Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO inimigo [dropcap]O[/dropcap] mais recente romance de Anibal Antunes começa assim: «Lá em baixo na rua os carros buzinam na avenida em protesto ou apenas avisando outros veículos que o semáforo passou de vermelho a verde. Os turistas, vindos de terras distantes, de onde o sol foge, povoam as ruas, as praças e as esplanadas com os braços descobertos. Os humanos continuam a reunir-se à volta do sol como se a solidão não nos fosse natural. O sol de Inverno descobre em nós os restos de alegria ou de optimismo que nem sabíamos que ainda nos habitava. Dentro do apartamento, Afonso, esforça-se por querer viver, por encontrar uma migalha de sentido para continuar ao longo dos dias. Talvez o verbo esforçar não seja bem o que descreva a sua atitude. Talvez o verbo que melhor descreva a sua atitude neste dia de sol seja resistir. Nesta segunda-feira, aos 70 anos, Afonso resiste. E até ao fim é o que lhe resta.» É um começo que nos dá de imediato o tom do livro: a solidão. Que devemos fazer perante tão poderoso inimigo? E, completamente sós, devemos resistir para quê? Para quê prolongar os dias de trincheira? Para quê prolongar a vida, se ela se apresenta dia a dia como um inimigo a que temos de resistir e não como alguém com quem partilhamos os dias? Afonso nem sempre fora assim, evidentemente. Ao longo de 70 anos não teve sempre a vida como um inimigo. Ao longo do romance, das suas trezentas e poucas páginas, acompanhamos a vida de Afonso ao longo de várias décadas. Na verdade, sempre fora um cretino. Um indivíduo que se preocupava apenas com o seu trabalho e com o seu prazer. Gastou a vida em noites. Até aos 50 anos, poucos foram os dias que viu amanhecer. Tinha sido jornalista e reformara-se há cinco anos (o romance começa em 2016). O seu ódio à vida – aparece escrito logo à página 19 «Afonso odiava ainda mais a vida que a alegria displicente e sazonal do turista» –, aparece depois da morte da mulher, Carmo. Afonso conhecera Carmo há quinze anos e casaram-se pouco depois. «Afonso aceitou Carmo como um condenado aceita uma amnistia, a derradeira oportunidade de vida». E assim fez. «Agarrou-se à Carmo como a uma tábua em alto mar. Fez dessa mulher a razão de vida. Por ela foi capaz de deixar de dizer mal de tudo e de todos. Conseguiu perdoar-se a próprio em primeiro lugar, pois ninguém diz tanto mal sem que seja por não conseguir se suportar, por não ter sido quem gostaria de ser. Com Carmo passou a gostar de quem era.» Não é um livro de conversão. Quando o romance começa, nessa segunda-feira, faz um ano que Carmo morrera por atropelamento. E não podemos esquecer que o fundo do livro, como o próprio título indica, é o inimigo. «A minha solidão tomou forma, dizia Afonso para si mesmo enquanto ia buscar outra garrafa. Era um modo irónico de falar da ausência. Mas a ausência é já em si mesma uma ironia. Ela ri-se de nós, da vida humana, deste estar aqui sem propósito aparente. A grande invenção humana é a ironia, não é a roda.» Afonso via agora a sua casa como um túmulo. Na verdade a palavra que Anibal Antunes usa para descrever a casa depois da morte de Carmo é «sarcófago». Lê-se à página 34: «Poucos minutos depois de ter ido até à mercearia, Afonso voltava para o sarcófago.» Mas veja-se também páginas a seguir, o modo como o narrador descreve a casa. A descrição começa como se ainda houvesse alegria ou, pelo menos, vida, terminando por mostrar-nos a situação actual. No fundo, a descrição começa como se Carmo ainda fosse viva e termina com Afonso no sarcófago, e tudo isto num pequeno parágrafo: «O apartamento, no quarto andar do prédio, é atravessado de lado a lado pela luz. Virada a oeste, uma das salas tem cinquenta metros quadrados e duas enormes portas de vidro que dão para a varanda. É aqui que estão os livros e onde ouve música. Hoje é apenas uma câmara onde habita a sua solidão maior. Nem o som de Orfeu de Monteverdi, uma das obras preferidas de Carmo, conseguia reconverter o sentido da vida. A morte de quem amamos é uma metáfora da vida.» O romance tem o tempo efectivo de uma semana. Vai de uma segunda-feira a domingo. E nesta semana andamos décadas para trás e para a frente, como se fosse a nossa memória, a nossa vida. Aos 70 anos, Afonso não era um homem velho e nem assim se sentia. «Ele não estava velho, estava ferido de morte e arrastava-se. Como um touro depois de uma lide, arfava no meio da arena com os ferros espetados no dorso, escorrendo sangue e espuma pela boca. Tudo à sua volta, era o inimigo.» Os romances de Anibal Antunes são sempre centrados em figuras únicas, que se arrastam sós ao longo dos romances. Lembremos a figura de André Jovial, em «E Depois Nada», político que salta de partido em partido até terminar os seus dias na prisão, por denuncia da filha acerca das suas traficâncias de poder e dinheiros; ou a figura de Anabela Viseu, em «O Sol Negro», acompanhante de luxo em Lisboa, que acaba por casar-se com um magnata árabe e se torna mais escrava do que era prostituta. Mas é a primeira vez que Antunes nos apresenta um herói verdadeiramente trágico. Um herói que enfrenta a morte com a dignidade de quem sabe que não merece continuar a viver. Porque, diz ele, quase no final do livro: «Todos merecemos viver. Mas só cada um sabe se merece.» Fiquemos por aqui.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFábricas e profissões em 1867 [dropcap]A[/dropcap] 7 de Setembro de 1867 Camilo de Almeida Pessanha nasce na freguesia da Sé Nova, em Coimbra, pelas onze da noite, enquanto no mês seguinte, a 23 é a vez de Manuel da Silva Mendes ver a luz em S. Miguel das Aves, Famalicão. Ainda nesse ano em Portugal, com a aprovação do primeiro Código Civil é abolida a pena de morte para crimes civis a 1 de Julho de 1867. O inglês Robert Hart, Inspector-Geral das Alfândegas Marítimas Imperiais Chinesas, querendo ter Macau sobre a sua alçada e devido à recusa portuguesa em lhe permitir aí se instalar, procura convencer o Príncipe Gong (1832-1898, Yi Xin), chefe do Gabinete dos Negócios Estrangeiros Chinês (Zongliyamen), a comprar a jurisdição de Macau, sabendo das necessidades financeiras de Portugal. Nesse ano, a 30 de Março os russos vendem por 7,2 milhões de dólares americanos o Alasca aos EUA, com a intenção de enfraquecer a Inglaterra, que já detinha o Canadá, logo, território de fácil anexação pelo rival. Ainda em 1867, após uma ofensiva francesa contra os guerrilheiros no Delta do Mekong, a Indochina torna-se colónia francesa. Já os americanos cobiçam Taiwan e sobre o pretexto de a tripulação de um dos seus barcos ter sido atacada e morta, tentam invadir a ilha pelo sudoeste, mas os nativos Gaoshan expulsam-nos. Recolha do lixo Por Edital da secretaria do Governo de Macau e Timor de 30 de Março de 1867, mandado publicar no Boletim Oficial por o secretário Gregório José Ribeiro, são tornados efectivos o edital da Procuratura de 5 de Maio de 1851 e a postura municipal de 15 de Agosto de 1864. Ficam portanto de hoje em diante obrigados todos os moradores da cidade a mandar varrer a testadas de suas casas, até o meio das ruas, devendo esta limpeza achar-se terminada às 8 horas da manhã de cada dia. Fica sendo expressamente proibido aos moradores da cidade o deitar quer seja lixo, quer seja imundices na via pública, bem como águas sujas nas valetas ou sapecas das ruas: devendo todos os despejos de cada casa ser feitos nos canos especiais que já se acham em comunicação com os canos das ruas. É proibido aos vendilhões ambulantes o permanecerem por muito tempo no mesmo lugar, e não menos lhes é defeso o sujarem a via pública com cascas de cana ou de fruta, cujo comércio fazem, ou mesmo com folhas da verdura que vendem. É nomeada uma esquadra de cules composta de doze homens, sob a vigilância directa da polícia da cidade, encarregada de transportar o lixo para os lugares que lhe serão designados em relação aos diversos bairros, devendo para este fim esses homens de carreto trazerem um distintivo, e bem assim uma campainha para acusarem a sua chegada a cada rua, a fim de que os moradores de cada casa lhes venham entregar o lixo que eles hão de transportar. Fica em consequência proibido o uso de deitar para o rio, ou para as docas, ou para o mar, junto às muralhas dos novos aterros, lixo ou entulho que indo prejudicar o acesso aos cais, das embarcações, não é menos desagradável à vista do que prejudicial à saúde pública. As contravenções a estas ordens, que são no benefício de todos, serão punidas com multa de uma até 10 patacas, e prisão de três a quinze dias segundo a gravidade dos casos. Será dividida, para os efeitos deste edital, a cidade em três bairros, que serão: 1- O bairro de S. Lourenço, para cuja limpeza fica destinada a Barra no ponto que já se acha designado; 2- O bairro da Sé, cujo entulho deverá ir para trás do Cemitério de S. Miguel; 3- O Bazar e bairro de Santo António de que o entulho deverá ir para o covão da estrada de Santo António. Profissões dos chineses Em Macau, os professores sínicos são 66, livreiros 56 e existem dois impressores, havendo a tipografia de J. da Silva, que em 1867 acabara de ampliar as suas oficinas. O número de músicos é de 84 e existem dois fotógrafos e 22 pintores de retrato a óleo, apesar de noutro local do B.O. se referir 154. Os relojoeiros são 38, ourives 202 e escolhedores de prata 53. Cambadores ou cambistas são 95. O número de culis ou homens de conduzir carretos e cadeirinhas é de 1171. Há 3833 criados e criadas de servir, 171 mainatos ou lavadeiros e engomadeiros, 477 barbeiros, 141 sapateiros de obras chinesas e de obras ao gosto europeu 165. Os alfaiates de obras chinesas são 342 e de obras ao gosto europeu 165, bordadores 18, costureiras 271 e tintureiros são 20. Carpinteiros 805, marceneiros 102, torneiros 7, tanoeiros 104, entalhadores 18 e escultores 36. Carpinteiros de construir embarcações 68, calafates 37 e mestres-de-obras 12. Os vendilhões, que vendem nas ruas os seus produtos são 915, os agricultores 296, jornaleiros 316 e carvoeiros 183. Colaus, ou casas de pasto, são 24, assadores de porcos e aves 52 e há trinta taberneiros. Existem oito padarias onde trabalham 68 padeiros chineses contando com os três da Padaria Nacional, que se encontra no Beco do Senado n.º 2. As farmácias chinesas são 33; Boticários 272; lojas de plantas medicinais 15; ervanários ou herbolários 42; vacinadores 9; curandeiros 52; e Mestres chineses ou facultativos 104. Assim existem mais de 500 pessoas a trabalhar na saúde. Alguns dos Mestres ou facultativos chineses também exercem a profissão de farmacêuticos ou mister de ervanários. Contudo quem geralmente manipula os medicamentos e avia as receitas nas boticas e bem assim, quem de ordinário trata das plantas nas lojas de plantas medicinais são os empregados ou sócios dos mestres chineses, que vão mencionados como boticários e ervanários. Encontra-se ainda a Pharmacia de J. das Neves e Sousa e a Lisbonense. Quanto às fábricas, as treze de pivetes empregam 115 pessoas e nenhuma está na cidade cristã, existindo três no Bazar, seis em Patane, três em Mongh’a e uma na povoação da Barra. Já as fábricas de chá são catorze e encontram-se na cidade cristã, no Bazar, em Patane e em S. Lázaro, empregando 430 pessoas, sendo 272 mulheres, noventa das quais habitam em terra e 182 a bordo de embarcações no rio e no mar. Existe uma fábrica de tijolo e telha, que se acha na Estrada de Cacilhas, próxima à praia com esse nome e emprega 29 pessoas. Há ainda quatro fábricas de Cal, duas em Patane e as outras duas em Mongh’a, quase à beira do mar e empregam 43 pessoas. As fábricas de tabaco são em número de onze, achando-se estabelecidas no Bazar e em Patane e empregam 190 pessoas, havendo 341 cigarreiros. A folha de tabaco vem de Guangdong em grande quantidade, sobretudo de SeHui e pouca é reexportada, sendo quase exclusivamente para os portos de Oeste. Há catorze Casas de Jogo que empregam 142 pessoas e a lotaria chinesa dá trabalho a 182 pessoas. Vinte e quatro são os vendedores de ópio cozido e 1867 as meretrizes. Já os dizedores de sinas são 88. Na cidade estão presas 205 pessoas e tem 220 mendigos. Estes, alguns dados sobre Macau em 1867, na sua maioria fornecidos pela Repartição de Estatística.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA esperteza dos bichos [dropcap]N[/dropcap]os anos oitenta e noventa o golfinho era o maior. A comunicação social, hiperbólica no seu entusiasmo, garantia-nos que os golfinhos só não nos tinham suplantando no domínio do planeta porque viviam no oceano e tinham corpos desprovidos da anatomia necessária para fabricar e manejar utensílios (a falta que um polegar oponível faz). É verdade que os golfinhos têm um cérebro maior que o nosso, que são bichos extremamente sociais e capazes de empatia até para com animais de espécies diferentes e que, até ver, são os únicos animais – para além dos humanos – a ingerir drogas de forma recreativa (os golfinhos em grupo entretêm-se a mordiscar um peixe extremamente venenoso chamado baiacu, ingerindo apenas a quantidade de veneno suficiente para ficarem pedrados e passando-o depois a outro golfinho – nem é preciso substituir o peixe por uma ganza para a comparação ser estupidamente óbvia). Para além disso, têm um sistema de comunicação extremamente complexo e, treinados, são capazes de escolher, através do uso da ecolocação e de um painel capaz de interpretar esses sinais, o que querem comer. “Hoje tem sido carapaus”, dizia uma bióloga numa entrevista, “mas há dias em que só pede polvo”. Dias de polvo. Quem nunca? Hoje em dia, porém, os golfinhos deixaram de estar na moda. Nos anos noventa, eu achava – cavalgando a vaga de entusiasmo à volta dos golfinhos e da sua inteligência – que no dia em que conseguíssemos decifrar a linguagem deles, novos mundos se iriam abrir e muita coisa se resolveria. Em surdina garantiam-nos que os golfinhos eram portadores das peças do saber que nos faltavam para completar o puzzle da nossa interpretação do mundo. No divertido Hitchhiker’s guide to the galaxy do Douglas Adams, os golfinhos estão no segundo lugar do pódio dos animais mais inteligentes da terra (os ratos estão em primeiro; nós, em terceiro). Há filmes sobre a inteligência e empatia dos golfinhos. Há documentários suficientes para encher meia dúzia de discos rígidos. O que aconteceu então aos golfinhos para no séc. XXI deixarem de ser sexys? A explicação mais imediata (e também a mais desinteressante) é a de que a ciência – e sobretudo a ciência extremamente promissora mas ainda imberbe – não é imune a modas. Os golfinhos tinham um potencial tremendo à primeira vista. As observações preliminares permitiam tecer toda a sorte de conjecturas sobre a amplitude das suas capacidades. Um pouco com as pessoas que vamos encontrando e que nos parecem gigantes até se revelarem modestamente humanas por via do contacto prolongado. Na óptica desta explicação, os golfinhos são apenas mais um mamífero giro que prometia muito. Eu acho, no entanto, que a queda dos golfinhos do pedestal do nosso interesse não deriva propriamente da nossa avaliação errada das suas capacidades mas da inveja. Não da nossa inveja, atenção. Mas da inveja do restante mundo animal do interesse que nutrimos quase em exclusivo pelos golfinhos durante uma larga dezena de anos. Os bichos perceberam que tinham tudo a ganhar se demonstrassem competências capazes de despertar o nosso interesse. Os primatas já há muito o faziam, mas sofriam da síndrome de familiar menos dotado. Os golfinhos, por outra parte, são-nos tão distantes que qualquer manifestação de similaridade com as nossas competências (que julgamos sempre tão naturais quanto exclusivas) nos faz imediatamente verter uma pinguinha. Então e os corvos, mentalmente equiparáveis ao uma criança de sete anos na sua habilidade para resolver problemas? E os polvos, peritos no uso instrumental de diversos objectos? E os papagaios, capazes de para além de falar, de aritmética simples? Parece-me óbvio que esta bicharada se reuniu e, remodelando por completo o departamento de marketing, acabou por arranjar forma de dividir melhor o pódio. O segredo dos golfinhos continua a salvo.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO fim da quarentena? [dropcap]A[/dropcap] quarentena foi uma época das nossas vidas. Tem tudo idêntico a uma estadia numa qualquer estância onde se passa um tempo diferente do quotidiano. Estadias podem ser residências de artistas. Não são apenas os locais mas as temporadas que as pessoas passam nesses locais. As estâncias são balneares, termais, nas montanhas ou até hospitalares. A quarentena é um objecto temporal no sentido em que é uma temporada, uma estadia. Antigamente, passada nos navios, antes de se aportarem. A quarentena que vivemos teve a sua estância que é exactamente a mesma onde vivemos, ainda que tivesse havido pessoas que tivessem ido para casas umas das outras e ainda quem tivesse mudado de região. O que define a residência e a estância da quarentena é a temporada, o modo como se viveu a estadia na nossa residência domiciliária, na nossa estância existencial. Entrar em quarentena não coincidiu com o dia do seu decreto nem requereu obediência às determinações de comando. A população em bloco e de forma maciça com um único pensamento de preservação de si e dos seus, decidiu, numa expressão excepcional de vontade colectiva, querer entrar em quarentena. A decisão antecipava o perigo iminente do contágio e constituiu uma medida de segurança activa e de resistência contra o que muitos acharam que podia ser um suicídio colectivo ou da parte das autoridades um genocídio. Entrar em quarentena é abrir o horizonte da temporada em que o contacto entre uns e outros não é possível, se determina uma “distância social”, definem-se protocolos de higiene, não se pode sair à rua, vive-se em casa e a partir de casa. Basicamente, fechamo-nos fisicamente aos outros, não nos tocamos, não temos contacto, afastamo-nos o suficiente para permanecermos intocáveis pelas as nossas respirações. A vida é virada do avesso. O mundo inteiro que se estende até ao vasto cosmos, com fronteiras desconhecidas, é um interior onde não se pode ir. A casa é o nosso mundo, limitado, pequeno, estreito, mas onde cabe o mundo inteiro, onde se come, dorme, trabalha, ama, está só e acompanhado. Onde se é, onde se tem a existência. A casa vira-se do avesso e exterioriza-se. O mundo implode na sua vastidão. Os outros todos desaparecem. Não há pessoas na rua. Só dentro de casa, mas isso é uma suspeita. Agora é como sempre. Sabemos o que sempre soubemos dos outros: nada. Achamos que por os vermos sabemos das vidas deles. Agora que não os vemos sabemos que sabíamos antes o mesmo que sabemos agora. Antecipamos o fim da quarentena, mas com tanto cuidado que não foi uma saída. A temporada da preocupação não findou. Temos ainda a preocupação das últimas horas, do último fim de semana, da última semana, do último mês e meio, do fim de Fevereiro atrás das costas, a fazer sombra sobre o nosso presente e a projectar-se nas próximas horas, dias e semanas. A temporada desta estadia não terminou completamente. A nossa residência não terminou completamente. O guião está a ser escrito com esforço, com tentativas de antevisão, procuramos todos os boletins de previsão e prognóstico, não antecipamos nada de bom, contamos com o pior. A tensão vibrante com a abertura escancarada da rua, da praça pública, do aperto de mão, abraço do- e beijo ao- outro não se dá ainda. É ainda esta estadia, esta temporada estranha, nesta estância das nossas vidas tão conhecida, tão próxima, a nossa casa. A nossa casa, a minha casa passou finalmente a ser o meu mundo. O mundo é uma extensão implosiva que colapsa num movimento e deslocação centrípeto para dentro e para o meio da minha cabeça. Tudo o que há é da minha cabeça, de alguma maneira (Aristóteles).
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasVitorino Nemésio [dropcap]O[/dropcap] nosso drama e simultaneamente o que nos excita na linguagem é que ela não é transparente. O que é então possível fazer com a linguagem? Dançar. É o que a poesia propõe, organizar danças de salão com as palavras, que ainda por cima, como quem não quer a coisa, muitas vezes dizem a verdade, a verdade que de forma directa leva os homens a ficarem de costas uns para os outros… Mas a poesia consegue pô-los face a face – é o seu dom. Na minha adolescência havia um homem que riu galhofeiro ao meu lado, num filme que por um acaso feliz vimos juntos, e que conseguia fazer dançar as palavras de uma forma admirável. Chamava-se Vitorino Nemésio. Tinha o Nemésio um neto que pelo meu quinto ano do liceu andou na minha turma e por quem nutri uma daquelas amizades repentinas e intensas, mas inconsequentes, pois deixámos de nos ver, assim que ele foi para ciências e eu para as artes. Porém, privámos durante um Verão, eu vivia em Almada e ele na Cova da Piedade, que está colada, e havia uma singularidade na casa dele que a tornava particularmente atractiva: a varanda das traseiras dava para um recinto onde uma sociedade recreativa tinha o seu cinema ao ar livre. Assim gozámos algumas fitas de borla e calhou acompanhar-nos ocasionalmente nessa folia o Vitorino Nemésio. Lembro-me vagamente (neste caso não sei se sonhei) de termos visto juntos uma coboiada, O Ouro de Mackena, onde o poeta, taciturno, cabeceava, e com razão, é fita que não resistiu ao tempo, e tenho mais presente um impensável Jerry Ama-Seca, que fazia o Nemésio dobrar-se de riso na varanda e contagiar-nos com o seu entusiasmo. A dado momento o Jerry Lewis, um desastrado arranjador de televisões, canta pensando na namoradinha da sua adolescência, que abandonara a vilória para ir para Hollywood e seguir o seu sonho de ser actriz. Jerry canta e imagina que ela se lhe declara, I love you, I love you… ao que se seguem estes dois versos: “Quando você sonha/ o amor é uma coisa solitária”. E aí vimos, na varanda, aquela figura solene levantar-se de um salto e gritar espontaneamente Admirável, e o filme ficou suspenso ali enquanto o Nemésio nos procurava explicar a surpreendente profundidade da letra da canção, repetindo os dois versos que o fascinaram. Depois foi buscar uma viola e improvisou uma modinha a partir desses dois versos. Nunca mais o vi mas a simpatia daquele contacto levou-me depois a ler com gosto a sua obra, sobretudo a poesia, onde encontramos inúmeros filões poéticos, formas e estilos. Nemésio renovou-se sempre e com tal pujança que em 1972, com Limite de Idade, tinha então 71 anos, ou em 76, com Sapateia Açoriana e Andamento Holandês, escreve dois livros que ainda hoje são exemplos de uma fecunda adequação do artista com a sua contemporaneidade. No caso do Limite de Idade inoculando nos versos os termos e a linguagem da ciência, interesse que mais tarde se manifestaria num surpreendente Era do Átomo, Crise do homem (1976) e no qual Nemésio interpelava a ciência e os seus efeitos no momento de crise que então se vivia, em plena Guerra Fria. E às duas por três escreve: «Mas se a Ciência se quis como detentora das chaves de um Universo não demiúrgico – sistema de relações de elementos inanimados numa coesão regida por leis naturais imanentes -, a Técnica, embora positivista como ela, teve que tomar o lugar vago do demiurgo, tornar-se feiticeiro, operar, urgir. Porque Técnica, afinal, é urgência, no duplo sentido de intervenção, e pressa. Cirurgia, Metalurgia, Siderurgia – tudo urge, tudo é urgente. Nós é que não reparamos que os elementos das palavras significam sempre basilarmente o mesmo onde quer que se encontrem. […]» É engraçado como há 40 anos Nemésio já detectava esta propensão da tecnologia a tomar para nós o lugar do feiticeiro, da magia. A sua versatilidade como a sua capacidade para renovar-se ao longo de quarenta anos de poesia, inclusive, atrasou-me a descoberta de Pessoa, que para mim não foi uma novidade tão grande porque o Nemésio, sem o artifício dos heterónimos, já me oferecia os meandros de um arquipélago. Talvez este confinamento fosse a oportunidade para redescobrir o Nemésio, que anda tolamente esquecido. Do poeta transcrevo o delicioso exercício em francês (o Vitorino já publicara um livro em francês nos anos trinta) com que abre Limite de Idade: «CUISINE CHINOISE: Les savants se rencontrent dans les mots/ Les pauvres se partagent les os./ Les matelots se sauvent sur les eaux./ Les hommes se cachent leurs grelots/ À fin qu’on ne les prenne pour des sots./ Les poètes se grisent de mots,/ De peur qu’on ne les écorchent:/ Sauvons la peau,/ Porche/ De l’ADN,/ Car notre aubaine/ est le poteau,/ Dernier cri des robots.» , e outro poema « autobiográfico » : «JÚPITER,1901/ Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter./ Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era astrónomo, / Mas houve lá em casa uma grande perturbação na água do banho/ Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado o seu metrónomo./ E, Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta,/ Com seus doze satélites, quatro deles principais:/ Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura,/ A Primeira Grande Perturbação de Júpiter/ No ano em que nasci. / Elas em roda da banheira,/ Meu pai tocando flauta/ (Serpentes? No ninho em mim)/ E um véu de vapor de água, / Difracção de satélites…// Júpiter! Júpiter/ tu és o Toiro de fumo/ que nunca terás Europa.» E despeço-me confessando que no meu delírio, li no primeiro poema: Salvemos a pele/ Porsche/ do ADN, e só à segunda vi que faltava um s na palavra e que, portanto, será: Salvemos a pele/ Alpendre/ Do ADN. Falta-me é o jeito para a viola.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasDão-se explicações [dropcap]A[/dropcap] ideia de história tem sido concebida nos tempos modernos ao jeito de uma dança entre compulsão e liberdade. É com esta intermitência narrativa em mãos, alheia aos ritmos da natureza, que os humanos descobrem no tempo o seu leque de factos possíveis (tantas vezes apenas fruto do desejo). Colocando ou não na equação alguns imponderáveis (que vão de deus a acidentes de todo o tipo), há geralmente quatro posições que se desenham. Diríamos estar perante um design binário – como o é o do cérebro humano – que, no entanto, se desdobra: por um lado, coloca em cena imprevisibilidades que se explicam e outras que não se explicam; por outro lado, coloca em cena previsibilidades que se explicam e outras que não se poderão, em princípio, explicar. O cérebro é afinal uma dramaturgia que tenta não escapar às lógicas de montagem que lhe garantem o sentido. Comecemos pelas primeiras: as imprevisibilidades. Mesmo as mais trágicas conseguem em geral explicar-se. Um exemplo recente valerá como medida e como (triste) metáfora. O senhor Sergio Míllan vivia com a mulher num apartamento no número 7 da Praça Gracía Lorca, no bairro de Torreforta, em Tarragona. Aos 59 anos, o homem que durante décadas geriu uma frutaria de bairro foi vítimas duma explosão que teve lugar num complexo químico situado a três quilómetros da sua casa. A explosão fez voar pelos ares uma placa de metal com 1,65 metros por 1,20 metros e cerca de uma tonelada. O objecto foi projetado a cerca de três quilómetros, tendo entrado pela janela do terceiro andar do prédio onde Sergio Míllan vivia, levando ao desabamento do tecto do apartamento e à sua morte. Várias testemunhas qualificaram o impacto da placa metálica como o de uma bola em chamas. Das imprevisibilidades explicáveis como esta, geralmente trágicas, passemos às inexplicáveis que acabam amiúde por convocar o risível e não as trevas. Ocorrem-me duas situações. A primeira evoca Georges Bataille que, um dia, estava a subir uma rua íngreme debaixo de um grande temporal com o guarda-chuva virado ao contrário e boa parte das varetas partidas. E ali continuava a tentar subir a rua sem conseguir parar de rir. Gargalhadas seguidas de gargalhadas ainda maiores. Nada as explicava, mas o riso desbragado continuou sem nada que o detivesse. A segunda coloca-me, há alguns meses, a ler uma crónica de Vasco Pulido Valente (que mereceu na altura a reprovação generalizada das moralidades) e que, a dada altura, rezava assim: “Era bom que o planeta ardesse e que a Greta fosse ter a saturno para ver se aprendia de vez a ir para a escola”. Eu li e reli aquelas linhas e fiquei igual a Georges Bataille a calcorrear a rua mais íngreme do mundo: os pés a resvalar nas poças e o corpo todo molhado, irado, insuportável. Mas sempre, sempre, sempre a rir. A rir de maneira perdida e sobretudo inexplicável. As previsibilidades, essas, são desde sempre a casa mais desejada do humano. Sejam as que nos seriam reveladas por outrem, sejam as que a razão achou por bem colocar no mapa desde os alvores do hominídeo (a famosa “thirdness” de C. Sanders Peirce, categoria que nos permite antecipar, prever, prevenir). Todos os projectos humanos cabem, portanto, dentro das previsibilidades que podem ser ditas, formuladas, explicadas. Todos os textos criados ao longo do tempo estão enraizados neste tipo de projecção. De certo modo, os projectos são como um elástico que move as tentações humanas entre o futuro e o limiar do presente, lugar onde a vida se acende e reacende na busca (também retroactiva) de um horizonte. No entanto, é possível discernir nesta panóplia um certo tipo de previsibilidades que não terá uma explicação cabal, ou pelo menos uma explicação ‘última’ (se é que isso realmente existe). Dou dois exemplos que são alegorias, quer isto dizer que através delas se contarão muitos outros e (infindáveis) enredos que fazem do tempo um dispositivo de espelhos paralelos onde as imagens são sempre reversíveis e repercutíveis. O cineasta Abel Gance e o arquitecto Antoni Gaudí rivalizaram – sem darem por isso – na ideia de uma obra que se desenovelaria ao longo de gerações, augurando uma dimensão mais atemporal do que propriamente histórica. O primeiro fê-lo ao conceber um filme sem fim a ser projectado em três ecrãs (o projecto de ‘Napoléon’ iniciou-se em 1921 e teve uma estreia apenas experimental em Veneza no ano de 1981). O segundo fê-lo ao ter planeado a construção de uma igreja, a Sagrada Família de Barcelona (o projecto iniciou-se em 1882 e decorre ainda hoje em dia). Estes arremessos babelianos previram, continuam a prever e a antecipar cenários, mas fazem-no transformando o sentido numa espécie de boomerang. Encaram o futuro como miragem que rebentaria diante fosse de que explicação fosse. Aconteceu com Gaudí e Gance, mas também com um sem número de obras inacabadas, casos do ‘Réquiem’ de Mozart (ainda que completado mais tarde por Franz Süssmayer), do inacabável ‘Livro do Desassossego’ de Pessoa, do ‘Da certeza’ de Ludwig Wittgenstein e até mesmo do inacreditável ‘Finnegans Wake’, esse longo fôlego translinguístico de 700 páginas sobre o qual o autor, James Joyce, terá dito que servia para manter os críticos ocupados, pelo menos, durante trezentos anos. Explicações? No need.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasÍcones Santa Bárbara, Lisboa, terça, 83 Março [dropcap]N[/dropcap]o calendário do Filipe [Homem Fonseca] continuamos assentes no âmbar do mês terceiro. Acresce que no meu continuamos pelo mesmo dia, a resvalar nas suas múltiplas pregas, com suave dominância de escureza. A noite não me apoquenta por aí além, foi sendo cenário aconchegado de um sem número de alongamentos da possibilidade, de mastigação da palavra, de tentativa e erro, saboroso erro. A passagem destas horas noctâmbulas dá-se sobre sedimento de imagens. Madrugada prestes. O negro pontuado de estrelas, pano furado de luz, em constelação de ocupar espaços na composição, ou talvez de anunciar futuros, assim se desvende vocabulário, o negro, descrevia eu, não se apresenta uniforme. Desfaz-se anjo em fundo, que me parece por absurdo trazer óculos, talvez de sol, para que os olhos se não confundam com as estrelas, talvez apenas efeito riscado da água-forte. No concílio dos disformes, uma figura pontifica toda diagonal, de olhos cerrados, mão esquerda a querer tocar as estrelas, mas só a enganadora parecença assim o indica, que o braço esticado mais não é além de retórica. «Si amanece; nos Vamos», diz a legenda que diz a fala. Pode não acontecer o amanhecer e nessa esperança ficarão em debate, o mais símio continuará a fitar os céus, soerguido, mas atento às palavras. Estão os corpos nus, moldados tal granito de serranias, musculatura definida, mas de fome, sentados no chão quase todos, os que distribuem o peso pela esquerda baixa, fazendo palco para o cruzamento dos olhares. O que se afigura dono da palavra, e que se senta sobre obscena rocha, baixo ventre livre de pernas e feminino exposto, afinal apenas semicerra os olhos, entrevendo de par com outros dois olhares esgazeados a mulher desdentada que nos fita a nós. Que entidades capturou Goya? São do pesadelo ou da mais pura matéria? Tratam da miséria ou de ideias? Será assunto meu? Madrugada acontecida. A única mão que se vê parece dizer regresso a casa, no modo como segura a gola alta do casaco. O desenho não é um esboço, embora titubeante no recorte do corpo, elegante que nem arranha-céus, outro a somar-se aos que fazem o fundo, esses geométricos com chaminés soltando fumos, este sinuoso, forma simples a sustentar um rosto também escasso, essencial, no qual o frio alisou as carnes deixando uma planura de branco, cinza segundo o papel perfurado, era o que havia à mão em casa recém ocupada, mas o José Muñoz queria dizer branco, tenho a certeza, cara pálida afirmada com uma boca ligeiramente aberta para ajudar o ar a rimar com a rima absoluta dos três pontos: olho e narinas. Uma das narinas parece soltar-se do contorno para ir ao encontro da flor, nisto o corpo se separando de seus irmãos imóveis. No bulício da cidade que desperta, as indústrias do viver não impedem que se descubra flora perfumada. Os ramos parecem atirar-se e são de todos os traços mais hesitantes, nascendo agora mesmo, que estava lá e vi, que estou lá em vivo (ou estava a trazer o bacalhau-à-braz para a mesa?). No chão, por escrito, a invocação da cidade-maior, onde só fui pela palavra e desenho, «Grand Buenos Aires», além da resposta «P’tite fleur» e do nome, da assinatura. No apóstrofe da pequena recordo um sotaque. Na interrupção que o manuscrito inflige à quina do edifício fica uma afirmação política: a escrita de flor sobrepõe-se ao concreto. Manhã acesa. Sobra bucólica, casa das de infância com figura solitária e poste dos telefones sobre colina mais escura, a que se sucederá outra em segundo plano, com duas árvores, singela, um cipreste e cruzeiro. Este fundo é enganador, que o de verdade regista taquicárdicos altos e baixos e dinâmica assinatura, travestido o conjunto por gatafunho, que não palavra ou nome. Daqui se parte para o que interessa, por ocupar os dois terços da composição, com a enorme unha da Lua a brilhar. O fundo foi desenhado por Steinberg com impressões digitais. Identidade, portanto, as nuvens. Identidade a terra, identidade o céu. Identidade o horizonte. Identidade verdadeira até na assinatura de brincar. Tenho-a à mão em precioso volume, companhia dilecta dos primeiros dias da minha pessoal quarentena, que leva por título «The Passport», e foi prenda do salta-fronteiras e navegador solitário, Barão do Oeste e mais aquém à direita de quem sobe, D. Bernardo. Tarde plena. Um homem de costas, com o rosto a dois terços, meia-lua, os dedos de uma mão fincados no antebraço. Não se vislumbram esgares ou esforços. O homem de costas sentado na mancha afirmando chão tem o tronco transparente, janela para o nada que o envolve em tons de amarelo esmaecido, assim a voz do meu sangue por estes dias que são noite. Na catedral que é o tronco de um homem, mesmo sentado de costas no chão, Topor colocou figura escavadora que parece brincar com os longos braços prolongados por extensos dedos que são garras e tocam o côncavo avermelhado fazem cócegas, não tanto ferida. O grifo trespassa-nos com o olhar um sorriso estúpido e cruel, a mais estranha das fraternidades. O sorriso tem artes de se fazer arma. O francês chamou-lhe «La Douleur». Preciso emoldurá-la com urgência. Lusco-fusco. A unha da Lua está à direita, acima do punhado de estrelas, mas o céu confina-se às costas do sofá, encostado à direita a dizer sala-de-estar, ampliação dele próprio, sala-de-viver para o galgo que só a partilha com livro ilustrado, cada um em seu braço. E que, dobrado com a anca a fazer de colina nazarena, nos olha como só os bichos. A sua respiração semeou mais estrelas na almofada, arrumadas em constelação. As cores são as de Mário Botas, ricas de castanhos, servindo aquela luz de tardinha, onde o que foi não deixou ainda de ser anunciando em si o que virá não tarda nada. O futuro não tarda nada. Noite dentro. O quase quadrado de fundo roxo surge limitado por horizonte de régua e esquadro, com zimbório e pára-raios assinalando o centro. O centro é sempre pontiagudo? Acima, uma mancha de negro atravessa a cena, vêem-se já as barbatanas. El Roto, que Lisboa viu se quis em 1998, pintou de modo homogéneo, excepto o amarelo da unha da Lua onde se reconhecem pinceladas, mas não a dentição temida do tubarão. O quarto minguante visto daqui é a boca do medo. E que bonita evolui por sobre as nossas cabeças.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasVestir o tempo [dropcap]E[/dropcap]u não sei como o leitor lida com as pequenas contrariedades do quotidiano mas aqui fica uma informação inútil: eu lido muito mal, obrigado. Uma avaria, um atraso num prazo, uma resposta que se está à espera, um erro autoinfligido – enfim, uma série de incidentes que comparados com as tragédias da humanidade serão de facto irrelevantes para o universo. Menos, claro, para mim. Não sendo uma pessoa dramática e até afectando alguma fleuma que admiro, esse tipo de obstáculos desperta neste esforçado cavalheiresco Henry Jekkill um indesejado e maléfico Edward Hyde. Ou seja, e para utilizar o jargão científico: passo-me dos carretos. Assim foi esta última semana em que as pequenas coisas – sim, outra vez – voltaram a crescer para a proporção de Adamastores intransponíveis. O que terá acontecido? pergunta com sorte minha o leitor amigo mesmo antes de se rir e desprezar as picuinhices do cronista comparadas com o estado do mundo. Pois pouco, muito pouco: óculos que se partem, computadores que falecem e tudo no espaço de poucos dias. Só que amigos, pelo menos concedam-me isto no meio do que parece tanta frivolidade: estes dias são lupas. E para um ansioso na clandestinidade, como é o meu caso, pior ainda: são catástrofes. Tentemos a lógica, em premissas simples: eu, sem óculos, não vejo; eu, sem computador, não posso trabalhar. Sendo que nesta altura não tenho dinheiro para resolver qualquer das situações. Qual a solução para este vosso criado? Implorar pela vinda rápida do apocalipse desde que se esteja com uma roupinha lavada. Naturalmente, não resolve. Há uma série de livros supostamente infantis escritos por Lemony Snicket (pseudónimo do escritor americano Daniel Handler) que se chamam A Series of Unfortunate Events (Uma Série de Desgraças, na tradução portuguesa algo atabalhoada). Tratam das desventuras de três órfãos às mãos de um sinistro parente que quer ficar com a herança dos irmãos. Escrevi “supostamente” porque estes livros têm um fundo negro que não é nada infantil. E se os lerem perceberão como nestas alturas me identifico com os irmãos Baudelaire e as suas infelicidades que parecem nunca ter fim. É necessário pois respirar fundo, arregaçar as mangas, pensar na ínfima proporção dos meus problemas e devagar mas com precisão, ir retirando esses irritantes grãos de areia que atrapalham o quotidiano. Foi o que fiz e nessa empreitada surpreendi-me com a nova noção do tempo que está agora instalada. O tempo agora é elástico. À espera para resolver estas questiúnculas reparava nos outros que também esperavam. Onde antes haveria impaciência agora havia, pelo menos, resignação. Arrisco a palavra: compreensão. Graças às circunstâncias que vivemos e que obrigam a tantos novos rituais de protecção, o tempo estende-se agora à nossa medida, como um fato feito por alfaiate. Estamos reconciliados com a demora. O tempo, de repente, tornou-se humano. Continuarei a ser o ansioso catastrofista das pequenas calamidades, disso não duvido. Mas aprendi uma lição preciosa que utilizarei para bem estar meu e dos outros: posso vestir o tempo que agora se me oferece. Não há outra alternativa. E garanto, que bem que nos fica a todos.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAo longe a vida [dropcap]O[/dropcap] romance da moçambicana Flora David tem este começo que serve de tom e mote ao livro: «A jovem Flora tinha tatuado no braço esquerdo “amor de mãe” e no braço direito “ódio de pai”.» O facto de a escritora dar o seu nome próprio à protagonista não é por acaso, evidentemente, e pretende que o leitor sinta o romance, Ao Longe A Vida, como uma confissão. Este é o único romance de Flora David, que é conhecida em Moçambique como poeta. Numa entrevista dada ao jornal «Savana», disse que o romance é uma confissão, mas não pessoal. «É uma confissão de um povo, de uma geração [Flora tem 32 anos] que sente ter nascido já com a sua vida penhorada.» Trata-se, portanto, de um livro político no sentido alargado do termo. Um livro que nos mostra as dificuldades da vida numa cidade, que é a capital de um país, e onde as dificuldades se multiplicam. Lê-se à página 57: «Entre as 10 e as 13 horas o elevador do prédio parava. Às segundas, quartas e sextas-feiras, Flora [no romance tem 21 anos e estuda direito] chegava da faculdade ao meia dia e ficava uma hora no café em frente de casa, esperando que o elevador voltasse a funcionar. Não tinha medo de enfrentar os onze andares, tinha medo de se habituar. Tinha medo de aceitar a tristeza como normalidade.» Há um outro momento do romance em que volta a referir-se aos horários dos elevadores, à página 112: «Vivia com a mãe e com a avó. Ao domingo, quando faltava alguma coisa para fazer o almoço, era ela que ia comprar. Nesse dia, regressou das compras e esqueceu os coentros para o almoço. Não teve forças para voltar a descer e subir os onze andares e nem a mãe teve coragem de lho pedir. Inventou-se a refeição.» Há páginas duras sobre as relações entre homens e mulheres. Relações marcadas pela violência, pela normalidade dessa violência. Uma vizinha de Flora, cujo marido tinha várias amantes e nunca estava em casa, deixando-lhe a responsabilidade de educar e pagar a vida dos filhos, diz para Flora, que a encontra no sétimo andar das escadas: «Mas que fazer, nasci mulher. Vamos querer que o mundo seja outro?» É este encontro nas escadas, descrito à página 79, devido à falta de energia, que faz com que Flora decida de uma vez por todas que é isso precisamente que ela quer da vida: que o mundo seja outro. Quando o jornalista do «Savana» pergunta à escritora quanto da Flora do romance há dela mesma, responde: «Apenas os ideais. Mais nada. Nunca estudei direito, nunca vivi num prédio, nunca tive pai para odiar.» O que nos leva ao início do romance e à tatuagem do braço direito de Flora. O irmão de Flora, com 14 anos, matou o pai, como uma catana, quando este violava a irmã, Flora. Não tinha sido a primeira vez e não seria a última. Além de violá-la, batia continuamente na mãe e roubava-lhe o dinheiro. O irmão foi preso e nunca mais se soube dele. Lê-se: «Disseram que aos 17 anos fugiu da prisão e nunca mais ninguém soube dele. Mas para Flora ele tinha sido morto. Seu irmão jamais ficaria longe da família, mesmo por carta. No fundo, não foi o irmão que matou o pai, Flora sentia que tinha sido o pai que acabara por ser responsável pela morte do irmão. Tinha 20 anos quando fez as tatuagens.» Ainda no jornal «Savana», num texto sobre o romance de Flora David, o poeta e escritor António Cabrita, escreve: «Trata-se de um romance político, onde através de Flora descemos ao inferno de crescer a ver a vida ao longe. Tudo está longe: os livros que não há, ou são demasiado caros (Flora tem de decidir muitas vezes se come ou se lê), os elevadores que não funcionam (com horários de funcionamento por falta de energia), a renda da casa demasiado cara, a saúde pública em carne viva. Mas apesar da crueza dos relatos, do realismo do romance, há beleza em várias passagens, obrigando-nos a lembrar que se trata de um livro de poeta.» Não estou certo a que passagens Cabrita se refere, pois não as chega a citar no seu texto, mas deixo aqui algumas passagens que considero belas, para além da realidade dura dos dias. À página 100: «O sol alaga os prédios em frente e, por cima deles, um avião rasga o céu azul, imaculado, sem nuvens ou quaisquer rastos delas. Um azul que dá vontade de mergulhar, como se o mundo ficasse ao contrário e o ilusório céu se transformasse no líquido mar. E uma vontade de acreditar na vida, de acreditar que o mundo será todo como se vê nos países da Europa, fazia com que os olhos aguados de Flora deixassem de ver.» Ou esta à página 77: «Estendidos pelos cafés, mais amargurados, mais punidos pelas décadas, os velhos pensam no que poderiam ter sido. Mas para terem sido, fosse o que fosse, não seria preciso ser em outro lado?» Ou esta frase que nos enche de nostalgia, à página 83: «Na juventude, o sol é uma tonalidade que nos faz vibrar em uníssono. O sol não é uma estrela, é um país, que mais tarde a solidão eclipsa.» Aquilo que mais surpreende em Flora David é a capacidade de num mesmo parágrafo, por vezes numa mesma frase, mudar o registo dúctil da política para o registo maleável da poesia. Um romance ainda por descobrir ou, parafraseando António Cabrita, um romance que de tão verdadeiro ou é poesia ou ainda nem existe.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA estátua de sal [dropcap]«V[/dropcap]ai, salva a tua alma e não olhes para trás». Assim foi dito a Lot quando da destruição de Sodoma, e nesta advertência está implícita uma lei vital que é a de não permitir perder tempo naquilo que não seja estritamente necessário bem como essa inabalável força que nos projecta para o futuro, de como é importante obedecer à voz interior que sabe encaminhar-nos no limite das provações. Esta imensa certeza é um dom que nos ajuda a ser guiados nos mais imponderáveis momentos e ter a convicção que o “cordão de prata” a que estamos presos pode ser ampliado sempre que depositamos essa fé imensa na estrada do desconhecido para onde estamos a ser puxados. Vacilar, fará de nós a imagem da sua mulher que não escutando a voz se perde na curiosidade, na certificação, como Orpheu, que ficou sem a sua Eurídice. E voltando ao tema da certificação, ao odioso anátema que pode acontecer com o termo “certificado” já a ser composto como medida sanitária, é agora importante advertir das consequências de uma tal designação. Nestes momentos as coisas mais sinistras do compartimentar, certificar, excluir, selecionar, estão alerta e todos sabemos onde leva, e é também por isso a Hora de velar pela palavra pois ela é fazedora de realidade. Há de facto muitas vozes nestes meses, nestes dias, mas é a nossa, aquela individual e única que de certa forma andou fragmentada, enjaulada nos seus egos, e estranha ao seu mais precioso processo que convém no regresso à caverna entender melhor; recolhemo-nos para prestar um serviço a uma alma que desconhecêramos, e ela vai falar! Se estivermos em permanência debruçados sobre o que se diz, ou na espera de novos dados para robustecer a nossa inércia, entraremos em ruptura muito em breve. Os ecrãs não devem ser projecções, embora pareçam o mais distante da solidão imposta, e se neles nos debruçarmos mais do que podemos filtrar, a ameaça então não só vem de fora como de dentro. Os vestígios ínfimos de individualidade em seres fragmentados fizeram-nos veículos de consciência colectiva ou social em permanência, e a ordem de saída de Lot é também um tributo à reposição da vida como um acto cósmico, e ainda é importante salientar o episódio de quando os dois homens apareceram na sua tenda com propósito anunciador: ele não lhes perguntou nada, convidou-os a entrar e a lavar os pés, deu-lhes de comer e consentiu que pernoitassem, é esta “desinfestação” de alma que é muito provavelmente olhada com amor pelas estrelas e pela confiança se deixa por elas guiar. Aprender de novo este caminho só seria possível se a Terra transformasse as nossas quarentenas em quarenta anos de travessia, e todo o aspecto alegórico da narrativa teria de ser encaminhado ainda assim à vida cada um. Voltamos agora a um instante que é o de ressurgir dos mortos, e talvez as nossas vidas sejam outra coisa, tenhamos morrido de certa maneira e voltado a outra terra, pois não nos será dado esquecer as longas filas de carros militares transportando cadáveres para formos crematórios – são visões que não vamos mais esquecer- e que certamente nos toldou os olhos de lágrimas e como um assombro entrou na luz tão bonita desta Primavera, com o tempo a passar vamos ficando assim… tentando escutar que voz é esta. Creio que muitos estão já petrificados tal qual como a mulher de Lot entre dois mundos, e de um e de outro podem não conseguir ver esta separação abrupta que causa naturalmente uma petrificação estranha, um surto de náusea e arrefecimento, mas agora também temos de tentar combater toda a curva para o nosso próprio abismo. Todos podemos ser contagiados, é certo, mas muitos não o serão e há ainda os que recuperam, os que ajudam, os que fazem acontecer, devemos estar gratos por todo esse esforço olhando para as coisas não como direitos adquiridos mas como dádivas e alguma gratidão. Cada dia passado nesta imensa jangada é ainda assim um dia de vida e vamos aprender que ela é sagrada, que tudo quanto vive tem as suas forças de recolhimento, muitas formas de vida hibernam, e para nos dar alento saber que há menos poluição nos ares do mundo, que os canais de Veneza estão limpos, e as águas estão lá para um dia breve voltarmos com os nossos braços nus a abraça-las num quente Verão. O sal foi uma medida de retribuição pelo trabalho prestado tal a importância que tinha na vida dos homens, uma estátua de sal pode ser ainda a metáfora mais conseguida para nos impedir de ver a destruição causada atrás de nós e deixar aos que sabem passar um espaço venerável para prosseguirem. Lot, foi para uma gruta, a sua descendência atraiçoada por causa das filhas, mas ele não teve aí nenhuma participação consciente, como o não teve na própria salvação, e acredito que salvou a sua alma. Somos agora o Mar Morto ou o Mar de Sal.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasE depois das árvores [dropcap]O[/dropcap]u o orangotango e o escaravelho. Em subtítulo e como uma fábula encarnada por esse estranho par da floresta. Um, nos píncaros das árvores, o outro a rolar bolas de estrume, muito abaixo. Essenciais. Horas passadas em frente a um ecrã a trabalhar, fechada em casa nesta consciência de que tem que ser e de que sei a razão. Ao contrário dos bichos. Isolados pela desflorestação. E passando, num curto passo conceptual, de habitantes a invasores. Ou tornados órfãos pela captura das mães. Desligo o computador e acendo a televisão. Outra janela no habitat da casa. E aterro no Bornéu. Esplendorosa visão sem tocar, da floresta tropical. E tão bonito o termo inglês: “rain forest”, a que brota da chuva, esse dialético alternar entre o que cai e o que ascende, numa medição de forças em que a vida impera. Ali. Vestígio de um milhão de anos de vida em renovação desde o mais inacessível rebento, a centenas de metros do chão, ao mais ínfimo verme escondido no segredo desse cadinho de desperdícios no solo. Árvores milenares, tanto de altura em busca dos abismos etéreos do espaço livre, como no oculto da profundidade, quase uma metáfora do dinamismo psíquico, que nos caracteriza e acrescenta ou transtorna. Enquanto no resto da natureza, as funções e as coordenadas se dividem. O elevado e o rasteiro. Uma imensa fábrica útil, maravilhosa e exuberante de diversidade e equilíbrio. Grandes orangotangos, de enternecedora semelhança connosco no olhar, e nos noventa e tal por cento de ADN comum, em que foi seguramente incluída uma certa apetência à contemplação. Parecem tão serenos e sem outra actividade, que viver. Essa serenidade que nos falta. Mergulhados em ambição. Mas eles, ao contrário de nós, mesmo no gesto mais elementar de comer um fruto, retribuem à natureza, disseminando as sementes, em vez de lenços de papel. Têm mais utilidade do que nós, seres humanos. E garantem a biodiversidade que lhes assegura a existência. Também poluem com as suas fezes inevitáveis que exalam um metano nocivo para a atmosfera. Mas os pequenos escaravelhos, de poucos centímetros, que rolam bolas de estrume mil vezes mais pesadas do que eles próprios e as enterram, úteis aos seus hábitos de reprodução, neutralizam a poluição que delas se evolaria. Isto deveria dar-nos que pensar. A poesia das pequenas profissões da natureza. A utilidade de tudo. Comove. O que é esta resina, que sela as dores de árvores feridas, e usamos em colares – como somos fúteis e a única espécie que se enfeita com a natureza alheia e que em quarentena, só reza para que reabram os cabeleireiros – penso, rolando uma pequena conta de cor ambarina entre os dedos, num gesto mecânico. Mas sobretudo os que, no topo da cadeia alimentar, nada dão em troca. Nós que tanto falamos de reciprocidade. Que combatemos os da nossa espécie por ideais. Por ideias e ambições. E destruímos sem dó a nossa casa-mundo. Toda esta beleza feita de um intricado e misterioso conjunto de cores e sons e vida escondida, de tirar a respiração. Mas nos permite respirar melhor. E, mesmo de longe, viver melhor. Porque é ali que se prende como a profundas garras, uma quantidade imensa de carbono, que subindo à atmosfera contribui para uma abóbada-estufa em que tudo definha. E já se pode ver para crer, numa floresta digitalizada em camadas de cor, a quantidade de carbono retido nela e não deixado fugir livre para a atmosfera. Mas reduzida em um terço pela mão do homem. E, por comparação, as cores dessa ausência, em florestas rígidas de palmeiras novas, repetitivas, que vão substituindo hectare a hectare, cruéis, a maravilhosa diversidade da outra. Limpas do carbono fugido delas para a atmosfera, em liberdade de fazer mal. Os bichos em fuga, também. A vida em desequilíbrio. E depois de tudo isto, das árvores, fico a pensar que resta o depois de nós. E que se perde também uma espécie fascinante. Mas que ao contrário das outras, com toda a sua razão e imaginação, tanto produziu, que destruiu. Um tiro no pé. Pesquiso no mundo Google: “como ir”. E corrijo: “como não ir”. Deveríamos poder ver de perto a fórmula feliz da natureza, mas tudo aquilo em que tocamos estragamos. E há muitos lugares no mundo que deviam ter sido ignorados pela espécie humana. Excepto agora, por aqueles que, dedicados à ciência, ali têm como missão de vida estudar, ler os limites, fazer contas ao mundo e proteger. Que tentam reconquistar a sustentável leveza do ser-mundo, à ganância de povos e políticas. Ali, onde cada ser estava no seu lugar e sem ambições para mais. No equilíbrio mútuo de vidas como um todo. Mas não é por altruísmo que são assim os seres vivos. É como se fosse uma forma superior de inteligência genética, que nos falta, a que os tem em harmonia no puzzle complicado de dependência e importância. Ao largo do Bornéu mergulhando a pique nas águas, outra forma de equilíbrio no arame. E qualquer sopro estrondoso de uma explosão para pesca apressada, faz ruir florestas subaquáticas e maravilhosas de corais, e com eles a fauna dependente. Não só não retribuímos, como somos predadores com meios desproporcionados que pescam mais para enriquecer que para comer. E, em fuga para a frente. Marte. Talvez um dia tenhamos que nos mudar. Depois o crepúsculo. Um burburinho ensurdecedor de aves e insectos que desafiam a noite. Ali, num mundo isolado e já quase inacreditável, no meio do vórtice de insanidade, as pequenas coisas belas e estruturadas persistem inexoráveis como uma camada do mundo que é intransponível, mas não é verdade. Enormes tensões que facilmente o abalam e põem em causa este perfeito mas delicado equilíbrio. Entre orangotango e escaravelho. Por aqui também cai o dia. Sento-me em frente, com um copo de vinho. Transformado do natural. E o copo é bonito porque é vidro. Uma diáfana invenção. Talvez devêssemos ter ficado por aí. Para uma bebida, o entardecer. Uma emoção calma. Sim a cidade silenciosa também. Este céu branco enevoado antes do negro. E não há grito possível. Nem medo. Medo é em tudo o resto. Mas o ruído ensurdecedor da floresta fica a habitar-me e a casa. Deixo respirar o vinho, como a terra precisa, enquanto o movo ligeiramente a sentir o aroma. Olho uma imagem de que gosto. Na parede. Outra coisa que nos distingue dos bichos. Produzir imagens. Ou a razão ou a memória. Ou imaginar o que não existe e esquecer o que há. A natureza em agonia. E depois, simplesmente, pergunto o porquê. Daquilo que nos distingue e de que nos orgulhamos, ser também o que destrói sem retribuição. A vida é elaborar, ir. Mas também, com razões maiores que nós, o contrário. Ou o futuro é já ali, depois das árvores, depois do mar e depois de nós. Marte é tão vazio e sem árvores.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasO Oriente dói [dropcap]M[/dropcap]esmo os mais distraídos (o que por vezes inclui a crítica) terão notado a obsessão arqueológica presente em vários livros de poesia publicados sobre o Oriente por portugueses, desde o século XIX até hoje. Eles parecem estar sempre à procura (e por tanto que procurem é fácil encontrar) dos lugares, monumentos e inscrições da presença de Portugal na Ásia, mesmo tendo que escavar não só por entre a vegetação tropical que entretanto engoliu as igrejas jesuíticas, mas também por entre os resquícios mais visíveis de feitorias holandesas e de empresas britânicas que tomaram conta do nosso empório. Couto Viana disse-o em No Oriente do Oriente (1987): “O português no Oriente/ Encontra sempre sugestões, sinais” (p. 35). Mas não só de ruínas vive esta poesia. Os próprios poetas portugueses que calcorrearam a Ásia são também recuperados como elos desse chamado Oriente Português. E assim Camões, Mendes Pinto, Bocage comparecem como personagens literárias sem as quais não é possível entender a Ásia, em poemas e outros textos de Camilo Pessanha, Alberto Osório de Castro e, mais recentemente, de Ruy Cinatti, Armando Martins Janeira, António Manuel Couto Viana, José Augusto Seabra, Carlos Morais José e de Luís Filipe Castro Mendes, formando uma linhagem de autores com uma ligação simultaneamente vivencial e estética ao chamado Oriente Português. Esta tem vindo a depender sobretudo de funções representativas do Estado, desde o próprio Camões, que em Macau terá sido (para quem esterilmente busca provar a veracidade histórica do mito) “provedor-mor de defuntos e ausentes” até aos diplomatas Seabra e Castro Mendes. Mas não é apenas a profissão e a vivência directa de um espaço comum que os une. Trata-se de uma tradição com os seus tópicos particulares, directamente relacionados com as biografias dos autores, que como que performatizam a sua errância pela Ásia, mitificando-a à luz dos seus antepassados prediletos, quase sempre Camões e Mendes Pinto, de que sentem repetir os passos. Assim, uma das características desta poesia tem sido a constante mediação de referências literárias portuguesas para entender o próprio Oriente. Ao afeto pelas coisas asiáticas interseciona-se uma obsessão por encontrar Portugal e as marcas da sua cultura necessariamente imperial. Muitas vezes a inscrição de Camões e de Pessanha como âncoras familiares contra a inalienável estranheza da Ásia são também problemáticas, por que podem trazer consigo construtos discursivos a que alguns chamam orientalistas. Este tipo de intertextualidade facilmente é lida à luz do mecanismo, apontado por Edward Said em 1978, de legitimação do discurso orientalista pela referência à autoridade de outros plumitivos. Mesmo que não seja esse o caso, é um tanto ou quanto irresistível, para um poeta português que habite na Índia e em Macau e que sobre ela escreva, falar de Camões e até mesmo de Pessanha. Homenagear ou repetir Camões e Pessanha não é, em si mesmo, um gesto orientalista, mas arrasta fortes implicações provindas da tradição onde tal homenagem acontece. De qualquer das maneiras, e para quem tende a observar a Ásia com uma lente portuguesa, exige-se prudência nas experiências exóticas. Essa prudência está sobretudo nos que aqui mais tempo passaram. Ela está – tanto que sobre ela escreveram – em Wenceslau, em Pessanha, em Cinatti, e menos em outros. Quando se vê o Oriente por aquela lente é como se ele doesse menos, pois a ignorância do europeu perante o “misterioso” Oriente (afinal também ela um conhecido tópico) é por vezes cansaço, como no poema de Castro Mendes «Um orientalista confessa-se», de Lendas da Índia (2012): “O Oriente dói,/ Alheio aos nossos conceitos estafados,/Desfeitos pelas chuvas da monção/ Ou dispersos pelos ventos do deserto” (p. 36). Assim, junto com a prudência vem a ironia sobre o próprio olhar europeu sobre a Ásia, neste e noutros poetas mais recentes, o que modula este quadro. Mas afinal estamos sempre dentro do olhar europeu, e não nos são permitidas mais do que voltas concêntricas, que noutro lugar tocam o mesmo ponto.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAs pessoas de sucesso [dropcap]A[/dropcap]s pessoas de sucesso fascinam-me, independentemente do mérito moral dos seus propósitos. O sucesso é-me naturalmente estranho, não tenho o talento ou as competências para lhe deitar a mão. As poucas coisas que me orgulho ter conseguido acabaram por ser o resultado de percursos irrepetíveis. Como num labirinto de que se sai sem se saber explicar como. As pessoas de sucesso têm um método, são obstinadas e as contrariedades com que se deparam motivam-nos em vez de os desanimar. Para onde quer que olhem, vêem mais nítido e mais longe do que alguma vez conseguirei ver. Quando aparece uma pessoa de sucesso na televisão fico a olhar fascinado para o ecrã, medindo-lhe os gestos e a voz, tentando perceber como o fazem. Nos dias de maior ressabianço, atribuo tudo à sorte; nos de maior fascínio, a qualidades sobre-humanas. As pessoas de sucesso não podem ter dentro os mil e um registos em permanente conflito que as pessoas normais têm. As pessoas de sucesso têm de ser bidimensionais. Mas quando as ouço a falar ou leio o que dizem, não me parecem assim tão diferentes do resto dos humanos. Na maior parte das vezes até me parecem insuportavelmente banais. O que adensa o mistério: de que qualidade específica se alimenta o sucesso? Uma coisa me parece evidente: as pessoas de sucesso olham para a meta do percurso onde se encontram e não para o chão e não reequacionam os seus objectivos à luz das contrariedades que lhes surgem pelo caminho. Não perdem o foco, por mais absurdo e inatingível que o objecto dos seus desejos nos pareça. As pessoas de sucesso são como algumas das personagens dos filmes da Disney: sonham alto e longe e a despeito da zombaria do olhar alheio acabam por encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris. As pessoas normais acabam por não estar talhadas para semelhantes feitos por serem absurdamente lógicas. Tacteiam o caminho que percorrem, medem os riscos, pesam prós e contras e decidem com base em parâmetros de segurança e de certeza. Cada situação com que se deparam obriga-os a mudar de curso. Não são normalmente filhos da puta profissionais e não conseguem ser impiedosos para conseguirem o que querem. Os seus constrangimentos espartilham-nos. Para uma pessoa normal não vale tudo para conseguir o aumento, o posto ou a medalha. A lógica e o pudor moral pesam-lhes. As pessoas de sucesso, nomeadamente no ambiente empresarial ou financeiro, parecem especialmente desprovidas de empatia. Não há outra forma de explicar a forma como conseguem dormir tranquilamente à noite sabendo que as decisões que tomam têm consequências gravosas – por vezes até mortais – para os seus semelhantes. Por outra parte, as pessoas de sucesso parecem ter uma visão bastante restrita do que podem ser os seus semelhantes: são aqueles que ocupam o planalto onde eles se encontram. Para cima disso estão os seus ídolos – pessoas com mais sucesso do que eles – e, para baixo, uma mole informe de gente que encaram como combustível para o seu sucesso. O sucesso para ser resultado de uma lógica imoral e absurda: por um lado, tratar as pessoas como um meio para os seus propósitos e, por outra parte, ser irredutível à lógica das probabilidades. Nada, nem aqueles que os rodeiam nem a inflexibilidade do real se pode interpor entre aquilo que são e aquilo que querem ser. As pessoas de sucesso parecem ser especialmente dotadas para fazer da absoluta improbabilidade uma forma de vida bem-sucedida. Nós, o lombo comunitário onde as pessoas de sucesso assentam pé para galgar os obstáculos no caminho do sucesso, somos como o Raposão do Eça: vergados pela realidade e o seu peso, não temos a ousadia de afirmar.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasO meu primeiro primeiro de Maio [dropcap]T[/dropcap]inha saído de casa e ia para o café. Era normal naquele tempo. Havia sempre papoilas a navegar no meio da lama e beatas de cigarro a perseguir gafanhotos. Lembro-me que atravessei um hospital em construção por entre atalhos onde cresciam tábuas, pregos, sacos de ráfia rasgados e sons de motorizada ‘Casal’. E foi no meio deste andamento que decidi mudar de direcção. Transportava uma sacola sebenta ao ombro, um casaco saído do submarino amarelo e um cérebro que invertia espaldares. Sabia de uma camioneta que passava às quatro da tarde na avenida que, na altura, devia estar com os plátanos já carregados de folhas, era o primeiro dia de Maio. Segui tranquilo num dos bancos de trás, queria passar despercebido. Era difícil pois a minha cabeça explodia numa aura titânica: uma amálgama de lóbulos encaracolados que faria inveja a um Hendrix. No bolso abundava um conto e quatrocentos, pouco mais. Saí no término e apanhei a primeira boleia. Era um ‘dois cavalos’ guiado por uma mulher de tranças de pouco mais de trinta anos que sorria, ao mesmo tempo que disfarçava a empatia (e uma espécie de vigor a escalavrar as mímicas). Foi assim que atingi a fronteira. A estrada entre os dois países desfiava o olhar. Desenhava-se ao jeito de uma curva macia que não permitia ver a ‘aduana’ espanhola. Do lado de cá nada havia a fazer. Não havia detecção electrónica naquele tempo e a inteligência artificial era chã. Os pides ostentavam bigode com macarrão lusitano e o resto do pessoal comia fastio. Fui andando. De certeza de que daria nas vistas, mas era Primavera e o rio Caia exuberava em meia-desfeita de tanta Aljubarrota passada, enquanto eu, sempre com o passo certo, lá ultrapassei a curva, avancei com denodo e foi um alívio quando ouvi o carimbo a fulminar o passaporte. Tudo o resto era pura ausência: licença militar e autorização dos pais, pois era ainda menor. Viajei toda a noite até Madrid. No outro dia, repeti as carruagens de comboio na direcção de Irún. Dormi numa pensão miserável e, quando me coloquei à boleia a poucos quilómetros de França, já não tinha dinheiro nenhum. Na noite seguinte lembro-me das molas de um boca-de-sapo com ‘chauffage’ e da minha chegada aos arredores de Paris. Procurei um vago enfermeiro Silva numa clínica (amigo de amigos), mas tinha já partido para o Nepal. Percorri as radiais e assentei praça na Porte de la Chapelle. Acomodar-me-ia numa carinha volkswagen que enlatava guedelhudos cerdosos e nessa mesma noite de 4 de Maio de 1972 vi, pela primeira vez, o Prinsengracht de Amesterdão. Para chegar ao número 756 que tinha escrito na mão, vagueei por mais de uma hora e juro que não me sentia nada cansado. O José M. Rodrigues morava num barco em frente ao 756 que era número de igreja calvinista. Recebeu-me como hoje me receberia. Vislumbrei-lhe nos olhos os cavalos de Muybridge e aquelas fulgências que oscilam entre o espanto e a doce crina da holandesa que o acompanhava. Chamava-se Anke (um diminutivo de Ana) e levitava sobre duas coxas que apenas o suprematismo de Malevich teria podido sonhar. O que se passou a seguir – dias, meses e anos – é o que menos interessa a esta crónica. Só sei que nunca mais festejei um primeiro de Maio como este que durou 76 horas a passar. E creio que depois, no tempo que entretanto passou, por muito que tenha pilotado farturas e prodigalidades, jamais me detive desta forma num primeiro de Maio, dia de tantos trabalhos. Ouvi contar, até hoje, histórias sem fim sobre passagens da fronteira a salto antes do 25 de Abril. Geralmente são grandiosas, heróicas, perigosas de roçar todos os limites. A minha foi solitária e fez-se pela estrada principal, nas barbas da fauna que instigava reumáticos. Uma candura a par de várias outras que fui guardando só para mim ao longo dos anos. Nessa altura ainda não sabia que escrever é fazer evadir o essencial e guardar o acessório numa máquina de apuros. Ainda não sabia que é dentro dessa máquina que, depois, as linguagens hão-de deslizar à procura do que se evadiu e desapareceu. Ainda não sabia que um processo desses se podia transformar em livro e que, se tal viesse a acontecer – como aconteceu pela primeira vez nove anos depois (em 1981) – teria a forma de uma ilha escarpada para ser abraçada com toda a força. Também ainda não sabia que pouco interessa o número de leitores, mas tão-só aqueles (poucos) que conseguem transformar essa ilha num continente com vista para a grande falésia. Que, afinal, é a vida com F maiúsculo.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO humor sinistro [dropcap]N[/dropcap]a Nazaré, num filme de Elia Suleiman: dois homens de má catadura acercam-se de um terceiro e o mais velho e baixo entre eles rosna, “Este meu filho – aponta-lhe o arcaboiço – já papou todas as mães da cidade e eu papei a mãe dele, estamos entendidos?” É a mais divertida fanfarronada que vi nos últimos tempos porque é um dito de engenho. Nada esclarece melhor a jactância, a habilitação do engenho do que esta frase de Francisco Umbral: “Deus é um suporte para fazer catedrais”. Ou lembro aquele príncipe hindu que embriagado pela morte da amada mandou escavar uma gruta para lhe devotar um templo imorredouro, cuja urna ocupava o átrio. Mas insatisfeito com a homenagem, todos os anos mandava escavar e esculpir uma nova nave mais grandiosa, até que ao fim de duas décadas de obras incessantes, entra um dia no seu templo e apontando a urna que guardava os ossos da amada pergunta: Que bodega é esta? Tire-se isto daqui! O que define o engenho? O engenho é o artifício que a inteligência elabora para continuar a jogar. A sua meta é conseguir uma liberdade desligada, astuta, a salvo da veneração e da norma e o seu método é uma perpétua desvalorização da realidade. Abolida a seriedade, predomina a obsessão lúdica. Los Angeles ergueu-se no deserto. Para quê? Para servir o jogo. Os portugueses sabem o que é isso. A primeira dinastia ainda pariu um país de desígnios, mas, desde a exumação em 1640, Portugal nunca conseguiu ser mais que uma pátria de engenhosos, quase sempre despojada de desígnio. Por isso nunca se inculpará Sócrates, o engenhoso engenheiro é o retrato fiel dos portugueses e ninguém mete na cadeia o próprio espelho. África também envereda pelo mesmo equívoco, é um imenso lar de idosos desiludidos, de engenhosos oportunistas políticos e de jovens sem futuro; deixou de ser um território com desígnio. Concluo, com horror, que a sugestão de Oscar Wilde, outro engenhoso, de que a vida imita a arte nos mantém reféns. Tudo o que imaginamos volta-se contra nós com uma crueldade impensável, inclusive quando o ímpeto lúdico pretendia ser um sinal de liberdade e subtrair-se aos esquemas da coerção. Imagine-se as cólicas de André Breton ao ver como a sua sugestão, no seu Manifesto, de que um acto surrealista seria ir ao terraço mais alto da cidade e disparar ao acaso sobre a multidão foi aproveitada pelos “snipers”, que se entretém a fazer do acaso da morte alheia jogo. Com grandes hesitações escreveria hoje Bataille que a essência do erotismo é a contaminação e que o imperativo higiénico seria o fim do erotismo. E mais lastimável é a sensação de que toda a aposta no engenho e na paródia que marcou a arte do século XX degenerou no mais abjecto panorama político, como se uma esquizofrenia sem remédio nos cindisse, resultando esta da dupla injunção do engenho: desvalorizar a realidade e fortalecer o eu. Trump é o rei dos engenhosos. O problema com ele não é ideológico, para Trump tudo existe para ser incluído no seu projecto de jogo. Não admira que procure safar-se das situações penosas com soltura, pelo atrevimento e o chiste, rejeitando a realidade. Só assim se compreende que tenha usado o sarcasmo e proposto aos americanos que injectassem desinfectantes contra o Covid, abstraindo-se do seu poder de influência – o que resultou em mais de trinta mortos. Quem resiste a uma boa piada? Ele não queria ser levado a sério, afinal, o jogo desresponsabiliza. O seu objectivo não é a “America first”, é antes fazer realçar a sua subjetividade à custa do colapso do mundo, e nesse afã foi crescendo o seu descaro, porque ele vai a todos “os lances” abstido de prudências e coações, longe de importar-se do olhar dos outros. Trump é o Mallarmé da política, o mundo inteiro existe para ser uma bola na sua roleta. Não está só, nesta adição ao jogo. Esta propensão para a paródia e o engenho hoje até na técnica predomina, convertida em renda e consolas e furtada ao objectivo de conhecer a realidade. E onde está o engenho, o vício do jogo, na comunicação? No fake-news. Repare-se, já não se trata de uma questão de dotar de poder a mentira, ou de ensaiar a falência moral em sucedâneo à deficiência cognitiva programada, a verdadeira motivação para o fake news encontra-se no vício do jogo; o ensejo extramoral ou de levar à bancarrota as representações ideológicas foi ultrapassado pelo empenho em apostar tudo na trivialidade e de ao princípio da adequação à realidade se contrapor a força do capricho. Não é esta a época em que tudo se pode reduzir à caricatura e ao imperativo da comédia, sendo a realidade apenas o plinto para um chiste em potência? Etimologicamente, desastre significa: sem estrelas. Ou seja, sem exterior, sem o outro. É aí que estamos. O engenho dispensa o real. E, explica-nos Jose Antonio Marina: «estamos contentinhos, porque ao engenhoso se aplica o lema arrogante e desolado que emocionava Valle-Inclán: “Desprezar aos demais e não amar-se a si mesmo”. Esta pose desvalorizadora e crítica permite admitir no campo semântico do engenho um convidado imprevisto: o cínico. O cinismo é a arrogância de quem se limita a perpassar.» Eis-nos reféns daquilo a que o barroco Grácian chamava o humor sinistro.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasMudanças ” But I don’ t want confort. I want poetry, I want danger, I want freedom, I want goodness, I want sin.’ ’In fact,’ said Mustapha Mond, ‘you’re claiming the right to be unhappy.’ ’All right then,’ said the Savage defiantly, ‘I’m claiming the right to be unhappy.’ Aldous Huxley, Brave New World [dropcap]A[/dropcap] tarde cobre a cidade com um azul limpo, de um optimismo quase insuportável. Nestas alturas fica mais fácil reparar na beleza do que sempre esteve à nossa frente. Tudo se pode revelar com um simbolismo inesperado e inusitado. Inoportuno, até. Por exemplo, estes três camiões que sossegam num largo deserto, postos em descanso num paralelismo imaculado. São apenas camiões, mas todos ostentam, em letras grandes e inequívocas, a mesma palavra: “Mudanças”. E sabemos que falam de um serviço, de algo específico e funcional. Só que agora, nestes dias, uma palavra pode ganhar proporções de vida. E ganha. Mudanças. Sei o que fazem estes camiões: trasladam interiores de casas, móveis, livros, artefactos. Mas sobretudo memórias e esperanças. Tristeza, por vezes: “home is so sad”. Mudanças. Pouco antes do estado de sítio em que nos encontramos também eu tive de recorrer a estes veículos que nos transportam muito do que somos em caixotes almofadados e etiquetados. A tão pouco se pode resumir a nossa vida, nestas alturas. Uma palavra, um rótulo, uma indicação. Mudanças. E mudamos, outra vez. Estranhamente regressamos a esse fenómeno cuja inevitabilidade sempre encarei com melancolia. O familiar é-me mais caro. Sei que tenho de mudar mas sempre com o compromisso, com a preservação do essencial que me acompanhou. Agora mudamos todos, obrigados a isso mesmo. Não o essencial da nossa natureza, que receio permanecerá a mesma; mas os hábitos, os gestos, os jeitos. “A vida verdadeira é vivida quando ocorrem as pequenas mudanças”, sussurra-me agora Tolstoi. Pois sim. Mas aceitando-as tenho medo porque tenho medo da partida, quase tanto como necessito dela. A mudança agora acontece em forma de matrioska, da maior à mais ínfima, do mundo até à nossa alma. Estaremos preparados? Estarei preparado, eu? A resposta é a do costume: não sabemos, não sei. Terei de lidar com ela, isso é certo. E ao mudar, mudo para onde? Quero ir ou quero voltar? No diálogo que aparece em epígrafe pode estar uma parte da resposta para este também admirável mundo novo: venha a bondade, o pecado, o perigo, a liberdade, a poesia. Talvez isso, talvez mudar seja também reclamar o direito a ser infeliz, como afirma o personagem. Talvez. Os camiões continuam parados mas sei que irão regressar à estrada. Mudanças, lembrarão a quem os vir passar. E a mim, que mudando irei insistir numa vontade imprudente de ser feliz.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasOlhos privados na noite Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 27 Abril [dropcap]P[/dropcap]ara efeitos de dramaturgia, acreditem que foi pela meia noite. As casas, pequenas que sejam, reconfiguram-se no inesperado, parecem desenhadas por lombo de gato. Aquela assoalhada tem produzido inúmeras surpresas, sendo que começam sempre pelo toque aveludado da camada volátil e externa de passado, o pó. Aquietada a nuvem, descubro um saco com jornais, revistas, calendário, enfim, publicações que desenham por junto o catálogo de exposição mítica: «Le temps, vite», com que se celebrava a chegada dos zeros. No parisiense Beaubourg, que outro lugar podia ser? Não foi o elegante pescoço de cisne do 2 de década que introduz enorme perturbação, foi o periscópio inquiridor de avestruz dos 2 últimos meses. Na convocatória das artes e ciências, que era também lição de curadoria, não faltam experiências e pensamento, objectos e imagens, a desmultiplicar caminhos, a expor o que não se vê, nem se toca, mas se sente, e nunca de uma maneira só. Os temas levantam-se em vórtice, com Umberto Eco em conversa com Daniel Soutif, o maître d’œuvre, a marcar ritmos. O tempo mecânico é deus recente e o relógio o seu profeta, arqui-inimigo do tempo interior. Houve alturas em que não havia atrasos. O sábio italiano desencanta histórias de movimentos contra o relógio, «espécie de esqueleto roendo o tempo», relembrando Lubrano, o poeta que escreveu sonetos sem conta «sobre essa obsessão do tempo métrico como o tempo da morte». Erupção constante, o tempo íntimo é de vida e muda os olhares, permite observar Mondrian como se fôssemos eternos, ainda que a informação não seja a mesma de um Bosch, ou circular na arquitectura rectilínea da escola do Porto com desatenções diferentes de uma catedral, e o mesmo para a literatura, com pausas nas epígrafes ou passadas apressadas nas citações, nas descrições. E a música. Monk e o seu ‘Round Midnight faz-se banda sonora, clepsidra inesgotável de respirações, de ritmos a dizer corpo, identidade. Por alguma razão se multiplicam os auto-retratos, e sabemos como muitos artistas se estão a desenhar ao espelho neste exacto instante. A síntese dos temas dá-se na bd de Jochen Gerner, «Un temps». E qual o cenário escolhido? O aeroporto. Nada mudou tanto com a pandemia como estas catedrais da modernidade, assim lhes chamava Georges Duby, «inventor» da Idade Média, planície do tempo interno. Gerner, em narrativa minimal repetitivo, tatua-nos as micro-vivências, do desespero no táxi à chegada, do tédio da espera no atraso da partida, das vezes que se olha o relógio, dos fluxos da mole humano a que se assistia nas grandes montras, a passagem dos lugares nos painéis, a lógica contabilística de meridianos, afinal, a velocidade omnipresente, esmagadora, esventrada tal metáfora maior da vida. A velocidade travou. As ruas das cidades desertificaram, e que estranho resulta constatar que nos primórdios do milénio o tempo se saudava tanto com ruas vazias passadas a luz. No caderno ligeiro da ficção, Juan José Millas, em «Personne» (ninguém), risca o vidro, arrepia e marca a transparência. Um editor – não é por isso, não se riam – confronta-se com revivências que não o são exactamente. Podemos entreter vidas paralelas, uma mental, outra palpável, correndo o perigo delas se cruzarem. E o beijo pode não ser casto. O imaginado será menos real, se nos afecta? Um Nada, de ontem, pode bem hoje fazer a diferença, tornar-se Tudo. Quantas identidades nos podem fazer mal? A memória teria que ser mote e a internet fazia figura de artista principal, com a morte dos periódicos, a queda do real, a suposta simultaneidade, o pântano do indistinto. Por estes dias, a rede apanha-nos de todo. O Pedro [Fradique] foi desencantar jornal de beira-rio, para o site que ilumina a noite escura. Está todo aqui, a vogar: https://www.luxfragil.com/jornal/ Dá para celebrar, ao som do anjo, a juventude dos velhos, tópico no menu. «As rugas fazem sombra, muita sombra, nalguns casos até dolorosa, mas quantos de nós, corpos hirtos perdidos no deserto, sabemos acolher na própria carne a carícia que a noite desenha na sombra? A sombra afirma como uma tatuagem que ali o sol não chega por nossa causa, porque nos deixamos queimar para inventar frescura. Aquele que aprendeu a voar no sopro do instrumento, que sussurrava através do frio do metal versos de um lirismo vulcânico, que adorava a velocidade dos automóveis e das substâncias, que só queria perder-se e perdeu-se sem envelhecer, Chet soube acolher lugares sem sol nas maçãs do rosto. Chet fez do rosto pomar de macieiras, jardim, paraíso bonsai, exibida naturalidade de enigmas. A juventude vive no rosto e aí rasgou com a sua navalha soprada e modulada pelos dedos, a mesma que não deixou nunca de acariciar, a tatuagem que dizia estarmos por toda a eternidade naturalmente sós, sem sol, parados. Apesar do amor, que é calor companhia e movimento.» Feridos pela flecha do tempo, somos obrigados a andar de costas para o futuro. A exposição, lenta a ponto de durar até aqui, começava com a Lua, inevitável companheira, e acabava a celebrar o Sol, que marca o nosso fim. Em 2000 calculava-se nos cinco mil milhões de anos. Ainda vamos a tempo. Santa Bárbara, Lisboa, terça, 28 Abril Talvez preocupada com as leituras que por aqui enumero, na mais libertária das divagações, a que me tem sido oferecida por este dia estendido, mão amiga manda-me um aviso clássico: «O Vaso Quebrado», de Rex Stout. Nada como detectivar a morte para refrescar. O carteiro veloz, que vejo rasgar as ruas que nem Roadrunner soltando beps, talvez desabituado de ver volumes nesta morada, conseguiu partir-lhe a lombada. No exacto meio do título do volume 678, da mítica casa editora da Rua dos Caetanos, perfumada de mil maneiras na passagem das horas, com notas titubeantes, eflúvios das damas-da-noite, histórias e personagens, mural de ladrilhos e portões verdes, uma cicatriz de branco parte da esquerda para quebrar o que devia ser contínuo. Não chega a ser fenda, apenas promessa luz. E abre mesmo vale, assinalando sem necessidade onde colocar o polegar, na capa de fundo negro. Muita conversa dedutiva resolverá em poucas horas o suicídio provocado do jovem violinista, além do assassinato mais directo de outras duas figuras nova-iorquinas para compor ramalhete de amores desencontrados e primária cupidez. A primeira frase pôs logo de sobreaviso o meu «olhar mortiço de poeta pessimista», como é apresentado o inspector Damon, no caso dele temperado com queixo de pugilista: «Naquela bisonha noite de Março…» Pode uma noite ser bisonha, ou seja nova, inexperta em arte ou ofício? Pode, revelam os indícios sobrantes das páginas que estamos a escrever. Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 30 Abril David B. escreve com imagens como poucos. «Nick Carter et André Breton – Une enquête surréaliste» (ed. Noctambule) não se deixa resolver armado em mistério. Dá rosto às forças do mal, trata os sonhos com carinho, mas não despreza nem criminosos nem artistas. Encontro qualquer coisa de ciência médica no cruzamento dos seres e das coisas, das sensações e das ideias, das letras e dos corpos, sem esquecer algarismos. Uma orgia das formas, que nos põe quietos a mexer. A sonhar, portanto. Os quadros articuláveis (alguns algures na página) alinham-se em biombo que ora revelam ora escondem profundezas à mão de semear. Era só para avisar, que a Lua dá-se bem com as ossadas que sustentam as telas.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCorona de Paul Célan [dropcap]C[/dropcap]orona, do latim, grinalda de flores, em «Sete Rosas Mais Tarde» – o poema dos nossos dias, que as rosas virão depois para outras Primaveras. Debaixo das nossas realidades tudo está escrito, anunciado, quase explicado, mas, no ler do poema nem sempre se encontram reunidos os “órgãos de vigia”, sendo a palavra o sopro que o transforma utilizando signos – que a palavra é alienígena- e saboreia a necessidade em nós para se fazer compreender resgatando depois uma vida completamente autómana: o poeta torna-se num elo encriptadamente anunciador, ou, se quisermos, a sua própria vigília interfere nos acontecimentos de forma triunfante. A cosmogonia que recebe não o autoriza a mais nada que a ser guiado, e esse caminho requer a funda confiança na matéria invisível, pois que não se toma, é tomado, e não nasce aí poder algum, somente um estranha rigor : já Parménides escrevia em verso para deixar claro que a poesia é a linguagem própria da revelação profética. Como estas grinaldas agora se entretecem nas vidas que estão amarguradamente em busca do ar fresco das manhãs e do regresso das andorinhas que não são vistas em nenhum balcão das superfícies fechadas do mundo! Celan começa o seu poema no Outono e desliza até aos abraçados às janelas, talvez com aves que olham para nós nas ruas, e diz que é tempo. Mas tempo para quê? Ele diz que nos olhamos, que dizemos algo de escuro… mais escuro que estes dizeres ainda virá a voz dos impensáveis estertores pois que agora é ainda o efeito do recolhimento que saboreamos sem mais contemplação: mas que virá do fundo das coisas a sua resposta, disso teremos agora de o saber. Novecentos milhões de almas encerradas é uma visão de estarrecer e se metade desta população era há muito conduzida por medicação para distúrbios mentais, o colapso possível dos antídotos pode fazer ruir a já frágil estrutura. Dos bens, a nossa frágil vida, dos males, talvez pensar que vamos todos ter de tomar cada um a sua parte, e saber que mais adiante, nós, os estranhos entrelaçados, passámos câmaras de solidão do tamanho das catedrais do assombro. Mas também nos diz que é tempo que a pedra se decida a florir, e a flor das pedras pode ser bela, sim, as pedras que já são em si flores de minério de grandes efeitos, testemunhos da história da Terra, certamente nos irão dar conhecimento da estrutura mineral e fazer contemplar essa dureza como uma secreta maravilha, pois ele diz-nos também que o tempo regressa de novo à casca, como um regresso à gruta, e que num espelho qualquer ficará sempre Domingo, assim como que cristalizados na memória e no sonho que dorme. Onde ir com tanta retenção? Plasmado fica que o tempo nos fará a sua estátua mais conseguida e dela não sairemos enquanto um qualquer sopro não animar a fria imagem. Diz que a boca fala a verdade- a verdade da boca por tanto tempo esquecida – que a boca é o propagador do vírus e pouco antes mesmo tínhamos inundado a Terra de duras ofensas e indesculpáveis mentiras. Respirar pode matar… contagiar… só correndo já para o mar recuperando a guelra deixada que nos libertará das cicatrizes aéreas…! É um desassossego? Não sei… é uma estranha forma de viver, mas, ele quer que palpite por dentro um coração- este coração de músculos, sangue, veias e luto, que agora se encontra na fronteira que aos audazes envergonha… e diz-nos que é tempo, tempo que seja tempo, tempo de tempo, um tempo que se carrega com o peso das coisas que só o tempo governa. O seu olhar desce até ao sexo dos amantes; “olhamo-nos” dizendo algo daquele escuro, e o amor neste lado já não estava claro, e o sexo dos amantes pode ter um fim abrupto e deles ficar apenas a memória de um combate. Da ilusão do amor fizemos “coronas” com flores já mortas que viveram na morte como se já não houvesse fronteiras. E se o Outono come da mão a sua folha, e são amigos, tirando às nozes a casca do tempo, saibamos que talvez tivéssemos tão duros que os dentes da Terra se partiram, nós que comíamos a Terra, da Terra, que comia de nós, partimos também essa carga mineral que nos fizera grandes predadores. Não esquecemos o vermelho, os dias amantes de papoila e memória, o vinho nas conchas, ou o mar no brilho- sangue da lua. Esse rubro cheiro das auroras que a paixão coroou a beijos fartos, que a vontade nos deu as grandes seivas, e temos saudades da vida que jorrou como um corpo iluminado mesmo já ao cair da tarde das nossas fomes saciadas. E o poema então: Corona, na integra maravilha do seu instante (esfarrapamos o tempo com centelhas fugazes e nos interstícios do poema passa a vida e a morte, anunciadas. ). O outono come da minha mão a sua folha: somos amigos. Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar: o tempo regressa de novo à casca. No espelho é domingo, no sonho dorme-se. a boca fala verdade. O meu olhar desce até ao sexo dos amantes: olhamo-nos, dizemos algo de escuro, amamo-nos como papoila e memória dormimos como vinho nas conchas ou o mar no brilho-sangue da lua. Ficamos abraçados à janela, olham para nós na rua: É tempo que se saiba! É tempo que a pedra se decida a florir, que ao desassossego palpite um coração. É tempo que seja tempo. É tempo. Paul Celan 1949
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasHorizonte de impossível [dropcap]Q[/dropcap]uando em 2011, o australiano Arthur Cleverson editou o controverso romance «Desarmados», começaram de imediato as reacções ao mesmo. Mas a acusação de que ele poderia estar esteticamente a preconizar um ataque ao realismo literário não incomodou o autor. O que o incomodou foi a deturpação dessa interpretação. Pois aquilo que está em causa em Cleverson é aquém ou além de qualquer realismo, apesar do começo do romance: «Nada é mais fácil, para quem escreve, do que fazer um livro acerca do mal e da miséria humana. Tudo à nossa volta nos impele para essa escrita realista. Mas para escrever acerca do bem, além das qualidades que devem enformar qualquer escritor, há que ter a tenacidade de um jovem que acredita na beleza perene dos corpos. Não basta imaginação, é preciso também que ele mesmo entenda que a verdade é bela e um bem, e que existe no tempo em que se pensa. À imagem daquele que pensa enquanto pensa, todo o pensamento é perene. Que jovem não traz em si a eternidade em cada gesto? Que jovem vai entender a doença corrosiva do tempo apodrecendo os braços e as pernas? Que corpo jovem não consegue destruir a realidade e as suas expressões? E a destruição de toda e qualquer arte realista é já uma aurora de Primavera sobre a terra; uma semente, uma promessa, um futuro.» Se por um lado, o escritor australiano reivindicava o direito a uma arte não realista, por outro também pretendia um distanciamento das vanguardas do início do século XX, principalmente o surrealismo. Numa entrevista ao New York Times, disse: «O surrealismo não me interessa nem na literatura nem na pintura. O inconsciente é uma farsa que esconde o que mais me importa: o desconhecimento de nós mesmos enquanto conscientes». Também não pretendia uma arte idealista, mas tão somente um a-realismo. Não um anti-realismo, como muitos leram nas suas palavras, mas um além e aquém do realismo. Nessa mesma entrevista ao New York Times, acrescentou: «Não tenho nada contra o realismo, desde que não tenha de me sentar à mesa com ele.» O seu problema com o realismo é um problema de convívio. Não tem nada contra quem escreve com as mãos bem assentes no real, como se a escrita fosse o espelho de Stendhal a reflectir o mundo, mas não é assim que entende o romance. Para Cleverson, «o romance tem de escavar o impossível», di-lo também nessa entrevista. E por impossível deve entender-se a própria natureza humana: «O humano antes de mais define-se por impossível ou, se preferir, pelo horizonte de impossível que tem dentro de si e que não sabe o que é. Duplamente impossível.» À luz de Milan Kundera e do seu A Arte do Romance, poderíamos chamar aos seus romances metafísicos. Metafísica no sentido em que Kundera escreve, e que Cleverson cita na entrevista: «[…] se é verdade que a filosofia e as ciências esqueceram o ser do homem [como Husserl e Heidegger mostraram], parece ainda mais claro que com Cervantes se formou uma grande arte europeia que não é senão a exploração desse ser esquecido. // De facto, todos os grandes temas existenciais que Heidegger analisa em Ser e Tempo, julgando-os abandonados por toda a filosofia europeia anterior, foram desvendados, mostrados, iluminados por quatro séculos de romance (quatro séculos de reencarnação europeia do romance). Um por um, o romance descobriu à sua própria maneira, através da sua própria lógica, os diferentes aspectos da existência […]». Ou ainda a inscrição que tem à entrada de «Desarmados»: «[…] o imutável não será uma mera ilusão? / Não. Toda e qualquer situação é obra do homem e só pode conter o que nele existe; podemos portanto pensar que ela existe (ela e toda a sua metafísica) “há muito muito tempo” enquanto possibilidade humana.» A existência é vista por Cleverson como lugar de onde se avista o impossível, à imagem do verso de “A Tabacaria”: «Pórtico partido para o Impossível». E é esta confluência entre existência e impossível que interessa ao autor explorar nos seus romances. E, como está bem de ver, o impossível não é matéria que o «real» reflicta no seu espelho. Numa passagem do romance «Desarmados», através de um diálogo entre Rudy Schneider e o seu namorado, James Colton, lê-se à página 67: «[fala de Rudy] Em meados do século XIX, Karl Marx acusa os filósofos de terem apenas interpretado o mundo e que era preciso transformá-lo. Hoje precisamos voltar a interpretá-lo.» Ao que James responde: «Por mais que tu queiras, não há diferença entre Kylie Minnogue, Australian Crawl e Nick Cave. São expressões com o mesmo valor musical. Ser educado na música não leva a mais do que isso. A interpretação de quem gosta de “Can’t Get You Out Of My Head” ou “Oh Not You Again” é tão válida musicalmente quanto a de quem gosta de “Let Love In”. A interpretação é como o voto: todo é válido se devidamente preenchido.» Para Rudy, o problema não é a impossibilidade ou o fracasso na transformação do mundo, mas a compreensão de que toda a transformação é uma interpretação, defendendo assim o conhecimento em detrimento de qualquer opinião ou diletantismo. Pois se tudo transforma o mundo, o enriquecimento cultural levava a melhores transformações. A defesa do «voltar a interpretar» é a defesa do impossível. No ponto contrário, James defendia um total relativismo. Tudo é válido. Ou na sua expressão preferida: «Tudo é igual». O relativismo aparece assim como oposto do impossível, conceptualmente. Cleverson di-lo claramente na entrevista: «O relativismo é o oposto do impossível. O relativismo é o tudo é possível, no sentido em que tudo é aceite e nada é preciso procurar. Tudo é válido traduz-se em tudo basta». Muitos viram em Rudy Schneider o alter-ego de Arthur Cleverson, mas talvez não seja totalmente correcto. Há pontos em comum, sem dúvida, entre o autor e a sua personagem, mas também há pontos em comum entre eu e o meu vizinho de baixo e não só não somos o mesmo, evidentemente, como temos uma ideia do mundo e da vida bastante diferentes. O que podemos afirmar com alguma certeza é que, contrariamente a James Colton, Arthur Cleverson sentar-se-ia à mesa com Rudy Schneider. O que para o escritor já não seria pouco. Terminemos com uma frase de Rudy para James, quase no final do romance: «O mistério é que o desprezo que tenho por ti não impeça gostar tanto de foder contigo.» Frase a que não faltaram críticos a remeter para teorias freudianas e até a defender a existência de um recalcamento do surrealismo em Cleverson. Mas não poderiam estar mais longe de um horizonte de impossível.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasConcerto para Piano e Orquestra no 1 em Si bemol menor, Op. 23 [dropcap]N[/dropcap]o dia 7 de Maio assinala-se o 180o aniversário do nascimento do compositor russo do período romântico Pyotr Ilyitch Tchaikovsky. Nascido em 1840 em São Petersburgo e embora musicalmente precoce, Tchaikovsky foi educado para uma carreira na administração pública. Na sua juventude, as oportunidades de desenvolver uma carreira musical na Rússia eram escassas, não existindo educação pública nessa área. Assim que surgiu uma chance para esse tipo de formação, Tchaikovsky ingressou no então novo Conservatório de São Petersburgo, onde se formou em 1865. A formação que recebeu nessa instituição, orientada para o estilo musical do Ocidente, destacou-o dos compositores do movimento nacionalista da época, cujos principais representantes eram os compositores do Grupo dos Cinco, composto por Balakirev, Borodin, Cui, Mussorgsky e Rimsky-Korsakov. A sua formação levou-o a reconciliar o que aprendera com as tradições musicais nativas de seu país, às quais havia sido exposto desde a infância. Dessa reconciliação, forjou um estilo musical pessoal, mas inconfundivelmente russo, uma tarefa particularmente desafiadora, visto que os princípios que governavam a melodia, a harmonia e outros fundamentos da música tradicional russa, diferiam grandemente daqueles que governavam a música da Europa Ocidental, aparentemente negando o possível uso da música russa em composições ocidentais em larga escala ou a formação de um estilo híbrido. Além disso, a cultura russa exibia uma personalidade dividida, com os seus elementos nativos e importados distanciando-se cada vez mais desde a época de Pedro, o Grande, e isso resultara em incertezas, no seio da intelligentsia russa, a respeito da identidade nacional do país. Essa ambiguidade teve importantes reflexos na carreira de Tchaikovsky e levou a uma série de conflitos pessoais que prejudicaram a sua autoconfiança. No entanto, Tchaikovsky foi o primeiro compositor russo a conquistar fama internacionalmente e a sua carreira foi impulsionada pelas suas actuações como regente convidado em países da Europa e nos Estados Unidos, o que levou a que fosse homenageado pelo Imperador Alexandre III da Rússia, em 1884, recebendo uma pensão vitalícia. Apesar dos seus muitos sucessos musicais, a vida de Tchaikovsky foi pontuada por crises pessoais e pela depressão. Factores que contribuíram para isso incluem também a sua separação precoce da sua mãe, seguida da morte prematura desta; a morte do seu amigo e colega Nikolai Rubinstein; o seu desastroso casamento; e o colapso do único relacionamento duradouro de sua vida adulta, que foi a sua associação de treze anos com a sua patrona, a rica viúva Nadejda von Mekk. A sua homossexualidade, que manteve em sigilo e temia causasse danos à reputação dos seus amigos e família, tradicionalmente tem sido considerada um factor importante. A morte súbita de Tchaikovsky, aos 53 anos, é geralmente atribuída à cólera, mas existe um debate em curso sobre se essa foi de facto a causa da sua morte, e se esta foi acidental ou auto-infligida. Inicialmente, as opiniões da crítica a respeito da música de Tchaikovsky foram contraditórias. Embora desde cedo tivesse encontrado apoiantes, parte da crítica russa considerava a sua música insuficientemente representativa dos valores musicais nativos do seu país, e expressava a suspeita de que os europeus a apreciavam por conta dos seus elementos ocidentais. Num aparente reforço disso, críticos europeus elogiaram-no por oferecer uma música mais substantiva do que a das correntes exóticas russas, e afirmaram que ele transcendera os estereótipos da música clássica do seu país. Outros, como o americano Harold C. Schonberg, consideraram a sua música “desprovida de pensamentos elevados”, e desmereceram os seus trabalhos por não seguirem estritamente os princípios musicais ocidentais. Apesar dessa ambiguidade inicial, a percepção da crítica a respeito de sua obra melhorou gradualmente, sobretudo após a sua morte. Além disso, a música de Tchaikovsky encontrou duradoura popularidade junto ao público, permanecendo um dos compositores mais frequentemente executados. As suas obras mais conhecidas incluem os ballets O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes e A Bela Adormecida; a Abertura 1812 e a abertura-fantasia Romeu e Julieta; os seus concertos para piano e orquestra e para violino e orquestra; as suas quarta, quinta e sexta sinfonias; a sua Marcha Eslava; e as suas óperas Yevgeny Onegin e A Dama de Espadas. O Concerto para Piano e Orquestra nº 1 em Si bemol menor, op. 23, foi escrito entre Novembro de 1874 e Fevereiro de 1875, e foi revisto pela primeira vez em 1879 e pela segunda vez em Dezembro de 1888. A versão original teve a sua estreia em Boston, nos EUA, no dia 25 de Outubro de 1875, regida por Benjamin Johnson Lang, com Hans von Bülow ao piano, a quem Tchaikovsky dedicou o concerto. Os atroadoramente triunfantes acordes de abertura deste poderoso concerto estão entre os mais famosos em toda a música clássica. No entanto, quando foram compostos, não foram de forma alguma universalmente apreciados. Quando Tchaikovsky os tocou para o seu amigo Nicolai Rubinstein, este declarou que eram “triviais e vulgares”. Todos os três andamentos deste profundamente expressivo concerto são sublimemente românticos. O expansivo e arrebatador andamento de abertura é aparatoso; o andamento intermédio, entretanto, apresenta melodias sentimentais e uma bela interação entre solista e orquestra; e o excitante finale é um electrizante estremecimento do princípio ao fim. Cerca de 80 anos após Tchaikovsky ter esboçado as suas ideias iniciais para o seu primeiro concerto para piano e orquestra, este tornou-se a primeira obra de música clássica a vender um milhão de discos quando, em 1958, o pianista americano Van Cliburn, vencedor da primeira edição do Concurso Tchaikovsky em Moscovo, em plena Guerra Fria, deslumbrou o mundo com a sua apaixonante gravação da obra. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Piano Concerto No. 1 in B minor, Op. 23 Van Cliburn (piano), RCA Victor Symphony Orchestra, Kirill Kondrashin – RCA Victor, 1993
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDespesas e receitas da Misericórdia [dropcap]E[/dropcap]m Macau, uma Comissão Especial foi nomeada a 8 de Novembro de 1866 pelo Governador José Maria da Ponte e Horta para estudar as necessidades e problemas da Santa Casa da Misericórdia e arranjar soluções. A nível financeiro, só com a Casa dos Expostos nesse ano a S.C.M. estava a despender mais de um terço do rendimento, que rondava $6000. Mas havia ainda outras despesas, sendo o dinheiro preciso para o hospício dos lázaros, hospital, presos pobres, educação de um aluno no Colégio de S. José, foro do cemitério dos parsis, missas e esmolas. No ano de 1867, o hospício dos lázaros tem 37 desses infelizes, todos chineses, sendo 22 do sexo masculino e 15 do feminino. Dos 37, são 23 sustentados pela Santa Casa e 14 são particulares a quem a Misericórdia apenas dá domicílio. Estes últimos, porém, passam a ocupar os lugares que deixam os lázaros da casa que vão morrendo. É notável o abandono em que se vê esse determinado hospício. Os lázaros vivem como querem e não se sujeitam a tratamento algum. A Misericórdia dá a cada um dos seus certa quantia em dinheiro e uma porção de arroz para sustento. Se a despesa feita com os lázaros em 1857 fora de $472,30, em 1866 subiu para os $749,01 e nesses dez anos cifrou-se em $6733,11. Já a mesa da Misericórdia de 1833 era da opinião que não se admitissem expostos chineses e resolveu também, por motivo de falta de meios para fazer face às despesas da casa, não sustentar lázaros desta ordem. Em Fevereiro de 1864 a comissão administrativa deliberou não admitir lázaros chineses senão até ao número de 22, mas esse número fica sempre preenchido, e em 1867 existe ainda mais um. A Comissão Especial criada em 1866 fez sua a opinião da mesa de 1833, isto é, entende que a Misericórdia deve conservar os lázaros actuais, sem admitir mais nenhum, nem preencher os lugares dos que morrem com os lázaros sustentados pelos particulares. Dar abrigo, sustento e alívio a todos os lázaros chineses que aparecem na cidade era uma obra de caridade e o meio de evitar essa triste sina que por aí às vezes se apresenta. Mas isso seria impossível. Centenas deles viriam talvez de todas essas povoações quando soubessem que encontravam em Macau algum consolo ao seu infortúnio. A Misericórdia beneficia os que pode, não o faz se lhe falecem os meios para tanto. Tem ela outros encargos, para os quais são principalmente destinados os seus haveres, e a que por conseguinte não deve faltar. No Boletim do Governo de Macau de 11 de Fevereiro de 1867, na Portaria N.º 13, o Governador de Macau determina: Considerando que a Santa Casa da Misericórdia não é, nem pode ser um albergue de inválidos e leprosos, pois que a sê-lo mal poderia bastar para ocorrer aos males transitórios, com quanto incessantes, dessa porção da comunidade que ferida da desgraça vai ao seio de tão pio estabelecimento pedir abrigo e socorro: hei por conveniente, conformando-me com o parecer da Comissão, determinar que a Misericórdia não receba mais em seu seio nem lázaros nem inválidos, nem outros desgraçados, que pela natureza de suas doenças ou por virtude de suas idades ofereçam um carácter de permanência, que mal se pode compadecer com a índole e fins de tão generosa como activa instituição. Macau 8 de Fevereiro de 1867. Um dos deveres da Misericórdia é sustentar também os presos pobres. A comissão, porém, notou que a maioria desses presos não são verdadeiramente pobres, nem portugueses. Em 1866 foram alimentados 17 presos, dos quais 6 eram portugueses (1 europeu e 5 macaenses) e os outros 11 estrangeiros. Eram estes últimos marinheiros europeus que desembarcaram em Hong Kong e vieram a Macau dar motivos à sua prisão. Das receitas A Misericórdia cobra pelo tratamento de doentes particulares no Hospital de S. Rafael, para os quais há duas classes. Na primeira paga cada doente $1,25 e na segunda $0,99. Existem também no mesmo estabelecimento inválidos e particulares sem rendas, que são sustentados, vestidos e tratados por diferentes preços, assim, um deles paga $10 por mês, dois pagam $4, um $3 e outro $1,50. Os rendimentos dos dez últimos anos dão ao hospital uma receita anual média de $764 e a do ano de 1866 fora de $1250. A comissão entende ser urgente melhorar as circunstâncias actuais do hospital e propõe em lugar competente, poder ser aumentada esta receita, elevando os preços aos doentes particulares e regularizando convenientemente a importância que devem pagar os inválidos e outros desta ordem. Outra fonte provém de duas capelas que anualmente dá um pequeno rendimento proveniente de repiques, sinais de enterro, aluguer de objectos fúnebres, etc. Há um livro especial para esta receita e despesa, onde as verbas são bastante variáveis. A média tirada da importância líquida produzida nos dez últimos anos dá desta origem um rendimento anual de $56. Já a receita da lotaria anual da Misericórdia em 1866 fora de $800, havendo ainda a deduzir as respectivas despesas. É raro, porém, chegar-se a este resultado pelas dificuldades de se obter a venda dos bilhetes necessários, o que se pode atribuir a igual concessão feita a outros estabelecimentos como a Escola Macaense e o Teatro de D. Pedro V e sobretudo à concorrente Lotaria de Manila, preferida pelos prémios avultados que distribui. Assim, o rendimento da lotaria da Santa Casa é variável e às vezes falha, por não se conseguir vender o número suficiente de bilhetes. Essa a razão do plano da lotaria de 1867 passar a ser de $4000, com 2000 bilhetes a $2 por bilhete, enquanto em 1866 fora de $8000, logo uma redução para metade. Em 1867, o 1.º Prémio da lotaria é de $1000 patacas, havendo ainda, um prémio de $500, cinco de $100, dez de $50, vinte de $10, cento e oitenta de $4 e um prémio de $100 para último branco da última extracção. Serão 218 prémios num valor total de $3520 e os 1782 brancos, 12% a benefício das Obras pias, que dá $480, podendo a Misericórdia o dividir como julgar conveniente. A extracção fez-se a 3 de Junho de 1867 e no dia imediato começaram a ser pagos os prémios na Santa Casa. Já o produto das multas é ainda mais incerto. Em muitos anos seguidos não figuram elas na receita da Santa Casa e foi de 1863 a 1865 que produziram uma média anual de $95, tendo faltado em 1866. Em 1861, a Santa Casa começara a alugar cadeiras no passeio público nas tardes e ao sol-pôr dos domingos e quintas-feiras, quando no Jardim de S. Francisco tocava a banda de música militar, sendo a receita de $62 nesse ano, de $33 em 1865, e de $65 em 1866. Além de todos estes rendimentos, a Misericórdia ainda conta com o dinheiro a juros, propriedades de casas e terrenos. A Comissão refere ser a receita anual da Santa Casa da Misericórdia, nas circunstâncias em que presentemente está, de $6000. Recebidas, porém, as dívidas cobráveis, entre elas a da Fazenda Pública, estabelecido o pagamento dos foros dos seus terrenos, e tomadas as outras medidas que ficam indicadas, esta receita aumentará de uma maneira notável.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasExiste um rio [dropcap]E[/dropcap]xiste um rio. De que me apetece falar. É uma questão que, sempre prévia, me acontece quando inicio estes textos. De que é que me apetece falar, e desse rio, sempre. Como somente das coisas de que gosto. Ou dos fantasmas que me assombram. É, nas palavras, o prolongamento e a homenagem do real. Nestes dias de Abril e depois de Abril, acontece-me rever palavras desse tempo, pela voz dos poetas. Porque é um tempo tão familiar à memória, que me apetece visitar. E trago este título do interior de uma canção que me está entranhada na alma, como este rio, e ao ponto de sempre me lembrar da canção com este título que não é o seu. “No teu poema”. E no rio, como em qualquer poema, mergulho com o olhar que é o meu de amor. E revejo outros poemas musicados e cantados, de J. L. Tinoco, um poeta demais esquecido na voragem de outras máquinas que engolem o tempo. E como, nele, o rio é metáfora recorrente como o sangue que espera a vez. E como “madrugada” se torna o espaço e o tempo em que se espera renascer. Coisas para além da insónia. Palavras fortes de sangue madrugadas e rio. Em que mergulho. E depois, mesmo já pela minha mão ou pelos meus olhos, existe um rio, na minha cidade. Em mim. Neste tempo de clausura forçada, em que já nem reparo, continuo a pensar nestas coisas e fechada nelas. No silêncio da casa. A mesma casa e o mesmo silêncio povoado de fantasmas e vozes. Como o rio. Eu penso que não poderia viver numa cidade sem o silêncio do rio. Mesmo se não o vejo há tempo. Da janela pequena, sim. Mas é um outro rio. Emoldurado e distante. Como se o rio daquela janela. Um toque de irrealidade. Mas gosto desse meu rio, também. Existe um rio. Mas na verdade existem vários rios em um. Aquele que vejo ao fundo da outra rua, quando desço. E que é sempre o mesmo e um rio particular ladeado pela igreja e pelos prédios. Encerrado e delimitado como qualquer imagem. E, mesmo se à espreita, a natureza inteira. Não poderia ser uma cidade sem rio. Parada sobre si, fechada. Ou fechada sobre mim. Mas ali está o corpo denso, manso, a correr para o mar discretamente, como se em pensamento. E todos os dias. Para sempre no sempre possível. Uma janela para o ontem sobre o amanhã. Talvez se chame esperança. O rio. Que todos os dias vem, passa e está. Tantas identidades, tantas possibilidades, como gotas nele e dele correm. Sangue nas veias da cidade, esse veio de água que banha. Como uma longa lambidela terna. Que alonga e entorpece o olhar deitado nele. Este rio que corre sem poder voltar atrás e desgasta as margens como o tempo, mas que a esta pequena escala do olhar, permanece o mesmo nunca o sendo. O conforto precioso num mundo em mudança. Às vezes eu detenho-me na simples perplexidade que é esta preocupação em pensar a vida. Esta, que é de uma infalível inexorabilidade na forma como flui. Como imparável se estende no tempo do passado imediato, ou do passado arrumado nos cantos da memória – uma estética específica e inesperada, em que o terrífico pode ganhar tonalidades de sublime e o prosaico de lírico pitoresco, talvez pelo convívio em arrumações distraídas, com luzes de árvore de natal de há uns anos, restos de velas por arder, candeeiros antigos, ou a simples bioquímica, em insubordinada independência, sempre novas páginas a ler nesse olhar para trás – vida imparável a da memória em elaboração. Essa maliciosa e diletante sobrevivência que se alimenta de pensar a vida, e que – e é aí o lugar da perplexidade – perde parte do seu tempo a teorizar o que funda aquilo que à partida está fundado em si. A vida justifica-se a si própria sem que a memória o ajude a fazer. E a existência, uma espécie de obra de delicados contornos a querer crescer em paralelo com a que é a sua origem. Que absurdo perfeccionismo, o de querer entender aquilo que já de si se define por si. Quando nem se sabe que se queira uma luz a ver de fora ou tão só uma luz a acalentar de dentro. Esta estranha e utópica sensação de que ao saber, acresce habilidade de viver. Causa-me dúvidas, claras e irresolutas dúvidas, pensar. E que, se um dia, se por um momento, sequer, eu não fosse eu, seria um pouco mais eu. Este é o género de pensamento em que nos situamos em camadas, mesmo ao escrutínio íntimo e sem espectadores. E que me leva a pensar que haverá um eu mais natural do que todos os outros que o recobrem. De éticas e estéticas e olhares. Eu tenho tantas vezes este desejo cheio de exclamações e reticências. De entender tudo. Que limites que amarras que camadas parecem imiscuir-se no que sou e sou sem dúvida interior, mas transformam o que sou, naquilo que vivo. Talvez os outros. Canso-me e quero esquecer os dilemas da razão. Silenciar a profusão de perguntas. E a prepotência da razão, que é uma falsidade. Um mundo cheio de doces, iguarias várias e à escolha. A razão é uma escolha de consumo. Por outros caminhos, há dias em que qualquer cor no céu me serve para sonhar. Talvez quando não há uma realidade observável mas estados de consciência a refazer a noção de realidade. Tão volátil. O imponderável domínio das ideias. Tudo a propósito de “O teu poema”. Em que entro e me instalo devagarinho sem tocar. E dos olhos que cada um lança a dar a voz. A um rio que é só seu.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasTédio e obsessão [dropcap]E[/dropcap]ra inevitável. Entre quatro paredes e uma janela, com uma barragem de informação cuja percentagem de inutilidade e oportunismo supera a que realmente interessa – sob tudo isto e mais ainda, era inevitável. Chegou a minha casa outro terrível inimigo: o tédio. É um adversário manhoso, que se insinua devagarinho e cresce em proporção directa com todas as notícias que tratam estes dias de forma a espremê-los sem piedade. Da saturação nascerá sempre o ennui e isto não é uma afectação decandentista e literária: é um perigo real. Não me levem a mal: nem por um momento perdi a ligação com a realidade e muito menos a empatia pela gente que morre, pelos que choram quem morre e sobretudo quem está a trabalhar para que isso não aconteça. Mas mentiria se não dissesse que estou cansado do aproveitamento que se faz deste nosso novo mundo. Lembro-me agora de um famoso verso de Paul Valéry e que é epígrafe de um livro desiludido de Carlos Drummond de Andrade: “Les événements m’ennuient”. É isso, com ainda mais força e verdade: os acontecimentos aborrecem-me. Convidam ao torpor, a uma quase apatia. No início deste tempo estava activo, atento; discutia, trocava ideias, escrevia, queria saber e conhecer. Agora só me importo com os meus e tenho pena que a hibernação não seja uma característica da espécie humana. Dormia-se e acordava-se daqui a uns meses, no mesmo lugar mas noutro lugar. Só que nada disto é possível nem sequer resolve. O que se poderá fazer para contrariar esta vontade de fuga? Pela minha parte, arranjei uma solução: investir nas obsessões, naquelas inofensivas e idiossincráticas, mas que fazem parte dos arames que seguram a nossa personalidade e até muitas vezes as nossas acções e decisões. Eu, felizmente, tenho várias, que vão desde Sinatra, a cultura inglesa, os cocktails, Gene Tierney, o film noir ou o cabelo de Jennifer Anniston (e esta última já me ofereceu uma crónica há largos anos). E outras, também inócuas, mas de que necessito. Porque há isto: não confio em ninguém que não possua uma obsessão. Recorro a um talentosíssimo obcecado (e que cunhou o temo “flor de obsessão” sobre a sua própria arte), Nelson Rodrigues. Dizia ele que “o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma das suas obsessões”. E noutro registo ainda mais característico, proclamava que só os idiotas não seriam obcecados. É provável: não foi um génio, Franz Kafka, que incentivou a que todos perseguíssemos as nossas obsessões de forma desapiedada ? Foi. E francamente acho que ambos têm razão. Então é isto, amigos: contra o nevoeiro do tédio, o farol da obsessão. É praticar sem medo. Pelo menos um porto seguro haveremos de achar.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasCheira-me que Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 23 Abril [dropcap]A[/dropcap]nda uma excitação no ar a propósito de livros e leituras. Como há semanas só apanho ar de varanda, ainda para mais contaminado com inesperadas obras de embelezamento de passeios e canteiros, pode ser que esteja a farejar mal, mas não encontro razões para celebrar esse suposto reencontro do livro e dos leitores. Não alinhámos nas celebrações marqueteiras do dia mundial do dito, ocupados que estamos a renovar o site da abysmo, que bem precisado estava, e na recolha de materiais para futura revista digital, maneira de sacudir o torpor. E navegamos pelos dias a pensar, apesar de expressamente proibido pela doutora, enquanto interpretava os resultados do sangue. Continuemos a mexer no horizonte das lombadas, na busca parva de casualidades que fundamentem este livro e não outro. Os tolos dão muita importância a estas coincidências, diz Francisco Umbral em um dos contos – saborosos que nem pinchos em La trucha – de «Historias de amor y viagra» (ed. Planeta), e remata: «la metafísica de los tontos es la casualidad». Um jornalista de meia-idade, fazem questão de dizer, é convidado a experimentar a novidade do final dos 1990, o Viagra, e disso faz dele pretexto para investigações ao desejo e mais além. «Sabemos que o eu começa onde o nosso desejo acaba, mas ninguém dá o passo adiante, por preguiça, por medo». Apesar das mortes e da melancolia, não se trata de policial, embora lhe roube o tom cínico de quem está sobrevoando, de passagem, vendo ao longe. A frase discorre com invejável ligeireza, esculpindo personagens de vulto, e colocando-as em cena montada pela mais fina observação, soltando sentença aqui, piscando o olho aos clássicos além. Leitor de águas profundas sabe vir à superfície do banal para respirar. A mulher deste habitat interessa-me, e muito, até por desafinada com o óbvio dos dias, mas foi a cidade que me matou. Madrid está toda aqui, com crueldade e cheiro, as marcas distintas de chão e varandas, de cor e parques, de temperatura e sujidade. Não sei se chega a ser amor, mas sacrifica-lhe tantas palavras que parece fazer dela mais causa que cenário. E não se limita ao exterior, os bairros medem-se aos palmos de parede. No conto mais tocado pelo spleen de meia-idade, sobretudo com a queda para avaliação enquanto forma da memória, «Isabel», as descrições do bairro e do apartamento, com livros de alto expressionismo, alcançam luminosa intensidade. Mas, por causa da metafísica dos tontos, vou buscar a outro o acesso a essas personalidades que as partes da nossa casa assumem agora de um dia para o outro, inesperadas e cheirosas: «olor a vieja, olor a militar, olor a hiperrealismo, olor a bragas, olor a niño muerto, olor a mujer dormida, olor a cuarto de la plancha, olor a cocina abandonada, olor a coliflor.» Foi pelo título que a mão sacou o Milan Kundera de «A Lentidão» (Edições Asa). A novela tem raízes no Vincent Danon de outro texto, esse magnífico que não encontro – a que cheirará a habitación da biblioteca onde se esconde? Curto-circuita-se com o anterior no fio vermelho do desejo, invocando logo cedo Epicuro para explicar, que o hedonismo não está tanto na busca do prazer quanto na ausência de sofrimento. E nisto me comprazo, nisto e na relação que o escritor procura provar entre lentidão e memória, anverso de velocidade e esquecimento. Com que forma nos marcará esta experiência de confinamento, tatuagem ou cicatriz? «A Senhora de T. soube imprimir ao escasso lapso de tempo que lhes coubera como que uma pequena arquitectura maravilhosa, como que uma forma. Imprimir forma numa duração, tal é a exigência da beleza, mas também a da memória.» O cheiro a livros velhos punha a cabeça de «Moravangine» (ed. Ulisseia, mas ainda circula a da Cotovia) a andar à roda. As mãos do Bernardo [Trindade], sobretudo se em visita de médico, trazem sempre sábios volumes. Na tradução fiel do Ruy Belo e com capa de Espiga Pinto, este romance de vida de Blaise Cendrars pôs-me o corpo a andar à roda. Com a aventura e o delírio, das máquinas e das revoluções, das paisagens e das cidades, das longas descrições, das volúpias assassinas. E o ritmo. «Não há ciência do homem, o homem é essencialmente portador de um ritmo.» Não esqueçamos essa omnipresença: «as doenças existem. Não as fazemos nem as desfazemos a nosso bel-prazer. Não somos senhores delas. Elas é que nos fazem, nos modelam. Talvez nos tenham criado. São próprias desse estado de actividade a que se chama a vida. Constituem talvez a sua principal actividade.» Páginas febris se sucedem. A febre, em Blaise Cendrars, faz-se estilo. «As epidemias, de maneira particular as doenças da vontade, as neuroses colectivas ficam a marcar, à semelhança dos cataclismos telúricos na história do nosso planeta, as diferentes épocas da evolução humana». Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 24 Abril Quase sem querer, vejo-me metido com outros (pequenos) editores em gesto de organização tão raro que seria precioso se o resultado fosse distinto. Escrevemos à Ministra da (pouca) Cultura a pedir, face à crise, o óbvio gritante: em resposta à crise, compre-nos livros. Veio a resposta em forma de esmola. Pensamento e estratégia? Nada, além de tristonhas declarações. Resta-me acreditar que o gesto dos editores venha a dar árvore frondosa, capaz de produzir fruto e sombra, bonsai que fosse, dos de tratar em casa. Não sei, cheira-me que. Quero sempre muito à volta do 25 de Abril. Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 25 Abril As voltas que as coisas dão sobre si são revoluções. Em pequeno caderno laranja de cantos aparados, mas ao formato, o mano enorme António [Gonçalves] responde ao «Navalha no olho» ilustrando-o e manuscrevendo-o. Fragmentos de carne pontuam doravante as palavras, revivas por mão amiga e leitora as ter passado a tinta, negra de tão sanguínea. O gesto contamina o céu e a terra, as nuvens transfiguram-se em corpos que ficam no passar, o alcatrão despe-se para deixar que o chão mostre os seus castanhos pisados. O corpo quedo locomove-se. Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 26 Abril Não vou mentir e dizer que foi de súbito, que nem trovoada tropical. Ainda assim, bateu esta morte do João [de Azevedo], com as cores vivas a esbaterem-se e os crocodilos a mergulharem para esconder a dor nas águas primordiais. O João conversava o mundo. Desfez fronteiras por causa de causas e arranjou maneira de prolongar vida fora certas experiências dos dias em que as utopias se cultivavam com enxada. Terras muitas e céus variados, viagens de quem lê. Aprendi mais África nas intermináveis libações, com o que o negro continente contém de Europa, de vontades transviadas e mitos cegos, surdos e mudos. Mas outros animais e outras paragens vinham à beira da tela para desaguar, para desovar, o crocodilo antes dos outros, a fazer-se senhor de erotismos e mortes de ver ao pé (exemplo algures na página). Um homem contém um mundo, mas o João fez-se antena de mundos, convocou outras gentes, das sementes e das palavras, acreditando. Este homem trazia consigo sempre outros. E um enorme sorriso respirado, de ânsias e paisagens. Um homem assim morre menos. Vou acreditar que esta seja ausência breve, o tempo de um relatório e poucas contas.