como resolver este meu estado decrépito: visitá-la de três em três semanas, passar por dores indiscritíveis e gastar dinheiro. Sem pêlos, tudo ficaria bem.

Várias antes de mim passaram pelo mesmo. Há mais de 150 anos que os pêlos supérfluos continuam a ser arrancados de muitas maneiras, e continuam a ser objecto de controlo. Já para não falar dos pêlos púbicos e das suas muitas possíveis apresentações. A verdade é que agora, nas tentativas de desmantelar binarismos de género, os pêlos têm sido altamente implicados. Em pleno século XIX, já é um acto político decidir não arrancar os pêlos. Ostentá-los é uma forma de contrariar a representação do pêlo que vive fora do couro cabeludo. Ainda que muitas pessoas continuem, e continuarão, a ser plucked.

8 Mai 2024

Injecção de capital

Como o Governo de Macau anunciou que vai injectar 7.000 patacas na conta do Fundo de Previdência Central Obrigatório de cada residente, que obedeça aos requisitos legais, cada um deles vai poder contar com esta verba adicional como garantia de mais segurança na reforma. Os mais beneficiados serão aqueles que têm mais de 65 anos, que podem levantar de imediato este valor.

O Fundo de Previdência Central Obrigatório pretende solucionar o problema da reforma dos residentes conferindo-lhes segurança. Actualmente, os idosos que reúnam todas as condições recebem uma pensão de velhice, que inclui o 13.ºmês, de 3.840 patacas mensais. Além disso, ainda podem receber um subsídio anual de 9.000 patacas, mais o cheque pecuniário anual de 10.000 patacas. No total, incluindo as 7.000 patacas injectadas recentemente, os idosos de Macau podem receber pelo menos 6.000 patacas mensais.

Para dar tantos benefícios aos residentes, o Governo tem de gerir as finanças cuidadosamente. De acordo com o disposto na Lei Básica de Macau, as despesas do Governo devem ser feitas segundo as suas possibilidades. Portanto, como durante a epidemia, o Executivo não teve excedente fiscal, não houve injecção de capital no Fundo de Previdência Central.

Com a melhoria da situação orçamental, o Governo voltou a injectar capital neste Fundo e cada residente receberá mais 7.000 patacas anuais na sua conta previdência. No entanto, devemos ter consciência que a protecção aos idosos não pode ficar apenas a cargo do Governo. Os residentes devem investir e fazer preparativos para o futuro.

O Governo já havia proposto um plano obrigatório para o Fundo de Previdência Central, a partir de 2026. Simplificando, todos os trabalhadores passam a descontar mensalmente para este Fundo 5 por cento dos seus salários, bem como as entidades patronais que descontarão outros 5 por cento do salário dos trabalhadores. Portanto, cada assalariado acumula todos os meses 10 por cento do ordenado para garantir a sua reforma.

Hoje em dia, embora a epidemia já tenha passado, a julgar pelos dados da recuperação económica global de Macau, ainda é incerto se regressará aos níveis anteriores. Para que este plano seja aplicado ao Fundo de Previdência Central a partir de 2026, o Governo terá de gerir a situação cuidadosamente. Acredita-se que irá monitorizar a economia e outros parâmetros antes de tomar uma decisão informada.

Além disso, durante a formulação do Discurso Político e do Orçamento, houve apelos para que o Governo injectasse capital no Fundo de Previdência Central e emitisse simultaneamente vales electrónicos para incentivar o consumo. No entanto, o Governo declarou que não podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Por conseguinte, acabou por optar por injectar capital no Fundo de Previdência Central.

A distribuição de vales electrónicos de consumo e a injecção de capital no Fundo de Previdência Central têm propósitos diferentes. O objectivo da injecção de capital no Fundo de Previdência é proporcionar aos residentes segurança na reforma. A distribuição de vales electrónicos pode fazer aumentar o consumo e incrementar a procura interna, promovendo a recuperação económica. Qualquer uma das opções, traz benefícios e satisfação aos residentes.

Espera-se que a economia de Macau regresse aos níveis pré-pandémicos o mais rapidamente possível. Neste sentido, se voltarmos a lidar com este problema futuramente, as hipóteses de obtermos em simultâneo, vales electrónicos de consumo e um acréscimo anual de 7.000 patacas no Fundo de Previdência Central crescerão amplamente e todos ficarão mais felizes.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau

8 Mai 2024

50 anos do 25 de Abril – Memória e Esquecimento

Entre memória e esquecimento a necessidade de preservar locais simbólicos em prol da liberdade e democracia de natureza essencialmente educativos e de formação cívica para que não se esqueçam as atrocidades cometidas por um sistema político repressivo de uma ditadura fascista que durante 48 anos amordaçou Portugal

Por Nuno Pereira, jurista

 

“ABANDONO” 1

De David Mourão-Ferreira

(1962)

Por teu livre pensamento

Foram-te longe encerrar.

Tão longe que o meu lamento

Não te consegue alcançar.

E apenas ouves o vento

E apenas ouves o mar.

Levaram-te, a meio da noite:

A treva tudo cobria.

Foi de noite, numa noite

De todas a mais sombria.

Foi de noite, foi de noite,

E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno

Persiste em me envenenar.

Oiço apenas o silêncio

Que ficou em teu lugar.

E ao menos ouves o vento

E ao menos ouves o mar

Ao menos ouves o vento

Ao menos ouves o mar

No dia 25 de Abril de 1974 tinha eu onze anos de idade e, naturalmente, ainda sem as necessárias capacidades para entender e compreender o importante significado da “Revolução dos Cravos” tive (e sofri) no final desse mesmo ano uma das consequências mais dramáticas passadas por mais de quinhetos mil portugueses que regressaram a Portugal vindos das ex-colónias no âmbito do processo de descolonização – os chamados retornados – embora muitos deles na qualidade de refugiados, visto que até então nunca tinham residido na chamada “Metrópole”.

Esse acontecimento foi sem dúvida o facto mais marcante da minha vida no período após o 25 de Abril e que mais tarde despertou a minha curiosidade para tentar entender e compreender a descolonização que foi um dos chamados “três Dês” do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA): “Descolonizar, Democratizar, Desenvolver”.

O colonialismo e a guerra colonial portuguesa foi sem dúvida um dos temas mais interessantes em relação ao qual tenho procurado alguma informação e mesmo já havendo alguma relevante continua a ser ao fim destes 50 anos do 25 de Abril um dos temas tabus da sociedade portuguesa e cuja memória ainda não está devidamente tratada de uma forma sistematizada e global, dando a ideia que se quer esquecer para que as gerações futuras dela não tenham conhecimento porque segundo se diz, ainda existem muitas feridas abertas e receio que as fechadas voltem a ser reabertas.

Contudo, decorridos 50 anos após o 25 de Abril e convidado a reflectir sobre alguns dos temas mais relevantes durante esse período veio-me à lembrança, para além daquele já referido que mais marcou a minha juventude com o retorno a Portugal vindo de Angola onde nasci e por tudo aquilo por que passei como retornado, bem como toda a problemática da integração social num país e gentes que pouco conhecia, foi o facto de o meu pai antes de ter falecido me ter confessado nas nossas saudosas conversas o facto de após ter cumprido o serviço militar obrigatório ter prestado provas, quase em simultâneo, como era como era comum nesse tempo, para ingresso nos quadros da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)/Direção-Geral de Segurança (DGS) e da Polícia Judiciária (PJ), tendo felizmente ingressado nesta instituição onde acabou por realizar toda a sua carreira profissional até ser aposentado.

Esse facto – ter o meu pai concorrido mas não ingressado na PIDE/DGS porque os resultados do concurso da PJ apenas foram publicados antes dos daquela polícia política – levou-me a efectuar um estudo mais aprofundado da PIDE/ DGS e das suas prisões privativas que fizeram parte de um sistema político repressivo muito mais amplo e do qual faziam parte integrante outras instituiçõers como a Censura e os Tribunais Plenários na luta contra todos aqueles que se opunham ao regime fascista e que foram perseguidos, torturados e até mortos.

É dessa memória que eu quero deixar o meu testemunho para que não seja esquecida neste meu país, a qual tem de ser registada para memória futura para conhecimento das actuais e futuras gerações.

E só passados 50 anos do 25 de Abril foi no dia 27 de Abril de 2024 inaugurado o Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) na Fortaleza de Peniche, a qual tinha sido convertida, em 1934, pelo salazarismo, em “prisão política de máxima segurança”.

De passagem por Portugal tive o privilégio de poder assistir a essa inauguração e compreender o sugnificado que teve para todos aqueles que lutaram por tamanho projecto ao longo destes anos destacando, para além de outras pessoas singulares ou colectivas, a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP).

Graças à luta de antifascistas ainda vivos apoiados pelos seus familiares e amigos conseguiram evitar que a Fortaleza de Peniche fosse transformada num hotel de luxo e apagada mais uma memória importantíssima como infelizmente aconteceu com a sede da antiga polícia política PIDE/DGS situada no número 22 da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, que foi transformada num condomínio de luxo, perdendo-se a oportunidade de transformar esse espaço num memorial que registasse a repressão política durante o Estado Novo.

O Museu do Aljube Resistência e Liberdade, criado em 2015, constituiu um bom exemplo inspirador para a preservação dessa memória e é dedicado à memória do combate à ditadura e à resistência em prol da liberdade e da democracia, o qual “veio preencher uma lacuna no tecido museológico português, projetando a valorização dessa memória na construção de uma cidadania responsável e assumindo a luta contra a amnésia desculpabilizante e, quantas vezes, cúmplice da ditadura que enfrentámos entre 1926 e 1974”.

Apesar do exíguo espaço que ocupa e do riquissímo património que faz parte do seu espólio está muito bem organizado e numa das visitas que efectuei tive a agradável surpresa de constatar a presença de um número muito significativo de visitantes estrangeiros individuais ou em grupo.

A exposição de longa duração do Museu do Aljube apresenta aos visitantes a história do edifício, a caracterização do regime ditatorial português (1926-1974), os seus meios de repressão e opressão, assim como a resistência das oposições e da luta anticolonial e os movimentos independentistas de libertação, até ao derrube da ditadura e o 25 de Abril de 1974.

Podendo ser criticável o turismo político porque existem valores que não podem e nem devem ser mercantilizados, pode, no entanto, constituir uma das formas mais viáveis de salvaguardar o património histórico, social e cultural para fomentar os valores da liberdade e da democracia e que não deixem esquecer e apagar as atrocidades cometidas por uma ditadura de 48 anos que submeteu Portugal e os portugueses a um dos sistemas políticos mais opressivos e repressivos do Século XX.

No dia 27 de Abril de 2024, a Fundação José Saramago (FJS) organizou um passeio intitulado “Visita a Peniche: Uma prisão levantada em museu” com o objectivo final de participar na inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL), mas antes desta cerimónia de inauguração deram início pela primeira vez a uma futura grande rota do 25 de Abril com o percurso “Antes da Liberdade, o fascismo passou por aqui”, a partir de algumas obras de José Saramago e de testemunhos, percorremos locais da repressão fascista em Lisboa. Iniciativa que, segundo as organizadoras, deverá continuar a ser realizada regularmente no âmbito das actividades da Fundação José Saramago (FJS).

Na passagem pela anterior sede da PIDE/DGS situada na Rua António Maria Cardoso n.º 22 em Lisboa, agora um condomínio de luxo, na parte exterior da fachada do edifício apenas está afixada uma placa de mármore que um grupo de cidadãos anónimos instalou em 1980, com a seguinte gravação: “Aqui, na tarde de 25 de Abril de 1974 a PIDE abriu fogo sobre o povo de Lisboa e matou: Fernando C. Giesteira, José J. Barneto, Fernando Barreiros dos Reis e João Guilherme R. Arruda. Homenagem de um grupo de cidadãos. 25-4-1980”. Este acontecimento foi recentemente registado no filme “Revolução (sem) Sangue” (2024) de Rui Pedro Sousa, que veio colocar em causa o mito da Revolução sem Sangue, o qual tem sido perpetuado através de discrusos políticos na memória e consciência colectiva do povo português.

Pessoalmente, foi um privilégio ter tido a oportunidade de participar na referida iniciativa, a qual me permitiu testemunhar a importante materialização da memória da ditadura fascista num espaço real e simbólico para a sua perpetuação com a instalação do Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) na Fortaleza de Peniche.

O Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) é desde logo classificado como um museu nacional, portanto, não circunscrito apenas à Cadeia do Forte de Peniche que teve como objectivo inicial o encarceramento de presos políticos e tem por missão “investigar, preservar e comunicar a memória da Resistência ao regime fascista português, a partir dos testemunhos e experiências daqueles e daquelas que lutaram pela Liberdade e pela Democracia” e “Resistência e Liberdade” é o título da exposição que assinala a inauguração do Museu com o objectivo de transmitir às gerações mais jovens e às futuras “a ideia de que a liberdade conquistada a 25 de Abril de 1974 é um desígnio comum”.

A criação do Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) veio colocar Portugal no roteiro internacional dos chamados Museus de Memória, evocativos de lutas travadas em nome da liberdade e dos direitos humanos.

Depois de terem passado de 50 anos sobre a Revolução dos Cravos já existe algum distanciamento temporal suficiente para que o 25 de Abril possa ser tratado de uma forma mais científica com base em factos e testemunhos entretanto recolhidos que permitam, de uma forma o mais objectiva possível, descrever o terrível sistema político opressivo então vigente deixando eventualmente espaço a todas as possíveis e divergentes interpretações desses factos dada a complexidade desta temática em termos políticos e ideológicos.

A memória da ditadura deve converter-se em tema de musealização com a abertura de espaços museológicos que a preservem e o 25 de Abril é um fenómeno potenciador do turismo político e pode ser aproveitado se tiver um cariz de natureza essencialmente educativo e de formação cívica para as actuais e futuras gerações e o Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) passou a constituir um extraordinário espaço museológico de memória e homenagem à resistência e à luta antifascista de todos aqueles que estiveram presos, foram tprturados e até morreram nas cadeias políticas do fascismo no Aljube, nos Fortes de Caxias e de Peniche ou no Campo do Tarrafal, na ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde.

Na passagem dos 50 anos do 25 de Abril fica aqui esta breve nota para que entre a memória e o esquecimento seja ainda possível registar o conhecimento actual de um cruel e poderoso aparelho repressivo fascista a que o povo português esteve submetido durante uma ditadura fascista de quarenta e oito anos que o golpe militar dos “Capitães de Abril” derrubou e que com o extraordinário apoio popular logo manifestado nesse dia inicial inteiro e limpo permitiu a “Revolução dos Cravos”, deixando aqui a minha singela homenagem aos que sacrificaram a liberdade e a vida na luta pela democracia na passagem dos 50 anos da libertação dos presos políticos que ocorreu no dia 27 de Abril de 1974 e que no dia 27 de Abril de 2024 ficou assinalado com a inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche.

1. Cantado por Amália Rodrigues com música de Alain Oulman e que ficou conhecido como “Fado de Peniche”.

7 Mai 2024

O Mel(r)o dos Deliquentes

PRESIDENTE DO DESAGRADO Marcelo Rebelo de Sousa está na berlinda e no desagrado dos portugueses. Tem tomado posições absolutamente irresponsáveis e que ultrapassam as suas funções como Presidente de todos os portugueses. Primeiramente deixou toda a gente perplexa ao falar perante cerca de quarenta jornalistas estrangeiros dizendo que Portugal teria de pagar às nossas ex-colónias a escravatura e os roubos que foram feitos ao longo do colonialismo.

A história não se pode alterar e nem pensou o que de bom deixámos construído nos novos países africanos, em Timor-Leste e em Macau. Pagarmos o quê, se nenhum presidente desses novos países reivindicou absolutamente nada. E qual escravatura? A de Álvares Cabral, a de Mouzinho de Albuquerque, a de Vasco da Gama ou a de Kaúlza de Arriaga, António Spínola e Costa Gomes?

Os próprios directores dos museus portugueses já vieram a público manifestar que não existe nada para devolver. Marcelo não pensou nos militares mortos na guerra colonial para onde foram obrigados a ir pelo regime fascista. Marcelo nem pensou no que teríamos de reivindicar à França pelas invasões que levou a efeito onde escravizaram, violaram e pilharam tudo o que havia de valor; à Itália pelo que os romanos escravizaram e roubaram no nosso país e à Espanha por tudo o que foi executado no reinado invasor dos reis Filipes.

Marcelo abriu uma caixa de Pandora que poderá ser um bico de obra sem fim. E terminou a semana passada em Cabo Verde com uma lição de dignidade por parte do Presidente daquele país que afirmou que estes assuntos não se discutem na praça pública. Mas, Marcelo fez mais: demonstrou um tipo de racismo ignóbil quando denominou Luís Montenegro como um “rural” e António Costa como “oriental”. E mais: depois de ter executado com a procuradora-Geral da República a queda do governo socialista de maioria absoluta, veio chamar à procuradora-Geral de “maquiavélica”. O povo português não se revê neste tipo de presidência absurda e as críticas ao seu comportamento choveram de todos os quadrantes.

PINTO DA COSTA TERMINOU O REINADO Infelizmente da pior maneira. Um homem que fica na história do FC Porto pelos seus 42 anos à frente do clube e que entre os defeitos e virtudes conseguiu transformar um clube regional em internacional, devia ter saído pela porta grande e nunca se ter recandidatado a mais um mandato.

Obteve uma estrondosa derrota de André Villas-Boas de cerca de 80 por cento dos votos dos sócios portistas e vai-se embora sem deixar que um determinado movimento no interior do clube concluísse o desejo em denominar o estádio do dragão com o seu nome. O reinado de Pinto da Costa teve méritos e desméritos, deu luz verde a uma claque violenta e que actuava à margem da lei, tentou manobrar as arbitragens tendo sido alvo de um processo-crime chamado “Apito Dourado”, permitiu que um treinador arruaceiro comandasse os destinos do clube e da SAD, sendo o treinador mais vezes expulso pelas arbitragens, deixou as finanças do clube com graves problemas de negativismo e mais não digo.

Em contrapartida conseguiu que o FC Porto conquistasse dezenas de troféus, nomeadamente a Taça dos Campeões Europeus e a Taça Intercontinental. Pinto da Costa ficará na história do FC Porto, mas não em tudo pelas melhores razões.

O MEL(R)O DOS DEFICIENTES Nuno Melo é ministro da Defesa. Ninguém consegue explicar esta nomeação. O senhor não tem qualquer capacidade para um cargo desta importância. As Forças Armadas debatem-se com o problema grave de falta de efectivos nas suas fileiras e o chefe do Estado-Maior da Ar mada, almirante Gouveia e Melo, bem como outras figuras militares de topo salientaram que uma das soluções poderia ser o serviço militar obrigatório.

Nuno Melo respondeu que a ideia era um absurdo e que nunca proporia tal medida, entrando de imediato em litígio com a família militar. Como ministro da Defesa ainda não teve uma palavra sequer a favor do melhoramento salarial dos militares e das condições materiais em que se encontra a Força Aérea, a Marinha e o Exército.

Nuno Melo acaba de deixar a perplexidade total nos portugueses quando a sua incompetência foi sustentada em adiantar a ideia de que os jovens que se encontram institucionalizados por delitos criminais poderiam resolver o problema da falta de pessoal nas Forças Armadas. Nuno Melo até desconhece que para se integrar as Forças Armadas os mancebos têm de possuir um registo criminal absolutamente limpo. Com uma agravante: a ministra da Administração Interna veio logo em defesa das ideias de Nuno Melo e sublinhando que se tratava do que o Governo poderia decidir. O Governo de Luís Montenegro tem alguns membros de incompetência viral e que já provocaram alguns casos e casinhos.

Tem de pensar em governar e cumprir o que prometeu em campanha eleitoral e no Programa do Governo. Sobre o IRS já meteu água e está claro para toda a gente que as suas medidas só protegem os possuidores de mais riqueza. Neste mês de Maio os pensionistas já vão receber menos pecúlio e os tempos de Passos Coelho começam a amedrontar os mais desprotegidos. Nas Finanças está uma guerra aberta entre o actual ministro e o seu antecessor, onde vergonhosamente o povo assiste a um diferendo sobre as contas públicas que nunca poderia acontecer na praça pública. A única ideia que nos fica é que toda esta gente que se senta na Assembleia da República já anda em campanha eleitoral para as eleições europeias. E isso, é triste.

5 Mai 2024

Injustiça climática

É incontestável que o ano 2023 foi o mais quente desde que há registos. A temperatura do ar e da superfície dos oceanos atingiu os valores mais altos, durante onze meses, desde o início da era industrial. Trata-se de uma realidade comprovada pela monitorização permanente dos parâmetros meteorológicos em milhares de estações meteorológicas espalhadas pelo globo.

Apesar das muitas conferências e acordos sobre o clima promovidos pelas Nações Unidas, nomeadamente o Protocolo de Quioto, o Acordo de Paris e das 28 conferências das partes (COP – Conferences Of the Parties) a concentração dos gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera, resultante da queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão), continua a aumentar. E não é apenas a Organização Meteorológica Mundial que testemunha esta realidade, mas também muitas outras instituições e programas internacionais, nomeadamente o designado Copernicus 1.

Durante o ano transato o planeta foi vítima de vagas de calor intensas, secas severas, tempestades violentas, inundações catastróficas, numerosos incêndios florestais, tendo ocorrido na Grécia o maior incêndio florestal de sempre na União Europeia, consumindo cerca de 96.000 hectares de floresta. Os oceanos continuaram a aquecer, em especial o Oceano Glacial Ártico, cujo aquecimento, o mais acentuado à escala global, tem acelerado a fusão do gelo marítimo.

A atmosfera, cada vez mais quente, contém maior quantidade de vapor de água, o que contribui para o reforço do efeito de estufa. Este vapor em excesso, arrastado pela circulação geral da atmosfera, reforça a intensidade das tempestades, tornando-as mais violentas e destruidoras. O vapor de água, ao condensar, provoca precipitação e libertação de calor latente de condensação, o que contribui para o aumento da energia cinética que, por sua vez, intensifica o vento.

O aumento da concentração de gases poluentes na atmosfera, além dos impactos climáticos, são também causa da morte de milhões de pessoas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 6,7 milhões de mortes prematuras são devidas à poluição atmosférica, incluindo a proveniente de atividades domésticas. Entre as doenças mais frequentes contam-se a doença cardíaca isquémica, acidente vascular cerebral, doença pulmonar obstrutiva crónica e cancro do pulmão.

Já vão longe os tempos em que tiveram de ser tomadas medidas drásticas para acabar com o smog 2 em Londres, causado por partículas em suspensão na atmosfera, que constituíam o fumo proveniente da queima do carvão em lareiras domésticas e fornos industriais, as quais, conjuntamente com as gotículas de água que formam o nevoeiro davam origem a uma amálgama que envenenava os pulmões dos londrinos. Episódios de smog eram comuns em Londres desde o início da revolução industrial.

Há até quem tivesse justificado a não captura de Jack, o Estripador (Jack, the Ripper), assassino em série não identificado que aterrorizou os londrinos durante parte das duas últimas décadas do século XIX, pelo facto de se escapar facilmente, dissimulado pelo denso smog. Sobre este assunto, é oportuno relembrar um episódio de poluição extrema, que em poucos dias vitimou cerca de 12.000 pessoas. Trata-se do acontecimento histórico conhecido por Great Smog, que ocorreu em Londres entre 5 e 9 de dezembro de 1952.

O chamado Clean Air Act de 1956, que consistiu numa lei do Parlamento do Reino Unido com a finalidade de reduzir a poluição, contribuiu grandemente para acabar com o smog. Trata-se de um exemplo ilustrativo de que a aplicação de uma simples decisão burocrática acabou praticamente com essa calamidade. Constitui também um bom exemplo de sucesso a aplicação de medidas preconizadas por acordos internacionais, o facto de o chamado “buraco de ozono” 3 ter diminuído de intensidade devido à entrada em vigor do Protocolo de Montreal (1987), que consistiu num acordo para proteger a camada de ozono estratosférico, que constitui uma espécie de filtro da radiação ultravioleta prejudicial.

Referências:

1. Copernicus – Programa de Observação da Terra da União Europeia, através do qual se procede à observação e análise do nosso planeta com recurso a satélites e a equipamentos em terra e no mar. É coordenado pela Comissão Europeia, em parceria com os Estados-Membros, a Agência Espacial Europeia (ESA – European Space Agency), a Organização Europeia para a Exploração de Satélites Meteorológicos (EUMETSAT – European Organisation for the Exploitation of Meteorological Satellites), o Centro Europeu de Previsão do Tempo a Médio Prazo (ECMWF – European Centre for Medium-Range Weather Forecasts), outras agências da União Europeia e a organização internacional Mercator Ocean.

2. Smog – palavra proveniente da junção de “smoke” (fumo) e “fog” (nevoeiro).

3. Buraco do Ozono – designação adotada pelos media, na década 1970, para as zonas da ozonosfera onde o ozono foi parcialmente destruído devido á ação dos clorofluorcarbonetos amplamente utilizados em aerossóis e frigoríficos.

2 Mai 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (II)

“The purely “military” or “undiplomatic” recourse to forcible action is concerned with enemy strength, not enemy interests; the coercive use of the power to hurt, though, is the very exploitation of enemy wants and fears”.

The Diplomacy of Violence – Thomas Schelling

Mais problemático ainda para o Estado judaico seria o regresso ao poder do movimento islamista armado através de eleições nos Territórios Palestinianos. Um regresso que é tanto mais real quanto mais fraca for a ANP, sua rival. Em suma, o plano não poderá impedir um regresso ao status quo antes de 7 de Outubro de 2023.

Quanto às reacções das facções palestinianas, pouco se sabe. No entanto, é seguro supor que o ramo político do Hamas poderia não se opor, uma vez que recuperaria o seu papel e as suas funções do pós-guerra, tanto em Gaza como na Cisjordânia. Em vez disso, é evidente que as facções armadas o rejeitam. Preferem a guerra total e o martírio à maneira de Deus “não à retirada israelita e à libertação dos presos políticos”. O ANP, “não vê com bons olhos um governo de técnicos que não controlaria”. Em vez disso, um possível plano israelita tomou forma sob a direcção do ministro da Defesa Yoav Gallant.

Apresentado em 4 de Janeiro à imprensa, ainda antes do Conselho de Ministros, reitera os parâmetros de segurança a médio e longo prazo acima referidos, que o Estado de Israel imporá na Faixa de Gaza “até que estejam reunidas as condições para a sua retirada indefinida, ou seja, a pacificação completa e a desmilitarização total dos territórios palestinianos”.

Com isto em mente, Gallant passa a conceber os contornos de uma administração civil amiga de Israel capaz de garantir a prestação de serviços, a lei, ordem e a reconstrução. Prevê que seja composto por chefes tribais e personalidades locais, excluindo a participação do Hamas e da ANP.

A ideia não contradiz os desejos de Netanyahu e segue a linha do plano de Mordechai Kedar, um académico de direita da Universidade de Bar-Ilan, conhecido como “Emirado Palestiniano” ou também “Oito Estados”. Se o plano de Kedar previa, em 2012, a criação de oito emirados na Cisjordânia, para além do emirado de Gaza, o plano de Gallant divide Gaza em oito a nove províncias, cada uma governada por uma determinada tribo, todas sob o controlo de uma administração civil central que funciona sob a supervisão e os auspícios de Estados como os Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos, Egipto, Arábia Saudita e a UE.

A presidência deste grupo de Estados, bem como a da sua componente técnica responsável pela reconstrução, será americana. O plano não obteve apoio no seio do governo israelita e muito menos na esfera palestiniana. Pelo contrário, provocou uma resposta dura do Comissário Geral da Alta Autoridade para Assuntos Tribais na Faixa de Gaza, Akef Al-Masry e a rejeição categórica da ANP na Cisjordânia.

Todos determinados a rejeitar as intenções israelitas de dividir o campo palestiniano, de enfraquecer a sua resistência à ocupação e de separar o governo de Gaza do da Cisjordânia, privando-o de qualquer tipo de soberania. A visão americana do pós-guerra parece estar ainda em fase de “definição”. Alguns detalhes surgiram, no entanto, durante a visita do Secretário de Estado Antony Blinken à região em Janeiro passado, a quarta desde o início do conflito.

No clima de tensão palpável com o aliado israelita, as reuniões do Secretário de Estado americano confirmaram, antes de mais, a dificuldade da administração Biden em equilibrar o apoio à destruição militar e política do Hamas com a exigência de negociar a libertação dos reféns, de minimizar os danos à população e às infra-estruturas civis em Gaza, de permitir o regresso dos deslocados ao norte da Faixa e de iniciar o planeamento da reconstrução.

Não é claro se as suas exigências, também ditadas por uma forte pressão interna e internacional para mudar a face de um conflito devastador, também estão subjacentes às dúvidas americanas sobre a capacidade de Israel para atingir o objectivo primário da destruição total do Hamas e aos receios de uma expansão da guerra ao Líbano, Síria, Iraque e Iémen. Mas a mensagem israelita ao seu aliado americano confirma que a segurança de Israel, tal como entendida pelos seus dirigentes políticos e militares, não é negociável.

Ainda mais problemática é a centralidade que a ANP teria aos olhos da administração americana num provável período de pós-guerra sem o Hamas. É de perguntar qual será a capacidade de auto-reforma da antiga liderança política e qual será a legitimidade da nova liderança se as políticas israelitas de colonização da Cisjordânia continuarem e se o seu regresso à Faixa desmilitarizada e destruída estiver sujeito à aprovação israelita? Além disso, os Estados Unidos ainda não reabriram o seu consulado em Jerusalém nem permitiram que a OLP reabrisse a sua missão diplomática em Washington, ambos encerrados pelo então Presidente Donald Trump.

Por fim, o constante apelo americano a uma solução de dois Estados com base nas resoluções 242 e 338 da ONU dá azo à esperança de que não se trate de um horizonte político a ser alcançado nos moldes das intermináveis negociações de Oslo. Para que um tal processo político seja aceitável para a opinião pública palestiniana e árabe, segundo o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros jordano Marwan Muasher, é necessária uma abordagem inversa à de Oslo.

Partindo do princípio de que um Estado da Palestina contíguo e soberano ainda pode emergir e unir Gaza à Cisjordânia, Muasher afirma que a diplomacia internacional terá de reconhecer, através de uma nova resolução do Conselho de Segurança da ONU, que “o fim da ocupação israelita e o estabelecimento do Estado da Palestina constituem o objectivo primordial das negociações que se desenvolverão em fases específicas e durante um período de três a cinco anos”.

Este processo exigirá igualmente uma nova liderança, tanto israelita como palestiniana, legitimada por eleições e apoiada por um consenso popular para prosseguir o objectivo primordial das negociações. No entanto, as condições actuais não são propícias ao início de quaisquer negociações. O Conselho de Segurança da ONU está paralisado.

As partes beligerantes não estão em condições de chegarem a um acordo a curto ou médio prazo, mais depois do ataque concertado do Irão e Hezbollah dia 13 de Abril e aplaudido pelo Hamas. Os seus objectivos estratégicos respectivos estão ainda longe de ser alcançados. A violência e a guerra radicalizaram as suas opiniões públicas e minaram gravemente a sua “confiança” numa coexistência pacífica e duradoura. Neste contexto local e internacional, o Secretário de Estado dos Estados Unidos tenta jogar a carta regional da normalização das relações dos Estados árabes com Israel, a fim de induzir este último a abrandar o bombardeamento maciço de Gaza e a considerar um futuro Estado da Palestina com o campo palestiniano moderado, ou seja, a ANP reformada.

(continua)

2 Mai 2024

Declarações românticas

Recentemente, a imprensa de Hong Kong divulgou uma notícia especial. O comandante de uma companhia aérea polaca saiu do cockpit, apresentou-se através dos altifalantes e anunciou o seguinte “Neste voo está alguém muito especial. Senhoras e senhores, há cerca de um ano e meio, conheci neste trabalho a pessoa mais incrível e isso mudou a minha vida”. Antes de iluminar com um sorriso os olhos marejados de lágrimas, apoiou um joelho no chão em frente a uma das hospedeiras e declarou:

“És o meu maior tesouro e tornas os meus sonhos realidade. Aceitas casar comigo?”

Esta breve e sincera declaração fez a hospedeira sorrir de felicidade e, de seguida, aceitou o pedido com um aceno de consentimento. Nesse momento, enquanto os passageiros iam aplaudindo, a hospedeira lançou-se nos braços do comandante e disse a palavra sacramental: “Aceito”.

Depois da entrega do anel, os dois beijaram-se enquanto os passageiros aplaudiam e os abençoavam. Os que estavam sentados mais longe perguntaram em voz alta,

“Ela aceitou?”

E o comandante gritou feliz, “Aceitou!”

Depois revelou que se tinham conhecido num voo para a cidade de Karkow, por isso tinha decidido pedi-la em casamento no mesmo voo.

Circulam na Internet pedidos de casamento surpreendentes, a saber: 10 declarações românticas, que incluem aventura, parques temáticos, viagens, estadias à beira-mar, concertos, estadias em casas normais, vídeos para memória futura, pedidos do porta-bagagens e pedidos no local do primeiro encontro. O pedido de casamento do comandante seguiu este último modelo – no local do primeiro encontro.

Como o nome indica, estes pedidos não são difíceis de entender. Mas o pedido no porta-bagagens é muito especial. Quando o noivo abre a bagageira, saem lá de dentro, em direcção às alturas, enormes quantidades de balões e simultaneamente surge um enorme bouquet de rosas encimado pelo anel de noivado.

A proposta da bagageira torna indispensável a existência de um carro, de um bolo, balões, rosas e de um anel de noivado. Se juntarmos a tudo isto uma bela declaração e canções, e mais importante do que tudo – dois corações sinceros, teremos sem dúvida o pedido de casamento perfeito.

Para já, não sabemos o que o futuro reserva à hospedeira e ao comandante depois do casamento. A taxa de divórcios em Hong Kong e em Macau tem sido alta nos últimos anos. Depois das felizes cerimónias de noivado, acontecem sempre muito divórcios desagradáveis. Quer se trate de um conflito mais grave ou de incompatibilidades da forma de estar, os casais ficarão frustrados se não falarem um com o outro depois de cada discussão, facto que pode dar origem a um divórcio.

Porque é que estes problemas, que não existiam durante o namoro, surgem depois do casamento? Muitos especialistas matrimoniais assinalaram que o namoro é romântico porque tanto o homem como a mulher querem passar momentos felizes um com o outro, e não olham muito a despesas para o conseguir. Mas depois do casamento, a vida em comum comporta muitas despesas. Se um casal tiver de pagar a prestação da casa educar os filhos, fica sujeito a grandes pressões.

Como havemos de solucionar os conflitos, as incompatibilidades e a pressão no matrimónio? A forma mais eficaz é ter sempre em mente que a outra pessoa é o mais importante. Os casais que têm este pensamento presente são como a letra de uma velha canção de Hong Kong: “Se for feliz contigo, tudo me satisfará, o peixe salgado e a couve também me vão saber muito bem.”

O pedido de casamento perfeito vai ajudar os namorados a unirem as suas vidas, mas para manter uma união durável, os corações de ambos têm de estar envolvidos. Só amando-se um ao outro do fundo do coração podem envelhecer juntos. Se os namorados compreenderem esta verdade quando fazem a declaração perfeita, o seu casamente vai seguramente durar.

Se as palavras finais da coluna de hoje fossem duas frases que eu dirigiria à minha mulher iriam os meus leitores aplaudir e gritar por mim?

“Querida, eu amo-te. Sou feliz contigo. Estou satisfeito com tudo. Comes peixe salgado e couves comigo todos os dias?”

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola de Ciências de Gestão da Universidade Politécnica de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

30 Abr 2024

Surpresa da semana: a bugalhada

Sebastião Bugalho é um “menino” pretensioso, arrogante e faccioso. Possui Carteira Profissional de jornalista e foi corrido da TVI porque os seus comentários eram demasiadamente facciosos a favor do PSD. Transferiu-se para a SIC Notícias e começou a comentar os debates que se foram realizando entre os líderes dos partidos para as eleições legislativas antecipadas e realizadas no passado dia 10 de Março. Durante as suas intervenções os espectadores começaram a ficar perplexos com o modo de comentar os referidos debates. Da sua boca apenas saiam loas a Luís Montenegro e ao PSD.

As pessoas interrogavam-se como era possível que um “jornalista” não cumprisse minimamente o estatuto de independência e ética profissional. Sebastião Bugalho, à semelhança dos outros comentadores, anunciavam notas de zero a dez aos líderes partidários em debate. Por vezes, a maioria dos comentadores apresentava nota negativa à participação do líder da Aliança Democrática (AD) nos debates. Bugalho contrariava em absoluto a opinião dos seus parceiros de intervenção televisiva dando sempre nota alta a Luís Montenegro, com arrogância, polémica e falta de ética profissional. Alguns analistas políticos também classificaram a actuação dos comentadores e, a Sebastião Bugalho, deram sempre nota negativa nas suas intervenções e sublinharam que os seus dislates mais pareciam de um comissário político do que de um jornalista. Fundamentalmente adivinhava-se que nas intervenções de Bugalho existia uma tentativa de se mostrar como um candidato a político.

Entretanto, os partidos políticos, devido à aproximação de eleições europeias para o mês de Junho, iniciaram os contactos para a constituição das listas concorrentes a eurodeputados. Para o fim, foram o PSD e o PS que apresentaram os nomes escolhidos. Pela parte do PSD, ou melhor da AD, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, foi contactado para fazer parte da lista da AD ou ser o mandatário da mesma.

Qual não foi o espanto de Rui Moreira, um homem de prestígio entre todos os nortenhos e na maioria dos portugueses, ao sentir-se ofendido com a proposta, porque o convite era para ser o número dois da lista tendo o “menino” como cabeça de lista da AD. Obviamente que Rui Moreira como pessoa séria e experiente politicamente rejeitou de imediato o convite mais que ignóbil. E não só. Nas hostes sociais-democratas o desalento e a repulsa têm sido uma realidade pela escolha de Luís Montenegro em preferir um “menino” inexperiente em qualquer função política e ter sido apenas seu comissário político no ecrã da SIC Notícias.

A divisão entre os deputados da AD também se verificou nas conversas dos Passos Perdidos da Assembleia da República. Uma das nossas fontes no Parlamento, simplesmente nos respondeu: “Isto é inadmissível”.

O isto, é a nomeação de Bugalho para liderar a lista de uma AD com tantas personalidades de grande prestígio e experiência na política portuguesa. Naturalmente que as últimas sondagens já mostraram que Bugalho não mobilizará um eleitorado que só o conhece como o “menino” inexperiente que fazia comentários partidários na televisão. Os inquéritos da semana passada realizados a nível nacional já produziram o resultado de uma vantagem do Partido Socialista sobre a AD de sete pontos.

Com a agravante para Bugalho que irá defrontar uma senhora de quem o povo não esquece pelo seu trabalho excelente durante a crise da pandemia Covid19. Marta Temido mostrou competência, comunicação eficiente e trabalho árduo nos contactos com a União Europeia sobre o problema generalizado da pandemia. Com Marta Temido apresentam-se outros dois nomes conhecidos dos portugueses e a quem se aponta seriedade e experiência política. Referimo-nos a Francisco Assis e Ana Catarina Mendes, ex-ministra de António Costa.

Neste sentido, salta à baila a função do jornalista. Do profissional de comunicação social a quem é entregue uma Carteira Profissional. O jornalista tem essencialmente de cumprir os seus estatutos éticos. Não pode ser um comissário político, não pode ser um publicitário, não pode ser um assessor ministerial sem entregar a Carteira Profissional.

São regras básicas da prática jornalística. O Sindicato dos Jornalista é muito culpado na benevolência do que foi referido. A entidade sindical dos jornalistas devia estar atenta a quem não pratica o verdadeiro jornalismo usando a Carteira Profissional e a partir daí, comunicar às autoridades da Carteira Profissional que a fulano e beltrano têm de lhes ser retirado o documento profissional que os reconhece como jornalistas.

E já que falámos em jornalistas, dizer-vos que há dias, conversámos com um grande profissional de um jornal, que nos transmitiu que existe uma instituição chamada Casa da Imprensa, que devia ter a obrigação de velar pelos jornalistas em grandes dificuldades de sobrevivência, alguns já reformados, e que nem responde às missivas que lhe são enviadas.

29 Abr 2024

25 de Abril – 50 anos – E depois… a estética

“Foi bonita a festa, pá!”

Chico Buarque

Escrevi no início da semana um texto que colocava as questões éticas como uma das pedras de toque do 25 de Abril. Este será sobre estética. É certo que o belo e o bom se entrelaçam, se seduzem, se namoram, raramente se divorciam. Mas quando estamos perante movimentos de massas, do eclodir de uma esperança reprimida, as dimensões da obra deixam estupefactos os sujeitos que, ao mesmo tempo, a produzem e dela fazem parte.

Refiro-me, ab initio, à grandiosa manifestação que ocorreu em Lisboa no dia 1 de Maio de 1974. Ali, avenidas acima, enchendo praças, veio o povo, veio verdadeiramente um povo inteiro proporcionando um momento de unidade, desejo e luta que nunca mais ocorreria. Foi entre palavras de ordens inventadas, outras já feitas símbolo, que aquela massa humana, em toda a sua glória, acreditou e esse momento foi de uma beleza inexcedível.

Os grandes movimentos de massas são, em geral, horríveis. Sobretudo quando na sua origem não existe uma razão válida e justa. O grande arrebanhar de gentes para a glória dos soberanos e das suas cortes, por exemplo, promove espectáculos deprimentes, que hoje são feitos através de transmissões televisivas. Mas aquela primeira manifestação em liberdade, no primeiro 1º de Maio (como isto nos ressoou com insistência), foi a meu ver o que, num instante sem retorno, transformou um golpe militar numa revolução. Um uníssono dos que por décadas sofreram o que se sabe terem sofrido. Um coro dos sabiam ter direito a uma vida melhor e gritavam por isso. E por baixo, um sussurro que afastava o fedor da guerra, do racismo, do classismo, da inferiorização da mulher e de outros valores abjectos, requentados, obsoletos, numa palavra, feios de mais para sequer serem considerados. E isso foi belo. Vieira da Silva compreendeu imediatamente este momento e imortalizou-o no seu quadro “25 de Abril – A poesia desceu à rua”.

Nesta senda, o 25 de Abril devolveu beleza às nossas vidas. Abriu Portugal ao mundo, veio a música, veio o cinema, vieram os livros sem restrições. Foi a beleza da liberdade. As pessoas acreditavam que podiam lutar por condições de vida mais justas e dignas e essa crença era bela. Fizeram-se incontáveis reuniões, no trabalho e nas escolas, nos sindicatos e nos partidos. Falava-se sobre o que havia a fazer de igual para igual porque por um momento o fomos. Foram criadas leis que permitiam o acesso de todos (!) à educação e isso permitiu muito (nem imaginam). Era a beleza da igualdade. E houve mais: afinal, todos tinham o direito de ir ao médico e havia um hospital onde eram recebidos e tratados com o que necessitavam, independentemente do custo do tratamento. E todos perceberam como era bela a solidariedade.

“Foi bonita a festa, pá!”. Pois foi, Chico. Talvez tenha sido a festa mais bonita de sempre. Mas, olha, acabou. Eles souberam, como sempre, dar a volta ao texto para “tudo mudar para que tudo fique na mesma”. E hoje têm nomes feios como “empreendedores” e querem que tudo volte a ser só para alguns, mas desta vez dizem claramente que a culpa é tua porque não te sabes adaptar às condições do mercado e quem não se sabe adaptar às condições do mercado é porque ainda não percebeu que já não vive numa democracia, mas numa mercadocracia, em que as qualidades foram definidas em quantidades e tudo é valorizado em função da sua capacidade de produzir lucro, não entendendo a necessidade imperiosa e as virtualidades, nomeadamente estéticas, do prejuízo.

Ultimamente, Portugal juntou-se à Europa e aos EUA ao gerar em magro seio uma extrema-direita renovada, saída do armário onde a II Guerra Mundial a tinha remetido. E assistimos ao regresso do horrendo, do que julgámos inaudito, da estupidez argumentada, da frustração dos feios, dos valores abjectos. A direita é eticamente reprovavel e, em geral, na sua versão trauliteira, extremamente feia, roçando o repugnante. Vendem, como sempre venderam, a estupidificação e o obsceno. Gritam enormidades com convicção porque ganharam a força de pertencerem a uma horda, encabeçada por um chefe, cujo comportamento, geralmente, roça a histeria.

Quando do 25 de Novembro, ouvia-se “queriam transformar Portugal na Cuba da Europa”. Mas estavam enganados: queríamos transformar Portugal num país belo, de todos, incluindo dos portugueses. Nós, Camões, Vieira e Pessoa, falhámos redondamente. “Foi bonita a festa, pá!”. Pois foi, mas acabou, as luzes acenderam-se e poucos ainda resistem na pista. Não deixa de ser belo: resistir!

26 Abr 2024

Cuidar dos jovens

Se os jovens de um país são negligenciados não se tornarão adultos na posse de todas as suas capacidades e o futuro desse país estará em risco. Quando um país tem uma juventude forte, esse país será forte. É por isso que Xi Jinping, Presidente da República Popular da China, sempre deu muita atenção às acções e às políticas direccionadas para a geração mais jovem, e se preocupa com o seu futuro.

A recente vaga de problemas relacionados com a geração jovem de Macau fez disparar o alarme no seio da sociedade e revelou que existem muitas histórias desconhecidas para além dos contos encantados sobre a cidade. O patriotismo não se ancora em discursos vazios, mas sim em acções práticas. Quando os jovens prosperarem, o país prosperará. Se os jovens não se sentirem seguros, o país não gozará de segurança.

Recentemente, registaram-se vários incidentes aos quais estiveram associados jovens de Macau, como alunos do ensino básico que actuavam em grupo para intimidar idosos, ou como o caso de um jovem estudante (que residia numa instituição de acolhimento) que foi encontrado sozinho num restaurante de fast-food depois da meia-noite e ainda notícias de jovens estudantes que se suicidaram. As pessoas ficam perturbadas com estas notícias, mas é necessário perceber as causas destes comportamentos, para extirpar os problemas em vez tentar passar a imagem de que está tudo bem.

Nos casos de suicídio registados em Macau no primeiro trimestre de 2024 encontram-se vários jovens. De acordo com os dados publicados pela Secretaria para a Segurança, entre 2020 e 2023, registaram-se três suicídios e 95 tentativas de suicídio no grupo etário dos 0 aos 14 anos e 19 suicídios e 247 tentativas de suicídio no grupo etário dos15 aos 24 anos.

Recentemente, um certo órgão de comunicação criticou o “Grupo de Trabalho para o Acompanhamento da Saúde Mental e Física dos Jovens – Transportar o Amor”, criado pelas autoridades para combater as tendências suicidas, e lutar pela saúde física e mental dos estudantes. O Grupo convocou a sua primeira reunião de trabalho de 2024 para 4 de Março. A reunião foi efectuada à porta fechada e a imprensa não recebeu qualquer informação sobre a sua realização. Três dias depois da reunião, a Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude (DSEDJ) publicou um comunicado de imprensa com 600 palavras, sem que exista qualquer menção ao problema do suicídio entre os jovens, nem se estes números subiram ou baixaram. Também não existem referências aos problemas do Grupo, às dificuldades que encontrou e nem à forma de melhorar as suas competências.

Evitar um problema não é forma de o eliminar. As autoridades de Macau minimizam frequentemente os relatos de casos de suicídio com o argumento de evitar causar “danos secundários”. Contudo, ao evitar causar danos secundários, não se evita a ocorrência de novas tragédias. A forma como as autoridades estão a reagir não difere muito da maneira como as avestruzes escondem a cabeça na areia para iludir o perigo!

Tomemos como exemplo o caso de alunos do ensino básico que se agrupam para intimidar pessoas idosas. À primeira vista, aparenta ser um caso de adolescentes mal-comportados, mas na verdade é uma falha de educação por parte da escola e da família. O outro caso é o do jovem rapaz que reside numa instituição de acolhimento. Porque é que ele fugia frequentemente da instituição de acolhimento e preferia ficar sozinho no restaurante até altas horas da noite, em vez de ficar a descansar em segurança? Basta pensar no que este adolescente, que perdeu o carinho da família, necessita desesperadamente? Seria uma escola onde ele entregava os trabalhos de casa e fazia os testes a tempo? Seria uma instituição de acolhimento residencial? Ou um departamento do governo que trataria dos assuntos de acordo com a lei? No séc. XXI, há muito que a sociedade de Macau saiu da pobreza, por isso como é que se permite que aconteça nesta cidade uma história que faz lembrar o “Oliver Twist”?

Os casos de suicídio não são apenas números, mas sim tragédias que revelam as condições e as circunstâncias das pessoas. No que diz respeito ao desenvolvimento dos adolescentes, devem ser prestados com cuidado todos os tipos de apoio de forma concreta e o apoio mais eficaz deve ser prestado à medida de cada um, conforme a sua situação. Os adolescentes que têm problemas e precisam de assistência não podem ser tratados como se não fossem importantes, empurrados de um departamento para outro. Todos os jovens se deparam com problemas no crescimento, e precisam de ser tratados com sinceridade, atitudes práticas e cuidados genuínos. Não há dificuldade que não possa ser ultrapassada com AMOR.

25 Abr 2024

Abril de novo, com a força da luta e da memória: um cheirinho de Primavera e uma Revolução que sai à rua

Texto de Ana Saldanha

Depois da fome, da guerra

da prisão e da tortura

vi abrir-se a minha terra

como um cravo de ternura.

Vi nas ruas da cidade

o coração do meu povo

gaivota da liberdade

voando num Tejo novo.

(…)

(Portugal Resuscitado, José CarlosAry dos Santos)

A 25 de Abril de 1974 uma Revolução poria, finalmente, fim a 48 anos de opressão, de tortura e de perseguição a todas as vozes que condenassem e lutassem contra um Estado ditatorial que, durante quase meio século, faria proliferar, em Portugal, a miséria, a fome, a emigração, o medo e que, desde 1961, numa violenta guerra colonial, levaria à morte de, aproximadamente, 10.000 jovens portugueses (excluindo feridos, mutilados, deficientes fisicos e 100.000 jovens que voltariam da guerra com stress pós-tráumatico). Refiram-se, em paralelo, as atrocidades e violências cometidas pelo fascismo português, por via do domínio militar e político-económico – não apenas durante a guerra (num momento em que formas de extrema violência são postas em prática), mas durante todo o processo de colonização -, assim como as políticas de violência, legalmente consagradas, a subalternidade, social e política, e o subdesenvolvimento crónico a que estavam votados os povos colonizados – os quais (em particular, de Angola, Mocambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde) levariam avante, a partir dos anos 1960, uma justa luta armada pela indepêndencia e pela libertação nacional, contra o colonialismo.

Em plena Primavera, a 25 de Abril de 1974, cravos inundariam as ruas de Lisboa e a Revolução tomaria o seu nome. Chico Buarque marcaria este momento histórico na MPB graças às suas duas versões de Tanto Mar – a primeira, em 1975, e a segunda, em 1978 -, num momento em que a oposição à ditadura militar, no Brasil, encontrava uma esperança de mudança num cheirinho a alecrim do lado de lá do Atlântico.

De 1926 a 1974: 48 anos de ditadura em Portugal

A ditadura portuguesa inicia-se com um golpe de Estado militar, em 28 de Maio de 1926. Desde então, e até 1933, Portugal viveu um período durante o qual foram suprimidos liberdades e direitos fundamentais, mas sem que, contudo, se institucionalizasse uma nova estrutura de Estado, a qual apenas ocorreria em 1933, com a aprovação de uma nova Constituição.

Entre 1926 e 1933, António de Oliveira Salazar (que havia sido nomeado Ministro das Finanças, em 1928, e que se tornara, em 1932, Presidente do Conselho de Ministros) seria, já então, uma peça fundamental da engrenagem ditatorial. Com efeito, seria com o seu impulso que, passo a passo, a engrenagem e política ditatoriais, que mais tarde seriam consagradas na Constituição de 1933, tomariam forma: a censura, a polícia política, a propaganda e as leis repressivas. A aprovação, em 1933, de uma nova Constituição, vai, assim, estabelecer os princípios constitucionais que darão livre azo à atividade totalitária e repressiva estatal, criando o Estado Corporativo. A nova Constituição instaura a censura, proíbe os partidos políticos, as associações sindicais e as associações secretas, cria a PVDE (Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado) – polícia política -, proíbe as oposições e impõe o partido único. É, igualmente, esta mesma Constituição que coloca as mulheres num plano socio-jurídico inferior ao dos homens, o qual, segundo aquele texto, se justificaria pela “sua natureza e (…) bem da família”. Com efeito, segundo a legislação em força, então, em Portugal, o marido era considerado o chefe de família, as mulheres não tinham direito de voto, não podiam exercer nenhum cargo político e tinham um acesso restrito a determinadas profissões, enquanto em outras profissões (como no ensino ou na enfermagem) se limitava a possibilidade de casamento, apenas, com homens com um salário superior ao seu. Por outro lado, também na educação dos filhos a mulher tinha a sua acção limitada, sendo subalternazido o seu papel relativamente ao do pai. No seguimento da Concordata, assinada com a Igreja Católica, em 1944, o divórcio era, igualmente, proibido, pelo que todas as crianças que nascessem de uma relação, posterior à do primeiro casamento, eram consideradas ilegítimas.

Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Salazar, numa hábil manobra política, declara, na Conferência da União Nacional (partido político fundado em 1930 e único partido constitucionalmente autorizado, desde 1933), estar aberto à colaboração de todos os portugueses, enquanto Marcelo Caetano declara que “na União Nacional cabem portugueses de todas as tendências”. Encetando uma manobra propagandística, Salazar, no plano externo, talvez temendo pelo futuro da própria ordem ditatorial, celebra os serviços prestados por Portugal aos Aliados e avulta a sua acção em prol da vitória daqueles, pretendendo fazer esquecer o apoio que dera aos regimes nazi-fascista alemão e fascista italiano – quando apoiou, por exemplo, a invasão e a ocupação da Checoslováquia ou quando louvou a preparação da Alemanha para a guerra (a quem vendera volfrâmio e outros géneros).

A comunidade internacional ocidental, por seu lado, temendo o avanço e a influência dos Partidos Comunistas, nomeadamente, na Península Ibérica, continuava, ainda que de forma, por vezes, dissimulada, a apoiar a ditadura portuguesa, fazendo crer que as manobras propagandísticas do governo liderado por Salazar eram suficientes para demonstrar a existência de uma democracia em Portugal.

Entretanto, a pobreza e a miséria alastravam-se: estima-se que, em 1973, 43% da população portuguesa vivesse em situação de pobreza relativa e que cerca de 25,7% fosse analfabeta (sendo a percentagem daqueles que não sabiam ler nem escrever maior no caso das mulheres – 31% – do que no caso dos homens – 19.7%). Segundo dados de 1970, 88% da população portuguesa, com mais de 10 anos tinha, apenas, o ensino primário, sendo que, da população com mais de 15 anos, apenas 2,4% tinha o ensino médio ou superior. Por outro lado, nos vinte anos que precederam a Revolução Portuguesa, 1,6 milhões de portugueses tinha emigrado, em busca de melhores condições de vida e de trabalho. A mortalidade infantil atingia os 44.8 por mil, 20% dos partos não tinham assistência e a esperança de vida, depois do primeiro ano de idade, era de 67 anos, para os homens, e de 73 anos, para as mulheres.

A luta pela independência das colónias e a formação do MFA

A luta pela libertação do jugo colonialista, no seio das colónias portuguesas, seria fomentada pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela independência alcançada por muitas colónias que haviam estado sob a dominação de Estados europeus. Com efeito, até aos anos 50 – sem considerar os Estados coloniais nos quais colonialistas e colonizados partilhavam o mesmo espaço geográfico, como é o caso da Rodésia ou da África do Sul – apenas sete Estados africanos se encontravam formalmente independentes: a Libéria (1847), o Egito e a Etiópia (independentes desde 1945), o Sudão e a Tunísia (independentes desde 1956), o Gana e a Guiné-Conacri (independentes desde 1958). No entanto, é nos anos 60 que dezasseis colónias – que, na sua maioria, haviam estado sob dominação francesa – são declaradas independentes: Benim, Burkina Fasso, Camarões, Chade, Congo-Brazaville, Costa do Marfim, Gabão, Madagáscar, Mauritânia, Níger, Nigéria, República Centro-Africana, Togo e Zaire.

No que diz respeito às colónias portuguesas, a Índia não necessitou de uma organização armada e estruturada para combater o ocupante português. Durante vários anos, o governo de Jawaharlal Nehru tentou, sem sucesso, que os portugueses saíssem voluntariamente das colónias que ocupavam (Goa, Damão e Diu). Perante a continuada recusa portuguesa de o fazer, as tropas indianas invadiram e ocuparam, em dezembro de 1961, os três territórios, terminando, desta forma, com o Império Português das Índias. Por outro lado, é neste mesmo ano que se inicia a guerra colonial nas colónias portuguesas, em África. Começando em Angola, em fevereiro de 1961, a guerra estende-se à Guiné-Bissau e a Cabo Verde, em 1963, e a Moçambique, em 1964. Provavelmente ao contrário do que o fascismo português esperava, o início da guerra colonial permitiu o desenvolvimento de ações e de teorias anticolonialistas. A oposição à guerra colonial estendeu-se, assim, a diferentes sectores da população (inclusivamente, dentro da própria Igreja Católica), saindo dos centros de decisão do poder ditatorial e das cúpulas militares. Neste processo de luta contra a guerra foi, ainda, fundamental, a oposição que se gerou no interior das Forças Armadas.

Entretanto, em 1968, Salazar (que viria a morrer em 1970) é substituído por Marcelo Caetano na presidência do Conselho. Em 1974, uma crise económica instala-se em Portugal. Esta crise, assim como a incapacidade do fascismo em resolver os problemas económicos e sociais, o fracasso da manobra marcelista, o desgaste do regime, a guerra colonial, as divergências, a deserção e a emigração, possibilitaram a criação de uma situação propícia à derrubada da ditadura e à consequente eclosão de uma revolução.

Em 1973, um grupo de oficiais de carreira inicia um movimento corporativista que se amplifica gradualmente, transformando as reivindicações corporativistas iniciais numa vontade de mudança de regime. Será este movimento que conduzirá, no dia 25 de Abril de 1974, à eclosão de uma revolução.

O nascimento de uma Revolução

Na noite de 24 de Abril de 1974 é levado a cabo um levantamento militar pelo Movimento das Forças Armadas (MFA).

Às 22h55, é transmitida a canção E depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, pelos Emissores Associados de Lisboa, primeiro sinal do avanço das operações. Às 00h20, do dia 25 de Abril, os militares que ocupavam a rádio Renascença deram o segundo sinal, com a transmissão de Grândola Vila Morena, de José Afonso. Na Rádio Clube Português, às 4h, é lido o primeiro Comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), no qual é feito um apelo à população de Lisboa para permanecer em casa. Porém, apesar deste pedido, forças populares juntaram-se ao levantamento militar, sendo, precisamente, o resultado desta união – levantamento militar e levantamento popular – que deu origem à Revolução.

Os capitães de Abril, organizados no MFA, dão, assim, a conhecer ao país os seus objetivos (sintetizados nos 3D’s – Democratização-Descolonização-Desenvolvimento): o fim da ditadura e o fim da guerra colonial, com a consequente e necessária construção de um Portugal democrático.

A democratização da sociedade iniciou-se de imediato: dissolução da ANP-Acção Nacional Popular (nome dado à União Nacional, por Marcello Caetano), extinção da PIDE (também rebaptizada por Marcelo Cateano como DGS), extinção da Legião Portuguesa e da Mocidade Portuguesa, abolição da censura e do exame prévio. De imediato, anunciam-se eleições livres e a convocação de uma Assembleia Constuituinte, a liberdade política de todos os portugueses, a regulamentação da actividade de partidos políticos, a liberdade de expressão e de pensamento sob qualquer forma, a amnistia de todos os prisioneiros políticos, a independência, a dignificação do poder judicial e a extinção dos Tribunais Plenários (nos quais haviam sido condenados muitos anti-fascistas, sem qualquer direito a defesa).

Sendo um momento de emancipação social, a herança do 25 de Abril permanece, não apenas na memória coletiva, mas, também (ou sobretudo), no plano sociopolítico. Assim sendo, a Constituição da República Portuguesa (CRP), aprovada em abril de 1976, consagra um novo modelo político, económico e social, estabelecendo, entre outros, que “a organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas”. Apesar das sete revisões constitucionais sofridas, elementos do seu histórico carácter progressista ainda sobrevivem. Perduram, igualmente, no Portugal de hoje, conquistas económicas, políticas e sociais, resultantes da Revolução de Abril e do primeiro texto da CRP aprovado, ainda que tenham sido e continuem a ser atacadas ostensivamente por uma política ao serviço de interesses económicos que subjazem a um modo de produção cujo carácter bárbaro e depredador cada vez mais se acentua.

As conquistas de Abril alargaram-se, assim, a vários âmbitos socio-políticos e económicos: a igualdade de direitos entre homerns e mulheres (o Art. 13 da CRP instituiu o princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei), o direito à habitação para todos (à data da Revolução, 25% dos portugueses viviam em situações que não respeitavam as condições mínimas de conforto, salubridade e segurança, ou seja, cerca de 2 milhões de portugueses viviam em barracas ou em casas extremamente degradadas e insalubres), o direito à Educação, para todos, o direito à Saúde, universal e gratuito (após uma das setes revisões constitucionais a que foi sujeita, este direito passou a figurar como “tendencialmente gratuito”), o direito à greve, o direito à previdência na situação de desemprego, o direito a uma licença de maternidade de 90 dias, o direito ao divórcio nos casamentos católicos, o salário mínimo e a pensão social, o subsídio de desemprego, o subsídio de férias, o subsídio de Natal a pensionistas, o subsídio vitalício de protecção na velhice, entre outros.

Abril também nos trouxe a nacionalização da Banca, dos Seguros, da Electricidade, de Transportes ferroviários e marítimos, entre outros sectores básicos da economia (que, hoje, se encontram, na sua grande maioria, de novo privatizados e entregues a mãos predadoras, seja no plano nacional ou internacional), a gestão democrática das escolas, o controlo da produção (para impedir as então frequentes sabotagens económicas), a reforma agrária (que, a partir de 1977, com a aprovação da “Lei Barreto”, seria, gradualmente, conduzida ao seu fim), o reconhecimento da liberdade sindical ou o poder local democrático (que, ainda que parcialmente destruído, perdura como um espaço de exercício democrático e participativo).

As comemorações dos 50 anos de Abril são, pois, o festejo da liberdade e da força da resistência e luta, a memória de quem lutou na clandestinidade, sofreu ou morreu sob as torturas da polícia política, a lembrança da luta contra o colonialismo e contra a violência que lhe subjaz, a voz de uma esperança que, depois de 48 anos de repressão, viu, finalmente, um Portugal Novo erguer-se das cinzas do obscurantismo.

Fazer jus a Abril é, deste modo, reivindicar as conquistas e progressos a que Abril deu vida quando, então, se abrem “as portas da claridade / e a nossa gente invadiu / a sua própria cidade” (As Portas que Abril abriu, José CarlosAry dos Santos).

Viva o 25 de Abril! Fascismo, nunca mais!

25 Abr 2024

Nem Hamastão nem Fatahstão (I)

“The usual distinction between diplomacy and force is not merely in the instruments, words or bullets, but in the relation between adversaries-in the interplay of motives and the role of communication, understandings, compromise, and restraint”.
The Diplomacy of Violence – Thomas Schelling”

Netanyahu quer recuperar o controlo total de Gaza, entretanto arrasada e com uma população palestiniana reduzida. Só então será possível imaginar o pós-guerra. O Egipto teme ver as massas de pessoas desesperadas a transbordar e a América passa por um grande embaraço, dado que o pós-guerra em Gaza começa a tomar forma no terreno, antes do papel dos improváveis planos de paz. O facto é que as partes beligerantes, Israel e Hamas, não oferecem sinais tangíveis de um cessar-fogo viável, faltando a ambas objectivos estratégicos realisticamente realizáveis e uma visão duradoura da paz. É agora evidente que a violência do Hamas não criará as condições para melhorar a economia de Gaza nem porá termo à ocupação israelita a curto ou médio prazo.

Pelo contrário, pode agravar a primeira e prolongar a segunda no espaço e no tempo, sob o signo de governos de extrema-direita cada vez mais extremados. Do mesmo modo, a ofensiva de Israel não irritará o Hamas nem desradicalizará os palestinianos. Em vez disso, pode provocar no Hamas metamorfoses ainda mais extremistas e radicalizar velhas e novas gerações de palestinianos dentro e fora dos limites de Gaza. O conflito, que provavelmente continuará ao longo deste ano com menos intensidade do que antes, pesa tanto sobre o destino dos 132 reféns israelitas como sobre o dos 2,2 milhões de palestinianos destinados a partilhar uma faixa de terra cada vez mais exígua e miserável.

A paz da diplomacia internacional, que deveria ser garantida pela criação de um Estado palestiniano soberano num território contíguo a Israel e com Jerusalém Oriental como capital, corre o risco de se tornar um slogan irrealista e ilustre. Perante a perspectiva de um futuro próximo sem paz, emergem dos escombros de Gaza peças de um possível cenário de pós-guerra. Entre eles, o mais significativo é o êxodo parcial da população palestiniana. As condições socioeconómicas em Gaza eram particularmente preocupantes mesmo antes do conflito. As operações militares israelitas no Norte da Faixa destinavam-se, então, a fazer terra queimada numa zona onde se concentrava a espinha dorsal das infra-estruturas militares do Hamas e duas das suas brigadas mais importantes, as do Norte de Gaza e da Cidade de Gaza, equivalentes, a 60 por cento do total das suas forças.

Se estas operações não parecem ter conseguido a descapitalização das chefias militares do movimento armado palestiniano e a destruição de grande parte da sua “tensa rede de túneis subterrâneos”, o mesmo não se pode dizer dos efeitos perturbadores sobre a população civil. Há mais de 1,1 milhões de pessoas deslocadas desta zona, actualmente amontoadas no centro e no sul da Faixa em condições deploráveis. A evacuação de civis ao longo do cone oriental de Gaza e o bombardeamento de campos de refugiados no centro e em Khan Yunis, no sul, também aumentam a pressão demográfica ao longo da fronteira com o Egipto e exacerbam a crise humanitária, agora muito grave. As estimativas da ONU elevam o número total de deslocados a 1,9 milhões, ou seja, 85 por cento da população total, enquanto denunciam a destruição ou a inabitabilidade de mais de 60 por cento das habitações e de cerca de metade dos hospitais, a inacessibilidade de todas as instalações educativas e a falta de água e de eletricidade.

À luz destes dados, a probabilidade de um êxodo “voluntário e forçado” para além da fronteira torna-se cada vez mais real. Não o escondem os ministros, os políticos, os militares e os analistas israelitas que, desde o início da guerra, evocam uma segunda “Nakba” (catástrofe), em que a primeira remonta à expulsão dos palestinianos do Estado de Israel em 1948 como efeito da guerra de Israel contra o Hamas e a população de Gaza culpada de a apoiar. A este respeito, é suficiente mencionar o antigo primeiro-ministro Naftali Bennett que, ao negar a existência de civis palestinianos em Gaza, afirma que “estamos a lutar contra os nazis”.

O major-general Giora Eiland, autor de um plano autorizado de deslocação de uma parte da população para o Sinai, é ainda mais categórico ao afirmar a necessidade absoluta de fazer de Gaza “um lugar onde nenhum ser humano possa existir” e de combater “não apenas o Hamas, mas toda a população de Gaza “. E não se trata apenas de retórica bélica se o Egipto e a Jordânia intensificarem a acção diplomática para barrar o caminho quer a um eventual plano israelita de deslocação forçada da população palestiniana para o Sinai, Jordânia ou Congo, quer a uma guerra total que tornaria o êxodo inevitável. As cimeiras egípcio-jordana, egípcio-palestiniana e egípcio-jordano-palestiniana do início do ano são um testemunho claro das preocupações crescentes destes países quanto à resolução da questão palestiniana e aos seus efeitos desestabilizadores sobre eles.

Há também rumores persistentes de que o presidente egípcio Abdel Fattah el-Sisi está actualmente sob intensa pressão para ceder áreas do Sinai aos palestinianos em troca de ajuda “financeira”. O Egipto está a braços com uma grave crise económica e terá de reembolsar este ano mais de 28 mil milhões de dólares da sua enorme dívida externa. Um segundo elemento fundamental é a criação de zonas-tampão no interior de Gaza e a expansão das zonas de segurança no norte e no leste da Faixa, o que indica a provável persistência de bolsas de resistência armada mesmo no “pós-Hamas”. A liderança política e militar israelita nega querer anexar áreas ao longo da já robusta rede de segurança em torno da Faixa. No entanto, os mesmos dirigentes declararam claramente que pretendem criar não só “zonas-tampão” no interior de Gaza, com o objectivo de impedir que o Hamas se aproxime do continente no futuro, mas também “um cobertor de segurança em torno da Faixa para impedir que a população civil aceda a pé à rede de fronteiras”.

A demarcação de uma parte do território palestiniano ao longo do cone com Israel é uma condição prévia do governo de Netanyahu para o pós-guerra. Os Estados árabes da região seriam devidamente informados. A criação de zonas tampão implica a presença de instalações militares e o reforço da capacidade israelita de efectuar incursões no interior da Faixa. Significa também a inacessibilidade destas zonas aos palestinianos e, consequentemente, uma maior pressão demográfica sobre as zonas habitáveis. Quanto ao norte de Gaza, se não for parcialmente anexado, pode tornar-se, na melhor das hipóteses, uma zona militar “temporariamente” fechada, ou seja, confinada. A evacuação dos civis ao longo da linha oriental, provocada pela operação militar israelita de Outubro de 2023 em resposta ao ataque do Hamas, criou desde então um vasto território temporariamente desabitado que se estende por longos troços até à estrada de Salah al-Din, que divide a Faixa longitudinalmente de norte a sul.

Para além dos objectivos de segurança israelitas, o regresso dos palestinianos às suas casas e aldeias será também ditado pelo processo de reconstrução, que, segundo algumas estimativas, poderá levar dois a três anos a repor em Gaza os níveis de miséria anteriores à guerra. Um terceiro elemento é o reforço das medidas de segurança no sul de Gaza, que pode significar, no limite, a reocupação da Faixa por Israel. Netanyahu evocou esta possibilidade ao declarar, a 31 de Dezembro de 2023, que “o corredor de Filadélfia deve estar nas nossas mãos … e deve ser fechado” para atingir o objectivo de desmilitarizar Gaza. São 14 quilómetros ao longo da fronteira com o Egipto. O posto fronteiriço de Rafah também se situa aqui. As forças da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP) deviam patrulhar este corredor do lado palestiniano da fronteira após a retirada israelita em 2005.

A tomada do poder pelo Hamas, dois anos mais tarde, alterou o executor, mas não a substância do acordo, deixando efectivamente ao Egipto a responsabilidade principal por esta passagem e por este corredor. O controlo israelita sobre estas zonas voltaria às condições anteriores a 2005, o que implicaria a reocupação da Faixa. No entanto, não se pode excluir a possibilidade de Netanyahu não ter qualquer intenção de fazer regressar o exército israelita ao longo desse corredor, e de as suas declarações terem apenas como objectivo exercer uma forte pressão sobre o Egipto e os palestinianos, de forma a obter maiores concessões em futuras negociações. Mas o facto é que, se a lógica da segurança prevalecer sobre qualquer visão geopolítica do pós-guerra, Gaza poderá alimentar uma guerrilha desestabilizadora e tornar-se uma “prisão a céu aberto” muito pior do que tem sido.

A separação da Cisjordânia seria igualmente decretada de forma de definitiva. Não é, pois, surpreendente que seja o Egipto, cuja segurança nacional está igualmente ligada ao Sinai e, por conseguinte, a Gaza, a estar na primeira linha na oposição às intenções anunciadas por Netanyahu e a exigir, juntamente com os outros Estados da região, um cessar-fogo imediato com uma retirada gradual do exército israelita. O quarto elemento é a mudança de regime em Gaza, tal como na Cisjordânia. O governo israelita recusa-se a lidar com o “pós-guerra” enquanto as operações militares continuarem na Faixa de Gaza. Na sua opinião, qualquer tentativa nesse sentido corre o risco de recompensar politicamente o movimento islamista armado e de criar as condições para um regresso cíclico da violência. No entanto, a forte pressão regional e internacional para oferecer um horizonte político à guerra em curso produziu planos e propostas incluindo em Israel para a gestão do pós-guerra em Gaza.

Se, como se espera, Israel exercerá um controlo “temporário” da segurança, uma eventual administração civil não incluirá palestinianos filiados em qualquer facção política ou militar que ainda opere na Faixa. Gaza, como disse o Primeiro-Ministro israelita à imprensa em 16 de Dezembro de 2023, não será “nem Hamastão nem Fatahstão”, sendo Fath a componente política dominante da ANP na Cisjordânia nem mesmo depois da retirada das Forças Armadas israelitas. Se a recusa israelita de prever qualquer presença do Hamas no pós-guerra é categórica, a relação com a ANP poderá, pelo contrário, mudar, desde que esta seja reformada num sentido anagráfico, democrático e ideológico. O que é certo é que a administração de Abu Mazen, o presidente não eleito da ANP, com mais de oitenta anos, é esclerótica, inepta e corrupta.

Isto não parece surpreender ninguém, dentro ou fora da Palestina, incluindo os governos israelitas que favoreceram o seu declínio, voluntária ou involuntariamente. No entanto, o ANP, o “herdeiro” dos acordos de Oslo de 1993 e herdeiro da OLP de Yaser Arafat, tem cooperado activa e eficazmente com Israel no sector da segurança desde há décadas. Cooperação que o tornou de facto cúmplice na luta contra o adversário comum, o Hamas, e lhe permitiu suprimir as vozes dissidentes. A sua crescente incapacidade para prevenir e conter as tensões na Cisjordânia tem, no entanto, resultado em frequentes incursões do exército israelita desde o ano passado, o mesmo exército que, no entanto, se tem abstido de intervir contra a violência dos colonos israelitas e de impedir o êxodo dos palestinianos das casas e aldeias sujeitas aos seus ataques.

A expansão dos colonatos, a ausência de segurança e de protecção e, agora, também a decisão do Governo israelita de reter centenas de milhões de dólares de receitas da “porta de entrada” e de impedir a entrada de 150000 trabalhadores palestinianos em Israel e nos colonatos, contribuem para a perda de legitimidade da Autoridade de Abu Mazen aos olhos de muitos dos seus concidadãos, dentro e fora dos Territórios Ocupados. Uma sondagem recente confirmou que 90 por cento dos palestinianos exigem a demissão de Abu Mazen, enquanto o Shin Bet, o serviço secreto interno do Estado judaico, alerta Netanyahu para o colapso iminente da própria Autoridade. Quanto aos israelitas, o silêncio da ANP sobre o massacre de civis perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023 pulverizou o seu último grão de “confiança” em Abu Mazen e seus colaboradores.

No entanto, a ANP continua a ser, para a comunidade diplomática internacional, a única instituição legítima de um proto-Estado capaz de administrar, uma vez reformada, a Faixa de Gaza na era pós-Hamas. No entanto, a sua reforma exigirá tempo e dinheiro. Enquanto se aguarda a sua conclusão, terá de ser criada uma administração civil transitória. Existem algumas propostas a este respeito, incluindo o plano egípcio e algumas ideias israelitas e americanas. O plano egípcio faz, na realidade, parte de um ambicioso projecto conjunto egípcio-catariano de cessar-fogo, de libertação gradual dos reféns e de criação de um governo provisório para a gestão do pós-guerra e para a preparação de eleições presidenciais e parlamentares palestinianas. Apresentado em 25 de Dezembro de 2023 às partes em conflito, bem como aos Estados da região, à UE e aos Estados Unidos, o plano visa não só pôr fim às hostilidades, mas também preparar o terreno para uma paz duradoura.

Embora tenha o mérito indiscutível de abordar as questões humanitárias de ambas as partes, tem igualmente em conta as etapas indispensáveis das negociações entre o Hamas e Israel no que se refere à libertação dos reféns israelitas e dos detidos palestinianos, bem como o papel deste movimento no período pós-guerra. O Hamas e as outras facções palestinianas são chamadas a seleccionar peritos sectoriais para uma administração técnica e transitória de Gaza e da Cisjordânia, a fim de restabelecer os serviços essenciais e criar as condições para a reconciliação intra-palestiniana e a preparação de eleições políticas. Estas últimas medidas permitiriam criar um parceiro palestiniano legítimo e coeso para as futuras negociações com Israel sobre o Estado da Palestina. No entanto, o plano encontrou resistência tanto por parte de Israel como por parte dos palestinianos. Para Israel, o plano não cumpre o objectivo principal de destruir o Hamas ou de o obrigar a render-se com a libertação incondicional dos reféns, para além de desmilitarizar Gaza.

25 Abr 2024