Uma mulher no futuro

[dropcap]N[/dropcap]a semana passada lemos o livro de Claudia Schneider, «Desentidade», que abordava vários modos de se viver a vida sendo outro ou outros. E, acerca destes mesmos temas, há um livro de uma outra escritora, a portuguesa Manuela Fava, recentemente falecida, cujo livro «No Futuro Não Vou Trabalhar» nos leva pela vida de uma mulher, Albertina, que vive numa cidade do interior de Portugal, Covilhã, e é funcionária pública num tribunal. Lemos à página 12: «Albertina vivia a pensar na reforma, no que irá fazer depois dos trabalhos forçados da prisão, da vida. Sentia que cumpria uma pena, o tempo de trabalho, e planeava o que fazer quando fosse libertada, quando alcançasse a reforma, no que iria fazer da vida, do tempo que lhe restasse. Detestava o seu trabalho, a sua vida, e deseja que o futuro chegasse rapidamente. Literalmente, não se importaria de trocar duas décadas pela chegada do futuro, da reforma.»

Neste livro de Fava, estamos diante de uma personagem, a principal, que tem a consciência de que ela não é ela mesma, de um modo radical: vê a sua própria vida, a ser vivida dia a dia, como se estivesse presa. Sente-se prisioneira do trabalho que tem. Trabalho que são as grades que a impedem de ser livre. Lê-se à página 26: «À entrada dos campos de concentração nazis estava escrita a frase “o trabalho liberta”, não estava escrita a frase “sê quem quiseres ser” ou “procura ser quem és” ou “liberta-te do que querem fazer de ti” ou ainda “não deixes que usem o tempo que és em proveito de um estado alienante e mercantilista”. Aqueles que mais nos querem subjugar sabem bem que nada melhor do que o trabalho, que é uma forma de impor legalmente ao outro tarefas que o impeçam de fazer o que quer, para que nos esqueçamos de quem somos.» Independentemente do tom político que percorre todo o livro, aquilo que me parece ser o tom maior é a questão da distorção da identidade de Albertina, a de ter consciência de que está afastada de ser ela mesma, devido ao trabalho que exerce. A questão de não se ser quem se é, de não se conseguir ser quem se é e de que modo é que se pode saber isso ou pensar isso. E, no caso de Albertina, não se tratava de um «mau trabalho», como se usa dizer, um trabalho humilhante ou pouco recompensante. Não. Para Portugal, Albertina, sendo Secretária de Justiça, ganhava muito bem, bem mais de dois mil euros por mês, e o seu trabalho estava longe de ser humilhante. Mas era algo que não fazia qualquer sentido para ela. Acabou ali, naquele tribunal, depois de ter completado o mestrado em Filosofia. E os filósofos eram as leituras que fazia fora do tempo de trabalho. Lê-se à página 54: «Filosofia e futuro começavam com a mesma letra e tinham a mesma cor no horizonte de Albertina, a cor da liberdade. O futuro liberta. O futuro é uma cor por pintar.»

Podemos imaginar que esse também tenha sido o sentimento da autora, Manuela Fava, apesar de não ter sido Secretária de Justiça, mas professora de filosofia do secundário. Infelizmente morreu de acidente de viação aos 61 anos, em 2010, sem conseguir chegar ao tão ambicionado futuro. Morreu sem se libertar das grilhetas dos trabalhos forçados e ver pintada a cor desejada do futuro.

A questão da alteridade forçada, em que alguém não consegue ser quem é devido a fazer todos os dias um trabalho de que não gosta, mas do qual precisa para sobreviver é o tema central do livro, como disse anteriormente. Albertina não é quem é, e sabe disso, porque o seu trabalho não a deixa ser. Evidentemente, a pergunta impõe-se, e Albertina fá-la a ela mesma, à página 78: «Sou eu a culpada de não fazer um trabalho que gosto? Será o operário fabril culpado de não fazer o trabalho que gosta? Ou é necessário à nossa sociedade que nós não sejamos quem somos? Que quer dizer ser quem se é? E quem não é quem é pode responder a esta pergunta? A resposta a esta pergunta pode ser feita teoricamente ou necessita de experiência? Eu que não sou quem sou, que sinto claramente ser a menos de mim mesma, de estar a desperdiçar a maioria do meu tempo, porque a fazer coisas que não me interessam e que me afastam de quem sou, talvez venha a saber a resposta no futuro, quando deixar de trabalhar.» No livro de Fava é muito claro – se bem que talvez ainda não tenha ficado claro neste texto – que o problema não é o trabalho em si, mas o trabalho que distorce aquele que o faz, o trabalho que aliena, atormenta, empobrece. De qualquer modo, Fava conhece os paradoxos deste pressuposto e escreve à página 79: «Mas quem faria os trabalhos que ninguém quer fazer? Como poderíamos resolver esse problema? Uma coisa é acreditarmos que há quem goste de fazer trabalho burocrático, outra coisa muito diferente é acreditarmos que há quem goste de viver debaixo do chão escavando a muitos metros de profundidade, no interior de uma mina. Quem, humano, pode ser quem é? Talvez acreditar em ser-se quem se é não passe do mesmo que acreditar em Deus.»

Infelizmente por problemas com os herdeiros, continuamos sem ter acesso aos livros de Manuela Fava – 3 romances e 2 volumes de contos –, cujos exemplares editados pela já extinta Clorofórmio, continuam sem ser reeditados. Acerca deste romance que nos traz aqui hoje, escreveu o escritor Augusto Abelaira, também ele tão esquecido nos dias de hoje: «Madalena Fava é provavelmente a mais intrigante e instigante das novas escritoras portuguesas. Com uma imaginação sólida, um domínio da linguagem ao rés da sintaxe, uma capacidade reflexiva que nos remete para dentro, um dentro a que usualmente tendemos a fugir, Fava página a página destrói as nossas ilusões mais convictas, mostrando tratar-se apenas de convicções muito ilusórias.»

«No Futuro Não Vou Trabalhar» é talvez o melhor livro de Fava, e um dos grandes livros da segunda metade do século XX português, mas o imaginário da escritora e capacidade reflexiva não acabam aqui. Aguardemos que os herdeiros resolvam a contenda, de modo a podermos ler esses livros, que tal como Albertina ainda aguardam a cor do futuro.

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