Dão-se explicações

[dropcap]A[/dropcap] ideia de história tem sido concebida nos tempos modernos ao jeito de uma dança entre compulsão e liberdade. É com esta intermitência narrativa em mãos, alheia aos ritmos da natureza, que os humanos descobrem no tempo o seu leque de factos possíveis (tantas vezes apenas fruto do desejo).

Colocando ou não na equação alguns imponderáveis (que vão de deus a acidentes de todo o tipo), há geralmente quatro posições que se desenham. Diríamos estar perante um design binário – como o é o do cérebro humano – que, no entanto, se desdobra: por um lado, coloca em cena imprevisibilidades que se explicam e outras que não se explicam; por outro lado, coloca em cena previsibilidades que se explicam e outras que não se poderão, em princípio, explicar. O cérebro é afinal uma dramaturgia que tenta não escapar às lógicas de montagem que lhe garantem o sentido.

Comecemos pelas primeiras: as imprevisibilidades. Mesmo as mais trágicas conseguem em geral explicar-se. Um exemplo recente valerá como medida e como (triste) metáfora. O senhor Sergio Míllan vivia com a mulher num apartamento no número 7 da Praça Gracía Lorca, no bairro de Torreforta, em Tarragona. Aos 59 anos, o homem que durante décadas geriu uma frutaria de bairro foi vítimas duma explosão que teve lugar num complexo químico situado a três quilómetros da sua casa. A explosão fez voar pelos ares uma placa de metal com 1,65 metros por 1,20 metros e cerca de uma tonelada. O objecto foi projetado a cerca de três quilómetros, tendo entrado pela janela do terceiro andar do prédio onde Sergio Míllan vivia, levando ao desabamento do tecto do apartamento e à sua morte. Várias testemunhas qualificaram o impacto da placa metálica como o de uma bola em chamas.

Das imprevisibilidades explicáveis como esta, geralmente trágicas, passemos às inexplicáveis que acabam amiúde por convocar o risível e não as trevas. Ocorrem-me duas situações. A primeira evoca Georges Bataille que, um dia, estava a subir uma rua íngreme debaixo de um grande temporal com o guarda-chuva virado ao contrário e boa parte das varetas partidas. E ali continuava a tentar subir a rua sem conseguir parar de rir. Gargalhadas seguidas de gargalhadas ainda maiores. Nada as explicava, mas o riso desbragado continuou sem nada que o detivesse. A segunda coloca-me, há alguns meses, a ler uma crónica de Vasco Pulido Valente (que mereceu na altura a reprovação generalizada das moralidades) e que, a dada altura, rezava assim: “Era bom que o planeta ardesse e que a Greta fosse ter a saturno para ver se aprendia de vez a ir para a escola”. Eu li e reli aquelas linhas e fiquei igual a Georges Bataille a calcorrear a rua mais íngreme do mundo: os pés a resvalar nas poças e o corpo todo molhado, irado, insuportável. Mas sempre, sempre, sempre a rir. A rir de maneira perdida e sobretudo inexplicável.

As previsibilidades, essas, são desde sempre a casa mais desejada do humano. Sejam as que nos seriam reveladas por outrem, sejam as que a razão achou por bem colocar no mapa desde os alvores do hominídeo (a famosa “thirdness” de C. Sanders Peirce, categoria que nos permite antecipar, prever, prevenir). Todos os projectos humanos cabem, portanto, dentro das previsibilidades que podem ser ditas, formuladas, explicadas. Todos os textos criados ao longo do tempo estão enraizados neste tipo de projecção. De certo modo, os projectos são como um elástico que move as tentações humanas entre o futuro e o limiar do presente, lugar onde a vida se acende e reacende na busca (também retroactiva) de um horizonte.

No entanto, é possível discernir nesta panóplia um certo tipo de previsibilidades que não terá uma explicação cabal, ou pelo menos uma explicação ‘última’ (se é que isso realmente existe). Dou dois exemplos que são alegorias, quer isto dizer que através delas se contarão muitos outros e (infindáveis) enredos que fazem do tempo um dispositivo de espelhos paralelos onde as imagens são sempre reversíveis e repercutíveis. O cineasta Abel Gance e o arquitecto Antoni Gaudí rivalizaram – sem darem por isso – na ideia de uma obra que se desenovelaria ao longo de gerações, augurando uma dimensão mais atemporal do que propriamente histórica. O primeiro fê-lo ao conceber um filme sem fim a ser projectado em três ecrãs (o projecto de ‘Napoléon’ iniciou-se em 1921 e teve uma estreia apenas experimental em Veneza no ano de 1981). O segundo fê-lo ao ter planeado a construção de uma igreja, a Sagrada Família de Barcelona (o projecto iniciou-se em 1882 e decorre ainda hoje em dia).

Estes arremessos babelianos previram, continuam a prever e a antecipar cenários, mas fazem-no transformando o sentido numa espécie de boomerang. Encaram o futuro como miragem que rebentaria diante fosse de que explicação fosse. Aconteceu com Gaudí e Gance, mas também com um sem número de obras inacabadas, casos do ‘Réquiem’ de Mozart (ainda que completado mais tarde por Franz Süssmayer), do inacabável ‘Livro do Desassossego’ de Pessoa, do ‘Da certeza’ de Ludwig Wittgenstein e até mesmo do inacreditável ‘Finnegans Wake’, esse longo fôlego translinguístico de 700 páginas sobre o qual o autor, James Joyce, terá dito que servia para manter os críticos ocupados, pelo menos, durante trezentos anos. Explicações? No need.

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