Poéticas da pandemia

[dropcap]N[/dropcap]aquela altura não carregava pressupostos consigo. Não conseguia partir para a acção, fosse ela qual fosse, porque tudo o que fizera até ali esgotara-se precisamente na acção. Via-se de tal modo sem pressupostos que nem lhe era possível calcular a felicidade que isso poderia constituir. Pressupor é receber o ânimo que nos chega de longe, vindo daquele patamar para que caminhamos mas que ainda não atingimos. Poderemos verbalizá-lo, transformá-lo em regras claras ou apenas sondá-lo tal como se auscultam os pássaros, quando, ao fim do dia, regressam às suas folhagens.

Quando existem pressupostos, o leme permite a navegação (pelo menos a navegação costeira, não tanto a navegação apaixonada). Sentir-se-ão dificuldades, é certo, por vezes serão tantas que os pressupostos se alteram e entra-se, sem dar por isso, numa nova atmosfera. Mas nessa altura não conseguia sondar um simples esboço de atmosfera. Fora mesmo apanhado de surpresa. Levantou a cabeça e tudo era, de facto, novo. Debruçou-se à janela e o silêncio que vinha das ruas ofuscava todo os bramidos, toda a habitual algaraviada.

Circulou mil vezes ao longo do corredor da casa e sentiu-se partido em dois. Por um lado, alimentava a certeza de que a História (com maiúscula) teria um contínuo mais ou menos escondido e que tudo o que lhe escapara havia, um dia, de ser restituído (como que por milagre). Tudo passaria, portanto. Por outro lado, sabia ridicularizar essas mistelas mentais e estava consciente de que a história (afinal ‘coisa’ minúscula) tinha desaparecido há muito e que não passava de uma invenção (recheada de doces para criar a ilusão de verossimilhança). Ao fim e ao cabo, não tinha pressupostos e isso assustava-o sem que de tal se apercebesse. Diante de si tinha apenas o longo corredor para poder contar os tacos e as irregularidades do soalho.

Caminhava assim assustado e percebia nesse sinal de susto permanente algo que teria que ver com a natureza mesma dos humanos. Como, afinal, estava certo! Para dissimular tantos medos acumulados, observava os gráficos da pandemia. Era o que fazia todos os dias de manhã.

Os gráficos eram concebidos de formas bastante diversas, é certo. Terá chegado a concluir que existe uma ‘retórica de gráficos’, do mesmo modo que uma breve frase poética pode ser transformada numa charada (ou um sortilégio) sem fim. O que na poética é o prazer da hemorragia significativa (esse apogeu do prazer e da fruição dos materiais com que se escreve) não deveria ter correspondência neste tipo de gráficos, pensava. Até porque seria sua obrigação referenciar a realidade da infecção e não aceder a uma (qualquer secreta) ‘poiesis’. Por vezes, ao observar a ambiguidade dos quadros via-se a sorrir, não porque se iludisse com uma pretensa melhoria do estado de coisas da pandemia, mas porque descobria nesse jogo uma quase imparável tentação de trocar a imagem pela poética de todas as imagens. Era como se esses gráficos tudo fizessem para se sentirem também partidos em dois (ou em três, ou num número indefinido que os tornassem verdadeiramente inócuos).

Por vezes revia nos gráficos uma musicalidade redundante que ousava o ‘tudo ou nada’ para fazer sombra ao que é irrespondível. No meio de um território perigoso e desconhecido, talvez seja esse o modo de caminhar dos humanos: sempre aos círculos, evitando o face a face com um inimigo que, como se sabe, é invisível. Tal como Van Gogh visionou na sua ‘Ronda dos Prisioneiros’, pintada em 1890, ano em que uma pandemia de gripe, mais conhecida por “gripe asiática”, matou mais de milhão e meio de pessoas em todo o mundo.

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