Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasDa orfandade [dropcap]J[/dropcap]á passa da meia-noite em Lisboa. Um céu limpo, uma temperatura a rondar os 30º C no preciso momento em que vos escrevo. Que bonito, viva a vida, viva o clima, viva Portugal! Deixem-me então falar de morte e de perda. Esperaríeis outra coisa deste refilão perene e ainda por cima que considera o clima até aos 21ºc um valor civilizacional? Espero que não. Ainda assim e para quem tenha esperança que eu mude de ideias, favor enviar donativos para o fundo não-governamental Façam Do Guedes Um Optimista Sem Limites e Sem Ar Condicionado. Agradeço mas não prometo resultados. A perda então, se me dão licença. Estes últimos dias vivi a infelicidade de ter alguém a partir e sentir a profunda impotência a que estes tempos nos obrigam. Percebi, faca no osso. Um ente querido, irmã preferida do meu Pai, decidiu partir, calmamente e sem surpresas. Mas são sempre os vivos, os vivos. Eu sei o suficiente de canções para vos garantir em coro com o senhor Berman, que fez questão de expressar no seu testamento musical: « All the suffering gets done by the ones we leave behind». Mais truísmos, senhor cronista? Pois chamam-lhe truísmos por várias razões e nenhuma delas é por ser mentira. De maneira que a estranheza é maior. Podemos habituar-nos, até mesmo estar preparados para a morte, o que nem sequer é o meu caso. Mas ninguém está preparado para a ausência da despedida, a impossibilidade física de acenar a quem amamos. Entendam: vi-me obrigado a procurar coroas de flores e outros aparatos fúnebres através deste modo virtual pelo qual muitos me lêem. Não consegui nem nunca conseguirei sossegar um Pai octogenário que não compreende nem quer compreender estes tempos. E eu percebo porque sou e serei assim e mesmo sem pandemias esta necessidade é eterna. A perda, amigos. Isto sim, a orfandade. . .órfãos de quê? Eu digo o que acho: de afectos, do toque. A família não chega. Na verdade a perda atinge-nos de todas as formas: amigos, amores, lembranças, civilizações, modos de estar. Eu próprio construí a minha visão do mundo com a perda como centro (e mais exactamente através das maneiras de a evitar ou atenuar) e agora mesmo, ao reler esta frase, acho-a desnecessária e quase vaidosa. Mas é verdadeira. Ao refugiar-me como de costume no que li e acredito, não posso ajudar ninguém. Algures nesta noite quente o meu Pai ainda chora, órfão que ficou. E o que me angustia é que eu sei que o dia chegará em que o mesmo me irá acontecer, se nada interromper a naturalidade da vida ou da morte. Mas deixem-me dizer adeus, deixem-me ser órfão de coração inteiro. Só assim voltarei à vida.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasLinhas cruzadas Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 31 Maio [dropcap]S[/dropcap]ó a incauta diletância de flâneur explica esta aventura, para a qual arrastei o Teófilo [Duarte], e com o ele o João [Silva] e o Cláudio [Fernandes]. Não se sai incólume do cerco sanitário, sobretudo se o aríete for esta «Torpor — passos de voluptuosa dança na travagem brusca», que há horas se completou com a sexta entrega, a da morte e do medo, ainda que não apenas. Logo cedo no pastoso cinza dos dias, os poetas próximos me acendiam versos. Esfreguei os olhos e dei-me conta que a noite constante se iluminava com pequenos palcos, páginas, onde se reconhecia gente, criadores a refazer mundo. Ora, apesar de se terem constituído memória do mundo, as redes são voláteis e instáveis, pelo que me veio à boca a vontade de recolher-caçar e dar a ler. O papel do editor é encontrar nexos, pescar no caos os peixe-chama do sentido. Não se procurou planeamento algum, e só tarde se lançaram desafios, suscitados por vontades ou palavras inscritas na espuma. Na arrumação estabeleceram-se nexos, alguns ainda por detectar, como convém. Abrimos com punhado de artigos que dizem do que se encontrará depois desenvolvido (autobiografia, casa, cidade, paisagem, morte). Depois a comporta abriu-se, vieram águas, ventos e até fogos. Guardo para mim que algumas vozes nasceram nestes palimpsestos e outras regressaram com potência de barítono. Há experiências para acompanhar e imagens às quais regressar. Mantenho-me fixado na do Manuel [San Payo] que vi surgir, conversada em caixas de mensagens (algures na página). Aprendamos, pois, a olhar o tempo. Segue-se versão em pdf, onde a relação entre os fragmentos surgirá mais integrada. Na versão online só os alinhamentos oferecem a unidade possível, resgatando a soma da mera antologia. Deu ainda para perceber que algumas das ideias são específicas das plataformas e falta-lhes o ar fora delas. Depois a ânsia. Na incessante e agora? esconde-se a ânsia do papel. Um dia de cada vez!, respondo com o mote caduco. Ainda que pense que, se lição há a extrair tal dente cariado, é que podemos viver os dias todos num. Só precisamos esticar o hoje. Palhavã, Lisboa, quarta, 20 Maio Longe do sofá onde tenho morado fui acompanhando a contagem decrescente para a primeira entrega, a que fará as vezes de editorial, com arte e pensamento e política e inquietação, até música e palavra dita ou sussurrada. O nervoso miudinho no online não se compara ao papel, que a emenda é possível e a errata dinâmica. Continuo com saudades de uma redacção em fecho, quando do caos nascia pontuação. Aqui estamos em contínuo nos três. Deixem correr o sangue! Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 21 Maio Para não termos a veleidade de arder, voltámos ter uma inundação. Não tão grave como a voz ao telefone anunciava, mas ainda assim lá se perderam mais umas centenas de livros. Que importa? De qualquer modo estavam já enterrados no esquecimento do habitual. Ao contrário dos apoios, a edição de livros é a fundo perdido. Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 22 Maio Desconfinei sem sair de casa: fui à Prova Oral, do Alvim (https://www.rtp.pt/play/p260/e474129/prova-oral). Não sei se passei. (Ainda não me tinha visto neste espelho-ecrã da nova normalidade, cada um falando a fingir que estamos fora, rádio com imagem à superfície, por aí fora.) Para variar, rebaldaria de liceu, mas deu para tomar nota da confusão instalada à volta do livro. Santa Bárbara, Lisboa, terça, 5 Maio O Adérito [Fidalgo] avisa por mensagem que a Mimosa [do Camões] vai fechar de vez. Nada assinala melhor o fim de qualquer coisa, talvez um ciclo, um modo de estar, do que este símbolo a arder. Até o furor das obras de renovação, arrasando com estrondo o que nem por sombras era antigo, parece ser afirmação. Muita conversa, projecto, ideia, disparate, verso, livro, grito, toque, luz, dúvida, encontro e zanga, ameaça ou beijo, sustos, espantos, perdas e ganhos, deves e e haveres se ergueram por ali, no vai-vem entre a mesa e o passeio. Foi considerada, em certa polémica, a sede da abysmo, com isso tentando menorizar quem editámos, como se colocar coração e cabeça no lugar do estômago fosse desprezível. Ali foi, sim, a sede de uma certa sede, a festa pela certa que incomodou tanto alguns vigilantes e outros bem pensantes, sem esquecer muito comissário, coordenador, programador, director, que se arrepia com a vida fora dos gabinetes. Alguém há-de conservar a memória das noites de leitura em homenagem ao Herberto, então e na hora da sua morte. Ou quando nos despedimos de um dos nossos que partia e assustámos ministro que julgou e enfrentar manife operária, e talvez fosse. Há-de haver fotografias dos parcos prémios que nos atingiram expostos sob a vigilância hierática das garrafas de Bushmills. Alguém que tenha o segredo do âmbar que o conserve, pois não sei fazê-lo, não domino o mister da memória. Dito isto, nenhum abalo se regista na natureza quando a cobra muda de pele. Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 7 Maio Prazer igual não há. Receber correio, sobretudo livros, desdobra os dias em espanto. Durante a pegajosa crise, a alegria foi abrindo o correio sentimental. Foi com o pão de ló da Carla, as madalenas do Luís e da Sandra, o cabaz de verdes do João e da Paula, as cerejas da Maggie e do Nuno, os ovos e mais verduras da Ingrid, o pão e mais cerejas do Paulo. Sem nenhum risco de exagero, por causa da balança do António. Os adjectivos foram inventados para pôr cor nisto, vejam onde e podem ser trocados: elegantes, memoráveis, luxuriante, suculentas, saborosos, robusto e belas, tão moderna que comunica. Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 8 Maio Malhas que a rede tece. Um dos grandes professores que me moldaram, o João [Nogueira da Costa] trabalha o tempo com detalhes de escultor. Desencantou uma nota em papel onde se registava o acompanhamento partilhado das voltas de Luandino por Lisboa. Por mais que procure, até em territórios de Alice, não encontro aquele puto. Na encruzilhada de então escolheu rumo, como de costume em contra conselho, que deu em nada. Enfim, talvez o puto aquele acabe por reaparecer para dizer que os caminhos se fazem cruzando os assinalados, os aplanados, os celebrados. Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 9 Maio Raro é lembrar os sonhos. Já agora, nem os pesadelos. Posso até ser acusado de confundir tudo. Jamais serei exacto surrealista, nem que me apeteça ou os bonzos permitam. Estranho, portanto, esta recordação da noite passada a vaguear por entre altas e magras figuras, esculturais mas no modo marcado de Giacometti, nenhuma minúscula a habitar caixas de fósforos, mas a arder no passo adiante, a refazerem-se para além das marcas dos dedos, hesitando entre ser rosto que marcha ou corpo que sustenta o céu de uma cabeça. Não me limitava a andar. Havia trocado mensagens com a Isabel [Abreu] pelo que ela me apareceu a dar uma peça, e a repetir que era muito importante não a largar nunca, a esculpir as palavras no ar com as suas mãos giacométticas, giacométricas. Atravessei o que havia para atravessar, talvez um ciclo, um modo de estar, o deserto ou rua. E assim fiz com a ansiedade indispensável sem saber se cheguei a algum lugar que não fosse a madrugada do acordar. Recordo a pequena peça, talvez continue a segurá-la noite dentro, não possuo o talento para lhe capturar a estranheza, de formas geométricas desalinhadas mas ainda assim pacificadas, irritantemente nórdicas. Talvez a memória seja ela mesma a obra.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO “triplo concerto” [dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs o seu segundo concerto para piano, muito menos conhecido que o primeiro, entre Outubro de 1879 e Abril de 1880. Muitos anos antes, o compositor, que era um sinfonista, havia dito ao seu amigo e também compositor e crítico musical russo Hermann Laroche, que nunca escreveria um concerto para piano, porque não podia tolerar o som de piano e orquestra juntos. Embora Tchaikovsky tenha resolvido isso muito bem no Primeiro Concerto para Piano, intercalou cada vez mais passagens para o solista, do tipo cadência, nos andamentos dos seus trabalhos posteriores para piano e orquestra. Por outro lado, o facto do pianista Nikolai Rubinstein, após as suas duras críticas iniciais ao primeiro concerto, ter feito as pazes com o compositor, aprendendo e executando a obra, aumentou bastante a sua popularidade. Tchaikovsky sentiu-se compelido a retribuir e começou a compor um novo concerto para piano, enquanto passava um período com a sua irmã em Kamenka, na Rússia. Nessa ocasião, escreveu o seguinte à sua patrona, a mulher de negócios russa Nadezhda von Meck: “Quero dedicar (o novo trabalho) a NG Rubinstein em reconhecimento pela sua magnífica apresentação do meu Primeiro Concerto e da minha Sonata, que me deixou em êxtase total”. A escrita foi rápida. Em Março de 1880 Tchaikovsky já havia concluído e orquestrado o concerto. Ainda assim, estava preocupado com a reacção de Rubinstein, escrevendo novamente a von Meck: “Tremo só de pensar nas críticas que posso ouvir novamente de Nikolai Grigoryevich, a quem este concerto é dedicado. Ainda assim, mesmo que ele critique mais uma vez mas o apresente de maneira brilhante, como ao Primeiro Concerto, não me importarei, mas seria bom que, nesta ocasião, o período entre a crítica e a apresentação fosse menor”. Tchaikovsky preocupou-se em vão. A reacção de Rubinstein foi, desta vez, compreensivelmente cautelosa. Sugeriu com tacto que talvez a parte solo fosse episódica, muito envolvida em diálogo com a orquestra em vez de ficar em primeiro plano, mas acrescentando: “… como eu digo tudo isto mal tendo tocado o concerto de uma vez, talvez esteja errado.” Tchaikovsky rejeitou as críticas de Rubinstein, mas sem qualquer rancor, e dedicou-lhe a obra. Rubinstein insistiu na estreia para se redimir das duras críticas feitas ao primeiro concerto, mas estava destinado a nunca o tocar, pois faleceu em Março de 1881 e a obra nunca alcançou grande popularidade. Nos concertos para piano de Tchaikovsky, frequentemente o piano não é solista mas apenas mais um instrumento. Isto pode ouvir-se claramente no segundo andamento do Segundo Concerto para Piano, que contém solos proeminentes para violino e violoncelo, tornando-o um concerto para trio de piano e orquestra, brevemente, embora a edição de Alexander Siloti, seu aluno e tio de Rachmaninoff, outrora popular, tenha suprimido grandes secções, incluindo esses solos. Siloti propôs inicialmente uma série de mudanças na partitura, mas Tchaikovsky resistiu a essas ideias. Mas à medida que o tempo avançava, concordou com algumas. No entanto, a versão que Siloti publicou em 1897, quatro anos após a morte de Tchaikovsky, incluía cortes e transposições com os quais Tchaikovsky havia discordado fortemente. No entanto, essa versão tornou-se a versão padrão por muitos anos. Felizmente que as duas versões chegaram até nós. O Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 em Sol Maior, op. 44 foi, assim, estreado em Nova Iorque no dia 12 de Novembro de 1881, com Theodore Thomas a dirigir a New York Philharmonic e Madeline Schiller ao piano. A estreia na Rússia ocorreu em Moscovo em Maio de 1882, dirigida por Anton Rubinstein com o aluno de Tchaikovsky, Sergei Taneyev, ao piano. Tchaikovsky também escreveu um arranjo da obra para dois pianos entre Janeiro e Fevereiro de 1880. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Piano Concerto No. 2 in G Major, Op. 44 Boris Berezovsky (piano), Sinfonia Varsovia, Alexander Verdenikov – Mirare, 2013
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTransumanismo [dropcap]O[/dropcap] momento actual faz com que tenhamos de alongar a forma do que apelidamos de Humanidade e, muito mais, repararmos e consentirmos abrir matérias que estavam limitadas a núcleos estruturais que são portas abertas a uma continuidade talvez não circular, nem pré-adâmica, mas muito eficazes para a permanência daquilo que de humano restar. O transumanismo não é como possa parecer um movimento recente, começou na década de sessenta, na transição que deu lugar a novas formas de vida social, tecnológicas, numa filosofia futura que em 1990 avança com projectos radicalmente inovadores que iriam colocar em causa todas os alicerces da ideia de Homem e sua funcionalidade enquanto natureza acrescentada, melhorada, anexada à máquina com alongamentos e aplicativos que mudam o determinismo daquilo que se possuía apenas por herança genética e cultural, aspectos adquiridos. Nesta imensa marcha, rumo, creio, a um futuro agora não muito, muito longínquo ( o tempo da Humanidade tende a ser transfigurado) há ainda os alicerces remotos do início do século XX por um geneticista inglês J.B.S Haldane que há distância de cem anos intercepta no seu genoma capacidades com fins de melhoramento, transformação e adaptabilidade em vista de outros sistemas galácticos; creio que toda esta temática se baseia na inoperante e pouco rigorosa tipologia que define o humano que será mais o conjunto das suas qualidades em matéria civilizadora e não o das suas possibilidades, capacidades e sequente metamorfose. O que nos é dado, pode e deve ser modificável. Estamos neste instante numa era para os ciborgues, robots, máquinas e humanos, o que nos faz ponderar também acerca da dura condição da vida do Homem, tão brutalizada ao longo da sua experiência por formas de submissão à ordem natural, ao efeito da sobrevivência, ao grau de parentesco, ao trabalho escravo, ao ritmo binário da vida e da morte, arrastado quantas vezes por dolorosas patologias que fustigaram a sua natureza para graus bem inferiores aqueles que desejávamos poder designar para sua nomeação, e todo este tema não é por isso matéria áspera. Os artistas sempre souberam anunciar um certo grau de consciência ao mesmo, lembro Elizabeth Browning: «…a mão do Amor corrige a Natureza» seja então amor – ou por Amor – a transformação que nos trará uma espécie de ressurreição findo o ciclo do carbono. No fundo o que se assemelhava ao fantasma (energia condensada em outras propriedades) pode ser também um renascer ou ficar vivo numa pós-vida digital. Por outro lado, o nosso corpo tem órgãos demasiado pesados para as tarefas que vamos cada vez mais desenvolvendo, órgãos esses, que num processo energético muito rápido como este em que nos sentimos habitar, começam a adoecer de maneira contínua sem explicação aparente. Existe sim, uma disfuncionalidade orgânica, biológica, cada vez maiores, e nem a resignação ao prazer tende a obter o grau de satisfação outrora produzido. No momento em que estamos sabemos dos muitos seres humanos que perecerão ao vírus – já pereceram – os vírus tendem a ficar mais letais e não se pode estar exposto a um grau de acontecimentos assim sem uma profunda comoção, e também é certo que não podemos continuar com uma anatomia tão rudimentar a sobreviver ao acaso, estes acontecimentos porão em marcha muitos desenvolvimentos que estavam subjacentes agora de uma forma muito mais concreta, e darão a tónica de um futuro onde as estruturas que conhecemos terão de ser mudadas a um nível que muitos ainda temem, é certo, outros não a pensaram, porventura, mas que se imporá como via inevitável. A muito fustigada Itália teve ainda a clarivência do seu Futurismo há cem anos atrás numa aceleração artística que será um dos grandes marcos revolucionários do século XX , pois aqui a ciência e a arte estão de mãos dadas no ciclo da inovação e de toda a inventividade que é preciso ousar e usar, para continuar este humano (ou demasiado humano?) que não é de excluir a influência de Nietzsche nas filosofias transumanistas de Stefan Lorenz e Max More, mas é na sua poesia (Nietzsche) que me parece estar a frase certa que envolve este contacto… « Não hás-de sofrer sede muito tempo/ Meu coração queimado!/ Anda no ar uma promessa…../- A grande frescura vem…» Possível será que um melhoramento nos torne mais compassivos, menos belicosos e já não sujeitos à fraude da vaidade competitiva, reprogramados com outras soluções que permitam um melhor humanismo e uma concórdia para com as outras formas de vida, e que ainda assim possamos entender que muitas parábolas e legiões de anjos e máquinas apenas são a compleição daquilo que nos destinou a uma evolução competente e grata no avançar. Biologicamente estamos estagnados na era de uma pandemia onde um recurso generalizado de salvamento assemelha-nos a todos na desgraça, depois, nas competências, tendemos a deixar de fora uma parte de todos nós: descemos até aqui em conjunto para reflectirmos acerca da nossa própria humanidade que irá continuar mas de uma maneira muito diferente. Para se juntar agora a ela, tudo aquilo que foi sonhado e o que trará de concreto ao sonho de cada um em seu consentimento. Teremos de ajustar a vida ao sonho. Aspectos emergentes são mais reais num tempo de grande cisão e viver não significa ficar de forma temporal no corpo da morte, pode ser muito mais…
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasSó nos resta subir [dropcap]N[/dropcap]uma entrevista ao escritor Hermann Broch, acerca das suas personagens não fazerem amor, não comerem e não beberem, no fundo, como se a vida lhes estivesse longe, ele responde: «Você está a identificar vida com quotidiano. A vida também tem quotidiano, mas é mais do que isso. E é precisamente esse mais do que isso que me interessa enquanto escritor. Não tenho nada contra quem escreve acerca do quotidiano, mas não é o que faço ou me interessa fazer. Escrever deve antes de mais conduzir-me a algum tipo de conhecimento que não tinha antes e não a uma descrição do que conheço ou a uma distracção desse mesmo quotidiano. Escrevo para aprender e não para ensinar.» Estas palavras de Broch bem poderiam ser proferidas por Judith Levi, escritora israelita. No seu mais recente romance, «A Luz Por Baixo», o romance retrata a vida de uma mulher que sempre procurou aquilo que mais lhe dava o sentido de si mesma, o sentido de estar consigo mesma. Essa mulher, Esther, agora perto dos 70 anos, recorda as várias fases da vida em que «se buscava a si mesma, como houvesse dentro dela algo que a impedia de chegar a si mesma. Antes de morrer tinha de conseguir regressar a si. Ela era a casa da qual tinha sido expulsa e à qual tinha de regressar antes de morrer.» E numa entrevista a um jornal, por causa deste mesmo romance, Judith Levi diz: «Essa mulher, no fundo, sou eu. Embora quase todos os meus romances tenham um cunho muito biográfico, este é o meu romance mais autobiográfico, sem sombra de dúvidas.» Esther, a personagem do romance, tem relações apenas episódicas, que nem sequer são descritas – numa passagem, lê-se «Acabei por dormir com Lea.», e noutra «Fui para a cama com Robert.» –, a jornalista pergunta-lhe se isso também é autobiográfico, ao que Levi responde: «Não os casos relatados, evidentemente. Mas que na minha vida os corpos dos outros não passaram de acontecimentos fugazes é verdade; quer de mulheres quer de homens. Imagine que eu sou como Esther, que procurava um modo de regressar a mim! Que corpo me poderia ajudar? Nenhum.» Esta noção de que nenhum corpo pode ajudar já aparecia no romance «Longe», onde a protagonista, diz para a mãe, depois da morte do pai: «Ninguém pode ajudar-nos. E muito menos um corpo. Um abraço é tão ineficaz perante a morte quanto rezar perante um tanque de guerra.» Há em Judith Levi uma guerra declarada ao corpo. Não por questões religiosas ou moralistas, mas ontológicas. Como diz Esther: «Um corpo é um corpo e não há muito o que fazer. Há que alimentá-lo, levá-lo à rua, apanhar os dejectos e na época do cio ter o cuidado de regressar de manhã a casa.» Em contraposição à ideia de corpo aparece quase sempre a ideia de casa. Mas apesar de tudo, e por mais que pareça estarmos perante um ponto de vista que bebe na tradição pitagórica e platónica de ver o corpo como o túmulo da alma, Esther – e talvez também Judith Levi – não vê o corpo como um túmulo, mas como distracção ou parque de diversões, como «o que me afasta de casa». No fundo, aquilo que a afasta da tarefa de regressar a si mesma. Nós não estamos encerrados num corpo. Lê-se no romance: «Esther sentia-se encerrada lá fora, longe de dela, tentando regressar a casa. Havia dias que sentia uma aflição semelhante ao de um pássaro a bater as asas tentando libertar-se da armadilha em que caiu.» A sensação que a escritora descreve, através de Esther, é complexa e estranha. Em criança, mais do que um impulso para brincar na rua com outras crianças, preferia ficar em casa a ler e a brincar com coisas que inventava. Na sua adolescência, passava os dias na biblioteca municipal, em Jerusalém. Fez a universidade entre livros e pontuais casos sexuais. Tornou-se professora na mesma universidade, no departamento de Sociologia, onde passou a ensinar uma cadeira que ela mesma criou, chamada «Sociedade Criativa». No fundo, diz ela a uma das amantes ocasionais, «leituras pessoais de Nietzsche e de Foucault na organização das sociedades contemporâneas.» Há um episódio curioso relatado no livro, quando uma jovem estudante lhe pergunta: «Numa sociedade como a nossa [refere-se a Israel], o gesto libertário não seria abandonar a leitura, tanto a dos textos religiosos quanto os seculares? O nosso objectivo não deveria ser o de criar um mundo além da palavra escrita?» Aquelas perguntas, que ficam sem resposta, adiadas, arrastar-se-ão até ao final do livro. Momento que faz eco num pequeno ensaio que Judith Levi publicou chamado «Depois de Tudo», onde faz uma análise da impossibilidade de uma sociedade livre, enquanto cada um de nós não se libertar do exterior que nos habita. Livro que traz uma inscrição de David Ben-Gurion, fundador de Israel, que tem muito a ver com a escrita de Judith Levi: «Quem não acredita em milagres não é realista.» O exterior de que temos de nos libertar, contrariamente aos sentidos e às opiniões, na esteira de um platonismo, é tudo o que não somos nós que criamos, isto é, tudo o que não seja o mais íntimo de nós mesmos. Para a escritora, os sentidos são ou podem ser uma força criadora, embora não as opiniões. Ou seja, um modo de pensar muito mais na esteira de Nietzsche do que de Platão. Escreve nesse ensaio: «A procura do mais íntimo levar-nos-á a abandonar os livros.» O problema é como conciliar uma procura de si mesmo afastado de uma leitura dos outros e de uma reflexão junto com eles. Que os textos se apresentam como algo que nos afasta da intimidade pode ou não ser verdade, não importa agora pensar nisso, mas como chegar a nós mesmos sem ler? Como pensar sem ler? Judith Levi está consciente deste problema e enuncia-o no seu ensaio: «Que temos de ler, não restam dúvidas, como também ninguém pode compor música sem ouvi-la, mas como é que através da tradição a podemos superar? Em que momento se dá o corte desse cordão umbilical?» Seja qual for a resposta a dar, o que importa é que Judith Levi escreve com os pés assentes no céu e sabe que a luz vem de baixo, como diz Esther no romance: «Toda a existência é assente numa ilusão. Não há luz mais importante do que a que sobe por nós acima, que vem de baixo, da terra, de sentir que há um abismo por debaixo dos nossos pés. Esta luz mostra que só nos resta subir.» A nós, leitores, e apesar de os livros de Judith Levi não nos darem respostas, só nos resta subir, isto é, baixar os olhos e lê-la.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDo fundo do tempo [dropcap]E[/dropcap]stamos, humanos, a assistir de fora e de dentro. A uma imutável mutação constante, que nos vem dos confins do tempo. Imersos no paradoxo. A teoria do devir, em que se encontram, nessa guerra de opostos, o princípio e o fim desenhados num círculo perfeito. Heráclito de Éfeso, na Jónia, no pensamento expresso pelo aforisma: “Tudo flui como um rio”, encontrou a imagem que deu forma ao que já os filósofos de Mileto intuíam sem problematizar: o dinamismo das mudanças na physis. E assim tudo passou a se nos apresentar. Pelos seus olhos, ao nosso lado, à beira do mesmo rio. O mesmo, mas outro. Em mudança. Como alternância de contrários, em que cada coisa tende para a outra numa inércia perfeita. Como um devir. Em que tudo é movimento, tudo se move, excepto o próprio movimento. E foi a Jónia que nomeou uma das ordens da arquitectura clássica. De colunas-árvores mais elegantes, enervadas de canelulas a desenhar um olhar em altura, para a ilusória perfeição do entabelamento. Construía-se uma geometria imperfeita para, na correcção da perspectiva, se fazer perfeita ao olhar. Eram mais altas e leves, de capitel em volutas, talvez a ilustrar a espiral do tempo. Mas também demonstram, se assim o quisermos olhar, como perfeição ou o seu contrário, não são ideias estanques e podem conviver numa mesma ordem, tendendo uma para a outra numa pequena e simples oscilação do foco. O olhar, ou a realidade mensurável. Voltamos ao tempo antigo e a Heráclito, como voltamos sempre ao rio, em contemplação. Esse mesmo rio que não se pode percorrer duas vezes sendo o mesmo. Nem ele, nem nós, substâncias mortais. Nem contemplar as suas águas, as mesmas, porque nunca o são. E também porque o tempo de hoje nos traz pelo pensamento de Z. Bauman, em torno de uma “modernidade líquida”, o retomar da mesma ideia e da mesma realidade intangível, que vemos passar inexorável. E nos faz recuar no tempo, quando tememos o futuro. Porque o tempo haveria de voltar a avivar, válidas senão desesperantes, as mesmas imagens dos mesmos olhares. De quem vê da margem, como quem a vê, navegante. E como quem se vê como tal. O que nos distingue afinal dos gregos antigos, diz-nos Bauman agora: nada, afinal. O filósofo de desconhecida modernidade, vindo dos confins da antiguidade sem imaginar quanto da sua percepção se haveria de agudizar tantos séculos de ideias e mentes depois. Há um olhar primeiro na primeira ideia imortal. Que nunca mais morre mesmo se adormecida por séculos. A ideia de que tudo flui, retomada hoje por Bauman. Mas que tudo flui demais para a alma humana, tendente a raízes. E de que tudo tende a despojá-la delas. Sempre as quase eternas, de tão longevas, árvores, como contraponto a esta sinfonia que custamos a acompanhar. O que temos, de árvore ou de rio? A desgastante impermanência que não nos dá um tempo de sentir o contrário, a exaustiva imutabilidade. A saturação tóxica do que é e sempre é e como foi e sempre será. Que não existe naquela simples constatação de que nada, nunca, será jamais o que foi imediatamente antes. Uma paradoxal nostalgia do que sempre foi mas também a apetência para o que nunca existiu antes. Ambas conviventes num mesmo olhar. Corredor solitário. Há sempre uma geografia possível a quem não sai do seu lugar. E corre. Uma cartografia que se cumpre, se renova e se palmilha em cada renovar dos dias. Mesmo que a mesma, mesmo nas mesmas indefinições dúvidas ou paradoxos, um caminhar que é desporto, descoberta ou destino. Ou desconhecido sem mais. Sem adversário mais, do que a própria vida nos seus jogos, dificuldades e estratégias e instruções extraviadas. Um corredor solitário é um corredor sem mais gente a atravessar. Ou o corredor que corre, sem mais gente a ladear. Sendo assim, mudo de ruídos estranhos, ou surdo aos ruídos que não há. Respira, livre. Chora, sem testemunhas. Corre por si e para si – ao longe – ao longe. Corredor implica caminho a correr e margem a ladear. Corredor é caminho ou caminhante em corrida. Não é fugitivo, nem o caminho fuga. (O que me leva sempre a Bach, a fuga. Essa estrutura complexa e talvez inacabada, a repetição de um padrão em crescendo. O conceito de contraponto. A imaginar se uma vida se pode escrever numa partitura como essa). Apurar a passada, ouvir o coração, respirar com disciplina. Ir em frente. Temporariamente, como uma linha tangente ao círculo perfeito. Em passo de caminhada ou de corrida, por entre as margens da visão distraída do que passa, ficando passa, parece passar, ficando para trás mas prolongando-se em frente. O corredor, se é solitário, não mede e não compete. É como o rio. É só e consigo. Nunca o rio se fez pasto de fúria. Nunca corre adiante e nunca corre atrás. As margens não lhe determinam a corrida nem o ritmo nem a pressa nem a venda. Mesmo dos olhos, que não se sabem fechados ou esbugalhados em frente atrás de nada. Corre como deve e como pode. Tende. Ignorando a foz, irresistível para lá flui. Animal manso, rebelde e solitário. Mudança em movimento estático. Nasce e nasce e nunca morre e morre. Como não sabemos que morremos. Ou então: a esgrima. Um fascínio de precisão. Escolher as armas: sabre, espada ou florete, como flores. Mas na esgrima são precisos dois. É como no amor. Às vezes.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasReduzir os pés de mulheres a pés de cabra [dropcap]N[/dropcap]a Parte não Oficial do Boletim da Província de Macau e Timor de 18 de Março de 1867 refere-se: . Como a sondar a opinião dos residentes de Macau e o seu apoio a tal medida, o Boletim da Província de Macau e Timor de 25 de Março de 1867, relata na parte não-oficial: . Reformar completamente a Misericórdia Na Parte Oficial do Boletim do Governo de Macau, Ano 1867 – Vol. XIII – n.º 6 de 11 de Fevereiro, por Portaria N.º 14 o Governador de Macau determina: . Já na Portaria N.º 15, o Governador de Macau determina: . A Comissão conclui que em quanto se não reformar completamente a Misericórdia, como as necessidades da actualidade reclamam, dando-lhe um regulamento próprio em substituição do antigo Compromisso, as comissões administrativas hão-de sempre lutar com inúmeras dificuldades sem poderem obter seque uma administração regular. Procuratura dos Negócios Sínicos Uma outra Comissão, também nomeada em 1866, apresenta o seu parecer sobre as atribuições do tribunal da Procuratura, no mesmo Boletim do Governo de 11 de Fevereiro 1867, ainda na Parte Oficial. Na Portaria N.º 9, o Governador de Macau determina: Tendo sido exonerados dois vogais da comissão nomeada por portaria deste governo n.º 28, de 22 de Novembro de 1866, para apresentar um parecer sobre a espécie e extinção das atribuições que cumpre tenha o tribunal da Procuratura dos negócios sínicos desta cidade, e atendendo às circunstâncias que se dão nos cidadãos, Francisco António Pereira da Silveira e Thomaz José de Freitas, hei por conveniente nomeá-los para formarem parte da referida comissão. As autoridades a quem o conhecimento e execução desta pertencer assim o tenham entendido e cumpram>, 6 de Fevereiro de 1867, José Maria da Ponte e Horta. Já no B.O. de 25 de Março de 1867 aparece o Relatório acerca das atribuições da Procuratura dos Negócios Sínicos da Cidade de Macau, dirigido ao Governador de Macau e Timor redigido por a comissão nomeada em portarias de 22 de Novembro de 1866 e 6 de Fevereiro de 1867. . Assim em 1867, a Procuratura da cidade de Macau passa a ser denominada Procuratura dos Negócios Sínicos da cidade de Macau, – a mais antiga repartição pública da colónia, pois o lugar de Procurador fora criado com a primeira vereação do senado do Governo Municipal em 1583.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDias tristes 25/05/2000 [dropcap]H[/dropcap]á que que digerir e seguir em frente, pois se, como dizia o Valéry, o lobo é a soma de todos os cordeiros assimilados… a vida, hélas, é a intratável combustão que muda os lobos em estrume. Mas cansa este acuamento da actualidade que o Covid nos impõe e, condoído com o desaparecimento da Maria Velho da Costa, só apetece espreguiçar-me, alheadamente. Começo por isso esta crónica apropriando-me do belo naco de homenagem que lhe dedicou o Miguel Serra Pereira, no FB, neste post em que a recorda: «Hoje que morreste só me ocorre para te saudar aqui, como se repetisse que o lembrei sempre, aquilo que me disseste, um dia, sobre a literatura, há tantos anos já, no Jardim da Estrela, depois de um almoço algures, para os lados de São Bento, perto da casa onde então moravas. E foi que a literatura não servia para nada que valesse a pena, se, quando a valia, não servisse tanto para ser mais. Ser mais, como em tudo o que foste, foste sempre.» Providencial lembrança, e não podia estar mais de acordo. 26/05/20 Não era nada fácil, a autora de Casas Pardas, inclemente consigo e a escrita (cena que consideravamos terminada nos guiões era comemorada com um uísque e a frase brincalhona, Esta, António, nem o Shakespeare! A nossa alegria durava quinze minutos, rapidamente torcia o nariz ao polimento, encontrava uma coisa a corrigir, um defeito no viés da personagem ou um erro de construção na estrutura da cena – nunca encontrei ninguém tão exigente nem tão capaz de distanciar-se emocionalmente do texto de forma tão veloz; havia algo de levemente esquizoide no processo, como sempre me pareceu uma espécie de milagre “fora dos gonzos” a facilidade com que lhe brotava o vocabulário e as suas derivas vernaculares), igualmente na esfera pessoal podia dura e álgida, e tanto eu como o Armando Silva Carvalho, que foi também seu parceiro em livros, tivemos momentos de zanga e distanciamento duma relação de desiquilibradas reciprocidades. Mas era um bicho admirável e mesmo quando era voluntariamente controversa e dizia coisas bárbaras, como ter afirmado em França que o Fernando Pessoa era um poeta «minable», nós sentíamos que ela era das poucas pessoas com o direito a dizê-lo, porque o seu nível não desmerecia o do poeta e daí as novidades que trouxe ao romance português. A sua morte lembra-me episódios de inveja de que foi objecto e a que assisti. Mas não vou por aí, sempre achei uma enormidade a inveja que encontrei em muitos – neste item não passo de um cordeiro. Quando andava imerso na escrita de A Maldição de Ondina e bradava aos cinco céus que seria a melhor novela do ano, uma noite resolvi tirar teimas e reler O Deserto do Le Clézio, só para a comparar nos itens técnicos, rítmicos, e efabulatórios, e a manhã apanhou-me acabrunhado e com umas olheiras tremendas; e perguntou-me o poeta Rogério Manjate, «e então?», e respondi-lhe, «o gajo deu-me 6 a 0». E com um score tão negativo só me restou voltar à reescrita do livro, aos treinos, e lá meti três golos— o importante é o sentimento da proporção que nos pode afastar da lisonja e da auto-satisfação, pois isso é que fermenta o bolo. Que a Maria Velho da Costa tivesse uma extensão lexical muito maior que a minha só me fascinava, indicava-me o que havia a progredir. Sempre achei detestáveis as caturrices do Vergílio Ferreira, nos seus diários, contra outros escritores em ascensão, ou as guerras por satélites de alguns poetas cimeiros. Mesmo a um nível menos doméstico há exemplos descoroçoadores: são insondáveis as reservas que o Saramago dedica nos diários ao Paz. Noutras coordenadas, privei alguns anos com passarocos de peso, em que, por preferência pelas declinações românticas que enchem de brilhos e aforismos a prosa de Agustina, o Saramago era um bombo da festa.E eu, alarve, por mimetismo, concordava. Quando fui obrigado, por questões de trabalho, a ler-lhe a obra com atenção achei-me diante de uma indeclinável qualidade e acima das opiniões que se tenham sobre ela. Tal como a obra de alguns dos seus denegridores o é; pelo que não se descortina a utilidade do dispêndio de energias. Contudo, o ponto máximo na rivalidade entre escritores talvez esteja na maldade com que Quevedo comprou a casa de Gôngora só para ter o prazer de o despejar e de lhe mandar os tarecos pela janela. Para o mundo dos escritores o mundo é uma pedra de moer que exige uma grande crença para ser locomovida e algum sangue e esquírolas de osso por baixo. E uma idiota rivalidade mimética alimenta muito da energia dessa crença que faz de cada autor um atleta em transpiração sobre a mó, investido da única pergunta irrespondível. Poucos poetas e escritores conheci capazes de uma generosidade que suplantava esta bárbara condição. Talvez o Al Berto e o Fernando Assis Pacheco. Mas a Maria Velho da Costa era de facto um ser de outra ordem. 26/05/20 Faço meu o que formulou Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.» As ideias que me são interiores como o estômago e o fígado – eis tudo quanto procuro extrair ao difuso oceano das circunstâncias. Porém, hoje, eis-me num daqueles dias em que, merda, sinto que o fígado navega à bolina e dava-me jeito umas próteses. Talvez seja de ontem ter revisto O Grito, de Michelangelo Antonioni, e de lhe ter deplorado as rugas, embora depois me tenha consolado com o seu testamento: o filme “mudo” em que o cineasta já octogenário presta reverência ao seu homónimo escultor – um hino sem retórica. Já O Grito de Munch resistiu melhor ao tempo, apesar de me dizerem que as suas cores se desvanecem. Ou será o fígado?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUm sim um não [dropcap]A[/dropcap]inda há quem disfarce mal o incómodo de não poder saudar o outro quando o vê. Diz olá com as duas mãos no ar. “Pronto. Já estamos cumprimentados”. Há uns meses havia beijos e abraços. Agora, sideramos com o olhar os que ainda não desbloquearam mecanismos antigos e só os desculpamos porque sabemos que estiveram muito tempo sem ver ninguém. Afastamo-nos uns dos outros claramente. Criamos uma bolha tensa, com vectores centrífugos, repulsivos. Sentimos o mesmo da parte dos outros, nas filas para entrar onde quer que seja, nos momentos em que nos distraímos a olhar para os preços das coisas nas prateleiras dos supermercados, a apalpar fruta ou quando vamos a algum sítio público pela primeira vez e ainda não sabemos quais são as regras específicas de entrada e ocupação desse espaço. É diferente ir a um restaurante, a um café, a uma clínica, a um supermercado, à praia, à beira rio. Há regras comuns mas também há depois regras específicas. A distância que criamos uns dos outros metro e meio, dois metros ou três metros facilmente é estabelecida e reposta, quando perdida. É estranho ver as filas que os lisboetas fazem. Sempre foram muito ordeiros, muito mais do que os alemães, por exemplo, para entrar nos transportes públicos. Não acho que haja sequer fila para se entrar num autocarro na Alemanha. Basta um português distrair-se e meter-se na fila, e é logo vilipendiado como se a voz popular fosse a voz de um Deus homicida. Agora, a distância é respeitada. Fazem-se filas nos passeios opostos àqueles em que estão situadas as entradas dos locais onde se quer ir. Na praia, sabemos como há muita gente que estende a toalha em cima dos outros e levam ao limite da paciência a noção de “gregário”. Agora, eu reajo mal já a três metros, como se criaturas antipáticas me estivesse a invadir a sala de estar. O mais estranho de tudo é o modo como encontramos as salas dos restaurantes. As mesas não estão equipadas. A toalha branca com pratos, talheres, copos e guardanapos, inexistente deu lugar à mesa despida só com a sua cor castanha, o mais das vezes. As mesas separadas umas das outras à distância milimetricamente medida dá uma sensação inóspita de mesas vazias à espera de clientes que ainda não vieram e ainda não se sabe se chegarão, porque não se habituaram ainda a vir jantar fora. Mesa sim mesa não é o que há. Retiraram as mesas não e deixaram ficar as mesas sim. Cadeira sim, cadeira não, deixam sentar as pessoas nas cadeiras sim e não deixam sentar nas não. Mesmo que não haja a marcação a interditar sentar-se, uma sala esvaziada na metade da sua lotação, as mesas não equipadas para esperar pelos clientes, os empregados de máscara, tudo muda. O que muda mesmo é a totalidade da apresentação. Não é apenas do outro que importa guardar as distâncias, como se fosse dos outros que esperássemos a agência patogénica, seres transmissores da Covid-19. Assim, guardaríamos activamente a distância por um resguardo contra um invasor. A questão inverte-se porque podemos ser nós mesmos portadores sem sintomas da doença. Quando pensamos nessa possibilidade, é óbvio que a atenção é redobrada. Guardamos a distância proactivamente, como se nós próprios fôssemos transmitir a doença, aos mais próximos e aos mais afastados. Ao ter sempre presente essa possibilidade, a atenção dada aos gestos mais simples do quotidiano ganha um sentido que estes não tinham, porque executá-los ou não os executar significa não ser agente do mal ou ser agente do mal, transmitir ou não transmitir a doença. A guarda fechada é eficaz mas é uma medida adhoc, está na expectativa, depende da realidade a que se está exposto. A compreensão da possibilidade de que se pode ser agente patogénico muda a nossa percepção da realidade a cada instante e não só a percepção, também insta à execução que põe em prática as medidas adoptadas. Um sim, um não. É o que é, para já. O insólito e o sinistro dilui-se, se percebermos que era o que teríamos feito se a sala do restaurante fosse a nossa sala de jantar e estivéssemos à espera de convidados que pudéssemos vir a contagiar. O nosso ser com os outros não é nunca só passivo, reactivo, é também activo, proactivo. No modo como os outros nos aparecem não há só percepção. Toda a percepção tem de estar associada a um cuidar do outro na relação consigo. Só assim também se percebe o descuido e a negligência. Um sim, um não.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAinda a ciência [dropcap]É[/dropcap] absolutamente inacreditável a velocidade a que o sentido ou o controlo podem resvalar. Sobretudo numa conversa. A certa altura fala-se da autonomia de Hong Kong face ao regime chinês e, não se sabe bem na arriba de que brisa, acabamos por desabar cabriolando no território fértil e caótico das teorias da conspiração. Eu adoro teorias da conspiração. Como adoro um grelhador no Verão ou uma série de pessoas: ao longe. Desde que possa usufruir descomprometidamente das últimas descobertas dos terraplanistas ou da confirmação de que na genealogia da coroa britânica há provas de existirem lagartos infiltrados, sou todo ouvidos. Para as teorias da conspiração terem piada, o assunto tem de comportar uma certa distância da vida e não ter o potencial de perturbar o já de si frágil dia-a-dia. Não pode ser sobre a conspiração dos produtores de OGMs para nos envenenar lentamente ou sobre o uso das vacinas para nos adoecer e controlar. Aí só dá vontade de esbofetear a pessoa até à lucidez. Perde metade da graça. Para um optimista antropológico do século XIX, as teorias da conspiração actuais teriam ainda menos sentido do que têm para nós. De certo modo, a arte moderna e a sua propensão para cartografar e logo estourar com os limites preparou-nos para todo o tipo de frikalhada discursiva. Mas os antigos acreditavam na progressão da lucidez, pelo que não faria qualquer sentido para eles que em pleno século XXI e com toda a sorte de progressos científicos e tecnológicos nos alforges, nos andássemos a entreter a contestar as básicas leis da física. A pandemia actual teve o condão de semi-silenciar alguns dos disparates que compõem a constelação da crendice. Por um lado, concentrou o foco geral da atenção, normalmente incerto e titubeante como um bêbedo a tentar regressar a casa, num assunto específico de inegável importância; por outra parte, ficou inegavelmente demonstrada (mais uma vez) a indiscutível incapacidade de todos quanto gravitam em redor da ciência à cata das migalhas gordas do desespero em oferecer um contributo que fosse – nem que paliativo – para a solução deste estado-de-coisas. Se isto fosse um jogo de futebol, seria 12-0 para a ciência a cinco minutos do intervalo. Claro que subsistem – subsistirão sempre – aqueles para quem nada do que possa ser conseguido pela ciência prova o que quer que seja. Porque a ciência acaba por ficar sempre “aquém” ou “além” do que realmente interessa e é arrogante a despedir o improvável. Porque a ciência abarca unicamente um pequeno enclave de um território muito mais vasto de possibilidades do humano. No fundo, porque a ciência ao exigir provas sólidas para qualquer teoria que vise explicar ao como e o porquê do mundo, acaba por estabelecer barreiras claras ao que pode ser considerado conhecimento e, deste modo, reduz o âmbito global do ser. O humano consegue pensar em mais coisas do que aquelas que há. E para muito humanos, o poder da ciência de delimitar e circunscrever o perímetro do discurso válido sobre o mundo, é de uma arrogância gnosiológica imperdoável. Porquê ficar pelo que se pode provar quando há tanto mais em que se pode pensar. A inegável vantagem da ciência consiste na sua inesgotável capacidade para a revisão contínua. As explicações científicas são válidas e aceites até surgir explicações melhores. A gravidade de Newton não era fundamentalmente errada: apenas explicava menos do que explica Einstein ao debruçar-se sobre o mesmo fenómeno. A ciência seria injusta se tivesse regras diferentes para a química e para a alquimia, para a acupunctura e para a anestesiologia, para a mezinhas das ervas e para a farmacologia. Não tem. Mas continua a haver quem não goste de jogar pelas regras.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasDa elegância [dropcap]E[/dropcap]m obra escrita um ano antes do aparecimento do cinematógrafo, ‘Introdução ao método de Leonard de Vinci’ (1894), Paul Valéry mostrava-se verdadeiramente fascinado com os fragmentos, notas soltas, esboços e escorços do autor da Mona Lisa. O fundamental neste encanto era o lado inorgânico dos estilhaços criativos, entendidos como breves recados sem qualquer meta específica e em que “a consciência” – cito – “procuraria a elegância ideal da acção criadora”. A palavra chave neste trecho é a “elegância”. Ao activar a criação, ela surge aqui como um movimento perfeito, aliás na linha da “destreza” que Pessoa tão bem vaticinou neste passo do ‘Livro do Desassossego’: “O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a acção sobre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.”. Por outras palavras: a elegância potencia a criatividade e também a acção do pensamento, impedindo-os de serem apenas uma massa amorfa que se afirma. Em discursos como o da crítica literária ou o filosófico não é raro que a elegância surja como uma espécie de montagem que alimenta a vivacidade e a precisão. Vejam-se os casos de – “Barahona consegue misturar de forma bela e elegante elementos que parecem a uma primeira vista profanos com elementos sagrados” (Patrícia Calvário); ou – Thomas Nagel (em Que Quer Dizer Tudo Isto?) “apresenta a força dos problemas filosóficos e o labirinto do pensamento filosófico com uma precisão, vivacidade e elegância difíceis de superar” (Desidério Murcho). Na famosa ‘Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences…’, editada por Diderot e d’Alembert, Voltaire assinou, no ano de 1754, um longo artigo sobre a elegância. O texto começa por evocar Cícero para quem o exemplo de elegância era um “homem educado e dotado de um discurso polido”. Deixando essa silhueta apenas como cenário de fundo, o autor explica depois que a elegância resulta sobretudo da adequação e da atractividade. A argumentação de Voltaire desenvolve-se através de contrastes, sendo a elegância, por exemplo, contraposta à graça e à eloquência. No primeiro caso, enquanto a graça evoca e é gerada por uma animação (o rosto que sorri), a elegância é mais subtil, pois faz-se sentir sem necessitar de animação, de estímulos e sem ter que ostentar-se. No segundo caso, enquanto a eloquência é retórica e enumeração desabrida de um saber, a elegância é mais condensada, pois faz-se sentir sobretudo através da clareza gerada pela escolha precisa das palavras (ou de outras formas expressivas). Em suma: a elegância vive da subtileza e é dificilmente definível, mas é isso que a faz tão fascinante. No entanto, ela torna-se concreta e compreensível, quando nos cruzamos com a maior parte do que se escreve, hoje em dia, nas redes sociais. Bastará recorrer ao método simples de Voltaire que é o do contraste para constatar que a maioria dos ‘posts’ que se podem ler, complementada pela lógica dos debates e dos comentários, remete claramente para: a) uma grande necessidade de verdades acabadas e definitivas com pouca abertura para a dúvida; b) a procura de receitas já definidas, de modo a fazer delas argumento que corporize formas de massificação e não de individualidade; c) um ímpeto de ‘des-democratização’ que passa pela falta de respeito pelo outro (veja-se a enorme atracção pelo facilitismo de ‘bloquear alguém’ e disso, depois, fazer festa e ostentação); d) o polvilhar de um reino palavroso e avesso ao que, para Voltaire, seria o cerne da elegância: um misto de adequação, discrição e proporção. A elegância é uma tipologia clássica, não pertence ao nosso tempo. Opõe-se à rigidez e ao dogmatismo, ainda que estes, aparentemente, sejam atributos alheios a uma era marcada pela rede. Como se vê, o paradoxo é, mais uma vez, um elemento central para entender complexidades. E para que não se confunda a elegância com uma espécie de divindade, recordemos que é o próprio Voltaire que, no final do artigo da ‘Encyclopédie’, separa as águas concedendo que o sublime – e a recepção do belo – nada tem que ver com a elegância, mas sim com a poesia, enquanto “componente fundamental da harmonia” tão “necessária no verso”. Não faço a mínima ideia do tipo de fascínio que Paul Valéry alimentaria hoje pelos engenhos do facebook. Pelo menos, tal como referira na sua obra de 1894, neles também habitam “estilhaços” entendidos como “breves recados sem qualquer meta específica”. A forma é o que temos para nos darmos a ver. Mas o que somos, somo-lo sempre de outra maneira. Já o havia dito Luiza Neto Jorge ao abrir ‘A Casa do Mundo’: “Aquilo que às vezes parece/ um sinal no rosto/ é a casa do mundo/ é um armário poderoso/ com tecidos sanguíneos guardados/ e a sua tribo de portas sensíveis.”. (Consultei Patrícia Calvário e Desidério Murcho, no dia 24/05/2020, respectivamente em ‘Poesia em temo de indigência’ – https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/14160.pdf – e em – ‘As questões mortais de Thomas Nagel’ – https://expresso.pt/blogues/bloguet_ciencia/Filosofia/as-questoes-mortais-de-thomas-nagel=f431593)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs mundos intermédios [dropcap]N[/dropcap]estes dias estranhos mas belos, olhamos os jardins como se fosse a primeira vez. As árvores rebentam de frondosas pelas raízes que levantam passeios onde ninguém se move a não ser os animais do lago que caminham com bandos de filhotes atrás das mães numa longa marcha para a vida. Ficamos então a olhar a separação necessária para que ela se dê nestes termos tão bonitos, e, vamos até aos textos alquímicos que nos mostram vários estratos da matéria que vão até ao núcleo ebulitivo passando às altas esferas para lá da superfície terrena. De facto, esta vida que conhecemos tem uma intermediação não demasiado grande na sua componente: para baixo, voltamos a outros reinos e nele se inserem os segredos que fazem despontar a flora, e mais para baixo, crosta dura, e muito ao fundo o magma ardente por onde Dante passeou vendo as almas em contorção. Nós estamos assim condicionados a um estrato fino de vida a que nem sempre damos atenção de tão integrada ela se encontra nas células que somos; é uma conquista extraordinária a marcha da matéria que se organizou depois das poeiras, do sopro dos céus vermelhos e do tempo das águas. A Terra contorceu-se de dores de parto, cuspiu fogo, transbordou, fez-se manto macio, útero sonhador…! Incrível força a possui. Estes dias, aliás, estão pejados de súbitas descobertas e uma mais delicada atenção pois nos fazia falta que as arestas do mundo humano fossem limadas pela dor que provocou, provocando… « Humano, demasiado Humano» o Homem, sim, precisa ser vencido! Todas as frases que fizeram sentido na terra da nossa construção se desatam sem propriamente terem uma função relacional umas com as outras, e, comemoramos os dias de uma metalinguística repartindo nela o livro todo. Soltamos os sonos, regressamos de véspera, os dias deslizam como um emblemático “Hoje” sem ontem nem amanhã, e nisso está o segredo do entendimento. Ontem era, foi, um tempo irreconhecível, o amanhã um tempo talvez lendário, tão diferente… tão urgente, e já daqueles cujas janelas anunciadoras foram vivendo outrora a solidão dos vindouros…! Nos mundos intermédios o limbo é o maior, ele retém os viajantes, impede passagens, cria artifícios para manter o controle de todas as partes gerando um estranho adormecimento nas consciências e esvaziando assim a capacidade de escoamento automático para os níveis a que todas as coisas pertencem e que foram conquistando para delas se aproximarem. São os guardiões da paralisação! Nele insiste em selar o mundo um deus petrificador. Creio, nesta janela de vento, que ninguém sobe, mas que desce até à parte intermédia do solo, podem ser Ícaros, mas, outros também serão que o céu é uma oblata. Coisas imensas, subliminares, andavam em nossa volta como partículas, centelhas, sopros, fontes vivas. Isto, depois de terem ardido Continentes inteiros, dos Trópicos se passarem para a Gronelândia, e do problema existencial das casas de banho para o terceiro sexo em pleno epicentro do cisma da derrocada – esses seres diáfano – vindos desses mundos intermédios sussurravam coisas nos nossos ouvidos como carícias súbitas, e o zelo de não termos outras ligações, outros mestres, outras vitórias, pode levar um humano a sentir coragem para se separar ainda mais de um mundo breve, caído, e em ruínas.- Para que lado fogem dois seres fugindo um do outro? Não são definitivamente duas rectas paralelas que se encontrarão no infinito, mas, uma outra coisa para lá do infinito passando uma pela outra sem ser verem. Apraz dizer da paz conquistada, da corrente – elétrica arrancada aos calcanhares do mundo que rebentou em seu curto-circuito – muito curto – para fazer de todos próximos isolados. O paradoxo rege o agente biológico que foi incapaz de fazer das pernas que modelou, membros sadios, e mais lhe valera ter apostado nas asas. Mas não seria possível! Ainda assistimos às estranhas dores de costas que comprovam a dificuldade que é andar de pé. A Páscoa visita-nos ao instante com a sua liturgia toda renovada, passando, ressuscitando, mas o ciclo dos mundos intermédios rasgou-se para sempre. A espiral não é uma programação eterna, agora vai-se alongando… de cabeça para cima… com os pés suspensos… eleva-se e constrói em outras regiões um reino, uma visão, um renascer, que não é, e não pode ser por muito mais tempo apenas deste mundo. Na Terra, ficará por quaternários, quarentenas, o « Filho do Homem», semelhante a nós e que de maneira inaugural representará o nosso gradual desaparecimento até ao silêncio total. Para ele, também éramos Deus, mais tarde, e já calado, de lembrança tão remota dirá que nunca existimos.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO antepassado de Fernando Pessoa [dropcap]S[/dropcap]ancho Pessoa, que viveu no século XVI em Lisboa, foi antepassado de Fernando Pessoa e era judeu. Devido à actuação feroz da Inquisição, acabou por converter-se ao cristianismo, sem deixar as práticas judaicas e a ligação ao seu povo. Era cristão para fora e judeu para dentro. Deixou um texto em prosa, «A Grande Mortandade», que data de 1698, que sempre foi mais um segredo do que um livro. Consta-se que há uma publicação, cuja data também não se sabe, talvez em inícios do século XIX ou finais do século XVIII, mas não é certo e de qualquer modo, a ter existido, terá sido numa pequena edição, que acabou rapidamente por desaparecer. O texto, que é uma espécie de crónica e ensaio, e foi agora editado numa edição crítica de Marco Dante, começa assim: «A primeira grande mortandade de judeus ocorreu com as cruzadas. Independentemente de a origem da chacina ter sido incitada pelo Papa Urbano II, contra os sarracenos [o modo como eram chamados então os muçulmanos], os seguidores de Paulo e de Jesus chacinaram todos os que não eram por eles. Na cidade viviam judeus e sarracenos, em paz. Em paz também viviam pela Europa fora judeus, que foram sendo dizimados pelos cruzados, ao longo dos cinco mil quilómetros até Jerusalém. Mataram crianças, mulheres, velhos. Comeram-lhes a carne. As crianças eram colocadas em espetos e assadas no fogo, como se de animais de caça se tratasse; fatiados e comidos. Os mais velhos eram cozinhados em grandes panelas, durante horas, até que a carne amaciasse e pudesse ser comida. O medo pelos bárbaros do Norte espalhou-se como se espalhava a cólera. A crueldade era uma arma poderosa e eficaz. Os seguidores de Paulo e de Jesus eram terrivelmente cruéis e foi com essa crueldade que tomaram a cidade de Jerusalém, chacinando todas as almas que aí viviam, quer fossem sarracenos, quer fossem judeus, quer estivessem vivos e habitassem Jerusalém. Nunca tamanha violência tinha sido registada no mundo dos homens. Ainda hoje, a palavra cruzadas faz estremecer os povos desses lugares.» Como se pode ver, pelo começo, tratava-se de um texto que pretendia preservar a memória das cruzadas de um ponto de vista oposto ao da divulgação católica e, por isso mesmo, não tinha pretensões de ser publicado. Circulava em meios muito restritos e em segredo. Foi passando de gerações em gerações, como os próprios textos judaicos, longe da luz do dia. Fernando Pessoa refere este seu antepassado, mas nunca refere o texto. Não o conhecia? É muito improvável que não o conhecesse, tendo Fernando Pessoa tanto interesse nos assuntos religiosos em geral e nos judaicos em particular. Podemos pensar em duas possibilidades, para essa não menção do texto do seu antepassado: 1) pensar que prejudicaria a sua obra, pois Portugal era ainda profundamente católico; 2) pensar que o texto deveria manter-se em segredo, passando apenas entre amigos e familiares. Não é difícil aceitar esta segunda hipótese, até porque o segredo era algo que fascinava Pessoa. Há ainda uma terceira hipótese, que é adiantada por Marco Dante, na introdução à edição do livro, que diz: «Fernando Pessoa nunca mencionou “A Grande Mortandade” [embora tenha mencionado o antepassado que o escreveu] porque nunca chegou a ler o texto, embora soubesse da sua existência e do seu conteúdo.» Esta posição de Marco Dante é alicerçada numa carta encontrada recentemente, em casa de um familiar de Pessoa, em que este escrevia a um primo o seguinte: «Não sabes como possa ler “A Grande Mortandade”?» E continua Dante: «Ora, a carta tem a data de 22 de Maio de 1931, o que mostra claramente que a 4 anos da sua morte, o poeta ainda não tinha lido o texto do seu antepassado. A partir daí não se sabe. Não se sabe sequer qual foi a resposta desse primo a Fernando Pessoa.» Mas tendo em conta que o poeta encenou toda a sua obra, não nos custa a crer que essa carta tenha sido mais uma encenação. Não custa pensar que, na realidade, Pessoa tenha tido acesso ao texto e essa pergunta ao primo apareça propositadamente como uma pista errada para o futuro. Seja como for, e embora talvez não seja irrelevante, a verdade é que o texto de Sancho Pessoa existe e era conhecido em segredo por amigos e familiares e dava testemunho de uma atrocidade monumental, que tinha sido completamente «branqueada» ao longo dos séculos. Numa passagem do texto, Sancho escreve: «Talvez um dia se possa ver a verdade. Mas não está ao nosso alcance poder saber quando é que a Europa será libertada.» Ou ainda: «A tirania do catolicismo não deixa ver.» Havia uma clara noção de que a Europa tinha sido sequestrada por uma ideologia, por uma tirania: «César foi substituído pelo Papa.» É, no fundo, um texto de liberdade. Um texto que em certo sentido é fruto do iluminismo europeu. E não deixa de ser um mistério a não referência ao mesmo por parte do seu descendente mais ilustre, Fernando Pessoa. Cabe a nós, leitores, trazer à luz do dia o texto desse antepassado do mais ilustre poeta português. Marco Dante, ainda ano seu prefácio, escreve: «A prosa de Sancho Pessoa é tão vigorosa, contundente e clara, que mesmo hoje as suas palavras não deixam de fazer estremecer o leitor.» E hoje é o tempo em que devemos lê-lo novamente. Ler contra a mortandade, seja ela qual for. Ler contra a ideologia, as ideologias.
Michel Reis h | Artes, Letras e Ideias“Música que fedia ao ouvido” [dropcap]O[/dropcap] Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Pyotr Ilyich Tchaikovsky é um dos concertos para violino mais populares, e também considerado um dos mais difíceis para o instrumento. A obra foi escrita em Março de 1878 em Clarens, um local de férias na margem do Lago Genebra, na Suíça, onde Tchaikovsky foi recuperar-se de uma depressão causada pelo seu desastroso matrimónio de seis semanas com a sua ex-aluna Antonina Miliukova, que inclusive o levou a uma tentativa de suicídio. Aí concluiu a sua Sinfonia nº 4 e a sua ópera Eugene Oneguin. Em Clarens, Tchaikovsky recebeu a visita do seu antigo aluno de composição, violinista e possivelmente amante Iósif Kotek. Os dois tocavam obras para violino e piano juntos, o que pôde ser o catalisador para a composição do concerto. Consta que uma das obras que Kotek lhe levou foi a Sinfonia española de Édouard Lalo, que o inspirou a criá-lo. Tchaikovsky não era violinista e foi assessorado por Kotek na composição da parte solista. Fez rápidos progressos, esboçando a obra em 11 dias e terminando-a ao fim de um mês, embora o andamento central tenha sido completamente revisto, pois Kotek e o irmão mais novo de Tchaikovsky, Modest, consideraram-no fraco. Kotek não tinha ainda prestígio suficiente para estrear a obra, pelo que Tchaikovsky inicialmente ofereceu a estreia ao seu amigo Leopold Auer e concordou dedicá-la ao violinista. No entanto, Auer recusou, argumentando que a obra era intocável, por ser demasiado difícil, o que feriu profundamente o compositor, e a estreia planeada para Março de 1879 foi adiada sine dia. Alguns anos antes, o seu amigo e colega Nikolái Rubinstein tinha também recusado estrear o seu Concerto para Piano n.º 1. Passaram-se dois anos e, um dia, o editor de Tchaikovsky informou-o que um jovem violinista, Adolf Brodsky, tinha aprendido o concerto e persuadido o maestro Hans Richter e a Filarmónica de Viena a tocá-lo em concerto. Tchaikovsky alterou a dedicatória para Auer e o concerto foi estreado no dia 4 de Dezembro de 1881, em Viena, na Áustria, mas pouco ensaiado e pobremente acompanhado. A reacção da crítica foi mista, e a obra certamente não foi recebida como a obra-prima que é considerada hoje. O influente crítico alemão Eduard Hanslick, presente na estreia, considerou-o “longo e pretensioso” e escreveu que não supunha que pudesse haver música que “fedia ao ouvido.” Tchaikovsky nunca ultrapassou esta crítica. O Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Tchaikovsky possui três andamentos. O primeiro (Allegro moderato) inicia-se com uma breve introdução da orquestra, seguida por um pequeno trecho em que o violino toca a solo, preparando a entrada do tema principal (Moderato assai). O violino apresenta os temas em passagens extremamente virtuosísticas, ficando a orquestra encarregada de reapresentá-los logo a seguir. Já para o fim do andamento, o violino inicia uma longa e virtuosa cadência, escrita pelo compositor. Logo a seguir, numa passagem extremamente suave nas cordas, a flauta anuncia o tema principal. Tem início a reexposição temática, que conduz à explosão do tutti final. O segundo andamento, uma Canzonetta (Andante), inicia-se com um belo coral apresentado pelas madeiras. Este coral não apenas prepara a entrada do solista como conclui o andamento criando, assim, uma moldura onde solista e orquestra travam um belíssimo diálogo musical. O finale (Allegro vivacissimo) deve ser atacado logo após o segundo andamento, sem intervalo. Com temas eslavos e um jogo constante de acelerar e desacelerar, o terceiro andamento parece uma festa cigana onde o violino toca como se estivesse a improvisar o tempo todo. Este andamento incomodou profundamente Hanslick. Para ele, a maneira directa com que Tchaikovsky cria a atmosfera festiva cigana era obscena e incivilizada: “quando se escuta esta música é possível ver uma série de rostos selvagens, ouvir o seu linguajar bárbaro e sentir o cheiro de álcool”. Talvez para ele, e para os vienenses da época, isto fizesse sentido. Mas não é mais que uma música divina e encantadora, com um sabor exótico de um mundo distante. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Violin Concerto in D Major, Op. 35 Vadim Repin (violin), Kirov Orchestra, Valery Gergiev – Virgin Classics, 2003
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasHãos de Macau em 1867 [dropcap]A[/dropcap]s Associações comerciais, denominadas hãos comerciais, em 1867 são 40 e para além destas há 28 casas de penhores, denominadas também hãos de penhores. No Boletim Oficial de 23 de Setembro de 1867 refere-se: “A chave do comércio de Macau está, por assim dizer, nas mãos dos chineses. Activos e inteligentes terão sabido conservar a posse desta fonte de riqueza. Quando Macau era o único ponto intermédio do comércio da China com os outros povos, florescia por isso nesta cidade o comércio dos chineses e o comércio português. Este último, porém, depois do estabelecimento da colónia inglesa do Hongkong e da abertura dos portos do vizinho império, começou a desfalecer, caminhando para a decadência em que hoje se acha. Mas não teve semelhante sorte o comércio dos chineses, porque, com quanto por vários motivos o retirassem temporariamente de Macau para Cantão, eles o restabeleceram depois nesta cidade, e desde então o têm mantido sempre florescente e próspero. Exploradores modestos desta mina, hão com habilidade e subtileza tirado dela valiosos resultados; e o mais é que, longe de enfraquecerem, têm multiplicado as suas casas comerciais, que aqui sustentam com crédito e riqueza. Os chineses, no que toca ao comércio, conduzem-se em geral com honra e probidade, porque, conhecendo o grande alcance destas qualidades quando se trata de tão rico manancial, são admiravelmente circunspectos em todas as suas contas. O espírito de associação existe entre eles em supremo grau; e por isso, salvas raríssimas excepções, não comerceiam senão por meio de associação. Mesmo para empreender qualquer insignificante negócio, não dispensam este meio, porque bem justamente compreendem que é no concurso de inteligências e capitais que se estriba a verdadeira segurança de todos os negócios.” Casas comerciais Os 40 hãos comerciais são outras tantas casas de consignação ou de agência, e as mais importantes do comércio chinês de Macau. Dessas, 34 têm a sede nesta cidade, com ramos em vários pontos da China, na Cochinchina, em Siam, Singapura, Pinang, etc. As outras 6 são casas filiais de hãos estabelecidos em alguns dos pré-citados pontos. Os seus escritórios e armazéns em Macau acham-se no litoral do porto interior, onde há sempre um grande número de empregados e um nunca interrompido movimento. Contabilizam-se 2823 membros das associações e lojistas, havendo 184 correctores de comércio, 893 caixeiros e 567 empregados em diferentes misteres nas casas comerciais. Há ainda casas comerciais que recebem géneros por consignação, mas de um modo diferente dos hãos, porque estes de ordinário satisfazem a pronto pagamento a importância dos géneros que lhes vêm consignados, vendendo-os depois por sua conta. Nessas casas, os géneros são geralmente vendidos por conta dos consignantes, sendo descontada uma percentagem de 8 a 9% e por isso, conhecidas por casas ou Hãos comerciais de oito a nove por cento. Se todos os lojistas são geralmente membros de associações comerciais, nem todos estes últimos são lojistas. Os membros de parte das associações são também membros de outras ao mesmo tempo, e é decerto esta circunstância a que principalmente explica o não se dar senão mui raramente uma falência em qualquer associação, porque, sendo os membros dela, também os de outras associações, estes a salvam logo de qualquer adversidade, que por ventura lhe possa suceder. Tais são as sólidas bases sobre que assentam as associações chinesas, que, estando de semelhante modo ligadas, hão-de necessariamente socorrer umas às outras. Contudo os membros de cada uma delas não são solidários; quem toma a responsabilidade dos negócios é o sócio manejante, que é quem representa a associação, não debaixo de firma alguma, mas sob um título convencionado, como entre nós se costuma dar a qualquer companhia. As associações têm ordinariamente as suas lojas, onde os sócios representantes vendem a retalho, e é por este motivo que aí se encontram a cada passo lojas chinesas, principalmente no Bazar, que é o centro da vida comercial e industriosa dos chineses de Macau. Hãos de penhor Para além dos quarenta hãos, que são os que fazem o comércio mais importante, existem ainda em Macau 28 hãos de penhores. Estas casas de penhores, onde se empresta dinheiro a juro sobre penhores, segundo Leonel Barros supõe-se terem sido durante a dinastia Tang (618-907) as primeiras estabelecidas na China. “Muito procuradas por pessoas que necessitavam repentinamente de dinheiro, bastando, levar para uma dessas casas, qualquer artigo de valor, recebendo na ocasião, em troca, certa quantia que deveria ser paga num determinado prazo, mediante o pagamento de juros de mora. Além dos artigos de valor como, por exemplo, anéis, pulseiras, relógios, ornamentos de jade etc. a ‘casa de penhor’ recebia também artigos de vestuário (casacos de couro seda chinesa e peles), dai que os homens que lá trabalhassem tivessem que estar treinados para o tratamento e conservação de todo esse material, evitando que os mesmos ficassem deteriorados pela humidade, ou pelos insectos que vivem de material orgânico.” E continuando com Leonel Barros, “geralmente no mês de Abril as esposas dos ricaços, conhecidas por tai-tais, lá iam depositar os seus casacos de pele, não porque necessitassem de dinheiro, mas por saberem que os homens que lá estão manteriam o bom estado das coisas ali depositadas. Portanto estas ‘casas de penhor’, eram também armazém de luxuosa indumentária da população mais abastada sendo, por isso, um objectivo principal dos constantes assaltos de piratas. Na sua maioria, a casa de penhor contava com uma Torre Prestamista, cujo formato é de um paralelepípedo quadrangular, possuindo seis ou sete pisos, vendo-se ao longo das três paredes (fachada principal e laterais) a partir do 2.º piso até ao terraço, umas estreitas aberturas que nos fazem lembrar as seteiras dos antigos castelos, que serviam para vigia e para o disparo das armas de guerra contra o inimigo. As portas são do tipo espaldar.” Luís Gonzaga Gomes refere, “Constituem, portanto, as casas de penhores, armazéns de luxuosa indumentária e de custosas alfaias das populações citadinas, sendo por este motivo o objectivo principal dos assaltos das quadrilhas de ladrões. À sua construção não puderam deixar de presidir todas as regras de uma boa defesa, porquanto, em caso de roubos, essas casas são obrigadas a compensar os donos dos objectos extraviados com outros idênticos, ou a indemnizá-los com quantias correspondentes ao seu justo valor.” Estes hãos de penhora dividem-se em duas classes. As de primeira categoria, conhecidas pelo nome de hãos grandes, ‘tóng-p’ou’ em cantonense, só admitem penhores bons, como ouro, prata e outros objectos de valor, podendo o prazo de seus contratos ser até três anos. Destes existem sete em Macau e 21 de segunda categoria, os hãos pequenos chamados ‘siu-át’, que admitem toda a espécie de penhores, mas os seus contratos não excedem um ano.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasRasto de canela [dropcap]S[/dropcap]ó me lembro daquele dia. Chegar a casa e não chegar à fechadura da porta. Com dificuldade conseguir passar por debaixo desta e entrar afogueada a pensar como de repente se pode ser pequena demais para uma coisa e quase grande demais para outra. A casa estranha, então, na desproporção desmesurada e nova, entre tudo o que era confortável e a minha diminuta estatura secreta. A pouca espessura recente. Se os objectos me viam deste tamanho, era a pergunta silenciosa que se insinuava no fundo do meu olhar desconfiado. Pareciam indiferentes, mas é difícil guardar este segredo. Ao fundo, do corredor e depois do cotovelo, a cama exorbitada pareceu-me de repente um lugar de afogamento possível. E do outro ado da casa, a mesa, com tempo, daria se tudo se mantivesse, uma boa cabana de refúgio com amplo jardim, nesta floresta de coisas inúteis subitamente agigantadas. De coisas que já não serviam. Ou então, penso depois, estou-lhes eu curta demais. Olho para o sofá grande e penso para que o quereria eu tão grande. E naquele momento parece-me tão desadequado na casa como um daqueles navios de cruzeiro ridiculamente grandes num porto da cidade. Livros fora das estantes, pesadíssimos e subitamente monumentais. A arrastar pelo chão, a içar uns para cima dos outros e a pensar que se se construíram pirâmides sem guindastes, também alcançaria a poltrona preferida do gato. Uma fibra gigante branca e fina esquecida do tempo em que ali se enroscava a dormir. Uma autêntica obra de engenharia esta escadaria de mansão, feita de livros empilhados. Entendi que tempo era coisa que não me faltava. Só mais um, arrastado a custo na subida, um fininho de poesia – sem força para mais – para o topo das escadas em construção. Até alcançar a almofada de veludo com o enorme pêlo do gato. Era suficiente, mas havia que resolver o jantar antes de desmoronar de cansaço. Percorri o longo caminho para a cozinha e cheguei já passava bem da hora de comer. Na desarrumação providencial e desusada, uma bolacha em cima da mesa, a última de um pacote antigo, esquecido. Lembro-me, porque ficou ali na pressa em que saí, sem assim a deitar fora. Mole e com um ligeiro cheiro envelhecido. Ia dar para cinco dias. A fome a perturbar o sono que rondava. Mas como subir? Quanto tempo levaria a fazer uma outra escadaria de livros e bem maior? Avalio em desespero a distância do chão ao pano da loiça. Do chão ao puxador do armário e deste à ponta do pano. Foi o cesto das cebolas que me salvou. Virado a custo ao contrário, escalado pelas reentrâncias do vime e a partir dali o pano A custo. Não tenho prática. Sento-me finalmente na bancada de pedra e preciso retomar o fôlego. Dali para a mesa um largo abismo a resolver talvez a salto e com risco de uma queda feia e dolorosa. Mas ali mesmo a tábua do pão, repleta de enormes migalhas. Quase chorei. Cortei várias delas ao meio e molhei na colher suja de azeite, retirada com estrondo, como uma alavanca, da saladeira do jantar da véspera. E, já com o alívio na alma, um capricho luxuoso fez-me abrir o contentor pesado do açúcar amarelo e acrescentar uns grãozinhos a cada pedaço de pão. Memória da infância naquela casinha da escola da primeira classe. Coisas do recreio no jardim das traseiras e de meninos mais crescidos a brincar com meninos mais pequenos e todos com um pão para o lanche. O daquele, sempre com açúcar e azeite. Lembro-me tão bem do cheiro, mas eu nunca tinha experimentado e até este momento. Depois, ainda havia que descer, dali. Mas por agora, jantar. Ainda dou umas dentadas numa sultana que achei debaixo do micro-ondas, mas estou cheia e deixo o resto para amanhã. A pensar em Gulliver. Um dia, acontece a todos, talvez. Pano da loiça abaixo, volto a percorrer o caminho da sala. Está frio para dormir destapada. Talvez alguma meia caída no chão lá ao fundo, mas isso nunca acontece. E por milagre ali estava ela, lavada e fresca, caída antes de chegar à gaveta. Enrolei-me nela numa onda de calor e conforto e voltei a percorrer o caminho de volta até à sala. Vencida de cansaço e a pensar como as coisas e a sua pertinência mudam em função de novas circunstâncias. Ainda hesitei entre o esforço de subir a escadaria de livros ou dormir no tapete. Mas depois pensei que mesmo infinitésima merecia uma almofada macia. Por fim cheguei lá acima e enrolei-me sobre mim própria e na meia, quase aniquilada de sono. E então, como tantas vezes, este diluiu-se por artes mágicas, perante o pensamento de que aquela bota enorme poderia voltar. Sonora e cega. Tento encontrar posição, revolvo-me, ajeito a meia em torno do pescoço, mas num gesto mais brusco caiu-me um pedaço de uma perna. Deixando um rasto de migalhas na almofada e esfarelando-se, ante os meus olhos aterrorizados, no chão. A chamar formigas. Nada a fazer. Ficou um cheiro nítido a canela e um toque de gengibre. Levo uma mão assustada à perna, outra ao peito. E percebo que tal como a que está esquecida na mesa da cozinha, também começo a amolecer.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasVisitas ao Samorim [dropcap]O[/dropcap] Samorim, figura histórica que em 1498 recebeu Vasco da Gama em Calicut, é personagem d’Os Lusíadas, e vamos encontrá-lo “modernizado” (como o poeta diz) em Lendas da Índia (Dom Quixote, 2011), de Luís Filipe Castro Mendes. Fruto de uma estada em New Delhi onde o diplomata viveu, o livro recolhe uma experiência da Ásia já atravessada pelo ar pós-colonial e multicultural do nosso tempo, que o obriga a nascer com várias precauções ideológicas. Começando por desmascarar estereótipos – “alguns pensam que a Índia é um país/ de milionários e de faquires…” (p. 53) –, o livro desde logo ultrapassa o modo exótico, que não sobrevive para o europeu mais do que o tempo de duas monções. Se é certo que o autor recusa tal registo, vai porém glosando velhos tópicos que dominaram a visão europeia da Ásia ao longo dos séculos XIX e XX. Voltando ao Samorim, é curioso verificar que a questão que ele traz à tona é exatamente a mesma das recentes polémicas em torno dos Descobrimentos, da escravatura e do racismo, que tem agitado as àguas da intelectualidade portuguesa, em televisões e jornais: “Não causou estranheza ao Samorim que o Gama usasse com ele o verbo «descobrir»:/ tinham menos sensibilidade colonial aqueles reis/ e o «olhar antropológico» era para eles uma questão de mercado.// É verdade que o verdadeiro mundo colonial só veio depois./ Subramanyam estranha que o Samorim tenha deixado o Gama dizer/ que viera «descobrir» aquelas terras, de todos conhecidas,/ e insinua confusão dos tradutores árabes.// Mas o Samorim pensava/ que estava tanto a descobrir aquela gente como a nossa gente/ o estava a descobrir a ele./ O comércio tinha que crescer/ E a concorrência era proveitosa./ Não era nem um combatente da liberdade nem um leal colonizado:/ era o Samorim!” (“1498: Modernidade do Samorim”, p. 127) Para Castro Mendes, o Samorim não é nem o anacrónico freedom fighter pós-colonial (no sentido anti-colonial deste último termo), mas também não é uma figura sem existência real fora d’Os Lusíadas. Assim, o Samorim “moderno” do autor representa um pragmatismo diplomático e económico que visa desconstruir o complexo pós-colonial português: o Samorim tratou com Gama com pragamatismo e não se importou em ser “descoberto”. A introdução de uma dimensão crítica e de debate no poema, para a qual não se coíbe de apresentar nomes (como o do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam) e de emprestar voz às posturas em confronto, é uma das dimensões mais interessantes deste livro. Nesta visão que se pretende descomplexada, quer em relação à Ásia, quer em relação a Portugal, torna-se absurdo pedir desculpas pela História – “A História (…)/ serve agora para pedirmos desculpa do passado,/ dispensando-nos de olhar para o presente”, (p. 43). A questão não é porém assim tão simples, na medida em que todas as posições são ideologicamente comprometidas e feitas a partir do ponto presente, mesmo as que buscam repor a tal verdade histórica ou encerrar estas questões na esfera da culpa, do remorso e do complexo, no sentido psicanalítico do termo. Esta discussão bastante viciada esconde talvez a dimensão mais interessante do livro. É por entre esta questão, com muitas armadilhas e alçapões, que se assume que Lendas da Índia trata, não apenas da Ásia, mas também de uma Ásia que é Portugal, embora não já num sentido imperial. As tais marcas que a cultura portuguesa deixou na Ásia são também Ásia, e são hoje (talvez sempre o tenham sido) mais Ásia do que Portugal.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA normalidade [dropcap]L[/dropcap]entamente, a coisa vai-se compondo. As pessoas saem de casa, primeiro muito a medo, de máscaras e luvas e com álcool suficiente nas malas tacarem fogo a um prédio. Passado algum tempo e porque somos criaturas de hábito fácil, vão deixando cair os acessórios de protecção, um a um, e porque o Verão já pisca o olho e a reclusão caseira já esfrangalhou a réstia de sanidade que vinha de origem, os abraços regressam e o viço vai regressando à plantinha desacostumada da luz e do calor. Lentamente, a normalidade. Os nossos políticos, descalços do turismo que lhes permitiu sonhar com um aeroporto na margem sul onde aterrassem todos os dias estrangeiros de toda a sorte com os alforjes a bolçar guita, voltam a ter uma corzinha no rosto. Saem à rua e sorriem o sorriso dos visionários: o sonho comanda a vida e em cada esquina um turista abastado, em cada rosto os cifrões reflectidos nos olhos como nos desenhados animados da Disney onde entrasse o Tio Patinhas. Lentamente, a normalidade. A normalidade acaba por estar para a crise como um buraco insalubre onde dormir está para viver na rua. É a merda a que nos habituámos. A cama de pregos a que chamamos conforto. Pelo que o regresso à normalidade no país da europa onde a taxa de esforço para conseguir meramente viver nos grandes centros urbanos é a maior da Europa devia ser tão saudada como o regresso da peste bubónica. A nossa normalidade antepandémica é acordar todos os dias no sufoco de sermos desapossados do modestíssimo objectivo de podermos habitar um cubículo na cidade onde escolhemos fazer vida e à qual os nossos pais chegaram vindos do êxodo físico e mental de uma ruralidade imposta por decreto. A nossa normalidade é vermos fugir por entre os dedos das mãos o pouquíssimo que conseguimos conquistar desde que o povo saiu à rua de cravo à lapela. A nossa normalidade é uma merda, tem sido uma merda, e deveríamos trocar o contentamento liliputiano de a ela regressar de braços esticados pela inflexibilidade de um “não” incondicional. Não. Não queremos voltar à normalidade, não queremos ser cúmplices do estado-de-coisas a que chegámos para o “bem maior” de uns poucos quantos que por fortuna ou merecimento se sabem aproveitar disto. Não pedimos desculpa pelo egoísmo. Foi a única coisa que nos deixaram crescer. Lisboa desinquieta-se com a falta de gente a comprar patos de borracha, pastéis de bacalhau com queijo da serra e conservas psicadélicas. As consequências? Pela primeira vez em meia dúzia de anos, aparecem umas casas no mercado a preços quase comportáveis. Pela primeira vez em meia dúzia de anos, a banda sonora oficial de Lisboa, “a marcha do trólei”, deixou de se ouvir de cinco em cinco minutos. A inutilidade pornográfica dos coffe labs noruegueses e dos brunches eco-vego-paleolíticos salta tanto à vista que até faz doer os olhinhos. Pela primeira vez, a cidade parece minimamente habitável. Mas lá de cima garantem-nos que lentamente, a normalidade. A máquina de propaganda da corja de malfeitores instalada no poder já arrancou. Acenam com a responsabilidade do povo português, com os excelentes resultados – um estatuto, no mínimo, discutível – do confinamento, com clean houses certificadas não se sabe bem como e com o rebuçadinho costumeiro das inúmeras coisas que Portugal tem para oferecer ao turista do primeiro mundo. “Voltem depressa, que temos saudades das vossas carteiras.” Lentamente, a normalidade. Eu quero é que a normalidade se foda.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias2022 ano pós pandemia [dropcap]C[/dropcap]omo vai ser agora a nossa vida? Estamos em negação a diversos níveis, embora “estejamos a portar-nos bem”. Encontramo-nos sob um leve, levíssimo, stress pós-traumático, porque, se, por um lado, começamos a sair de casa e procuramos reivindicar o tempo do quotidiano, por outro lado, existimos desajeitados com máscaras, luvas, distantes sociais, sem beijos, abraços ou apertos de mão. Quer dizer, o nosso tempo é o do cuidado e da preocupação, ao antecipar possíveis recidivas, novos planos de confinamento, caso pudessem ser postos em prática, com uma economia esfacelada e uma psicologia histérica. A própria ideia de sucesso nestas circunstâncias, de superação o melhor possível de uma epidemia pandémica, é muito relativa. Custou vidas e a saúde a muita gente. Basta ver como as praias e os jardins infantis vão abrir para uso dos seus utentes para se perceber que podemos ter todas as dúvidas se não seria melhor mas era que se interditasse o seu uso até nova ordem do estado de coisas. Em todo o caso, a realidade abriu as suas portas sem que a sua chancela seja a do presente e meramente a da actualidade. A realidade está vista com o olhar retrospectivo que vem de um futuro ainda obscuro, pouco definido e com o enfoque na possibilidade de um novo surto a partir de onde nasça uma nova vaga pandémica. Não estamos inteiramente livres para a realidade. A actualidade é vivida com os olhos postos no futuro. A filosofia sempre nos ensinou isto, mas agora podemos “viver” na realidade o que acontece na dimensão filosófica. A actualidade realidade é negada pela actualidade do futuro. A possibilidade é mais poderosa do que a realidade. O mal possível que vem do futuro é mais poderoso do que o bem actual que existe no presente. Estamos virados para o futuro mais ou menos próximo da realidade das nossas agendas. Percebemos que a nossa agenda entra concretamente pelos próximos meses. Temos percebido como entra nas próximas horas, dias e semanas, meses, mas quando pensamos em trimestres, semestres ou outras unidades de tempo como final do ano lectivo, férias grandes ou Verão, fim do ano civil, Natal e ano novo, tudo muda. Quando eventos como festivais, espectáculos de toda a espécie, encontros científicos internacionais, viagens de negócios, são adiados por um ano ou para 2022 estamos num adiamento complexo que permite perceber como estamos colectivamente depostos no futuro. Neste caso a nossa deposição no futuro é pelo adiamento. Normalmente contamos com o futuro como se estivesse ligado já por associação com o presente. A ligação entre o presente e o futuro dá a sensação que o futuro está já garantido e na verdade a suspensão da possibilidade de futuro em bloco para toda a humanidade permite perceber como estamos depostos só numa possibilidade sem garantias do seu acontecer, de que venha a tornar-se realidade. A possibilidade mesmo que esteja a ser preparada com todas as garantias sérias pode esfumar-se como um sonho irreal. Neste caso temos um adiamento por meses, anos. É menos do que dois anos, mas de 2020 para 2022 dá um mal estar psicológico. Parece mesmo que estamos a adiar o futuro por dois anos. E acreditamos mesmo que entre nós e o evento futuro está a ser enxertada uma quantidade de tempo que vai ser ultrapassada e quando tiver sido ultrapassada, o futuro vai efectivamente acontecer, ligar-se ao presente, o presente vai ligar-se ao depois, ao momento seguinte. Entretanto, vamos ter de viver, com medidas profiláticas para não perder a saúde, restabelecer a saúde daqueles que a perderam, garantir a saúde da economia, cobrir as perdas, tentar recuperar os danos colaterais resultantes do confinamento. O tempo passa na mesma, mas aquele que importa, o nosso tempo com saúde, com possibilidades económicas e financeiras, com viagens, congressos, idas a espectáculos, casamentos, vindas de amigos e familiares, tudo fica em suspenso.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasTodo o texto é um vírus [dropcap]D[/dropcap]epois de escrito, tudo o que está à vista de um texto são os olhos que o irão ler e prolongar. O que um texto procura são os seus futuros anfitriões, as suas enzimas próprias. É para este horizonte de propagação que um texto é criado. Ele tornar-se-á sempre outro e outro e é na passagem do tempo que poderá vir a ser eliminado ou retomado. E se for retomado, estará a ser traduzido. Traduzir aqui quer dizer rescrito, reposto num novo contexto, significado pela primeira vez de cada vez que é erguido para fora do seu momento original. Diga-se de passagem que um tempo original é sempre uma miragem, algo que tende a esvair-se e a diluir-se num nada invisível, irrespondível. Por exemplo: quem era a pessoa do nome Isaías que intitula tantos textos escritos entre o séc. VIII a.C. e o séc. VI a.C.? Que paisagem original se lhes conhece, a não ser a das pantominas dos catecismos ou a das sendas recriativas da netflix? Um texto existe para que o leiam, melhor: para que o traduzam indefinidamente. É esse o seu destino. A par desse destino apenas se ponderará um outro: o seu desaparecimento. Um corpo removido para um cemitério. Um cemitério removido da história. Os próprios textos ditos “sagrados” obrigam a que deles se faça uma ininterrupta tradução. É isso que os católicos, em última análise, designam por eucaristia. E é isso que outras religiões de origem semítica referenciaram por talmude ou por “hadíth”; são modos de comentar, traduzir e interpretar o que foi enunciado num texto. Essa obrigatoriedade de tradução, nem que fosse em jeito de visita guiada (por via hermenêutica, alegórica, anagógica, etc.), sempre correspondeu ao seu devir mais elementar. Sem essa obrigação permanente, os textos ditos “sagrados” não se transformariam em lei e esta em acto (para ser cumprido, transgredido ou ‘vigiado’). Traduzir é agrupar aquilo que um texto desmembra e reavivar de novo todo o seu organismo. Traduzir é recuperar o esplendor de um texto sem que se lhe conheça uma cura definitiva. Em cada tradução há um organismo fechado em si que se ergue e um outro que desaparece. No contínuo do tempo um texto nunca chega, portanto, a ser um campo delimitado, organizado e finalizado. Seja esse o caso de ‘Os Lusíadas’ ou de um dos livros de cordel do estado do Alagoas que tenho alinhado na minha estante. Existe um ímpeto Las Vegas em cada texto que escrevemos. Cada excerto que se lê aponta sempre para outros lugares do mundo e não só para o que literalmente consta da leitura. Uma pseudo-Torre Eiffel aponta sempre para a verdadeira e um pseudo-‘zattere’ veneziano aponta sempre para um outro cais de qualquer porto do mundo. O ADN destes simulacros que falam é precisamente o mesmo que entrevemos nas cordas de um violoncelo: cada nota aí produzida suscita e remete sempre para outras, num concerto sem fim que pode nem sequer ser ouvido. Mas que persiste, perdura. Já está no futuro e é apenas o futuro que visa. Cada texto é, afinal, esse violoncelo, essa Torre Eiffel de Las Vegas, esse nome bíblico Isaías ou, se preferirem, essa tradução de uma tradução que nos permite perceber o texto que estamos agora a ler no presente, como se sobre ele e antes dele nada mais tivesse existido. Entendamo-lo como um vírus que aparentemente não teria genoma, mas que, nas suas mais distintas camadas, acabaria por nos tocar e contagiar até ao mais profundo de nós. À imagem de todos os planetas, um texto está sempre em translação, embora a nossa secreta tentação passe por lê-lo como se ele estivesse parado. Imaginamo-lo à imagem de uma carapaça fechada em si mesma e com um significado entendido como final e resolvido. É estranho, mas é assim que uma grande parte da nossa cultura se habituou a elaborar o seu saber e muitos dos seus percursos, hábitos e normas: através de um estranho geocentrismo textual.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEntre o acaso e o bem 15/05/2021 [dropcap]N[/dropcap]o jornal que leio agora classificam-se os incêndios como “tremas do inferno”. Tremas? Tremas. E terá a liberdade poética escapado ao editor, normalmente tão sedentos a aplicar a plaina? Sofri horrores quando era jornalista, às mãos dos copy desks. Um dos meus maiores “inimigos” tinha um nome: António Loja Neves, que em nome do “livro de estilo” me assassinou vários textos. O jornalista ou foi inconsciente da sua formulação (às vezes um impreciso manuseamento da língua provoca por lapso efeitos de estilo, como na metáfora jornalista que me deu o título de um livro: os crimes montanhosos), ou foi engenhoso. Como eu agora que, ao saber que em Moçambique se estima que o auge do vendaval covid-19 terá lugar daqui a quatro/seis semanas (ou seja, não terminará este confinamento), proponho o seguinte: como o corona vírus propaga-se pelo ar, para se evitar males maiores, há que equipar com máquinas de vento todas as entradas nas cidades e os postos fronteiriços. 16/05/20 Procurava uma alma que merecesse participar no universo – uma frase do argentino Jorge Luís Borges. Uma frase de grande nitidez, mas nada evidente; a nossa tendência é evitá-la para não termos de interrogar: serei eu digno de participar no universo? Tal como a pele precisa de poros para respirar – dessa infatigável ligação com um exterior a si – também nós estamos ligados aos outros. Existe uma palavra para isso: vínculo. O outro é o nosso ponto de fuga ou de verbalização – daí ser um osso duro de roer restringir o nosso convívio com os demais. A leitura é de antemão uma forma de mitigação, posto oferecer-nos uma solidão acompanhada. Num bom livro as palavras estão vivas e despontam de um diálogo invisível. Quem não lê está mais sozinho, a ausência do outro faz crescer os lugares. Ler, pelo contrário, é abrigar o exterior a mim dentro de casa, acrescenta várias assoalhadas à nossa morada mas o espaço encolhe, acomoda-se ao cadeirão onde lemos, às mãos que seguram o livro. A vida, e falo por mim, é tantas vezes, um laboratório de más escolhas. E a poesia pode ser, neste processo de sondar as hipóteses, uma boa terapia. A poesia ensina-nos, não a errar menos mas a confiar menos na exclusividade do nosso juízo. Ao apresentar-nos outros pontos de vista, a poesia faz-nos examinar os nossos preconceitos não para rejeitá-los a rodo só por serem preconceitos, mas para avaliar quais devem ser preservados e quais não devem, e ensina-nos a reconhecer que quase tudo em nós é obra alheia – sendo esta percepção uma abertura para a humildade. A poesia tem esse chão e aponta-nos o caminho das raízes, ainda que sejam rizomas. Há pouco tempo escrevi num caderno: «Há palavras que procuram raízes,/Antes são a consciência amotinada/ Que à regra prefere a extorsão;/ São danadas as palavras à solta/ Antes de experimentarem o amor,/ A sua lei, ou a amenidade de questionar/ Que barcas afinal vogam ao acaso». Nenhuma barca deve vogar ao acaso. Podemos não ter ainda um rumo mas podemos entretanto não carecer de princípios. Era no que acreditava Simone Weil quando escreveu que a beleza é a harmonia entre o acaso e o bem. O acaso é o caos ou a tempestade que atravessamos e o bem o leme, que não nos deixa perder na borrasca e nos permite apreciar a beleza do mar, mesmo zangado. E que fazer, entre aceitar a borrasca como experiência e aprender a manejar o leme? Talvez o que reclama um poeta maior da língua portuguesa, o António Franco Alexandre. Diz ele: «(…) Fui aprendendo à força de querer/ Ser digno da invulgar metamorfose/ Que às vezes nos permite ser humano.» O poeta fala da raridade de ser humano e como isso só se atinge por uma metanóia, por uma superação. À força de querer ser digno: eis-nos convidados a examinar se não poderemos ser melhores. Porque essas raras ocasiões que nos autorizam a ser humanos dependem do peso que colocámos na questão inicial: tenho sido eu uma alma que mereça participar no universo? Serei eu digno de participar no universo, terei eu dobrado o penhor da beleza que herdei? A verdadeira questão que a vida nos coloca. E não é de agora que estamos aflitos, mas de sempre. Ando com tentações de abandonar tudo para me dedicar à jardinagem. Se alguém tiver por aí um aparador de relva que me empreste, não hesite. 17/05/20 Conta Plutarco que um dia Pirro fazia projectos de conquista; “Primeiro submeteremos a Grécia…”. “E depois”, pergunta-lhe Cineas, curioso. “Conquistaremos África…”. “Muito bem, e depois de África?”. “Passaremos à Ásia Menor, anexaremos a Arábia…”, “”Sim, isto começa a ganhar a escala de um projecto!”, anuía Cineas. E Pirro, de olhos brilhantes, continuou: “Iremos até às Índias…”. “E depois das Índias?”, “Ah, disse Pirro, aí descansarei…”. “Porque não descansar então agora?”, tornou Cineas. Julgo ser esta mesma a sabedoria com que a natureza nos governa – no oposto a Pirro. Tal como Deus ao sexto dia, vai cansar-se o coronavírus e sem semear mais mistérios descansará. Pena não ter sido ontem, mas o seu é um império de caniço. É com esta confiança que entro nas próximas semanas, abstraído de tremas, de olho vivo nas tramas.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasConfissões de um novo lamechas [dropcap]H[/dropcap]á cerca de dezassete anos houve em Portugal o aparecimento de um novo meio de comunicação: o blogue. De repente discutiam-se ideias – por oposição a “comentá-las” em caixas -, trocavam-se cromos musicais e literários, escreviam-se crónicas, relatavam-se acontecimentos. Do combate político ao género diarístico havia um pouco de tudo. A tentação de escrever num meio que era absolutamente livre e apenas limitado pelo bom senso e bom gosto dos que o utilizavam foi também irresistível para mim. E assim, durante vários anos, mantive um blogue onde, com frequência irregular, depositava as minhas muitas idiossincrasias e conhecia a generosidade de outros. Antes que o amigo leitor aproveite a nova era desconfinada para fugir do que parece ser um exercício de vaidade, eu explico o prólogo: nesse blogue criei um alter ego, uma personagem que interrompia furiosamente o autor – eu – para criticá-lo e impor a sua mundividência. Era o “Professor Lamechas”. O professor Lamechas revoltava-se contra o pretenso cinismo e os aforismos blasé que eu ostentava. E aproveitava para defender o seu mundo vulnerável, cor de rosa e em constante demanda por lenços de papel. As suas intervenções terminavam geralmente com exemplos musicais do que o “bom gosto” considerava grandes xaropadas: baladas pirosas de lágrima em riste, bandas com penteados duvidosos etc. Ou seja: o professor Lamechas servia-me para apresentar o que se chama de “prazeres culpados” de forma mais protegida. E eis então a razão porque o invoco para aqui: porque o professor Lamechas parece ter finalmente conquistado o mundo. Isso, amigos. Ser lamechas já não é visto como uma falha de caracter derivado aos dias de porcelana que atravessámos e que em muito serviram e servem para expor fragilidades e revelar sem medo coisas que estavam mais ou menos a coberto da luz dos outros. Emoções, por exemplo. Veja-se, como exemplo maior e brilhante, os directos de Como o Bicho Mexe, idealizados por Bruno Nogueira e transmitidos no Instagram. O último episódio, como já deverão saber, teve 175 mil espectadores e enorme interacção. O próprio não escondeu a sua comoção e realmente foi comovente ver, entre risos e choros, a disponibilidade de todos a troco de quase nada. Os sinais estão por todo o lado: ainda há dias um grupo de amigos em que me incluo ressuscitou canções de amor mais ou menos pirosas sem receio de perder a noção de esclarecimento musical. A razão única: porque nos comoviam, quase à beira das lágrimas. Agora, com o distanciamento, vejo como sempre vi os elementos sacarinos em profusão. Mas aos primeiros acordes de I’m all out of love, dos infames Air Supply, desmorono como um castelo de cartas. A verdade é que sempre fomos uns sentimentalões, com maiores ou menores defesas. Lembro-me da famosa frase de Orson Welles sobre os finais felizes: “Se quiser um final feliz isso depende, claro, onde quiser terminar a sua história”. O regresso da lamechice, antes alternativa e agora tornada mainstream e tendência de moda, parece mostrar que toda a gente tem vontade de terminar a sua história num lugar bonito. E isso parece-me tão bom como surpreendente. Deixem estar assim, por favor.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasA sinfonia “patética” [dropcap]U[/dropcap]ma das obras mais conhecidas do compositor russo do período romântico Pyotr Tchaikovsky é a Sinfonia no 6 em Si menor, Op. 74, a sua última sinfonia, composta entre Fevereiro e Agosto de 1893. Foi também a sua última obra publicada ainda em vida e a última que o compositor dirigiu. A estreia ocorreu em São Petersburgo, no dia 28 de Outubro de 1893, uns escassos dias antes da sua morte, de causas até hoje não comprovadas. A sinfonia é dedicada ao seu sobrinho Vladimir “Bob” Davydov. As circunstâncias que a envolvem e as próprias características da composição – quase sempre sombria com explosões de fúria e de grande lirismo, atribuem-lhe um significado quase autobiográfico. Os poucos factos que se conhecem e que podem ajudar na procura de uma verdade mais factual, ainda que porventura menos romântica, são relativamente escassos. Sabe-se que o compositor a intitulou “pathétique”, apesar de ter sido aparentemente sobre proposta do seu irmão Modest. Tchaikovsky queria dar com esta indicação a noção de que esta era uma obra para ser ouvida “com o coração”, uma obra que pretendia desencadear emoções fortes. O primeiro andamento (Adagio–Allegro non troppo), em Si Menor, começa com um adagio e é uma verdadeira montanha russa de emoções, cheia de tensão, com passagens sombrias lentas, outras igualmente sombrias mas rápidas que formam um conjunto notável com duas belíssimas melodias, sobretudo o segundo tema do desenvolvimento. O segundo andamento (Allegro com grazia), em Ré Maior, apresenta uma extraordinária melodia que contrasta com o primeiro andamento e que serve de contraponto à tensão exercida. É um andamento de tom relativamente alegre, mas que nunca deixa a sensação do destino que se pode abater a qualquer instante. Acalma mas não o suficiente para nos tranquilizar completamente. O terceiro andamento (Allegro molto vivace), em Sol Maior, é uma espécie de marcha, sem no entanto ser verdadeiramente triunfante, tal como o segundo andamento poderia ser uma alegre valsa sem nunca realmente o ser, nem pelo tempo, que não é exactamente o de uma valsa, nem pelo espírito. Dir-se-ia que Tchaikovsky, nestes dois andamentos, procura transmitir-nos metaforicamente a instabilidade, o frágil equilíbrio em que repousa a nossa felicidade e o todo poderoso destino ao qual nos abandonamos. Aliás, este andamento acaba de tal forma que faz parecer que a sinfonia terminou. O quarto andamento (Finale. Adagio lamentoso), em Si Menor, retoma assim, novamente, o tom lúgubre do primeiro, anunciando a vitória do implacável destino. É claramente uma sinfonia que admite múltiplas leituras. Uns autores estudam-na do ponto de vista de uma válvula de escape da homossexualidade reprimida de Tchaikovsky. Ao que parece, o compositor tinha uma relação platónica nada menos que com o seu sobrinho “Bob”, o dedicatário da sinfonia. A sensualidade que a sinfonia desprende é interpretada como uma sublimação desse amor proibido. A ninguém escapa que a sinfonia trata o tema do destino. A obra parece alimentar a ideia de que, de alguma maneira, quem sabe na nossa ingenuidade, podemos desafiar, até apostar, com o destino. Oscilamos entre uma compreensão clara do nosso destino, como nos temas do desespero do quarto andamento, até ao optimismo cego, como na marcha do terceiro andamento, passando por uma profunda compaixão pela nossa condição, como no tema da consolação do último andamento. Com a Sexta, Tchaikovsky cria uma nova forma para a sinfonia, numa das mais audaciosas e ousadas jogadas musicais do séc. XIX. O lento e lúgubre finale vira de pernas para o ar todo o paradigma sinfónico, e muda com uma penada a possibilidade do que uma sinfonia deveria ser: em vez de terminar num tom jubiloso e de alegria, a Sexta Sinfonia termina com uma dor pessoal, privada e íntima. Tchaikovsky estava mais que satisfeito e confiante com esta sinfonia – mas, como era tantas vezes e com tanta crueldade o caso, a recepção crítica que recebeu foi decididamente abafada. Descrita por alguns como a sua despedida da vida, na realidade nunca saberemos exactamente o que inspirou a obra. No entanto, podemos ter a certeza de que se trata de uma das criações mais adoradas do compositor, sem o exemplo da qual muitos compositores que se lhe seguiram, como Mahler, Shostakovich, Sibelius e muitos outros, não poderiam ter composto as sinfonias que compuseram. Sugestão de audição: Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Symphony No. 6 in B minor, Op. 74 Russian National Orchestra, Mikhail Pletnev – Virgin Classics, 1991
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasImperturbável finitude [dropcap]C[/dropcap]hegam como um ímpeto irreprimível de afirmação. Mal a luz se anima imperceptivelmente e os dias se acrescentam. Chegam como uma família grande à beira do verão e que vai avisando. Ou alguns, nem sempre os mesmos, alguns anos, não chegam. Não podem. Mas quando abrem, como se a abrir a porta de casa quando toca a campainha, mas tudo ao contrário, enchem os olhos da casa. Chegam e irrompem elas a abrir. Invadem de um deslumbramento, que de existencial tem a qualidade de se saber finito e que vai desembocar no desapontamento. Chegam, de passagem, e vão. Mas naqueles dias em que se instalam no máximo da cor, a invadir espaço e a virar-se intencionais para a luz, são. É preciso aproveitar a curta estadia. Então, junto as flores que me habitam a casa e faço jantares de família – retratos, digo – com janela para o rio. Ou ponho a mesa para jantar a dois, o que sempre se justifica. Hoje, para a flor gigante e túrgida, silenciosa e possante. Que mais interrogar a tamanha afirmação de estar? Seria ingratidão, até. E antecipar a queda, também. Às vezes tombam pelo pescoço alto, outras enrugam e tornam-se de uma pele fina e delicada, com a cor mais saturada, em canto de últimos dias de cisne colorido de rosa. E ficam os braços ainda firmes e dramáticos para o alto, mas sem já possibilidade de retorno. A última prece. Ponho a mesa de vidros delicados da avó. Guardanapos de pétalas bordadas. Das mulheres já extintas, da família. Saudosas, em suaves respirações inaudíveis nos objectos que guardavam em gavetas, envoltos em panos de branco puro. Toalha bordada porque é a família. Talheres de desenho antigo e intemporal. Colheres de curva mais côncava e facas de cabo mais pesado. O tempo tem que encontrar lastro para se segurar em terra, em cima da mesa. A luz baixa para não perturbar e numa vela o precário sopro como a magia do tempo. Apenas dois lugares se enfrentam lentamente. Como gostaria que fosse para sempre quando fosse. Olhar-te o rosto a encher o olhar e sem mais, digo sem dizer. Palavras. Só assim porque as plantas não se expressam e as flores preenchem ao olhar o silêncio. E eu fico ali por horas a tentar que esquecidas. Das perguntas de quem sou. Bebendo nas taças cristalinas, por mim, por elas e pelo rosto aberto na minha frente. Bebo até ao fim da garrafa. E depois, encosto o rosto à mesa e fico ali sob o olhar fixo e sereno. Quieta. Inalterável permanência que me conforta. O meu sobrinho entra com a chave e pouco ruído. Vem todos os anos deixar-me comida inútil e ver se está tudo em ordem, as contas, a roupa. Acho-lhe umas entradas que não tinha em pequeno, da última vez. Diz-me na sua maneira suave e meio sorridente não podes deixar o gás do forno aberto é para matar as baratas digo. Mas és tu que podes morrer. Penso que é uma criança que não entende que não sou eu uma barata e que gosto de ter a casa limpa e baratas são nojentas. Mas tens visto alguma, não, tem dado resultado. Sorrio-lhe também gosto de o ver no ano passado não veio. Volto para a semana, não voltes a abrir o gás, promete, diz de saída. Claro. Mas como julga ele que me tenho visto livre delas? Vou com ele à porta e vejo-me de passagem no espelho do corredor. A minha tia M. As pálpebras amolecidas a entristecer, o contorno mais sinuoso do queixo. Mas não sou ela. Sento-me. Ninguém. Foi uma breve visita do passado, do futuro. Querida tia-avó M. com o olhar leitoso das cataratas, antes da operação e antes do depois. Volto a encostar o rosto ao braço à mesa. E, de novo, a imperturbável finitude.