Só nos resta subir

[dropcap]N[/dropcap]uma entrevista ao escritor Hermann Broch, acerca das suas personagens não fazerem amor, não comerem e não beberem, no fundo, como se a vida lhes estivesse longe, ele responde: «Você está a identificar vida com quotidiano. A vida também tem quotidiano, mas é mais do que isso. E é precisamente esse mais do que isso que me interessa enquanto escritor. Não tenho nada contra quem escreve acerca do quotidiano, mas não é o que faço ou me interessa fazer. Escrever deve antes de mais conduzir-me a algum tipo de conhecimento que não tinha antes e não a uma descrição do que conheço ou a uma distracção desse mesmo quotidiano. Escrevo para aprender e não para ensinar.» Estas palavras de Broch bem poderiam ser proferidas por Judith Levi, escritora israelita. No seu mais recente romance, «A Luz Por Baixo», o romance retrata a vida de uma mulher que sempre procurou aquilo que mais lhe dava o sentido de si mesma, o sentido de estar consigo mesma. Essa mulher, Esther, agora perto dos 70 anos, recorda as várias fases da vida em que «se buscava a si mesma, como houvesse dentro dela algo que a impedia de chegar a si mesma. Antes de morrer tinha de conseguir regressar a si. Ela era a casa da qual tinha sido expulsa e à qual tinha de regressar antes de morrer.» E numa entrevista a um jornal, por causa deste mesmo romance, Judith Levi diz:

«Essa mulher, no fundo, sou eu. Embora quase todos os meus romances tenham um cunho muito biográfico, este é o meu romance mais autobiográfico, sem sombra de dúvidas.» Esther, a personagem do romance, tem relações apenas episódicas, que nem sequer são descritas – numa passagem, lê-se «Acabei por dormir com Lea.», e noutra «Fui para a cama com Robert.» –, a jornalista pergunta-lhe se isso também é autobiográfico, ao que Levi responde: «Não os casos relatados, evidentemente. Mas que na minha vida os corpos dos outros não passaram de acontecimentos fugazes é verdade; quer de mulheres quer de homens. Imagine que eu sou como Esther, que procurava um modo de regressar a mim! Que corpo me poderia ajudar? Nenhum.» Esta noção de que nenhum corpo pode ajudar já aparecia no romance «Longe», onde a protagonista, diz para a mãe, depois da morte do pai: «Ninguém pode ajudar-nos. E muito menos um corpo. Um abraço é tão ineficaz perante a morte quanto rezar perante um tanque de guerra.» Há em Judith Levi uma guerra declarada ao corpo. Não por questões religiosas ou moralistas, mas ontológicas. Como diz Esther: «Um corpo é um corpo e não há muito o que fazer. Há que alimentá-lo, levá-lo à rua, apanhar os dejectos e na época do cio ter o cuidado de regressar de manhã a casa.»

Em contraposição à ideia de corpo aparece quase sempre a ideia de casa. Mas apesar de tudo, e por mais que pareça estarmos perante um ponto de vista que bebe na tradição pitagórica e platónica de ver o corpo como o túmulo da alma, Esther – e talvez também Judith Levi – não vê o corpo como um túmulo, mas como distracção ou parque de diversões, como «o que me afasta de casa». No fundo, aquilo que a afasta da tarefa de regressar a si mesma. Nós não estamos encerrados num corpo. Lê-se no romance: «Esther sentia-se encerrada lá fora, longe de dela, tentando regressar a casa. Havia dias que sentia uma aflição semelhante ao de um pássaro a bater as asas tentando libertar-se da armadilha em que caiu.»

A sensação que a escritora descreve, através de Esther, é complexa e estranha. Em criança, mais do que um impulso para brincar na rua com outras crianças, preferia ficar em casa a ler e a brincar com coisas que inventava. Na sua adolescência, passava os dias na biblioteca municipal, em Jerusalém. Fez a universidade entre livros e pontuais casos sexuais. Tornou-se professora na mesma universidade, no departamento de Sociologia, onde passou a ensinar uma cadeira que ela mesma criou, chamada «Sociedade Criativa». No fundo, diz ela a uma das amantes ocasionais, «leituras pessoais de Nietzsche e de Foucault na organização das sociedades contemporâneas.» Há um episódio curioso relatado no livro, quando uma jovem estudante lhe pergunta: «Numa sociedade como a nossa [refere-se a Israel], o gesto libertário não seria abandonar a leitura, tanto a dos textos religiosos quanto os seculares? O nosso objectivo não deveria ser o de criar um mundo além da palavra escrita?» Aquelas perguntas, que ficam sem resposta, adiadas, arrastar-se-ão até ao final do livro. Momento que faz eco num pequeno ensaio que Judith Levi publicou chamado «Depois de Tudo», onde faz uma análise da impossibilidade de uma sociedade livre, enquanto cada um de nós não se libertar do exterior que nos habita. Livro que traz uma inscrição de David Ben-Gurion, fundador de Israel, que tem muito a ver com a escrita de Judith Levi: «Quem não acredita em milagres não é realista.» O exterior de que temos de nos libertar, contrariamente aos sentidos e às opiniões, na esteira de um platonismo, é tudo o que não somos nós que criamos, isto é, tudo o que não seja o mais íntimo de nós mesmos. Para a escritora, os sentidos são ou podem ser uma força criadora, embora não as opiniões. Ou seja, um modo de pensar muito mais na esteira de Nietzsche do que de Platão. Escreve nesse ensaio: «A procura do mais íntimo levar-nos-á a abandonar os livros.» O problema é como conciliar uma procura de si mesmo afastado de uma leitura dos outros e de uma reflexão junto com eles. Que os textos se apresentam como algo que nos afasta da intimidade pode ou não ser verdade, não importa agora pensar nisso, mas como chegar a nós mesmos sem ler? Como pensar sem ler? Judith Levi está consciente deste problema e enuncia-o no seu ensaio: «Que temos de ler, não restam dúvidas, como também ninguém pode compor música sem ouvi-la, mas como é que através da tradição a podemos superar? Em que momento se dá o corte desse cordão umbilical?» Seja qual for a resposta a dar, o que importa é que Judith Levi escreve com os pés assentes no céu e sabe que a luz vem de baixo, como diz Esther no romance: «Toda a existência é assente numa ilusão. Não há luz mais importante do que a que sobe por nós acima, que vem de baixo, da terra, de sentir que há um abismo por debaixo dos nossos pés. Esta luz mostra que só nos resta subir.» A nós, leitores, e apesar de os livros de Judith Levi não nos darem respostas, só nos resta subir, isto é, baixar os olhos e lê-la.

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