Vestir o tempo

[dropcap]E[/dropcap]u não sei como o leitor lida com as pequenas contrariedades do quotidiano mas aqui fica uma informação inútil: eu lido muito mal, obrigado. Uma avaria, um atraso num prazo, uma resposta que se está à espera, um erro autoinfligido – enfim, uma série de incidentes que comparados com as tragédias da humanidade serão de facto irrelevantes para o universo. Menos, claro, para mim.

Não sendo uma pessoa dramática e até afectando alguma fleuma que admiro, esse tipo de obstáculos desperta neste esforçado cavalheiresco Henry Jekkill um indesejado e maléfico Edward Hyde. Ou seja, e para utilizar o jargão científico: passo-me dos carretos. Assim foi esta última semana em que as pequenas coisas – sim, outra vez – voltaram a crescer para a proporção de Adamastores intransponíveis. O que terá acontecido? pergunta com sorte minha o leitor amigo mesmo antes de se rir e desprezar as picuinhices do cronista comparadas com o estado do mundo. Pois pouco, muito pouco: óculos que se partem, computadores que falecem e tudo no espaço de poucos dias. Só que amigos, pelo menos concedam-me isto no meio do que parece tanta frivolidade: estes dias são lupas. E para um ansioso na clandestinidade, como é o meu caso, pior ainda: são catástrofes.

Tentemos a lógica, em premissas simples: eu, sem óculos, não vejo; eu, sem computador, não posso trabalhar. Sendo que nesta altura não tenho dinheiro para resolver qualquer das situações. Qual a solução para este vosso criado? Implorar pela vinda rápida do apocalipse desde que se esteja com uma roupinha lavada. Naturalmente, não resolve.

Há uma série de livros supostamente infantis escritos por Lemony Snicket (pseudónimo do escritor americano Daniel Handler) que se chamam A Series of Unfortunate Events (Uma Série de Desgraças, na tradução portuguesa algo atabalhoada). Tratam das desventuras de três órfãos às mãos de um sinistro parente que quer ficar com a herança dos irmãos. Escrevi “supostamente” porque estes livros têm um fundo negro que não é nada infantil. E se os lerem perceberão como nestas alturas me identifico com os irmãos Baudelaire e as suas infelicidades que parecem nunca ter fim. É necessário pois respirar fundo, arregaçar as mangas, pensar na ínfima proporção dos meus problemas e devagar mas com precisão, ir retirando esses irritantes grãos de areia que atrapalham o quotidiano. Foi o que fiz e nessa empreitada surpreendi-me com a nova noção do tempo que está agora instalada.

O tempo agora é elástico. À espera para resolver estas questiúnculas reparava nos outros que também esperavam. Onde antes haveria impaciência agora havia, pelo menos, resignação. Arrisco a palavra: compreensão. Graças às circunstâncias que vivemos e que obrigam a tantos novos rituais de protecção, o tempo estende-se agora à nossa medida, como um fato feito por alfaiate. Estamos reconciliados com a demora. O tempo, de repente, tornou-se humano.

Continuarei a ser o ansioso catastrofista das pequenas calamidades, disso não duvido. Mas aprendi uma lição preciosa que utilizarei para bem estar meu e dos outros: posso vestir o tempo que agora se me oferece. Não há outra alternativa. E garanto, que bem que nos fica a todos.

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