Lam U Tou, presidente da Associação da Sinergia de Macau: “Não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão”

Lam U Tou, um dos mais jovens líderes chineses de Macau, partilha a sua visão acerca dos assuntos que marcaram a região nos últimos vinte anos, fala de liberdade de expressão e antevê as principais questões e desafios do novo Executivo

 

Como foram os últimos vinte anos após o retorno de Macau para administração chinesa?

[dropcap]N[/dropcap]asci em Macau e nunca pensei que em vinte anos pudessem existir tantas mudanças. Ainda me lembro dos dias em que o Hotel Presidente e o Hotel Lisboa eram os mais luxuosos e em que, ao abrir a janela, podia olhar directamente para o mar, sem ver outros edifícios pelo meio. 15 anos depois, apareceram resorts como o Sands, o Wynn ou o MGM, que me impressionam muito. Outra parte interessante foi que, a partir de 2007, foi realizado pela primeira vez o NBA China Game no Fórum de Macau, até mesmo antes de ir para Hong Kong. Tudo isto foram para mim sinais de que o desenvolvimento económico de Macau se estava a tornar cada vez melhor, mas isso não significa que não tenhamos sofrido. Em 2003, por exemplo, por causa da epidemia do Síndroma Respiratório Agudo Severo (SARS), a economia ressentiu-se muito, sendo que o salário era apenas de 3.000 patacas para um administrativo recém-licenciado ou de 3.800 patacas para um engenheiro. Muito diferentes eram também a maioria dos procedimentos relacionados com o Governo, que eram complicados e confusos. Na época da administração portuguesa, aqueles que não sabiam português, não se atreviam a apresentar as suas dúvidas aos funcionários públicos e era assim o ambiente na altura. Depois do retorno de Macau para a administração chinesa, voltando a usar o cantonês, tudo se tornou mais cómodo.

Na sua opinião, quais os assuntos que mais preocupam os cidadãos de Macau?

A maioria dos problemas são derivados do crescimento acelerado, feito sem pensar no bem-estar da população e da questão da habitação. Apesar de não ser tão preocupante quando comparada com Hong Kong, a questão da habitação não permite aos jovens, adquirir a sua própria casa no futuro. O preço de uma residência semi-nova é bastante elevado, não sendo compatível com os seus salários. Falando sobre a lei das habitações públicas, às vezes parece que é preciso lutar para ver quem é o mais miserável ou quem tem mais sorte, para obter uma habitação. Para evitar este tipo de problemas, o Governo deve ter uma política e um planeamento específico para as habitações públicas, disponibilizando uma quantia anual de fracções aos cidadãos. Acho que o Governo tem sempre dificuldade em ver a realidade na discussão das suas políticas, pois defende que o arrendamento das habitações sociais, podem ter lucros. No entanto, os custos de operação, recursos, reparação e manutenção das instalações, entre outros elementos que é preciso manter para assegurar o seu normal funcionamento, custam ao Governo mais de mil milhões de patacas, valor esse, não recuperado pelo baixo valor da renda recebida mensalmente. Já a situação da habitação económica é totalmente oposta, pois os custos de construção do edifício, estacionamento, valor do terreno, despesas relacionadas com a consulta de especialistas, avaliação ambiental, e todos os outros gastos necessários para a concretização de uma fracção são mais baixos, sendo que a área da obra tem apenas o custo de 1600 patacas por metro quadrado. Além disso, existem, no total, 40 mil habitações públicas que podem ser construídas nos terrenos recuperados pelo Governo. No entanto, nos últimos anos, foram apenas construídas 4.100 fracções. Por isso, espero que as autoridades possam acelerar o processo de planeamento dos terrenos, de forma a construir 4 mil habitações por ano, e ter as 40 mil fracções públicas prontas ao fim dos próximos 10 anos. Outro problema que é urgente resolver diz respeito à expansão da linha do metro ligeiro. Nos próximos cinco anos Ho Iat Seng deve ser capaz de construir a linha leste do metro ligeiro juntamente com a quarta travessia marítima Macau-Taipa.

O que pensa sobre a juventude de Macau ao nível do sentido patriótico?

Licenciei-me na Universidade de Jinan e fiz o meu mestrado na Universidade de Pequim. Não rejeito o patriotismo, sou de Macau, mas também sou chinês. Não vou rejeitar a minha identidade chinesa e os trabalhos de educação sobre o amor patriótico. No entanto, os jovens têm agora de saber quais são os prós e contras do país, e ser eles a avaliar o que é bom e o que é mau, para depois, decidir a sua própria visão do país. Mas tenho de dizer que é inegável que a China está a fazer esforços para liderar a população rumo ao crescimento social e está a conseguir. Ainda assim existem problemas que devem ser resolvidos o mais rapidamente possível, relacionados com a justiça social e a extrema disparidade entre ricos e pobres.

O que espera dos próximos 30 anos?

Não sei o que vai acontecer nos próximos trinta anos, mas temos de enfrentá-los com optimismo. Actualmente existem políticas que não acompanham a evolução dos tempos e que podem estar na base da origem de conflitos sociais semelhantes à situação de Hong Kong. Mas é positivo pensar que, se forem lançadas políticas favoráveis neste período de transformação social, muitas situações negativas poderão ser evitadas. Espero, por isso que o futuro governo, possa construir um sistema baseado na mudança da regulamentação em vigor.

O que mais contribuiu para a sua decisão de concorrer às eleições legislativas?

Comecei a trabalhar, primeiro, como assistente de Kwan Tsui Hang, ex-deputada à Assembleia Legislativa e, a partir daí, tanto a Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) como a ex-deputada ofereceram-me muitas oportunidades. Fui aos bairros para falar com os cidadãos e conhecer quais os problemas a que a sociedade deve prestar atenção. Mas durante os anos em que estive na FAOM, descobri que existem temas que não estão a ser abordados, portanto, achei que era importante ter um espaço independente das associações e decidi criar a Associação da Sinergia de Macau. Foi tudo decidido rapidamente. Comecei a falar com os interessados em Dezembro de 2016, tendo a associação sido estabelecida logo em Março do ano seguinte. Depois, candidatei-me às eleições legislativas. Confesso que não esperava garantir um lugar no hemiciclo, mas sinto-me muito grato pelos 7.162 votos que obtive. Revelámos somente o nosso programa político à imagem das “linhas de acção governativa”, o qual tinha mais de 18.000 caracteres chineses, fornecendo formas de resolver os problemas sociais.

Sente que existe liberdade de expressão em Macau?

Em Macau, não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão, mesmo falando inúmeras vezes sobre assuntos onde considerei a acção do Governo insuficiente. Eu sei que há pessoas que pensam que existe “terror branco” ou um “tecto transparente” na cidade que não permite que as pessoas expressem livremente as suas opiniões sobre o Governo ou outros temas relevantes. Mas tenho de dizer que, até agora, ainda não recebi nenhuma chamada ou alerta para não falar acerca de casos específicos. Talvez seja porque estou mais preocupado com os factos e não particularmente com os indivíduos. Para mim, o mais importante é alcançar medidas para solucionar as questões. Sobre a liberdade de expressão, desconheço situações de censura mas, de facto, nunca me senti visado. O nosso papel na sociedade é servir de ponte entre os cidadãos e o Governo para, juntos, encontrarmos soluções. É impossível resolver um problema apenas por nós próprios.

20 Dez 2019

Garcia Leandro, ex-Governador de Macau (1974-1979): “Macau foi a antecipação do futuro”

A sua Administração criou as bases para muito do que Macau tem hoje, incluindo a composição da Assembleia Legislativa. O trabalho foi tanto, com a implementação do Estatuto Orgânico de Macau, que o General Garcia Leandro teve um esgotamento. Duas décadas depois da transição, o ex-Governador defende que houve um certo desconhecimento por parte de alguns negociadores chineses face às especificidades de Macau, enquanto que, da parte dos portugueses, houve falta de estabilidade política. Hoje é presidente da Fundação Jorge Álvares

 

 

[dropcap]O[/dropcap] início desta fundação ficou marcado por uma polémica, pois Jorge Sampaio não concordou com a sua criação. 20 anos depois, a fundação ainda vive à sombra disso?

Tenho muito pena que essa polémica tenha existido, principalmente por ter envolvido duas pessoas que trabalharam muito por Portugal: o último Governador, general Vasco Rocha Vieira, e o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio. Mas a fundação também sofreu com o que vinha detrás, ou seja, a polémica com a Fundação Oriente (FO). Mas não me incomodam nada essas coisas conjunturais de há 20 anos. O que me interessa são os objectivos da fundação e estes passaram por criar um conjunto, composto pela fundação e outras instituições, que permitisse reforçar as ligações com Macau e com a China para o futuro. Na perspectiva do último Governador de Macau, [a fundação olhava para] o trabalho que foi feito até ao dia 20 de Dezembro de 1999, mas também servia projectar o futuro. Até porque, de todos os antigos territórios ultramarinos, Macau foi aquele cuja saída foi feita da melhor forma e com mais dignidade, com uma relação óptima entre Portugal e a China que foi um exemplo para o mundo. Não tem comparação com o que se passou em Hong Kong. Criou-se uma uma instituição científica, histórica e académica aqui, [o Centro Cultural e Científico de Macau], o Instituto Internacional de Macau (IIM) e a fundação. Temos vindo a reforçar muito as relações com a China e Macau. Os chineses, na Administração da RAEM, têm estado todos connosco. A senhora O Tin Lin [chefe da delegação económica e comercial de Macau em Lisboa] trabalhou connosco, e agora vem o novo representante da RAEM em Lisboa, o doutor Alexis Tam, que tem uma influência local muito importante. Macau foi, ao longo da história, a antecipação do futuro, porque foi sempre uma mistura de toda a gente. Fazia parte do império comercial do Oriente, composto por Goa, Malaca, Macau, Cantão e o Japão. Durante muito tempo só se entrava na China através de Macau, e não se passava de Cantão. Isso só se perde quando os ingleses, depois da Guerra do Ópio, em 1841 ou 1842 ocupam Hong Kong e começa-se a perder a influência portuguesa, e Macau começou a perder importância. O que é espantoso é que volta a ganhar importância depois do 25 de Abril de 1974.

Como?

Foi o que eu vivi, numa época muito, muito difícil politicamente, financeiramente… tudo era difícil. Havia instabilidade, medo. O Estatuto Orgânico de Macau (EOM) de 1976 é o que dá a grande estabilidade porque deu autonomia administrativa, política, financeira e económica a Macau. Criaram-se condições para localmente se poder gerir os interesses de Macau sem ter de pedir tudo a Lisboa. Isso através do Governador e da Assembleia Legislativa (AL).

Isso fez de Macau um novo interposto comercial.

Sim. Por exemplo, as corridas de cavalos, a universidade, ambos na Taipa. Foram ambos contratos meus. Eu não tive de pedir a Lisboa, mas se tivesse de pedir nunca mais tínhamos cavalos nem a universidade. O EOM nunca foi alterado e teve sequência ao longo dos anos através dos governadores portugueses e muita coisa nunca foi alterada pelos chineses. O EOM trouxe uma AL semi-eleita, com o presidente eleito pelos seus pares. Fez-se a indexação da pataca ao dólar de Hong Kong e foi a questão da Autoridade Monetária e Cambial. E fiz uma reforma tributária, em 1977 e 1978, que não cheguei a acabar. Quando fui lá em 2011 ainda não tinham mudado. As forças de segurança também continuam com as mesmas bases. Mesmo a Lei Básica foi beber muito ao EOM, com as devidas actualizações. A grande alteração que o Governo da RAEM fez foi a liberalização do jogo. O Governo da RAEM não resolveu todos os problemas sociais, nomeadamente a habitação, que ainda é muito complicado, porque ou há um tecido urbano que está muito envelhecido ou há um tecido urbano mais moderno sujeito a uma grande especulação imobiliária.

Numa recente palestra em Lisboa, onde esteve presente, Jorge Rangel, presidente do IIM, falou da possibilidade de ocorrência de protestos em Macau caso não haja soluções para a habitação.

É. Ele aqui já tinha alertado para o facto de os problemas de Hong Kong serem, antes dos estudantes e da lei da extradição, a especulação imobiliária e o descontentamento daquelas pessoas perante a impossibilidade de pagar rendas. Esse problema pode surgir em Macau se não for resolvida a questão da habitação e julgo que o Governo de Macau já percebeu isso, tal como também não vai fazer uma proposta de lei da extradição. São coisas que perceberam que não podem fazer.

Voltando ao EOM. O deputado Sulu Sou chegou a defender o fim da composição do hemiciclo instituída com a sua Administração. Vinte anos depois haverá espaço para um aumento dos deputados eleitos pela via directa?

Não me quero meter em assuntos que são responsabilidade do Governo local. Mas posso explicar porque é que fiz daquela maneira. Quando se dá o 25 de Abril e depois se faz o EOM, há um grande choque, com a comunidade portuguesa e chinesa. Em primeiro lugar a comunidade chinesa não estava habituada a entrar na vida política activa.

Não havia votos, na altura?

Havia um partido único, a Acção Nacional Popular, e antes do 25 de Abril a União Nacional, e apenas os portugueses votavam. Quando disse “vamos votar”, consultei todos os que podia consultar e diziam-me que as pessoas não iam votar a sério se fosse pelo sufrágio directo, que tinha de se inventar outra maneira de levar os chineses para a política. Os chineses têm uma grande actividade associativa, e foi através das associações que se conseguiu trazer as pessoas para votar. Arranjaram-se então uns votos por sufrágio directo, outros votos pelas associações em representação de interesses económicos, culturais. Depois sou avisado de outra coisa, de que não iriam aparecer jovens, mulheres ou pessoas independentes em relação ao poder económico”. Para os lugares que ficaram para o Governador nomear, escolhi pessoas realmente independentes. Mas isso foi feito no tempo da Administração portuguesa quando aquela gente não estava habituada a votar e os portugueses estavam habituados a um partido único. Isso manteve-se até final da Administração portuguesa, e a diferença que fizeram foi aumentar o número de deputados. A estrutura é a mesma. Com a Administração chinesa é mais uma situação que ainda não mudaram. Porquê? Não vou comentar porque é estar a meter foice em seara alheia. Vamos esperar.

Muito se fala das diferenças em termos de civismo e cultura política entre Macau e Hong Kong. Essa ausência de eleições foi o grande contributo para esse alheamento existente em Macau?

Em Hong Kong era pior, não havia votos. Os membros dos Conselho Legislativo e Executivo eram todos nomeados por escolha do Governo ou por inerência, só havia dois lugares eleitos nas câmaras municipais. Fizemos o EOM em 1976 e quando Hong Kong tenta ter um parlamento eleito é 20 anos depois, quando os ingleses estão quase a sair de lá.

Então como explica estas diferenças?

Hong Kong tem uma maior massa crítica pois são sete milhões de pessoas. Além disso, Hong Kong tem uma grande presença de empresas estrangeiras e de turistas. A população jovem na China, Macau e Hong Kong está a ser cada vez mais educada. E os jovens são relativamente fáceis de mobilizar para ideais colectivos e sentem que querem ter alguma independência da China. Eles têm uma autonomia mas não deixam de ser parte da China. O acordo assinado entre o Reino Unido e a China, bem como entre Portugal e a China, determina que os territórios são China, com autonomia, mas isso não significa que não se devam ter boas relações com o país. A China evoluiu muito rapidamente e deu um salto muito grande com “Um País, Dois Sistemas”. Não só começa a afirmar-se como potência mundial, com a política “Uma Faixa, Uma Rota”, como começa a ter inimigos e a China percebe isso.

Como deve ser a resposta a isso?

Nunca houve na história mundial um Governo a governar 1,4 milhões de habitantes. E como raciocinam? De uma maneira simples: a China pensa que ninguém vai atacar o país frontalmente, mas podem actuar nos pontos fracos, que são as economias mistas e autonomias mistas, e aí Macau e Hong Kong aparecem como áreas sensíveis. Os chineses estão extremamente preocupados com o que pode acontecer aí. Tudo estava bem até o Governo de Hong Kong decidir apresentar a proposta de lei da extradição. Querem eleger também o Chefe do Executivo pelo sufrágio directo e universal. Tudo bem, mas é um problema que não é nosso, nem temos de andar a fazer comparações ou a extrapolar.

Até porque a Lei Básica de Macau não prevê o sufrágio universal.

A de Hong Kong também não. Aliás, as negociações sobre o futuro de Macau começaram depois das de Hong Kong. Os chineses quiseram copiar muitas coisas do processo de Hong Kong e foi através de nós que as coisas foram corrigidas, mas aí não se deixou de manter o sistema de que não eram eleitos. [O Chefe do Executivo] pode vir a ser [eleito pelo sufrágio universal], mas dentro de regras que não sabemos quais são. Mas uma coisa é certa: a China vai-se enquadrando cada vez mais no mundo e adaptando-se.

No período de descolonização, em 1975, consta que elaborou um relatório sobre o facto de algumas forças partidárias em Portugal defenderem a entrega de Macau. Confirma isso?

Comigo não houve diálogo nenhum. Não produzi qualquer relatório sobre o assunto. Nunca o assunto foi falado comigo, nunca Macau entrou na comissão de descolonização da ONU, onde havia representantes para o antigo Ultramar. Há mais de 40 anos que ando a tentar saber quem é que teve essas conversas. Não sei, não encontro. Um dia falei com duas pessoas que estão citadas no meu livro, o professor Veiga Simão, embaixador da ONU em 1974-1975, e perguntei-lhe se tinha tratado de alguma coisa. Disse-me que não. Anos mais tarde, em 2009, apareceu um professor chinês do Canadá que me parecia ser um especialista sobre o assunto, e perguntei se existia alguma conversação. Ele disse-me que não sabia de nada. Se houve alguma coisa foi de modo informal na ONU. Até porque os representantes portugueses tinham bem a noção, quer Almeida Santos quer o General Costa Gomes do caso muito específico de Macau. E a China, em 1972, tinha dito que Macau e Hong Kong não eram assunto para o comité de descolonização, que eram um assunto para resolver com o tempo, através das relações bilaterais entre Portugal e a China. O dizer que não entrava para o comité de descolonização queria dizer: “isto [Macau e Hong Kong] não será independente, é nosso”. Os dois casos de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até na sua história.

Em que sentido?

Entrámos em Macau no século XVI, a maioria da população era chinesa, mas Hong Kong foi ocupada depois de uma guerra. Não existia nada em Macau, era terra de ninguém. Pagávamos renda e em 19877 deixámos de pagar e ficámos sem futuro definido. Quando é que aquilo acabava? Não estava escrito. Os ingleses conquistaram Hong Kong e depois Kowloon mas esse espaço era relativamente pequeno, então ocuparam os Novos Territórios. Mas deixaram no contrato com a China de que a sua permanência nos novos territórios só durava até 1 de Julho de 1997. A senhora Tatcher, em 1982, vai a Pequim pedir para continuar além deste período, mas Deng Xiaoping deu-lhe a resposta óbvia: “nem pense nisso”. As duas histórias de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até no relacionamento com a população, não tem nada a ver. Por isso é que as nossas negociações correram melhor, também porque nós Portugal não tínhamos grandes interesses económicos a defender em Macau. Não tínhamos grandes empresas portuguesas, apenas tínhamos o BNU. Mas os ingleses tinham muitos interesses económicos e por isso são mais difíceis as negociações.

A transição fez-se então no momento certo.

Os chineses estavam muito interessados em resolver o problema de Taiwan, Hong Kong e Macau. E por uma questão de respeito e consideração pelos mais pequenos, a vontade deles era resolver Taiwan primeiro, mas as coisas não correram bem porque foi muito apoiado pelos americanos, muito desenvolvido economicamente e armado e tornou-se muito autónomo da China. Com Hong Kong tinham o limite de 1997. Quando as negociações começam, o doutor Mário Soares, na altura Presidente da República, queria passar o final para o ano 2000. Os chineses disseram que tudo aquilo tinha de acabar antes do ano 2000. Foi na altura possível, dentro de uma lógica histórica que são as mudanças da história, que não é imutável.

Se tivesse de apontar erros de parte a parte, quais apontaria, no processo de transição?

Os erros que houve da nossa parte foi alguma instabilidade da governação. Alguns escândalos que houve.

O caso do fax de Macau, por exemplo.

Sim, mas antes disso. O Governador Almeida e Costa dissolveu a AL, Pinto Machado esteve lá pouco tempo. Houve vários problemas e houve sempre um certo rumor e desconfiança de escândalos financeiros, corrupção. Da parte da China houve estabilidade mas houve um erro de percepção, pois os negociadores queriam tratar do processo da mesma maneira que trataram em Hong Kong, mas foram corrigindo a pouco e pouco. Nós mantivemos, com os últimos governadores, começando por mim, uma sequência de governação. Depois com acidentes de percurso, as pessoas e os problemas mudam. A China tratou cuidadosamente de Portugal mas com algum desconhecimento de qual era a especificidade de Macau e dos portugueses e estavam a tentar copiar o modelo de Hong Kong.

Ficou sempre essa ideia de uma administração portuguesa corrupta em Macau?

Há muita coisa feita pela comunicação social. Pode-se ter 40 pessoas muito boas, mas se tiver duas ou três que falham são essas que aparecem nos jornais. Isso passou-se em Macau e em Portugal também. A imprensa é livre, e controlar a imprensa é das piores coisas que se pode fazer, porque acaba sempre mal.

20 Dez 2019

RAEM 20 anos| Garcia Leandro, ex-Governador, separa as águas entre Macau e Hong Kong

O actual presidente da Fundação Jorge Álvares e Governador no período entre 1974 e 1979, Garcia Leandro defende que que a crise política que se vive em Hong Kong não é “extrapolável” a Macau por estarmos perante dois territórios completamente diferentes. Para o ex-Governador, o Governo Central quer muito que Macau seja um caso de sucesso e defende uma “identidade própria” para as quatro comunidades que existem no território

[dropcap]O[/dropcap] primeiro governador de Macau em democracia defende que Pequim quer fazer da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) um caso de sucesso e considera que a crise em Hong Kong não é extrapolável para este território.

“Eu julgo que o regime chinês quer fazer de Macau um caso de sucesso”, declarou à agência Lusa o general Garcia Leandro, que governou Macau entre 1974 e 1979.

Questionado sobre se os protestos que há seis meses ocorrem em Hong Kong se podem estender à RAEM, Garcia Leandro começou por dizer que se tratam de duas realidades diferentes em termos históricos, de massa crítica e de população.

“A situação não é paralela, não se pode extrapolar de Hong Kong para Macau”, afirmou o general, presidente da Fundação Jorge Álvares, uma estrutura criada no quadro da transferência da administração que tem como objectivo promover o diálogo intercultural entre Lisboa e a RAEM.

Hong Kong é palco de manifestações desde Junho, em protesto contra uma proposta legislativa que permitiria a extradição de suspeitos para a China continental.

O Governo de Hong Kong acabou por retirar a proposta, cedendo a uma das exigências dos manifestantes, mas a decisão não foi suficiente para travar os protestos anti-governamentais em prol de reformas democráticas e contra a alegada crescente interferência de Pequim no território.

Face aos protestos em Hong Kong, “Pequim tem tido uma grande contenção”, para evitar tomar uma posição de força, considerou Garcia Leandro.

O general, apesar de não querer entrar em especulações, disse que “dá a sensação” que “há ali uma mãozinha do exterior a empurrar”.

“De onde é que essa mãozinha do exterior vem não sei nem quero especular (…), mas é evidente que pode haver ali Taiwan, pode haver ali os Estados Unidos [país em guerra comercial com a China]”, comentou.

Em declarações ao HM concedidas em Junho, relativas à implementação da política “Uma Faixa, Uma Rota”, Garcia Leandro comentou um possível impacto dos protestos de Hong Kong, uma vez que a independência do sistema jurídico e judicial das regiões administrativas especiais “envolve grandes empresas internacionais que necessitam de ter uma base fiscal e jurídica sólida e estável e não se podem arriscar a ter pessoas extraditadas para a China e a serem julgadas lá. É uma situação que espero que venha a ser bem resolvida, mas que demonstrou algumas fragilidades”, acrescentou.

Garcia Leandro defendeu também que há o risco de a China enfrentar resistências na hora de negociar de forma bilateral ou multilateral com os países, mas que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, na sua essência, “não se vai alterar”.

No entanto, “é preciso ter cuidado com a situação e os estatutos, porque as pessoas e as empresas que estão nas regiões administrativas especiais têm estatutos registados para um período de 50 anos, com um quadro jurídico local e a independência dos tribunais. A reacção da população de Hong Kong, que foi muito grande, tem a ver com uma habituação da população a um determinado sistema que seria alterado (com a lei da extradição), criando uma perda de confiança de que a China não poderia beneficiar”.

Sobre as questões de cibersegurança na China, Garcia Leandro chegou a defender ao HM que “não [devem tirar o sono às pessoas]”, por serem “questões que resultam da ciberguerra e das necessidades cibersegurança, que actualmente acontecem em todo o lado”.

“A China percebe que não lhe vão fazer uma guerra, porque tem uma grande massa crítica para aguentar, mas pode ter intervenções do exterior através da via digital para tentaram destruir alguma coisa por dentro. É evidente que Hong Kong é um sítio fácil para essas pretensões e Macau acaba por ser arrastado”, acrescentou.

A herança portuguesa

Quanto à RAEM, Garcia Leandro referiu que “as autoridades chinesas de Macau têm demonstrado uma grande capacidade de compreensão na relação com a história portuguesa e a herança portuguesa, as associações e instituições portuguesas”.

Garcia Leandro fundamentou a sua opinião sobre a situação de Macau com o que viu em sucessivas visitas que fez à RAEM nos últimos anos (2011, 2018 e 2019).

“Visitei tudo e nunca vi aquelas associações, instituições tão bem tratadas como agora”, constatou.
“Interessa a Pequim que o caso de Macau seja um sucesso” e o novo Chefe do Executivo, que toma posse esta semana, Ho Iat Seng, e os membros do seu Governo são “um sinal de grande esperança na manutenção desta linha de comportamento”, considerou.

O general, de 79 anos, destacou ainda a visita do Presidente da China e líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, “a Macau para as comemorações” dos 20 anos da RAEM.

A agência noticiosa oficial Xinhua confirmou a visita de Xi Jinping a Macau entre 18 e 20 de Dezembro, para participar nas comemorações e na cerimónia de inauguração do quinto Governo da RAEM.

Integrar as comunidades

Na mesma entrevista, o general Garcia Leandro afirmou que o território “tem quatro comunidades etnicamente, socialmente e culturalmente diferentes”.

“São os macaenses, ou seja, os portugueses de Macau, são os portugueses da Europa, são os chineses de Macau e são os chineses do continente. O que interessava era criar uma identidade própria com esta gente toda”, declarou.

Segundo o general, já existe entendimento entre os chineses de Macau e os portugueses de Macau: “Existe entendimento, sempre viveram ali em conjunto”. Já quanto aos chineses que vêm do continente, “têm vivido num mundo fechado” e têm “alguma incompreensão” em perceber a realidade de Macau.

“Eles não têm, como os chineses de Macau, um conhecimento do passado histórico, da relação social que havia, porque há muitos casamentos mistos e muitas ligações, mesmo sem ser através do casamento, há muitas ligações mistas”, notou.

Relativamente a Portugal, o general destacou que a China tomou nos últimos tempos “atitudes muito significativas”.

Uma foi ter proposto em 2005 que o centro histórico de Macau fosse classificado património mundial da humanidade pela UNESCO, o que aconteceu em 2006. Outra, em 2003, foi a criação do Fórum Macau e, em 2005, a parceria estratégica com Portugal.

“O Fórum Macau é [no fundo] as relações da China com os países de língua portuguesa que têm como base Macau. E ali existe um representante de cada um dos países, tipo cônsul ou embaixador que está ali a trabalhar, além de fazer encontros de advogados, de empresários, de estudantes”, descreveu. Portanto, “esta relação com a China nunca deve ser desperdiçada”, defendeu.

“Deve ser aproveitada sabendo nós defender os nossos interesses, porque os chineses também defendem os seus interesses e a relação connosco é não só histórica, mas também é uma relação de interesses, também nos países de língua portuguesa como é evidente”, disse.

18 Dez 2019

RAEM 20 anos| Garcia Leandro, ex-Governador, separa as águas entre Macau e Hong Kong

O actual presidente da Fundação Jorge Álvares e Governador no período entre 1974 e 1979, Garcia Leandro defende que que a crise política que se vive em Hong Kong não é “extrapolável” a Macau por estarmos perante dois territórios completamente diferentes. Para o ex-Governador, o Governo Central quer muito que Macau seja um caso de sucesso e defende uma “identidade própria” para as quatro comunidades que existem no território

[dropcap]O[/dropcap] primeiro governador de Macau em democracia defende que Pequim quer fazer da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) um caso de sucesso e considera que a crise em Hong Kong não é extrapolável para este território.
“Eu julgo que o regime chinês quer fazer de Macau um caso de sucesso”, declarou à agência Lusa o general Garcia Leandro, que governou Macau entre 1974 e 1979.
Questionado sobre se os protestos que há seis meses ocorrem em Hong Kong se podem estender à RAEM, Garcia Leandro começou por dizer que se tratam de duas realidades diferentes em termos históricos, de massa crítica e de população.
“A situação não é paralela, não se pode extrapolar de Hong Kong para Macau”, afirmou o general, presidente da Fundação Jorge Álvares, uma estrutura criada no quadro da transferência da administração que tem como objectivo promover o diálogo intercultural entre Lisboa e a RAEM.
Hong Kong é palco de manifestações desde Junho, em protesto contra uma proposta legislativa que permitiria a extradição de suspeitos para a China continental.
O Governo de Hong Kong acabou por retirar a proposta, cedendo a uma das exigências dos manifestantes, mas a decisão não foi suficiente para travar os protestos anti-governamentais em prol de reformas democráticas e contra a alegada crescente interferência de Pequim no território.
Face aos protestos em Hong Kong, “Pequim tem tido uma grande contenção”, para evitar tomar uma posição de força, considerou Garcia Leandro.
O general, apesar de não querer entrar em especulações, disse que “dá a sensação” que “há ali uma mãozinha do exterior a empurrar”.
“De onde é que essa mãozinha do exterior vem não sei nem quero especular (…), mas é evidente que pode haver ali Taiwan, pode haver ali os Estados Unidos [país em guerra comercial com a China]”, comentou.
Em declarações ao HM concedidas em Junho, relativas à implementação da política “Uma Faixa, Uma Rota”, Garcia Leandro comentou um possível impacto dos protestos de Hong Kong, uma vez que a independência do sistema jurídico e judicial das regiões administrativas especiais “envolve grandes empresas internacionais que necessitam de ter uma base fiscal e jurídica sólida e estável e não se podem arriscar a ter pessoas extraditadas para a China e a serem julgadas lá. É uma situação que espero que venha a ser bem resolvida, mas que demonstrou algumas fragilidades”, acrescentou.
Garcia Leandro defendeu também que há o risco de a China enfrentar resistências na hora de negociar de forma bilateral ou multilateral com os países, mas que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, na sua essência, “não se vai alterar”.
No entanto, “é preciso ter cuidado com a situação e os estatutos, porque as pessoas e as empresas que estão nas regiões administrativas especiais têm estatutos registados para um período de 50 anos, com um quadro jurídico local e a independência dos tribunais. A reacção da população de Hong Kong, que foi muito grande, tem a ver com uma habituação da população a um determinado sistema que seria alterado (com a lei da extradição), criando uma perda de confiança de que a China não poderia beneficiar”.
Sobre as questões de cibersegurança na China, Garcia Leandro chegou a defender ao HM que “não [devem tirar o sono às pessoas]”, por serem “questões que resultam da ciberguerra e das necessidades cibersegurança, que actualmente acontecem em todo o lado”.
“A China percebe que não lhe vão fazer uma guerra, porque tem uma grande massa crítica para aguentar, mas pode ter intervenções do exterior através da via digital para tentaram destruir alguma coisa por dentro. É evidente que Hong Kong é um sítio fácil para essas pretensões e Macau acaba por ser arrastado”, acrescentou.

A herança portuguesa

Quanto à RAEM, Garcia Leandro referiu que “as autoridades chinesas de Macau têm demonstrado uma grande capacidade de compreensão na relação com a história portuguesa e a herança portuguesa, as associações e instituições portuguesas”.
Garcia Leandro fundamentou a sua opinião sobre a situação de Macau com o que viu em sucessivas visitas que fez à RAEM nos últimos anos (2011, 2018 e 2019).
“Visitei tudo e nunca vi aquelas associações, instituições tão bem tratadas como agora”, constatou.
“Interessa a Pequim que o caso de Macau seja um sucesso” e o novo Chefe do Executivo, que toma posse esta semana, Ho Iat Seng, e os membros do seu Governo são “um sinal de grande esperança na manutenção desta linha de comportamento”, considerou.
O general, de 79 anos, destacou ainda a visita do Presidente da China e líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, “a Macau para as comemorações” dos 20 anos da RAEM.
A agência noticiosa oficial Xinhua confirmou a visita de Xi Jinping a Macau entre 18 e 20 de Dezembro, para participar nas comemorações e na cerimónia de inauguração do quinto Governo da RAEM.

Integrar as comunidades

Na mesma entrevista, o general Garcia Leandro afirmou que o território “tem quatro comunidades etnicamente, socialmente e culturalmente diferentes”.
“São os macaenses, ou seja, os portugueses de Macau, são os portugueses da Europa, são os chineses de Macau e são os chineses do continente. O que interessava era criar uma identidade própria com esta gente toda”, declarou.
Segundo o general, já existe entendimento entre os chineses de Macau e os portugueses de Macau: “Existe entendimento, sempre viveram ali em conjunto”. Já quanto aos chineses que vêm do continente, “têm vivido num mundo fechado” e têm “alguma incompreensão” em perceber a realidade de Macau.
“Eles não têm, como os chineses de Macau, um conhecimento do passado histórico, da relação social que havia, porque há muitos casamentos mistos e muitas ligações, mesmo sem ser através do casamento, há muitas ligações mistas”, notou.
Relativamente a Portugal, o general destacou que a China tomou nos últimos tempos “atitudes muito significativas”.
Uma foi ter proposto em 2005 que o centro histórico de Macau fosse classificado património mundial da humanidade pela UNESCO, o que aconteceu em 2006. Outra, em 2003, foi a criação do Fórum Macau e, em 2005, a parceria estratégica com Portugal.
“O Fórum Macau é [no fundo] as relações da China com os países de língua portuguesa que têm como base Macau. E ali existe um representante de cada um dos países, tipo cônsul ou embaixador que está ali a trabalhar, além de fazer encontros de advogados, de empresários, de estudantes”, descreveu. Portanto, “esta relação com a China nunca deve ser desperdiçada”, defendeu.
“Deve ser aproveitada sabendo nós defender os nossos interesses, porque os chineses também defendem os seus interesses e a relação connosco é não só histórica, mas também é uma relação de interesses, também nos países de língua portuguesa como é evidente”, disse.

18 Dez 2019

Rocha Vieira: “Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa”

O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade

[dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China.

Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”.

“Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou.

Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu.

Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse.

FOTO: Mário Cruz | LUSA

Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou.

Asfaltar a estrada

Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”.

Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu.

Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar.

Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu.

A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou.

Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou.

A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”.

Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”.

Individualidade preservada

“Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira.

O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu.

No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou.

A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”.

No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”.

O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou.

Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.”

No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou.

Poder do yuan

“É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira.

Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu.

Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”.

Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou.

Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20.

“O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português.

Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”.

Visão de jogo

Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”.

Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”.

Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador.

O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse.

Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.

16 Dez 2019

Rocha Vieira: "Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa"

O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade

[dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China.
Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”.
“Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou.
Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu.
Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse.

FOTO: Mário Cruz | LUSA

Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou.

Asfaltar a estrada

Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”.
Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu.
Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar.
Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu.
A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou.
Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou.
A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”.
Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”.

Individualidade preservada

“Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira.
O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu.
No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou.
A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”.
No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”.
O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou.
Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.”
No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou.

Poder do yuan

“É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira.
Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu.
Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”.
Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou.
Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20.
“O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português.
Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”.

Visão de jogo

Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”.
Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”.
Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador.
O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse.
Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.

16 Dez 2019

Carlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: “China teve uma relativa contenção em Hong Kong”

Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana

 

Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia.

[dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos.

O que mudou?

Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal.

No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje?

O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China.

Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China.

Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada.

Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também?

Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida.

Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan.

Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão.

Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente.

Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996.

De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong?

Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção.

Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen.

Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção.

Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho?

Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong.

Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia?

Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais.

Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia?

As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo.

Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas.

A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros.

Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países?

Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também.

Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia?

Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.

11 Dez 2019

Carlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: "China teve uma relativa contenção em Hong Kong"

Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana

 
Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia.
[dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos.
O que mudou?
Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal.
No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje?
O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China.
Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China.
Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada.
Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também?
Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida.
Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan.
Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão.
Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente.
Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996.
De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong?
Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção.
Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen.
Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção.
Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho?
Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong.
Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia?
Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais.
Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia?
As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo.
Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas.
A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros.
Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países?
Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também.
Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia?
Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.

11 Dez 2019

Embaixador Santana Carlos recorda as dificuldades para manter o português

A questão “mais sensível” na conclusão das negociações entre Portugal e a China sobre a transferência da administração de Macau foi a regulamentação oficial das duas línguas, segundo o embaixador António Santana Carlos, que liderou o processo. O diplomata jubilado destaca ainda a forma como a contestação em Hong Kong fortalece a posição de Taiwan

 

[dropcap]O[/dropcap]s chineses sabem muito bem o que querem e para alterarem uma decisão é extremamente complicado, porque há vários centros de decisão: no partido, no Governo, e muitas vezes na Presidência”, afirmou.

Em entrevista à Lusa, em Lisboa, o diplomata jubilado recordou as 39 viagens que fez para Macau durante os três anos e meio em que chefiou o Grupo de Ligação Conjunto (GLC) em representação de Portugal, a partir de 1996. “Tenho um razoável conhecimento da maneira de ser dos nossos amigos chineses, não só porque vivi intensamente o final do processo de transição, como depois estive quatro anos em Pequim”, referiu.

Actualmente conselheiro diplomático na Câmara Municipal de Lisboa, Santana Carlos considerou que, apesar das dificuldades, os objectivos foram cumpridos, no processo de transição. “Como é habitual, aqueles assuntos mais complicados ficam, normalmente para o fim”, reconheceu, referindo-se à insistência da parte portuguesa para que o português e o mandarim ficassem ambos consagrados como línguas oficiais, por forma a assim vigorarem na Assembleia Legislativa, na administração e nos tribunais.

A medida, defendeu, foi “muito importante para a defesa da língua portuguesa”, uma premissa “fundamental”.
Este foi o assunto “mais sensível” que teve em mãos, dada a oposição da China: “Foi um processo difícil”.

Preferindo valorizar o resultado final, o embaixador admitiu que foi necessária “alguma combatividade” e que a discordância entre as partes levou à suspensão de uma reunião plenária do GLC, devido à falta de acordo quanto à agenda. “A China opunha-se à regulamentação oficial das duas línguas. Nós queríamos incluir esse ponto na agenda para começar a ser debatido e a China não tinha instruções e, portanto, dizia que não ou, pura e simplesmente – que é uma boa maneira que os chineses têm de manifestar uma opinião negativa – não respondia e o assunto ficava pendurado”, lembrou.

“Não foi fácil de conseguir, foi preciso insistirmos muito e mantermos uma coerência ao longo de todo esse processo”, sublinhou, considerando positivo o resultado, já que mais tarde viria a ser criado o Fórum Macau, uma plataforma que acabou por ligar a China aos países de expressão portuguesa.

Entre poderes

António Santana Carlos deparou-se com a diferença de culturas e de regimes. “Nós, ocidentais, por vezes temos consultas duplas Governo – Presidência, mas não com essa linha tradicional que é o partido”. Na China, prosseguiu, o partido “pronuncia-se sobre tudo. Sobre tudo o que é importante. E é preciso conciliar esses três centros de decisão no processo. Portanto, houve alguns assuntos que demoraram um pouco mais de tempo a resolver”.

Para Portugal, era importante “preservar a identidade e a singularidade” de Macau para que não fosse “absorvido de uma forma total e rápida” pela China. “Era fácil! Macau não é um território muito grande. Esses assuntos foram, talvez os de mais difícil resolução”, constatou.

Apesar de já não ter acompanhado o processo, o diplomata destacou também a construção do aeroporto de Macau como um passo importante para “dar uma maior autonomia” ao território administrado por Portugal até Dezembro de 1999. “Esse foi um dossier importante, já estava resolvido quando cheguei a Macau”, declarou.

Questionado sobre o cumprimento das bases que ditaram o acordo entre Portugal e a China fez um balanço positivo, com uma ressalva: “É claro que Macau não tem uma lei da greve, mas com a administração portuguesa essa lei também não existia”.

Portugal conseguiu também que não vigorasse a pena de morte em Macau e que as forças militares chinesas não entrassem no território logo à meia-noite do dia 20 de Dezembro de 1999, mas no dia seguinte. “Entraram oito horas depois, mas a transição foi completamente civil. Como não existiam forças militares em Macau, esse foi o nosso argumento para não ser uma coisa simultânea, com o final do processo de transição”, relatou.

Questão de opinião

As manifestações em Hong Kong estão a “dar força a Taipé”, segundo António Santana Carlos que considera que a China tem “efectivamente um problema” com a situação na antiga colónia britânica, algo que não se estende a Macau. “Para já o território é muito diferente de Macau, a região tem outra dimensão, outra economia. Tem um peso muito importante, os grandes trunfos da área financeira de Pequim são Xangai e Hong Kong”, afirmou.

Questionado sobre as diferenças verificadas ao nível da consciência política nos dois territórios, Santana Carlos respondeu: “Hong Kong tem uma massa crítica que às vezes cria problemas à China, como agora está a acontecer, porque tem uma opinião pública – até por ser maior – que não tem a atitude da opinião pública de Macau”. “Não quero dizer que há interferências, mas eles criaram uma situação complicada para a República Popular da China em Hong Kong”, acrescentou.

O problema, está a “reflectir-se nas relações entre Pequim e Washington”, porque “quer o Senado, quer a Câmara dos Representantes norte-americana aprovaram decisões apoiando o lado de manifestações em Hong Kong e criticando a China”, observou. “E essa posição foi posteriormente utilizada pelo Presidente Donald Trump, o que criou dificuldades à China”, acrescentou.

Na análise do diplomata, a China não só pensa na estabilidade de Hong Kong e Macau, como essa estabilidade é “muito importante para aplicar o objectivo de ‘Um País, Dois Sistemas’ a Taiwan”. “Essas manifestações, no fundo, acabam por dar força a Taipé, porque é fácil perceber, não é? A República Popular da China tem, efectivamente, um problema com a situação que decorre neste momento em Hong Kong”, declarou.

Festas inclusivas

Já em Macau, “a opinião pública é muito mais pequena, a massa crítica é menos activa”, disse o ex-responsável pelo Grupo de Ligação, frisando que Portugal conseguiu manter uma “relação de amizade e cooperação” com as autoridades chinesas diferente. “Tanto no processo de Macau, como no de Hong Kong, houve primeiro uma festa portuguesa antes da meia-noite, depois da cerimónia de transição, com as duas partes presentes ao mais alto nível e depois, finalmente, uma festa chinesa”, recordou.

Em Hong Kong, contou, “nem nenhum representante da China foi à despedida britânica, nem nenhum representante do Reino Unido foi à festa chinesa, depois da transição”. Em Macau, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês foi à despedida portuguesa e o homólogo português, Jaime Gama, também esteve presente na celebração dos chineses.

“Conseguiu-se um entendimento que julgo que é mais do que simbólico”, considerou Santana Carlos, para quem a postura das duas partes “valorizou e continua a valorizar o relacionamento Portugal – China”.

10 Dez 2019

Danielle da Silva, fundadora da ONG “Fotógrafos sem Fronteiras” | A vida em Sumatra 

Há exactamente dez anos a luso-descendente Danielle da Silva fundava em Toronto a “Fotógrafos sem Fronteiras” [Photographers without Borders (PWB), na sigla inglesa], uma organização não governamental que, através da fotografia e do storytelling, visa ajudar comunidades em todo o mundo nas mais diversas áreas de intervenção. Filha de mãe portuguesa e pai indiano, Danielle da Silva tem contado a história dos estragos causados a famílias, orangotangos e meio ambiente devido à extracção massiva do óleo de palma na ilha de Sumatra, na Indonésia

[dropcap]Q[/dropcap]uando criou a ONG “Fotógrafos sem Fronteiras”, em Toronto, o que tinha em mente?
Sempre estive ligada a projectos de desenvolvimento sustentável, e depois de ter trabalhado com grandes organizações como a ONU e respectivos parceiros, como é o caso do Programa Alimentar Mundial [World Food Bank], descobri que havia muitos problemas [na forma como os projectos eram desenvolvidos], com estrangeiros a direccionar a forma como o desenvolvimento é feito, sem sequer compreenderem a cultura e as pessoas, a religião e essas nuances das comunidades. Por essa razão, vemos que 80 por cento dos projectos falham, sobretudo aqueles que estão relacionados com a agricultura, mudanças climáticas ou direitos das mulheres. Estes projectos não têm sido bem sucedidos, mas há muito dinheiro investido. Queria trabalhar com pequenas ONG e já tinha tido alguma colaboração com elas, e foi aí que percebi o contraste face às ONG maiores e a forma como trabalhavam com as organizações comunitárias, e como lidavam com os problemas desde a sua origem. Percebi essas disparidades, e que as coisas não dependem apenas de quem tem o dinheiro, mas também de como as coisas funcionam de forma mais global. Fiz um projecto na Índia, não como fotógrafa, mas a distribuir medicamentos, e essa organização era liderada por indianos e também ajudava a comunidade a nível da educação.

DR

De que forma é que esse projecto na Índia influenciou a PWB?
Muitas vezes estas comunidades estão distantes das grandes cidades e quando as crianças são enviadas para as escolas deparam-se com a separação consoante as suas castas. Então o que esta organização fazia era levar as escolas para as comunidades, levar os professores para as aldeias a fim de resolver o problema, uma vez que havia um grau de iliteracia muito grande nestas comunidades. Vi o quão incrível isso era e tirei fotografias. Voltei à universidade e tentei explicar o que tinha visto. Comecei a mostrar as fotografias e as pessoas compreenderam, vi que a comunicação através da imagem era muito mais efectiva. Foi aí que percebi a importância do storytelling, porque era uma académica e explicava as coisas através de documentos, e tinha de ser credível. Mas através do storytelling havia uma grande ligação às emoções, com uma grande conexão às pessoas. Com essas imagens conseguir reunir dinheiro suficiente para essa organização criar mais nove escolas. Ao invés de pensar “deveria obter mais dinheiro para construir mais escolas”, decidi apostar no poder do storytelling e tentei criar esta ONG que poderia ajudar estas organizações através dessa vertente.

Esteve na Indonésia, na ilha de Sumatra, e lidou de perto com a problemática da destruição de florestas e do habitat natural dos orangotangos devido à extracção do óleo de palma. Que ambiente encontrou quando chegou à ilha?
A primeira vez que fui à Indonésia foi em Janeiro de 2015. No início estava como muitas pessoas, muito zangada com a questão da extracção do óleo de palma. Quando chegamos à Indonésia a primeira coisa que vemos são palmeiras e mais palmeiras. Ao início parece bonito, mas depois percebemos a quantidade de água que está a ser retirada e de como essa extracção está a destruir as florestas e o meio ambiente. Para mim o mais importante era a forma como essa extracção estava a afectar as pessoas. Na Indonésia, da perspectiva da preservação biológica e da conservação, não olham para as pessoas, mas sim para as florestas e a vida selvagem. Se virmos televisão, percebemos que os indonésios que estão ligados à extracção do óleo de palma dizem que é necessário fazer uma escolha, ou seja, preocupar-se com as pessoas ou com os orangotangos. Claro que a decisão vai para as pessoas. Percebi que as comunidades que vivem no meio das plantações de óleo de palma têm problemas com o acesso à água e não fazem muito dinheiro. Estas pessoas vivem rodeadas pela natureza, em pequenas aldeias, e não deveriam ter de comprar água. Se houver um boicote ao óleo de palma isso vai resultar na devastação destas famílias. Sumatra ainda enfrenta uma guerra civil ligada às províncias muçulmanas e existem ainda problemas a outro nível criados pela colonização. A última coisa que os locais precisam é que os estrangeiros lhes digam que a indústria do óleo de palma tem de ser alvo de um boicote. Os países estrangeiros que compram o óleo de palma contribuíram para a destruição de paisagens e tornaram-se ricos… o que eu gosto da organização local que está ligada a este projecto [Orangutan Information Center] é que não é liderada por estrangeiros ligados à área da conservação, mas é uma entidade gerida por locais que lutam muito por obter credibilidade e obter fundos. Tentam ajudar as pessoas ligadas à sua terra, levando-as a participar em acções de reflorestação e fazê-las ver que, dessa forma, a água regressa, e que também podem fazer dinheiro assim, que é a solução. Não é perfeita, mas é o que está a acontecer, o que é incrível.

Sente que mudou em muito a vida da comunidade com este projecto?
Os fotógrafos e outros expedicionários com os quais trabalhei reuniram dinheiro suficiente para preservar mais de 10 hectares de terreno, e também conseguimos mais atenção mundial de empresas, como é o caso da Lush [marca de sabonetes naturais], que se envolveu com o nosso trabalho e devido a essa parceria uma grande dimensão de palmeiras que tinham sido destruídas com a extracção do óleo de palma voltaram a ser plantadas. Neste momento o foco é juntar dinheiro, através das fotografias e do projecto de storytelling, para restaurar esses hectares destruídos. Eles fazem um trabalho sob vários ângulos e também é dada atenção aos orangotangos, a fim de encontrar pessoas que concedam patrocínios para apoiar estes animais. Temos uma longa parceria com esta entidade e o trabalho nunca está terminado.

Nesse projecto teve ligação com as autoridades locais?
Sempre, tudo o que fazemos tem de ser assim, porque na Indonésia a situação política é muito difícil. O advogado de uma das associações foi assassinado e há dois meses dois jornalistas foram assassinados por escreverem sobre a extracção do óleo de palma. É um lugar muito difícil para trabalhar se não cooperarmos.

Tem algum projecto pensado para a China?
Já estive na China, mas neste momento não temos nenhum projecto a decorrer no país porque a situação política é muito difícil. É perigoso e há poucas ONG na China com as quais possamos cooperar, e também mesmo que queiramos trabalhar com elas corremos o risco de ver projectos rejeitados ou sermos presos, ou não obtermos o visto de entrada no país. É difícil para os locais começarem novas ONG ou algum tipo de movimento a esse nível.

Ainda assim, quais são as problemáticas que considera mais prementes no país?
Sem dúvida a questão dos direitos humanos e as mudanças climáticas. Penso que estão interligadas. Teríamos de ter uma boa ONG local a trabalhar connosco, algo mais comunitário.

9 Dez 2019

Danielle da Silva, fundadora da ONG “Fotógrafos sem Fronteiras” | A vida em Sumatra 

Há exactamente dez anos a luso-descendente Danielle da Silva fundava em Toronto a “Fotógrafos sem Fronteiras” [Photographers without Borders (PWB), na sigla inglesa], uma organização não governamental que, através da fotografia e do storytelling, visa ajudar comunidades em todo o mundo nas mais diversas áreas de intervenção. Filha de mãe portuguesa e pai indiano, Danielle da Silva tem contado a história dos estragos causados a famílias, orangotangos e meio ambiente devido à extracção massiva do óleo de palma na ilha de Sumatra, na Indonésia

[dropcap]Q[/dropcap]uando criou a ONG “Fotógrafos sem Fronteiras”, em Toronto, o que tinha em mente?
Sempre estive ligada a projectos de desenvolvimento sustentável, e depois de ter trabalhado com grandes organizações como a ONU e respectivos parceiros, como é o caso do Programa Alimentar Mundial [World Food Bank], descobri que havia muitos problemas [na forma como os projectos eram desenvolvidos], com estrangeiros a direccionar a forma como o desenvolvimento é feito, sem sequer compreenderem a cultura e as pessoas, a religião e essas nuances das comunidades. Por essa razão, vemos que 80 por cento dos projectos falham, sobretudo aqueles que estão relacionados com a agricultura, mudanças climáticas ou direitos das mulheres. Estes projectos não têm sido bem sucedidos, mas há muito dinheiro investido. Queria trabalhar com pequenas ONG e já tinha tido alguma colaboração com elas, e foi aí que percebi o contraste face às ONG maiores e a forma como trabalhavam com as organizações comunitárias, e como lidavam com os problemas desde a sua origem. Percebi essas disparidades, e que as coisas não dependem apenas de quem tem o dinheiro, mas também de como as coisas funcionam de forma mais global. Fiz um projecto na Índia, não como fotógrafa, mas a distribuir medicamentos, e essa organização era liderada por indianos e também ajudava a comunidade a nível da educação.

DR

De que forma é que esse projecto na Índia influenciou a PWB?
Muitas vezes estas comunidades estão distantes das grandes cidades e quando as crianças são enviadas para as escolas deparam-se com a separação consoante as suas castas. Então o que esta organização fazia era levar as escolas para as comunidades, levar os professores para as aldeias a fim de resolver o problema, uma vez que havia um grau de iliteracia muito grande nestas comunidades. Vi o quão incrível isso era e tirei fotografias. Voltei à universidade e tentei explicar o que tinha visto. Comecei a mostrar as fotografias e as pessoas compreenderam, vi que a comunicação através da imagem era muito mais efectiva. Foi aí que percebi a importância do storytelling, porque era uma académica e explicava as coisas através de documentos, e tinha de ser credível. Mas através do storytelling havia uma grande ligação às emoções, com uma grande conexão às pessoas. Com essas imagens conseguir reunir dinheiro suficiente para essa organização criar mais nove escolas. Ao invés de pensar “deveria obter mais dinheiro para construir mais escolas”, decidi apostar no poder do storytelling e tentei criar esta ONG que poderia ajudar estas organizações através dessa vertente.
Esteve na Indonésia, na ilha de Sumatra, e lidou de perto com a problemática da destruição de florestas e do habitat natural dos orangotangos devido à extracção do óleo de palma. Que ambiente encontrou quando chegou à ilha?
A primeira vez que fui à Indonésia foi em Janeiro de 2015. No início estava como muitas pessoas, muito zangada com a questão da extracção do óleo de palma. Quando chegamos à Indonésia a primeira coisa que vemos são palmeiras e mais palmeiras. Ao início parece bonito, mas depois percebemos a quantidade de água que está a ser retirada e de como essa extracção está a destruir as florestas e o meio ambiente. Para mim o mais importante era a forma como essa extracção estava a afectar as pessoas. Na Indonésia, da perspectiva da preservação biológica e da conservação, não olham para as pessoas, mas sim para as florestas e a vida selvagem. Se virmos televisão, percebemos que os indonésios que estão ligados à extracção do óleo de palma dizem que é necessário fazer uma escolha, ou seja, preocupar-se com as pessoas ou com os orangotangos. Claro que a decisão vai para as pessoas. Percebi que as comunidades que vivem no meio das plantações de óleo de palma têm problemas com o acesso à água e não fazem muito dinheiro. Estas pessoas vivem rodeadas pela natureza, em pequenas aldeias, e não deveriam ter de comprar água. Se houver um boicote ao óleo de palma isso vai resultar na devastação destas famílias. Sumatra ainda enfrenta uma guerra civil ligada às províncias muçulmanas e existem ainda problemas a outro nível criados pela colonização. A última coisa que os locais precisam é que os estrangeiros lhes digam que a indústria do óleo de palma tem de ser alvo de um boicote. Os países estrangeiros que compram o óleo de palma contribuíram para a destruição de paisagens e tornaram-se ricos… o que eu gosto da organização local que está ligada a este projecto [Orangutan Information Center] é que não é liderada por estrangeiros ligados à área da conservação, mas é uma entidade gerida por locais que lutam muito por obter credibilidade e obter fundos. Tentam ajudar as pessoas ligadas à sua terra, levando-as a participar em acções de reflorestação e fazê-las ver que, dessa forma, a água regressa, e que também podem fazer dinheiro assim, que é a solução. Não é perfeita, mas é o que está a acontecer, o que é incrível.
Sente que mudou em muito a vida da comunidade com este projecto?
Os fotógrafos e outros expedicionários com os quais trabalhei reuniram dinheiro suficiente para preservar mais de 10 hectares de terreno, e também conseguimos mais atenção mundial de empresas, como é o caso da Lush [marca de sabonetes naturais], que se envolveu com o nosso trabalho e devido a essa parceria uma grande dimensão de palmeiras que tinham sido destruídas com a extracção do óleo de palma voltaram a ser plantadas. Neste momento o foco é juntar dinheiro, através das fotografias e do projecto de storytelling, para restaurar esses hectares destruídos. Eles fazem um trabalho sob vários ângulos e também é dada atenção aos orangotangos, a fim de encontrar pessoas que concedam patrocínios para apoiar estes animais. Temos uma longa parceria com esta entidade e o trabalho nunca está terminado.
Nesse projecto teve ligação com as autoridades locais?
Sempre, tudo o que fazemos tem de ser assim, porque na Indonésia a situação política é muito difícil. O advogado de uma das associações foi assassinado e há dois meses dois jornalistas foram assassinados por escreverem sobre a extracção do óleo de palma. É um lugar muito difícil para trabalhar se não cooperarmos.
Tem algum projecto pensado para a China?
Já estive na China, mas neste momento não temos nenhum projecto a decorrer no país porque a situação política é muito difícil. É perigoso e há poucas ONG na China com as quais possamos cooperar, e também mesmo que queiramos trabalhar com elas corremos o risco de ver projectos rejeitados ou sermos presos, ou não obtermos o visto de entrada no país. É difícil para os locais começarem novas ONG ou algum tipo de movimento a esse nível.
Ainda assim, quais são as problemáticas que considera mais prementes no país?
Sem dúvida a questão dos direitos humanos e as mudanças climáticas. Penso que estão interligadas. Teríamos de ter uma boa ONG local a trabalhar connosco, algo mais comunitário.

9 Dez 2019

Valério Romão, escritor: “Esta é a terra do porque não?”

No fim da residência literária que fez em Macau, Valério Romão segue para Lisboa com matéria-prima para escrever. Ainda não sabe bem o quê, nem em que moldes, mas daqui leva o absurdo, o paradoxo e um banho de cantonês, a poética língua que fala um pouco. Depois de escrever sobre temas como autismo e alzheimer, Valério Romão aponta a mira literária à sátira política, ao gozo do “lodaçal”

[dropcap]O[/dropcap] que o trouxe a Macau desta vez?
Venho numa residência literária, organizada pela Capítulo Oriental, e patrocinada pela Casa de Portugal em Macau e Fundação Oriente. Venho essencialmente porque da primeira vez que estive cá, em 2017, fiquei surpreendido com o meu grau de ignorância em relação à cultura chinesa e maravilhado com o tanto que havia para descobrir. E, de facto, Macau é um sítio seguro, porque tens um pé na China e outro em Portugal e podes mover-te com relativa familiaridade entre mundos e segurança e podes começar a descobrir o que é a China, sem te sentires completamente perdido.

Qual o resultado da residência? Vai publicar alguma coisa pela Capítulo Oriental?
Quero muito escrever qualquer coisa para o Hélder Beja, até porque sinto que, de alguma forma, lhe devo isso por todo o esforço que ele colocou em trazer-me cá e proporcionar esta residência. Não sei ainda se vai sair alguma coisa ou o que vai sair. Primeiro, a ideia é de digestão. Para um ocidental, há aqui muito estímulo para absorver em tão pouco tempo. Mas, de facto, a ideia é produzir qualquer coisa. Não sei bem em que moldes, se ensaio, memórias, conto, não sei se escreva qualquer coisa focada em Macau, ou com um pé em Macau, talvez um pouco mais abrangente.

Tem escrito durante o tempo que cá está?
Não. Só tomo notas.

Acha que a vida nesta cidade é conducente à escrita?
Sim. O problema de Macau é que é tão interessante que não dá vontade nenhuma de estar sentado numa escrivaninha com um computador a perder as coisas que estão a acontecer lá fora. Esse é que é o problema, porque quando queres escrever mandam-te para o Gerês, ficas lá, não há nada para fazer. Macau tem tanta vida que sentes sempre que estás a perder qualquer coisa se ficares a escrever. Portanto, o melhor é andar com um caderno, como eu ando, tirando notas. Aliás, para mim, nem são as notas que me interessam, mas o que fica na memória.

Esta estadia foi de…
Um mês e uma semana.

O que acha da vida nesta cidade. Agrada-lhe a ideia de morar em Macau?
Via-me a morar em Macau, mas Macau tem um problema. Mas antes disso, tem a vantagem de ser muito user friendly, os transportes funcionam bem, é uma cidade super segura, consegue-se viver aqui perfeitamente. O meu problema com Macau é que ao nível de diversidade de oferta cultural não é propriamente a cidade mais rica. Mas isso pode ser colmatado. Estamos a uma hora de Hong Kong, a duas horas de Taiwan, muito perto de Shenzhen, ao lado de Zhuhai. Há muita coisa para ser vista. Macau é, basicamente, um enclave a partir do qual se pode ir para muitos sítios. Mas via-me claramente a viver aqui, tirando o Verão que é insuportável.

DR

O que acha que vai levar de Macau?
Já estou naqueles últimos dias em que sinto, por um lado, a vontade de estar com o meu filho e com toda a gente em Portugal e, ao mesmo tempo, a sensação de que os dias estão a acabar e não queria que fosse assim. Sinto que devia ter feito muito mais coisas, mas acho que isso sente-se sempre que vais a algum sítio. Embora eu tenha a sensação também de que aproveitei bastante a minha estadia para ver muita coisa, mesmo que inútil. A colecção integra e tem espaço para o desperdício. Acho que o desperdício também funciona, porque para mim o ponto arquimédico desta cidade e, provavelmente, da China é o paradoxo. Sendo o desperdício integrável nesse paradoxo acho que funciona. Acho que vou daqui com o kitch e com a beleza sofisticada, com as coisas mais banais da rua e com as coisas mais estranhas. Tudo isso, numa espécie de dialéctica que não se resolve, e que é boa porque não se resolve.

O que destaca entre as coisas estranhas que compõem este puzzle paradoxal?
Acabei de vir de um ensaio de ópera chinesa numa casa de chá. Ontem fui a Zhuhai e encontrei uma cabine para dispensar vinhos. Fazes o scan de um código QR, pagas, abres a porta e levas o vinho. Havia uma daquelas máquinas de agarrar peluches, mas era com Pringles. Porque não? Alguém pensou nisso, porque não? Esta é a terra do porque não?! ‘Ah, a gente não acredita no Natal, mas podíamos fazer um presépio. Porque não?

Acha que estes detalhes o vão enriquecer?
O García Márquez dizia ‘eu não inventei nada. Tudo o que escrevo, ouvi, vivi, ou vi’. O realismo mágico é, de facto, muito mais fácil de fazer na América do Sul, ou em África, do que propriamente na Europa, onde a convenção científica estruturou o teu pensamento para não acreditar em determinadas coisas, ou achá-las, simplesmente, fantasiosas. Aqui não é bem a convenção científica ou o realismo mágico, mas é todo o sistema de absurdos que, de certa forma, funcionam. Uma pessoa leva isso e leva ferramentas, é como se tu viesses buscar matéria-prima para depois trabalhar.

Hoje, na Ilha Verde, um local de grande densidade populacional, apareceu uma vaca no meio trânsito.
Também vais ao Mercado Vermelho vês aqueles peixes todos retalhados com o coração a bater. E perguntas-te porquê? E a resposta é porque não?

Como se tem dado com o banho de cantonês?
Quando voltei para Lisboa depois de ter cá estado a primeira vez, acabei por começar a aprender cantonês. O meu cantonês é fraquíssimo, mas dá para perguntar quanto é que custa, perceber os números, responder, perguntar o que é. Mas isso também é interessante. O cantonês e o mandarim, embora sejam duas línguas diferentes, têm estruturas de formação e de sintaxe muito semelhantes e uma gramática praticamente igual. O que é engraçado nestas línguas, ao contrário das nossas, para além de serem tonais, são contextuais. Qualquer palavra metida num sítio diferente envolve e produz um significado diferente, dependendo da palavra que está atrás, ou que está à frente. A pessoa só percebe a frase no fim, como no alemão. Isto para mim é muito interessante, porque acho que é a língua mais poética que já conheci até agora. Tu não dizes ‘cuidado’, dizes ‘coração pequeno’. Isso é qualquer coisa. Porque quando tu te aproximas de um objecto que te assusta o teu coração encolhe. Podia dar mil exemplos, isto é absolutamente fascinante para uma pessoa que trabalha com palavras, que é como fazer uma tradução do pensamento. Acho que eles conseguiram fazer uma tradução mais imediata, porque não trabalham com palavras, mas sim com imagens. E o pensamento é estruturalmente feito de imagens. Apesar da linguagem estruturar o pensamento. É muito interessante seguir este percurso, este filão da língua chinesa porque isso pode modificar radicalmente a minha forma de escrever. Certamente, alguma da minha forma de pensar. Não há ‘adulto’, há uma ‘pessoa grande’, é como uma criança a falar. Quando pensas que já nos esquecemos do que é ser criança e há uma língua que te permite, de alguma forma, reaproximares-te disso, nem que seja um bocadinho, é fascinante. É uma forma de ligar as coisas de uma forma diferente.

Terminou a trilogia das Paternidades Falhadas, o que se segue?
São três livros relativamente pequenos, mas que me deram um trabalhão. Parece muito blasé de se dizer, mas esgotaram-me. Foram três livros muito intensos. São temas fortes e que me mantiveram naquela espiral de produção durante bastante tempo. Agora quero fazer uma coisa completamente diferente, muito mais cómica, diria que burlesca. Eu não sou de crítica social ortodoxa, do tipo “a direita é uma merda, porque” e “a esquerda é uma merda, porque”. Acho que a direita e a esquerda, enquanto ideias, têm coisas boas e más, uma e outra. Acho é que a esquerda e a direita portuguesa não existem, são ambas uma merda, porque não têm que ver com ideologia, a ideologia é do partido, da conveniência partidária, da compra de votos e dos lugares para os rapazes. Aquela coisa do jobs for the boys sempre existiu, no Cavaco, no Guterres, no Durão e no Sócrates nem se fala porque é um caso de polícia, claramente, seja ou não condenado. Quero escrever qualquer coisa que vá um bocado no sentido, não de desmascarar esta gente, mas de gozar com eles como eles devem ser gozados. Como devem ser pisoteados de uma forma cómica e maltratados. Fazer uma espécie de caricatura literária de toda essa gente que se arvora em político, em líder e em “ser cá da malta” ao mesmo tempo que é tão patente o narcisismo e egoísmo que essas pessoas até se coçam para dentro.

Esse tema não será ainda mais pesado. Mergulhar nesse mundo não será pior que mergulhar no mundo do autismo e alzheimer?
A política é um cancro maior. Não vejo um programa de televisão, não leio uma entrevista desta gente. Leio pouquíssimo dos jornais para não me expor à neurose deste lodaçal a que em Portugal se resolveu chamar política. Preferia tomar banho numa pocilga de estrume. Porque isto de facto é uma coisa que ao nível de um país civilizado, qualquer uma destas pessoas ao fim da terceira frase que proferissem já tinham saído do poder. O grau de tolerância em Portugal é enormíssimo. Parecemos uma vítima de violência doméstica, habituada à violência, e que ocasionalmente quando pensa em fazer qualquer coisa para acabar com ela, sente que é culpada por ela.

Uma espécie de síndrome de Estocolmo político.
É, e nós fomos reféns desta escumalha. O meu sonho é exportar o Parlamento, serem só suecos, dinamarqueses, alemães, franceses. Nem um português. Por mim, não havia um político português em Portugal. Meritocracia em Portugal? Mais facilmente encontrava um unicórnio gay.

5 Dez 2019

Leonel Alves, advogado e ex-deputado, sobre novo Governo: “Macau está de parabéns”

Leonel Alves considera que os nomes anunciados esta segunda-feira que farão parte do novo Executivo, liderado por Ho Iat Seng, Chefe do Executivo eleito, revelam, sobretudo, grande conhecimento de causa. O advogado, que esteve na Assembleia Legislativa 33 anos, espera que Sam Hou Fai continue a ser presidente do Tribunal de Última Instância. Quanto às políticas adoptadas na área da videovigilância, Leonel Alves assume que é preciso fiscalização não apenas de entidades públicas como de privados em caso de abusos

 

Numa primeira leitura, que comentário faz aos nomes anunciados esta segunda-feira?

[dropcap]N[/dropcap]ão há grandes surpresas. Os nomes são todos bons, são pessoas com conhecimento das realidades de Macau em cada um dos sectores, de maneira que Macau está de parabéns, vamos ter bons secretários e bons titulares dos principais cargos públicos, todos eles já conhecedores daquilo que deve ser resolvido nos próximos anos.

A nomeação do procurador-adjunto para o CCAC é um bom nome? Chan Tsz King esteve ligado ao processo Ho Chio Meng…

E não só, esteve ligado aos processos de Ao Man Long e teve muito ligado a todos os processos quentes, chamemos-lhe assim, a todos os processos de corrupção em Macau. Portanto é um conhecedor da matéria e poderá contribuir para liderar esta importante entidade de Macau.

É então um nome que tem o apoio das autoridades não apenas de Macau como da China e é um sinal de uma política de combate à corrupção?

Creio que é uma personalidade adequada para o desempenho dessas funções dentro do quadro traçado pelo Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, de haver uma Administração transparente e incorruptível.

O secretário para a Economia e Finanças não está muito ligado ao sector empresarial ou do jogo…

Mas como ouvi na conferência de imprensa, é um responsável do IAM e com uma ligação bastante directa aos assuntos relacionados com as Pequenas e Médias Empresas (PME). Foi a explicação que ouvi do Chefe do Executivo e é a pessoa adequada para a prossecução de uma política visando também promover e dinamizar este importante sector da actividade económica de Macau constituída pelos pequenos e médios empresários. Em relação a outros assuntos da área financeira, dos jogos de fortuna e azar, obviamente que o senhor Chefe do Executivo terá uma assessoria adequada para dar as informações e os pareceres.

Na área da Administração e Justiça entra André Cheong, já com provas dadas. Que expectativas deposita neste nome?

Já tive a oportunidade de trabalhar com ele em alguns diplomas jurídicos. É uma pessoa conhecedora do mundo do Direito de Macau, da sua realidade jurídica e das suas carências e das áreas que devem merecer melhoramento. No que diz respeito à Administração Pública, ele próprio diz que é funcionário público há muitos anos, portanto não é um desconhecedor desta matéria e de acordo com as coordenadas do CE obviamente que dentro de um ano ou menos do que isso haverá notícias sobre a tão desejada reforma administrativa de Macau.

Que balanço faz do mandato de Sónia Chan à frente da mesma tutela?

Desejo-lhe o melhor possível. Houve melhorias na área do Direito e da Administração Pública, é pena que o timing para alguns diplomas não tenha sido suficiente para que determinados diplomas pudessem ser aprovados e entrassem em vigor. Refiro-me à alteração do Código do Processo Civil, por exemplo, e de algumas carreiras específicas na área da Função Pública. Foram trabalho feitos ao longo dos anos e o tempo não foi suficiente para que fossem tornados públicos e discutidos nos órgãos próprios, neste caso, a Assembleia Legislativa.

Alexis Tam sai do cargo de secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Foi um governante atento às culturas portuguesa e macaense, acredita que Ao Ieong U poderá seguir o mesmo caminho?

Daquilo que ouvi do Chefe do Executivo [eleito], ele escolheu o melhor elemento da Função Pública que deu provas da maior eficiência da nossa máquina administrativa, e tenta usar os conhecimentos da nova secretária para introduzir melhorias funcionais nas áreas desta secretaria, como a assistência social, saúde, cultura e educação. É uma aposta na eficiência e no uso das novas tecnologias.

Há uma aposta na manutenção com os nomes de Raimundo do Rosário e Wong Sio Chak, sobretudo no que diz respeito a projectos essenciais a Macau. Houve uma preocupação de continuidade?

Há dois aspectos. O primeiro é a capacidade técnica de dar continuidade de concretizar projectos de grande volume para Macau, e por outro lado o Chefe do Executivo salientou o carácter impoluto desta personalidade no desempenho desta função, que exige de facto a presença de uma pessoa com uma grande base de ética e moral a fim de evitar situações que aconteceram no passado relativamente a um dos secretários. É uma tutela permeável e encontrou-se o melhor elemento de impermeabilização (risos).

No caso da tutela da Segurança, não teme evoluções mais negativas relativamente à questão da videovigilância?

Não tenho receios nenhuns. O uso das novas tecnologias é um factor essencial. Mas as novas tecnologias também podem ter um efeito contraproducente, designadamente no que diz respeito à protecção da privacidade das pessoas. Em Macau temos instituições, tal como a Comissão Fiscalizadora das Forças de Segurança de Macau, temos uma imprensa livre, organizações, cidadãos e deputados que também têm de cumprir o seu dever de evitar que situações de violação à lei aconteçam e que essas notícias sejam encaminhadas para os órgãos competentes a fim de a polícia cumprir rigorosamente o que está escrito na lei. Essas tecnologias existem para combater a criminalidade, ou seja, para servir o interesse público de encontrar quem é o autor de um crime, mas as entidades que têm acesso a essas tecnologias não podem abusar delas, e quem abusa tem de ser devidamente punido. Também tem de haver uma maior fiscalização quer pública quer privada, quer através da Comissão Fiscalizadora quer através dos jornais, por exemplo.

Chegou a ser avançado o nome do Ip Son Sang como possível substituto de Sam Hou Fai para a presidência do Tribunal de Última Instância, mas Ip Son Sang mantém-se como Procurador do Ministério Público. Espera uma saída de Sam Hou Fai?

Nunca ouvi falar nisso. A nomeação dos juízes, e também do presidente do TUI, está sujeita a um processo próprio, liderado por uma comissão independente de magistrados. Acho que Sam Hou Fai tem servido muito bem o lugar de presidente do TUI, e eu como cidadão e advogado gostaria de continuar a vê-lo exercer essas funções.

4 Dez 2019

Carlos Monjardino critica a “fraca” sociedade civil de Macau

O presidente da Fundação Oriente, Carlos Monjardino, considera que em Macau nunca existirá uma situação parecida com a de Hong Kong, porque a sociedade local é “fraca”, reflexo duma administração portuguesa mais permissiva em relação à China. Além disso, o ex-governante critica a falta de estratégia portuguesa na abordagem à China

 

[dropcap]”E[/dropcap]m Macau não vai haver nunca uma coisa igual ou parecida ao que aconteceu em Hong Kong”, afirmou Carlos Monjardino, em entrevista à Agência Lusa. No território onde desempenhou funções executivas “não há fagulhas” e as sociedades civis dos dois territórios do Delta do Rio das Pérolas não têm nada a ver uma com a outra: “uma é muito forte, a de Hong Kong, a de Macau é fraca”.

Para o presidente da Fundação Oriente e antigo número dois do Governo de Macau nos anos de 1980, a diferença tem apenas uma explicação: “os ingleses e os portugueses são completamente diferentes e tudo o que foi implementado em Macau tem claramente a ver connosco e o que foi implementado em Hong Kong tem a ver com os ingleses”. Ora, “os ingleses têm uma mentalidade completamente diferente da nossa”, rematou. Por isso, “a sociedade de Macau aceita mais algumas imposições de Pequim”. E os chineses “acham que Macau é um bom aluno, em contraponto ao que se passa em Hong Kong”.

Para Carlos Monjardino, “a questão dos protestos em Hong Kong começou por uma pequena fagulha”, numa referência ao projecto de lei, apresentado em Abril, que permitiria a extradição de suspeitos de crimes de Hong Kong para a China continental e que esteve na origem das manifestações e protestos violentos desde Junho.

Essa “decisão de as pessoas de Hong Kong poderem ser mandadas para serem julgadas na China, obviamente foi um disparate”, considerou Monjardino. E para o presidente da Fundação Oriente a medida faz parte de “um processo que o Presidente da China tem como um dos principais objectivos no mandato, a reunificação”. “Só que as coisas não podem ser feitas assim”, defendeu.

Para Monjardino, todo o processo “foi bastante mal gerido” pelas autoridades: “A senhora que está em Hong Kong, coitadinha, procura fazer o melhor que pode, mas não consegue, até porque não é ela que decide, quem decide é Pequim”. Para o presidente da Fundação Oriente, Carrie Lam “aguentou o primeiro embate até ao máximo, até que Pequim percebeu que não podia continuar a insistir”.

O ex-governante de Macau considera que Macau só poderá retirar a “curto-prazo” benefícios económicos da situação de instabilidade em Hong Kong. “Macau, a curto prazo, acaba por beneficiar” economicamente da crise da cidade vizinha, mas “a médio prazo não, porque a questão de Hong Kong vai-se resolver, espero que sem problemas de maior, mas não tenho tanta certeza”, afirmou Carlos Monjardino.

Para o presidente da Fundação Oriente, Macau poderia também aproveitar a situação de instabilidade no território vizinho de Hong Kong “para atrair capitais”, mas esse tipo de mercado “não existe praticamente”.
Carlos Monjardino sublinhou, porém, que espera que Pequim não use uma posição de força na resolução da situação em Hong Kong. “Seria um erro para Pequim”, disse, sobretudo “depois de Tiananmen”, referindo-se aos confrontos ocorridos na conhecida praça da capital chinesa, em 1989.

O presidente da Fundação Oriente lembrou que hoje é tudo muito mais mediático do que era em 1989, pelo que “toda a gente no mundo inteiro está a ver a reacção de Pequim”. Ora, a China não pode expor-se a uma crítica internacional massiva por uma posição eventualmente mais dura que venha a tomar, considerou.

Morte às portas

Em Macau, a extradição de cidadãos para serem julgados na China acontece “há muito tempo”, lembrou Carlos Monjardino. “Já nos tempos em que eu estava em Macau (…) havia pessoas que tínhamos de recambiar para a China, alguns ilegais”, recordou.

A eventual protecção jurídica aos cidadãos que vivem em Macau para não serem julgados sob o regime continental é algo que “não “está previsto, especificamente”, explicou Carlos Monjardino. Assim, “quando havia um caso de um crime grave perpetuado na China e a pessoa depois se vinha refugiar em Hong Kong ou em Macau, a China tinha razão de pedir a sua extradição”, relatou. “O problema é que se misturam as coisas graves com as que não são graves e há casos que a China quer julgar do outro lado, embora a gente tenha uma justiça completamente diferente deste lado”, sublinhou. Por isso, diz ter sido crítico relativamente a “alguns governos de Macau”, precisamente pela “permissividade com que encararam, sempre, algumas das exigências por parte de Pequim.”

No tempo em que esteve em Macau, lembra-se do caso de um indivíduo que Pequim pediu para ser entregue e julgado na China continental. No dia seguinte, o Governo de Macau, ainda sob administração portuguesa, soube que esse cidadão tinha sido julgado sumariamente. “Nós soubemos que naquela noite ele foi morto junto das Portas do Cerco”, na fronteira, afirmou.

Porém, assegurou, que um cidadão chinês “não é tratado da mesma maneira” pela China que um cidadão que “tenha passaporte português”. “Como a maioria dos macaenses têm passaporte português, esses têm uma protecção natural. Agora, os chineses que estão a viver em Macau não”, sublinhou.

Ponte de passagem

O presidente da Fundação Oriente considera também que a China aproveita “muito bem” a relação histórica com Portugal, país “fácil” para investir que a ajuda a alcançar metas na Europa e África.

Carlos Monjardino defende que os investimentos chineses em Portugal estão ligados à “hegemonia” que Pequim quer ter nesta parte do mundo. “Agora percebe-se que uma das coisas que os chineses querem são os portos”, num caminho “eminentemente político e económico”, afirmou Carlos Monjardino. “Isto não tem nada a ver com cultura, tem que ver com uma hegemonia, ou com uma influência, que os chineses pretendem ter nesta parte do mundo”, reforçou o antigo secretário-adjunto em Macau com responsabilidades na área da Economia.

Para o presidente da Fundação Oriente, a China olha para Portugal como “um país fácil em termos de investimento, em termos de bem-estar”.

Sobre o investimento chinês, Monjardino destaca que Portugal tem falta de capital estrangeiro, mas é preciso que Lisboa estabeleça limites. “O que é estratégico não deve ser de chineses, japoneses, franceses, nem de ninguém. Deve ser público”, disse, considerando que “a qualidade do investimento é mais importante que a quantidade”.

No entender do líder da Fundação Oriente, a posição de Portugal face à China tem-se mostrado “um bocadinho subserviente”, um comportamento que não é bem visto por Pequim. “Os chineses têm muito respeito pela verticalidade das pessoas, e quando as pessoas são muito subservientes (..,) eles não apreciam. Se calhar gostam porque lhes dá jeito na altura. Mas preferem alguém que seja firme”, defendeu.

Além de investirem em Portugal para assegurar uma posição na Europa, Pequim também precisa de Lisboa para ter acesso a África.

O reforço do ensino do português mostra hoje a importância de Portugal como instrumento para a influência chinesa em partes do mundo. Segundo Monjardino, em Macau não se fala mais português do que quando a administração era portuguesa.

No entanto, “se me disser que se fala mais inglês do que quando lá estávamos eu digo-lhe que sim”, concluiu.

Teoria da relativização

O presidente da Fundação Oriente avisa Portugal para seleccionar rapidamente áreas de investimento na China, como saúde, ou “muito pouco” ou “nada” sobrará de uma relação de 500 anos entre os dois países.
Portugal “tem já muito pouco” para recuperar da relação histórica de 500 anos com a China, e já só conseguirá algum ganho se fizer “um esforço muito grande, e muito bem direccionado para sectores de actividade compatíveis com a dimensão”, oferecendo algo “útil” a Pequim, afirmou Carlos Monjardino.

Na opinião de Monjardino, a saúde é um desses sectores da economia portuguesa com capacidade para investir no mercado chinês e com o qual Portugal ainda pode “dar qualquer coisa de diferente”. Para o presidente da Fundação Oriente, a saúde é uma área em que os chineses “estão a vir pedir aqui [conhecimento], comprando empresas portuguesas”. A Luz Saúde foi comprada “porque eles precisam do know how”, exemplificou.

Na opinião de Monjardino, Portugal perdeu as oportunidades de negócio que poderia ter ganho antes da transferência da administração do território para a China e “agora é muito mais difícil (…) voltar a apanhar o comboio, porque o comboio já está em andamento há muito tempo”.

Porém, para o gestor “há coisas” que Portugal ainda pode fazer em Macau, mas principalmente na China.
“Macau é de facto uma plataforma que a gente quer que seja grande e muito importante, mas estamos porventura a dar-lhe importância a mais. Uma coisa é Macau outra coisa é a China. Macau pode servir de uma pontezinha para a China, mas não é garantido que passando por Macau, se entre pela China dentro à vontade”, frisou, defendendo uma maior aposta no vinho, têxteis, produtos farmacêuticos ou novas tecnologias.

O que é preciso “é escolher os sectores em que Portugal tenha dimensão para poder chegar a um acordo com pés e cabeça com a China. E já não estou a falar com Macau, estou a falar com a China em geral, porque Macau é um microcosmos”, reforçou.

28 Nov 2019

AICEP | Exportações para Macau subiram 23,1 por cento até Julho

A delegada da AICEP disse à Lusa que as exportações portuguesas para Macau subiram 23,1 por cento nos primeiros sete meses de 2019, face ao período homólogo de 2018, para 17,7 milhões de euros. Além do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras

 

[dropcap]”N[/dropcapos sete primeiros meses de 2019, as exportações portuguesas para Macau somaram um total de 17,7 milhões de euros, mais 23,1 por cento que em igual período de 2018, um sinal positivo para Portugal”, considerou Maria Carolina Lousinha em entrevista à agência Lusa.

“O volume das trocas comerciais entre Portugal e Macau ainda tem muita margem de crescimento”, apontou a representante portuguesa, lembrando que “em 2018, o total exportado de Portugal para Macau foi de 27,8 milhões de euros”.

Os produtos alimentares, nomeadamente os vinhos, aguardentes e medicamentos, tiveram um peso de 34 por cento do total das exportações portuguesas para este mercado, de acordo com os dados da AICEP, seguido pelos produtos químicos, com um peso de 24,9 por cento.

Os produtos agrícolas representaram 18,4 por cento e máquinas e aparelhos valeram 16,1 por cento do total, diz a AICEP, destacando que “nos produtos alimentares o destaque vai para os vinhos, aguardentes e licores, conservas de peixe, azeite, bacalhau e enchidos”.

As importações provenientes de Macau foram de 2,9 milhões de euros, mas sofreram nos primeiros sete meses deste ano uma quebra de 33 por cento face ao período homólogo do ano passado, passando de 1,7 milhões de Janeiro a Julho de 2018, para 1,1 milhões de euros nos primeiros sete meses deste ano.

O número de empresas portuguesas exportadoras para Macau tem vindo a aumentar sustentadamente desde 2014, quando eram 364 as empresas que vendiam para o território, até chegar a 474 no ano passado, segundo os dados da AICEP.

Os produtos químicos ocupam a esmagadora maioria dos produtos que Portugal compra a Macau, valendo 83,7 por cento do total.

Além das Ruínas

A delegada da AICEP disse também que, para além do tradicional sector do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras. “Sendo o turismo um dos motores da economia de Macau, com um recorde de 35,8 milhões de turistas em 2018, oferecendo serviços de qualidade, não só a nível de hotelaria de luxo, mas também a nível de restauração e serviços, temos aqui um potencial a explorar, nomeadamente, a nível de produtos da Fileira Casa (têxteis lar, porcelanas, cutelaria, mobiliário, iluminação, etc), nos quais Portugal tem empresas com capacidade de oferecer produtos de elevada qualidade, inovadores e reconhecidos internacionalmente”, disse Maria Carolina Lousinha.

A responsável frisou em Macau acrescentou que “poderá ter também potencial, tendo em consideração as características deste mercado e a oferta portuguesa, o sector das Indústrias Culturais e Criativas, que abarca vários produtos que vão desde livros, cinema, dança e música, a design, pintura, arquitetura, entre outros”.

Por outro lado, acrescentou, “outra área que merece atenção é a da Inovação e Empreendedorismo”, já que “Portugal e Macau, através de um memorando de entendimento, estão a desenvolver esforços no sentido de fomentar o intercâmbio e a cooperação entre os jovens empreendedores da China e dos Países de Língua Portuguesa, bem como de assegurar as instalações básicas e serviços de apoio de qualidade junto dos empreendedores juvenis através do recentemente criado ‘Centro de Intercâmbio de Inovação e Empreendedorismo para Jovens da China e dos Países de Língua Portuguesa’, em Macau”.

Mais perto da China

Questionada sobre o ponto de vista das empresas que tentam estabelecer-se em Macau como porta de entrada no gigantesco mercado chinês, Maria Carolina Lousinha argumentou que isso “depende muito do tipo de actividade que a empresa pretende exercer em Macau”, mas lembrou que “quem quer trabalhar o mercado chinês tem que estar próximo da China”.

Nesse sentido, apontou, “com o projecto da Grande Baía, Macau passa a estar mais integrado na China continental, por isso, as empresas que tiverem presença em Macau, para além da proximidade, acabarão por beneficiar do acesso a um mercado de mais de 70 milhões de pessoas da Grande Baía”.

A integração regional foi aliás, uma das vantagens apresentadas pela delegada portuguesa na entrevista à Lusa: “Tivemos, recentemente, uma situação que mostra como Macau pode funcionar como plataforma para as empresas portuguesas na China continental”, disse Maria Carolina Lousinha.

“Com a grande procura de carne de porco, por parte da China, algumas empresas de Macau intermediaram o contacto entre empresas portuguesas do sector e importadores do produto em Zhuhai, que faz fronteira directa com Macau”, exemplificou, vincando que “Macau está a apostar na participação ativa na rede de zonas de livre comércio que têm vindo a ser criadas na China”.

Por isso, acrescentou, “as zonas de livre comércio de Tianjin, Guangdong-Hong Kong-Macau, bem como a de Fujian, podem constituir oportunidades para as empresas portuguesas, caso sejam reunidos e cumpridos uma série de pressupostos que confiram vantagens comparativas, nomeadamente do ponto de vista da flexibilização das políticas alfandegárias, de um ambiente mais aberto ao investimento exterior de acordo com as práticas internacionais”.

A participação portuguesa, via Macau, nestas zonas de comércio livre, “alicerçadas em sólidos planos de negócios e de marketing, podem conferir às empresas portuguesas o acesso facilitado ao mercado chinês”, concluiu a delegada da AICEP em Macau.

27 Nov 2019

AICEP | Exportações para Macau subiram 23,1 por cento até Julho

A delegada da AICEP disse à Lusa que as exportações portuguesas para Macau subiram 23,1 por cento nos primeiros sete meses de 2019, face ao período homólogo de 2018, para 17,7 milhões de euros. Além do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras

 
[dropcap]”N[/dropcapos sete primeiros meses de 2019, as exportações portuguesas para Macau somaram um total de 17,7 milhões de euros, mais 23,1 por cento que em igual período de 2018, um sinal positivo para Portugal”, considerou Maria Carolina Lousinha em entrevista à agência Lusa.
“O volume das trocas comerciais entre Portugal e Macau ainda tem muita margem de crescimento”, apontou a representante portuguesa, lembrando que “em 2018, o total exportado de Portugal para Macau foi de 27,8 milhões de euros”.
Os produtos alimentares, nomeadamente os vinhos, aguardentes e medicamentos, tiveram um peso de 34 por cento do total das exportações portuguesas para este mercado, de acordo com os dados da AICEP, seguido pelos produtos químicos, com um peso de 24,9 por cento.
Os produtos agrícolas representaram 18,4 por cento e máquinas e aparelhos valeram 16,1 por cento do total, diz a AICEP, destacando que “nos produtos alimentares o destaque vai para os vinhos, aguardentes e licores, conservas de peixe, azeite, bacalhau e enchidos”.
As importações provenientes de Macau foram de 2,9 milhões de euros, mas sofreram nos primeiros sete meses deste ano uma quebra de 33 por cento face ao período homólogo do ano passado, passando de 1,7 milhões de Janeiro a Julho de 2018, para 1,1 milhões de euros nos primeiros sete meses deste ano.
O número de empresas portuguesas exportadoras para Macau tem vindo a aumentar sustentadamente desde 2014, quando eram 364 as empresas que vendiam para o território, até chegar a 474 no ano passado, segundo os dados da AICEP.
Os produtos químicos ocupam a esmagadora maioria dos produtos que Portugal compra a Macau, valendo 83,7 por cento do total.

Além das Ruínas

A delegada da AICEP disse também que, para além do tradicional sector do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras. “Sendo o turismo um dos motores da economia de Macau, com um recorde de 35,8 milhões de turistas em 2018, oferecendo serviços de qualidade, não só a nível de hotelaria de luxo, mas também a nível de restauração e serviços, temos aqui um potencial a explorar, nomeadamente, a nível de produtos da Fileira Casa (têxteis lar, porcelanas, cutelaria, mobiliário, iluminação, etc), nos quais Portugal tem empresas com capacidade de oferecer produtos de elevada qualidade, inovadores e reconhecidos internacionalmente”, disse Maria Carolina Lousinha.
A responsável frisou em Macau acrescentou que “poderá ter também potencial, tendo em consideração as características deste mercado e a oferta portuguesa, o sector das Indústrias Culturais e Criativas, que abarca vários produtos que vão desde livros, cinema, dança e música, a design, pintura, arquitetura, entre outros”.
Por outro lado, acrescentou, “outra área que merece atenção é a da Inovação e Empreendedorismo”, já que “Portugal e Macau, através de um memorando de entendimento, estão a desenvolver esforços no sentido de fomentar o intercâmbio e a cooperação entre os jovens empreendedores da China e dos Países de Língua Portuguesa, bem como de assegurar as instalações básicas e serviços de apoio de qualidade junto dos empreendedores juvenis através do recentemente criado ‘Centro de Intercâmbio de Inovação e Empreendedorismo para Jovens da China e dos Países de Língua Portuguesa’, em Macau”.

Mais perto da China

Questionada sobre o ponto de vista das empresas que tentam estabelecer-se em Macau como porta de entrada no gigantesco mercado chinês, Maria Carolina Lousinha argumentou que isso “depende muito do tipo de actividade que a empresa pretende exercer em Macau”, mas lembrou que “quem quer trabalhar o mercado chinês tem que estar próximo da China”.
Nesse sentido, apontou, “com o projecto da Grande Baía, Macau passa a estar mais integrado na China continental, por isso, as empresas que tiverem presença em Macau, para além da proximidade, acabarão por beneficiar do acesso a um mercado de mais de 70 milhões de pessoas da Grande Baía”.
A integração regional foi aliás, uma das vantagens apresentadas pela delegada portuguesa na entrevista à Lusa: “Tivemos, recentemente, uma situação que mostra como Macau pode funcionar como plataforma para as empresas portuguesas na China continental”, disse Maria Carolina Lousinha.
“Com a grande procura de carne de porco, por parte da China, algumas empresas de Macau intermediaram o contacto entre empresas portuguesas do sector e importadores do produto em Zhuhai, que faz fronteira directa com Macau”, exemplificou, vincando que “Macau está a apostar na participação ativa na rede de zonas de livre comércio que têm vindo a ser criadas na China”.
Por isso, acrescentou, “as zonas de livre comércio de Tianjin, Guangdong-Hong Kong-Macau, bem como a de Fujian, podem constituir oportunidades para as empresas portuguesas, caso sejam reunidos e cumpridos uma série de pressupostos que confiram vantagens comparativas, nomeadamente do ponto de vista da flexibilização das políticas alfandegárias, de um ambiente mais aberto ao investimento exterior de acordo com as práticas internacionais”.
A participação portuguesa, via Macau, nestas zonas de comércio livre, “alicerçadas em sólidos planos de negócios e de marketing, podem conferir às empresas portuguesas o acesso facilitado ao mercado chinês”, concluiu a delegada da AICEP em Macau.

27 Nov 2019

(Des) Conexões | A nova liberdade de Guilherme Ung Vai Meng

Mais de uma dezena de pessoas quiseram ouvir Guilherme Ung Vai Meng no Museu Berardo a explicar uma exposição fora do comum, feita a quatro mãos com o artista Chan Hin Io. Com (Des) Construção, o ex-presidente do Instituto Cultural assume ter feito coisas que nunca imaginou fazer. Agora resta continuar a pensar e a descobrir em novas formas de contar Macau

 

[dropcap]S[/dropcap]ábado à tarde, Museu Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Mais de uma dezena de pessoas reúnem-se para acompanhar a visita guiada à exposição (Des) Construção, com dezenas de peças onde se inclui a fotografia, a instalação e vídeo, da autoria de Guilherme Ung Vai Meng e Chan Hin Io, que formam o colectivo YiiMa.

Mas antes de explicar uma exposição que revela o que Macau foi e que está, aos poucos, a deixar de ser, Ung Vai Meng, antigo presidente do Instituto Cultural (IC), começa com uma maneira de original de explicar aos interessados parte do que vão ver, ao ensinar os visitantes a trabalhar pedaços de bambu como tradicionalmente se faz no sector da construção civil em Macau.

Os dedos enrolam a ráfia à volta de pedaços de bambu que é oriundo do Alentejo, e não da China. Ung Vai Meng vai explicando uma prática muito comum em Macau, mas que poucos das gerações mais novas querem aprender. A arte de trabalhar o bambu é retratada em duas imagens da exposição, bem como numa grande instalação presente numa das salas.

“Há dois anos, quando visitei o Mosteiro da Batalha, que é lindíssimo, vi que ao lado havia um túmulo, e pensei em usar algo oriental e construir um pórtico”, contou aos visitantes.

Pelo meio, há um ou outro comentário que escapa sobre as decisões do Governo, nomeadamente no que diz respeito à imagem dentro da antiga Central Termoeléctrica da Areia Preta, destruída para dar lugar a habitação pública. “É pena”, disse.

(Des) Construção quase que pode ser chamado de símbolo da liberdade criativa que Guilherme Ung Vai Meng conseguiu desde que deixou a presidência do IC, num processo envolto em polémica, sobre o qual não quer falar. Reformado e a dar aulas de arte na Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau, Ung Vai Meng assume que a política nunca foi algo de que gostasse muito.

“Penso que a vida artística não tem fim, sempre quero aprender e ver coisas novas. Antes da minha reforma nem pensava nisso. Desde que me reformei sou muito mais livre, também posso pensar em muitas coisas, ao nível da instalação, escultura, antes nunca tinha feito”, contou ao HM depois da visita guiada.

Apesar de ter estado 34 anos no IC, Ung Vai Meng conta que nunca ambicionou cargos de topo como aquele que desempenhou. “Sou uma pessoa natural, não sou ambicioso. Se aparecer, tudo bem, se não aparecer, tudo bem na mesma. Quando me reformei nunca pensei que fosse fazer algo no Museu Berardo. Se nada aparecesse iria continuar a desenhar ou a pintar.”

Imagens que ficam

Visitar (Des) Construção é depararmo-nos com algo nunca antes feito. Em templos budistas com estruturas de bambu, em antigas casas chinesas com cartazes na parede, nas Ruínas de São Paulo, repousam fotografias com detalhes em que ninguém repara. Há depois o olhar dos próprios artistas cujos corpos se transformam em anjos.

Ung Vai Meng explica ao HM que é como se fossem omnipresentes num território em constante mutação. “Sou pintor e registo paisagens, incluindo as de Macau. Também escrevi um livro sobre a Macau passada. Mas vivemos no século XXI e temos de procurar maneiras novas, ao invés de pintar ou escrever, para contar como era Macau. Por isso utilizámos os nossos corpos como testemunha para olhar o nosso mundo.”

“Sabemos que o anjo tem características muito especiais, consegue aparecer em qualquer sítio, entrar, seja no século XIX, XVI, dentro de casa ou ao ar livre. Somos testemunhas que olhamos, pois os anjos são neutros, nem são maus, nem bons”, relatou.

Esta descoberta constante faz parte da nova vida de Ung Vai Meng. “Trabalhei 34 anos como funcionário do IC e fiquei um bocado cansado. Quis procurar novamente a minha vida de artista. Continuei a pintar e a desenhar, mas em vez de só pintar tenho procurado maneiras de mostrar Macau.”

O facto de a Macau mais tradicional estar a desaparecer não assusta ou afecta Ung Vai Meng, que considera esta mudança natural em muitas cidades, quer sejam asiáticas ou europeias.

“Foi ideia do nosso curador, João Miguel Barros, de olhar para os espaços antigos de Macau. Tínhamos de encontrar uma lógica para organizar esta exposição e penso que isso não acontece só em Macau, mas também na Europa, em Portugal. Por isso em vez de escrever um livro para contar como era Macau, penso que a imagem visual tem mais poder. Por isso fiz este projecto.”

Para o ex-dirigente político, “é normal que sítios ou coisas desapareçam”. “Ontem visitei amigos cá em Portugal e cada pessoa, ou família, em cada sociedade, as coisas estão a desaparecer. É normal, sou testemunha, não tenho respostas. Se algo desaparecer, vão aparecer coisas novas. Sempre olhei para a frente e muitas vezes o passado é um background para conhecer melhor o futuro”, frisou.
Ung Vai Meng prefere não comentar as actuais políticas na área da cultura, numa altura em que o IC é liderado por Mok Ian Ian, depois de várias mudanças na liderança. Mas o artista assume que as especificidades culturais fazem de Macau um território especial.

“Macau é um sítio onde a cultura é algo muito importante e não é fácil, pois nem todas as cidades lidam com esta profundidade cultural, incluindo o património. Para mim a cultura é um recurso que precisa de ser desenvolvido.”

Questionado sobre o que poderia ter feito melhor enquanto esteve à frente do IC, Ung Vai Meng prefere nada apontar. “Fiz aquilo que tinha de fazer. Cabe ao público avaliar se o meu trabalho foi bom ou mau. Penso que tentei o meu melhor, não sei se é bom ou mau, cabe aos cidadãos avaliar. Mas em qualquer área, para um funcionário público, deve ser assim, não apenas na área da cultura.”

26 Nov 2019

Riqueza está mal distribuída em Macau, apesar do elevado PIB, diz Paul Pun

Numa entrevista concedida à agência Lusa, a propósito dos 20 anos da RAEM, o secretário-geral da Cáritas lembrou as enormes desigualdades sócio-económicas que persistem apesar de Macau ter um dos maiores Produtos Internos Brutos do mundo. Paul Pun falou ainda das dificuldades para manter a Cáritas a funcionar

 

[dropcap]O[/dropcap] secretário-geral da Cáritas Macau defende que o território possui um dos maiores Produto Interno Bruto (PIB) ‘per capita’ do mundo, mas que a riqueza está mal distribuída. “Somos muitos ricos ‘per capita’ mas a riqueza não está distribuída de acordo com o nosso desenvolvimento”, lamentou Paul Pun, responsável da instituição desde 1991, primeiro enquanto assistente do director, depois de 2000 na qualidade de secretário-geral.

Para ilustrar a disparidade, Paul Pun deu o seguinte exemplo que respeita à evolução do território desde a passagem da administração para a China: “O Governo aumentou em 14 vezes, desde 1999, [a despesa] na área social, mas o preço da habitação cresceu 21 vezes”. Ou seja, concluiu, “não se conseguiu acompanhar a inflação, por isso não conseguimos alcançar o progresso”.

Contudo, ressalvou, “hoje temos menos gente pobre porque com as políticas do Governo tem-se feito um esforço imenso para reduzir a pobreza e aqueles que têm menores rendimentos, e não apenas aqueles que mal podem sobreviver”. Isto porque “foram estendidos os limites a quem poderia beneficiar de apoio e hoje mais pessoas podem ser ajudadas”.

O responsável da Cáritas Macau afirmou não defender um aumento dos impostos para garantir mais e melhor apoio social à população, especialmente um que incidisse sobre a exploração do jogo. “Aumentar os impostos podia ser uma forma, mas também poderia desencorajar o investimento. Acho que a situação actual está bem. Não estou a falar em nome da indústria do jogo”, ressalvou, com um sorriso. É que, frisou, “ao receber um terço do jogo, Macau já é o segundo território mais rico ‘per capita’ do mundo”.

“Não devemos ser gananciosos”, disse, preferindo outra aposta: “Temos de saber como podemos usar melhor o dinheiro, isso é importante. Temos de planear como gastar dinheiro e construir infra-estruturas, estabelecer prioridades para não ter de suportar um fardo no futuro”.

Dificuldades de gestão

A Cáritas Macau providencia serviços sociais que abrangem os mais idosos e deficientes, passando pelo apoio dos mais jovens e menores, até às vítimas de violência doméstica. Com um orçamento anual na ordem dos 400 milhões de patacas, a instituição conta com 1.300 colaboradores. Destes, 90 são enfermeiros, 200 são assistentes sociais, sete são médicos e 20 têm funções como fisioterapeutas, terapeutas da fala e ocupacionais.

Dos utentes, cerca de 800 são idosos que se encontram em lares e 500 pessoas portadoras de deficiência, sendo proporcionado cuidados ao domicílio a mais de 200 pessoas. Outros 600 idosos que vivem sozinhos, que mantêm alguma autonomia, são apoiados pela instituição, que providencia ainda um serviço de refeições ao domicílio a 500 pessoas na Taipa, Coloane e na zona norte da cidade.

Perante estes números, Paul Pun disse faltar pessoal à instituição para enfrentar os futuros desafios e para garantir a expansão dos serviços de apoio social no território. O responsável sublinhou que a maior carência é ao nível do pessoal médico, nomeadamente de enfermeiras.

“Não temos enfermeiras suficientes para enfrentarmos os desafios do futuro, pelo que não podemos expandir os nossos serviços. Precisamos de quem se dedique a servir as pessoas no âmbito da missão da Cáritas, seja remunerada [a prestação do serviço] ou em regime de voluntariado”, acrescentou.

Paul Pun explicou que essa foi a razão pela qual a Cáritas já fez um apelo à comunidade das enfermeiras “para que se voluntariassem ou fizessem parte do pessoal em regime parcial”.

O secretário-geral explicou que a expansão dos serviços passa não só pela admissão de mais utentes, mas em reforçar a resposta aos que já se encontram na instituição, com um foco, por exemplo, nos mais idosos e naqueles que apresentam constrangimentos ao nível da mobilidade.

“O envelhecimento da população é uma realidade, mas não temos tempo para nos preocuparmos, temos que nos preparar e ensinar a nova geração a cuidar dos mais velhos, como o estamos a fazer”, frisou.

Contudo, o maior desafio estrutural para o secretário-geral da Cáritas Macau passa pela capacidade de a instituição definir e reforçar a sua missão que integre “diferentes fés e etnicidades”.

Se no passado a Cáritas era maioritariamente constituída por portugueses e chineses e respondia às suas necessidades, “agora há que contar com os migrantes, porque há cerca de 190 mil em Macau”, observou.

25 Nov 2019

Sara Medina e João Medina, Sociedade Portuguesa de Inovação: “A China é um processo contínuo”

Sara e João Medina, da consultora Sociedade Portuguesa de Inovação, empresa nascida no Porto e com representação em Pequim desde 1999, estabelecem ligações entre empresas, centos de inovação e universidades na busca da internacionalização. A China é um dos mercados preferenciais. Em entrevista ao HM, os primos confessam não notar efeitos da guerra comercial nas suas operações e acham que Macau precisa recriar a sua marca junto dos empresários portugueses

 

Qual o peso da China na operação da Sociedade Portuguesa de Inovação (SPI)?

 

[dropcap]S[/dropcap]ara Medina: Temos apoiado empresas europeias na internacionalização para a China, principalmente nas áreas da transferência de tecnologia, ligações com universidades e centros de investigação, apoio na candidatura a programas de financiamento. Também damos apoio a empresas chinesas que se queiram internacionalizar para os Estados Unidos, Europa e Brasil. Neste momento, estamos a criar uma rede de centros de investigação e inovação na China, um projecto que se chama Enrich in China, com parceiros muito interessantes, nomeadamente a Universidade de Tsinghua, o Governo chinês com o Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação, a Universidade de Nottingham, entre outros parceiros europeus. O objectivo é trazer investigadores, start-ups e PME da Europa para a China, promover toda a área de cooperação e transferência de tecnologia e ajudá-los na ligação com centros de investigação, com universidades, para estabelecerem parcerias tecnológicas.

Uma das questões em termos de internacionalização empresarial para a China é a abertura, ou falta dela. Como têm sentido essa abertura nos últimos 20 anos?

SM: Trabalho com a China desde 2003, há 16 anos. A China é um processo de aprendizagem. Muitas empresas chegam cá numa missão empresarial e acham que trabalhar com a China se pode fazer à distância. Mandam uns emails de follow-up, os emails nunca são recebidos, não têm WeChat. A China é um processo contínuo e é um processo de investimento. É necessário vir cá muitas vezes, nomeadamente numa fase inicial, de dois em dois meses, de três em três meses, e estabelecer relações de confiança. A parte do trust, das relações pessoais é essencial no desenvolvimento de negócios com a China. Penso que isso é algo em que os empresários, nomeadamente os portugueses, pecam. Vêm cá uma vez e acham que podem dar seguimento a qualquer tipo de colaboração através de email.

Como tem sido a vossa ligação com o Governo de Macau?

SM: Desta vez os contactos têm sido mais com universidades, incubadoras de empresas, Fórum Macau, escritórios de advogados. Não tivemos nenhuma reunião directa com o Governo. Tivemos no passado. Não temos tido uma colaboração muito estreita com o Governo de Macau, acabamos por fazer muito trabalho no Interior da China e os projectos que temos financiados pela Comissão Europeia têm se focado mais na China.

Qual o papel de Macau nas operações da SPI?

SM: Agora vemos Macau com bastante potencial e mais actividade em projectos ligados à inovação, turismo, estratégias de especialização inteligente e start-ups, devido às ligações fortes da Grande Baía e Delta do Rio das Pérolas. Existe a influência do Governo Central em querer promover a integração e o potencial de Macau nesta ligação.

João Medina: O potencial de Macau precisa de um rebrand em Portugal. Macau como porta de entrada para a China é visto tradicionalmente como um sítio para ir vender umas garrafas de vinho e azeite e escoar para a China porque eles são muitos milhões. Macau nestas áreas de maior valor acrescentado, com componente tecnológica e de inovação não aparece hoje em dia no radar. Pode não ser fácil entrar no radar. Nessas áreas, os empresários podem ir directamente a Pequim ou Xangai. Mas, hoje em dia, com esta dinâmica da Grande Baía, esse paradigma pode mudar um pouco, com este projecto poderia haver maior ligação a Portugal nas áreas tecnológicas e científicas. Pelo que vi nestes dias, existe aqui um grande potencial e muitos recursos. Mas os recursos não funcionam na lógica do paraquedista, do “chego aqui e vou-me embora”, é para quem queira fazer alguma coisa aqui em Macau, que tenha benefícios para si, para Macau e para a China.

Que dividendos têm tirado do projecto da Grande Baía, como vêm esta aposta do Governo Central?

JM: Aqui na China, não estamos só na lógica de réplica do que é feito nos Estados Unidos, ou noutro local. Existe já um frontline na China que serve de exemplo noutros sítios. Shenzhen é um exemplo disso. Os transportes públicos, táxis e grande parte dos veículos são eléctricos, algo surpreendente para alguém que vem de Portugal, onde existe um certo preconceito de superioridade. Saíamos do hotel e metemo-nos no trânsito silencioso. Importa acompanhar estas tendências, porque vão ser tendências mundiais. As diferenças para a China são significativas, mas a aprendizagem é importante. Outro aspecto muito criticado na Europa é o ambiente. Mesmo aqui ao lado, Zhuhai tem na sua envolvência uma quantidade invejável de parques urbanos, espaços verdes e parques naturais. Estamos a falar de uma população de alguns milhões, coisa pequena para a China, mas significativa para a Europa. Importa também transmitir essa imagem mais positiva da China e os intercâmbios que a SPI promove em ciência e tecnologia são muito importantes para que haja esse conhecimento mútuo. Porque o desconhecimento pode gerar o preconceito. Essa aprendizagem é importante.

A guerra comercial entre Washington e Pequim tem afectado a vossa actuação? Sentiram algum impacto?

JM: Dou um exemplo profissional. Estamos a fazer um parque de ciência e tecnologia em Cabo Verde. Lá, um pequeno país africano, a cooperação com a China é significativa. Todas as escolas secundárias têm um laboratório de informática e robótica oferecido pela Huawei. Se alguma vez Cabo Verde tiver de escolher um lado na área da tecnologia, é fácil perceber qual vai ser. Se isso acontecer também na generalidade dos países africanos, nos países asiáticos e na América Latina, sabemos que a China tem pontos muito fortes nesta guerra comercial. Portanto, provavelmente as coisas vão-se resolver à chinesa, de uma forma soft, a longo-prazo e sem aparecer nos telejornais. O que é absolutamente o oposto do que temos do lado americano, sobretudo com Trump. Saindo de portas e, se calhar, de um mainstream europeu e americano, as realidades próximas da China são enormes.

SM: A Europa só pode ganhar com isso, porque também já se nota uma maior abertura da China para entidades e empresas europeias que se queiram estabelecer aqui na China.

Recentemente, Bruxelas reagiu negativamente a alguns projectos ao abrigo de “Uma Faixa, Uma Rota”, por estarem em causa sectores fundamentais de alguns estados-membros, como Portugal. Como entendem esta posição?

JM: Nos nossos projectos maiores com a China a prática é diferente desse discurso. Prevalece a colaboração e reforço das parcerias com a China na área da ciência e tecnologia. Há vários anos que temos projectos com este tipo de objectivo e continuam a existir e a incluir a China e algum privilégios nas relações com a Europa. Numa opinião pessoal, e saindo das actividades da SPI, com a Europa de hoje em dia com governos mais conservadores e de direita é natural que haja uma maior tendência para o proteccionismo. Além disso, estes governos também podem ter uma visão crítica e preconceituosa em relação à China. Isso, se calhar, na política irá notar-se, nos negócios pode ser que sim, pode ser que não.

E desvalorização da moeda e desaceleração da economia chinesa? Sentiram algum impacto na operação da SPI?

SM: Desde de 2003 que venho à China. Nota-se, por exemplo, nas regiões de Pequim e Xangai que por volta de 2006 estavam a florescer. Ao nível do crescimento económico tem havido abrandamento, mas a China continua a crescer com valores muito interessantes. Da nossa parte, não tivemos impacto, continua o interesse de entidades europeias em internacionalizar para a China. Continua o interesse e o financiamento da Comissão Europeia.

21 Nov 2019

Richard Hardiman, professor universitário e consultor na área do ambiente: “China está a repetir erros do Ocidente”

Inglês com nacionalidade israelita, Richard Hardiman tem uma intensa relação com a China, onde trabalhou e viveu durante 25 anos. Doutorado em química, com especialização na área do ambiente e recursos hídricos, o professor universitário foi consultor para vários projectos ambientais e de desenvolvimento no país. Richard Hardiman fala dos riscos ambientais causados pela política “Uma Faixa, Uma Rota” e de como a China se preocupa mais com a estabilidade social, associada à problemática da poluição do ar, do que com as alterações climáticas

 

Viveu cerca de 25 anos na China, incluindo no Tibete. Como aconteceu essa jornada?

[dropcap]S[/dropcap]empre quis trabalhar com países em desenvolvimento e fiz o meu doutoramento em Israel na área da agricultura sustentável. Trabalhei também na Índia, um país extremamente difícil para trabalhar. Não conhecia nada sobre a China, não falava mandarim, mas queria ir para lá e fui convidado por uma empresa australiana para trabalhar numa pequena aldeia no noroeste do país. Era o coração da China, o coração das pessoas, a vivência da agricultura, mãos duras, grandes sorrisos. Uma pronúncia muito acentuada. Na altura, a China era um país difícil, não havia electricidade, todos os bens como café ou manteiga eram raros. Tínhamos de ir a Hong Kong buscar tudo isso.

Porque decidiu enveredar pelo estudo do ambiente e alterações climáticas?

Na China quis perceber como é que a população ia ser alimentada, tendo em conta a sua enorme dimensão. A minha especialização estava relacionada com a água, que se relaciona com as alterações climáticas, que por sua vez se liga com a energia e depois com políticas ambientais. Nesta fase olho para todos os aspectos relacionados com o ambiente na China, do ponto de vista de políticas, governança, leis, poluição do ar, dos solos e da água. Tudo isto tem um enorme impacto político em todo o mundo, temos as relações com países como a Rússia, Curdistão, Turquemenistão, com a política “Uma Faixa, Uma Rota” no topo de tudo isso. É algo que não pára de crescer.

Comecemos com essa ideia de que falou, de como se pode alimentar a China. O desenvolvimento económico levou milhões de pessoas dos campos para as cidades. A China encontrou o caminho ideal para dar resposta a esse crescimento de forma sustentável?

O lado sustentável não é uma questão, mas em termos de desenvolvimento económico é claro que há uma estratégia. Os limites de cada aspecto das políticas chinesas, a forma de pensar do Governo, tudo isso está relacionado com a estabilidade social. Quando Mao Zedong estava no Governo, a estabilidade social estava absolutamente controlada. Depois apareceu Deng Xiaoping que disse que, em prol do crescimento económico, para colocar o dinheiro nos bolsos das pessoas, deveria haver estabilidade social. E esse tem sido o pensamento seguido pelos líderes que lhe seguiram. Mas a questão ambiental surgiu no horizonte, as pessoas começaram a dizer “sim, temos dinheiro nos nossos bolsos, temos carros, mas não conseguimos respirar”. Então o ambiente tornou-se uma questão. Actualmente todas as políticas ambientais visam tornar a situação melhor, mas o limite é sempre a estabilidade social. Se olharmos para tudo o que está a acontecer, a política “Uma Faixa, Uma Rota”, é a mesma política que já foi introduzida, que é pegar na energia e materiais, transformá-los em projectos com valor e exportá-los. Tudo está a acontecer do ponto de vista ambiental e de uma forma muito pouco sustentável. A China está a repetir todos os erros do Ocidente, para minha frustração, pois esse foi o meu trabalho lá, mostrar quais foram os nossos erros como ocidentais e como as coisas deveriam ser feitas. Mas não ninguém ouviu essa perspectiva, ficou sempre a ideia do “agora é a nossa vez”.

As pessoas começam a falar dos problemas ambientais que a política “Uma Faixa, Uma Rota” pode trazer. Acredita que ainda é possível reverter a situação?

É muito possível, a questão é se há esse desejo. Xi Jinping disse várias vezes de que a aposta seria em prol da sustentabilidade e todas essas ideias, mas não há provas disso. Muito do financiamento está a ir para projectos ligados à energia, e muitos deles ligados a energias fósseis.  Estes são financiados por bancos estatais e tentam obter os 86 por cento dos financiamentos no âmbito da política “Uma Faixa, Uma Rota”. Claro que há alguns projectos ligados às energias renováveis, mas a maior parte está ligado às energias fósseis, e isso é assustador. É quase como replicar o que aconteceu na China, mas a um nível global.

Há muitos acordos assinados com países africanos. Acredita que África será o continente que mais irá sofrer as consequências ambientais destes investimentos?

Não apenas África. Temos o exemplo do Tajiquistão, que vai receber uma central eléctrica no centro da cidade. No caso do Cambodja, o pior cenário é causado por centrais nucleares localizadas na China, que estão a ser encerradas e desmanteladas e vendidas para o Cambodja, passam de lixo para tesouro. Estes cenários não nos dão uma boa previsão do que vai acontecer. Estou muito preocupado com isso.

Existe uma contradição na forma como a China está a levar a cabo as suas políticas ambientais e a postura internacional ao nível das alterações climáticas? A China critica os Estados Unidos por ter abandonado o Acordo de Paris, mas depois na política “Um Faixa, Uma Rota” toma más decisões?

Há uma contradição, absolutamente. A China é muito cuidadosa em relação ao facto de aquilo que é feito estar de acordo com o que é dito. Por exemplo, criaram este conceito, a intensidade do carbono. O que foi afirmado que o país iria reduzir as emissões em cerca de 45 por cento em termos da intensidade do carbono, que é uma forma de reduzir as emissões de carbono em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). A China diz querer reduzir esse rácio em 45 por cento até 2020, e 65 por cento até 2030. É um termo muito inteligente, porque o que diz é “podemos aumentar o PIB até um nível superior em relação ao aumento dos níveis de dióxido de carbono”. E fizeram-no. No que diz respeito ao Acordo de Paris, transferiram as indústrias pesadas para indústrias mais ligadas à alta tecnologia. As emissões de carbono têm vindo a aumentar, mas não tanto como se esperava.

Uma vez que os EUA saíram do Acordo de Paris, a China tem a oportunidade de liderar o processo, podendo talvez trabalhar num novo Acordo?

Não me parece que a China se preocupe com as alterações climáticas.

É propaganda?

Não, mas simplesmente não se preocupam. O que se preocupam é em relação à estabilidade social, a poluição do ar, aquilo em que os seus cidadãos estão a pensar. Do meu ponto de vista a poluição do ar não é a mesma coisa que as emissões de dióxido de carbono, pois a poluição do ar está relacionada com partículas, mas há uma relação entre as duas partes. O que eles fizeram nesta área foi notável, uma vez que desceram dos 80 por cento de dependência de energias fósseis para 65 por cento. Mas o limite é ter ar limpo e cidadãos satisfeitos, esse é o foco principal. As alterações climáticas ou a redução das emissões de carbono é um subproduto disso.

Não estão então interessados em liderar nenhum processo global desse tipo?

Não há indicação. Se liderarem, e falo de alterações climáticas, e não falo de mudanças económicas, é mais para estarem no topo, mas porque a China quereria isso? Se voltarmos um pouco atrás à conferência anual, em Copenhaga (em 2009), a China colocou-se nos ombros da Índia e disse: “nós somos países em desenvolvimento, representamos o mundo em desenvolvimento e insistimos que os países desenvolvidos ajam em conjunto e reduzam as emissões de dióxido de carbono”. Afirmaram não estar de acordo com o Protocolo de Quioto. Classificar-se a si mesmo como um país em desenvolvimento não constitui um problema, isso foi em 2009. Mas permitir que os países desenvolvidos reduzissem as suas emissões de dióxido de carbono fez com que se tenha reduzido o poder das indústrias do Ocidente e isso permitiu à China desenvolver muitos aspectos.

A Índia está numa situação pior ao nível das questões climáticas em relação à China? Recentemente vimos a vaga de nuvens de fumo registadas em Nova Deli?

Sim. A Índia está fora de controlo, o país não está assim tão desenvolvido. Quando a China tem uma política preocupa-se com ela e impõe-na. Mas na Índia é uma confusão democrática e não posso dizer que tenha uma política ambiental. Se olharmos para o mapa da poluição do ar, em primeiro lugar surge Nova Deli e o resto da Índia não apresenta problemas. O problema na Índia é que não vejo nenhuma acção conjunta a nível ambiental.

Como ficam os EUA depois de deixarem o Acordo de Paris? Sem Donald Trump é possível voltar atrás?

Não sou adivinho, mas tudo depende de quem chegar ao poder. Nos EUA as emissões por PIB são enormes, estão fora de controlo. O que mais me impressiona é que nos filmes têm sempre céus azuis (risos). Poderiam facilmente reduzir essas emissões, mas o facto de não possuírem uma estratégia, de dependerem dos combustíveis fósseis, sabendo as tecnologias amigas do ambiente estão a ser desenvolvidas lá fora, vai fazer com que o país acabe por perder o barco.

Tendo como base o caso dos EUA, que deixaram o Acordo de Paris com Donald Trump, e a situação dos fogos na floresta da Amazónia, no Brasil presidido por Jair Bolsonaro, acredita que o populismo, e o seu aumento no Ocidente, pode trazer impactos negativos para as políticas ambientais? Há uma relação?

O facto é que todos somos responsáveis. Os nossos carros, os nossos frigoríficos, telemóveis, todas as tecnologias de que somos dependentes, estão a causar esta situação. Os acordos ligados às alterações climáticas, quer seja o de Paris ou Copenhaga, afirmam que os países industrializados não estão dispostos a mudar o seu estilo de vida. A economia está dependente do consumismo, é tudo conduzido dessa forma. Não estamos a avaliar bem as consequências. O Brasil, a situação na Amazónia, as florestas que estão a ser cortadas, é tudo parte de nós. Se os Governos nada fazem as pessoas têm de pressionar as autoridades para que se faça alguma coisa. Se olharmos para a história das políticas ambientais, estas têm sido iniciadas pelas massas. Churchill tornou-se primeiro-ministro do Reino Unido a seguir à II Guerra Mundial, e quando Londres começou a sofrer com as nuvens de fumo causadas pelas indústrias, ele disse que o carvão era o centro da nação, das indústrias, e que nada iria mudar. Em 1952 surgiu uma horrível nuvem de fumo que matou mais de quatro mil pessoas e então houve uma revolta social. Aí surgiu um decreto que proibia o uso do carvão nas casas e nas fábricas, e tudo mudou. A poluição do ar é uma porta de entrada para questões como segurança no trabalho, licença de maternidade, melhores condições de trabalho. Foi isso que levou a uma mudança na China, na Europa, no Japão. As pessoas podem insistir numa mudança e os Governos devem ouvi-las, sobretudo os Governos democráticos.

20 Nov 2019

Richard Hardiman, professor universitário e consultor na área do ambiente: “China está a repetir erros do Ocidente"

Inglês com nacionalidade israelita, Richard Hardiman tem uma intensa relação com a China, onde trabalhou e viveu durante 25 anos. Doutorado em química, com especialização na área do ambiente e recursos hídricos, o professor universitário foi consultor para vários projectos ambientais e de desenvolvimento no país. Richard Hardiman fala dos riscos ambientais causados pela política “Uma Faixa, Uma Rota” e de como a China se preocupa mais com a estabilidade social, associada à problemática da poluição do ar, do que com as alterações climáticas

 
Viveu cerca de 25 anos na China, incluindo no Tibete. Como aconteceu essa jornada?
[dropcap]S[/dropcap]empre quis trabalhar com países em desenvolvimento e fiz o meu doutoramento em Israel na área da agricultura sustentável. Trabalhei também na Índia, um país extremamente difícil para trabalhar. Não conhecia nada sobre a China, não falava mandarim, mas queria ir para lá e fui convidado por uma empresa australiana para trabalhar numa pequena aldeia no noroeste do país. Era o coração da China, o coração das pessoas, a vivência da agricultura, mãos duras, grandes sorrisos. Uma pronúncia muito acentuada. Na altura, a China era um país difícil, não havia electricidade, todos os bens como café ou manteiga eram raros. Tínhamos de ir a Hong Kong buscar tudo isso.
Porque decidiu enveredar pelo estudo do ambiente e alterações climáticas?
Na China quis perceber como é que a população ia ser alimentada, tendo em conta a sua enorme dimensão. A minha especialização estava relacionada com a água, que se relaciona com as alterações climáticas, que por sua vez se liga com a energia e depois com políticas ambientais. Nesta fase olho para todos os aspectos relacionados com o ambiente na China, do ponto de vista de políticas, governança, leis, poluição do ar, dos solos e da água. Tudo isto tem um enorme impacto político em todo o mundo, temos as relações com países como a Rússia, Curdistão, Turquemenistão, com a política “Uma Faixa, Uma Rota” no topo de tudo isso. É algo que não pára de crescer.
Comecemos com essa ideia de que falou, de como se pode alimentar a China. O desenvolvimento económico levou milhões de pessoas dos campos para as cidades. A China encontrou o caminho ideal para dar resposta a esse crescimento de forma sustentável?
O lado sustentável não é uma questão, mas em termos de desenvolvimento económico é claro que há uma estratégia. Os limites de cada aspecto das políticas chinesas, a forma de pensar do Governo, tudo isso está relacionado com a estabilidade social. Quando Mao Zedong estava no Governo, a estabilidade social estava absolutamente controlada. Depois apareceu Deng Xiaoping que disse que, em prol do crescimento económico, para colocar o dinheiro nos bolsos das pessoas, deveria haver estabilidade social. E esse tem sido o pensamento seguido pelos líderes que lhe seguiram. Mas a questão ambiental surgiu no horizonte, as pessoas começaram a dizer “sim, temos dinheiro nos nossos bolsos, temos carros, mas não conseguimos respirar”. Então o ambiente tornou-se uma questão. Actualmente todas as políticas ambientais visam tornar a situação melhor, mas o limite é sempre a estabilidade social. Se olharmos para tudo o que está a acontecer, a política “Uma Faixa, Uma Rota”, é a mesma política que já foi introduzida, que é pegar na energia e materiais, transformá-los em projectos com valor e exportá-los. Tudo está a acontecer do ponto de vista ambiental e de uma forma muito pouco sustentável. A China está a repetir todos os erros do Ocidente, para minha frustração, pois esse foi o meu trabalho lá, mostrar quais foram os nossos erros como ocidentais e como as coisas deveriam ser feitas. Mas não ninguém ouviu essa perspectiva, ficou sempre a ideia do “agora é a nossa vez”.
As pessoas começam a falar dos problemas ambientais que a política “Uma Faixa, Uma Rota” pode trazer. Acredita que ainda é possível reverter a situação?
É muito possível, a questão é se há esse desejo. Xi Jinping disse várias vezes de que a aposta seria em prol da sustentabilidade e todas essas ideias, mas não há provas disso. Muito do financiamento está a ir para projectos ligados à energia, e muitos deles ligados a energias fósseis.  Estes são financiados por bancos estatais e tentam obter os 86 por cento dos financiamentos no âmbito da política “Uma Faixa, Uma Rota”. Claro que há alguns projectos ligados às energias renováveis, mas a maior parte está ligado às energias fósseis, e isso é assustador. É quase como replicar o que aconteceu na China, mas a um nível global.
Há muitos acordos assinados com países africanos. Acredita que África será o continente que mais irá sofrer as consequências ambientais destes investimentos?
Não apenas África. Temos o exemplo do Tajiquistão, que vai receber uma central eléctrica no centro da cidade. No caso do Cambodja, o pior cenário é causado por centrais nucleares localizadas na China, que estão a ser encerradas e desmanteladas e vendidas para o Cambodja, passam de lixo para tesouro. Estes cenários não nos dão uma boa previsão do que vai acontecer. Estou muito preocupado com isso.
Existe uma contradição na forma como a China está a levar a cabo as suas políticas ambientais e a postura internacional ao nível das alterações climáticas? A China critica os Estados Unidos por ter abandonado o Acordo de Paris, mas depois na política “Um Faixa, Uma Rota” toma más decisões?
Há uma contradição, absolutamente. A China é muito cuidadosa em relação ao facto de aquilo que é feito estar de acordo com o que é dito. Por exemplo, criaram este conceito, a intensidade do carbono. O que foi afirmado que o país iria reduzir as emissões em cerca de 45 por cento em termos da intensidade do carbono, que é uma forma de reduzir as emissões de carbono em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). A China diz querer reduzir esse rácio em 45 por cento até 2020, e 65 por cento até 2030. É um termo muito inteligente, porque o que diz é “podemos aumentar o PIB até um nível superior em relação ao aumento dos níveis de dióxido de carbono”. E fizeram-no. No que diz respeito ao Acordo de Paris, transferiram as indústrias pesadas para indústrias mais ligadas à alta tecnologia. As emissões de carbono têm vindo a aumentar, mas não tanto como se esperava.
Uma vez que os EUA saíram do Acordo de Paris, a China tem a oportunidade de liderar o processo, podendo talvez trabalhar num novo Acordo?
Não me parece que a China se preocupe com as alterações climáticas.

É propaganda?

Não, mas simplesmente não se preocupam. O que se preocupam é em relação à estabilidade social, a poluição do ar, aquilo em que os seus cidadãos estão a pensar. Do meu ponto de vista a poluição do ar não é a mesma coisa que as emissões de dióxido de carbono, pois a poluição do ar está relacionada com partículas, mas há uma relação entre as duas partes. O que eles fizeram nesta área foi notável, uma vez que desceram dos 80 por cento de dependência de energias fósseis para 65 por cento. Mas o limite é ter ar limpo e cidadãos satisfeitos, esse é o foco principal. As alterações climáticas ou a redução das emissões de carbono é um subproduto disso.
Não estão então interessados em liderar nenhum processo global desse tipo?
Não há indicação. Se liderarem, e falo de alterações climáticas, e não falo de mudanças económicas, é mais para estarem no topo, mas porque a China quereria isso? Se voltarmos um pouco atrás à conferência anual, em Copenhaga (em 2009), a China colocou-se nos ombros da Índia e disse: “nós somos países em desenvolvimento, representamos o mundo em desenvolvimento e insistimos que os países desenvolvidos ajam em conjunto e reduzam as emissões de dióxido de carbono”. Afirmaram não estar de acordo com o Protocolo de Quioto. Classificar-se a si mesmo como um país em desenvolvimento não constitui um problema, isso foi em 2009. Mas permitir que os países desenvolvidos reduzissem as suas emissões de dióxido de carbono fez com que se tenha reduzido o poder das indústrias do Ocidente e isso permitiu à China desenvolver muitos aspectos.
A Índia está numa situação pior ao nível das questões climáticas em relação à China? Recentemente vimos a vaga de nuvens de fumo registadas em Nova Deli?
Sim. A Índia está fora de controlo, o país não está assim tão desenvolvido. Quando a China tem uma política preocupa-se com ela e impõe-na. Mas na Índia é uma confusão democrática e não posso dizer que tenha uma política ambiental. Se olharmos para o mapa da poluição do ar, em primeiro lugar surge Nova Deli e o resto da Índia não apresenta problemas. O problema na Índia é que não vejo nenhuma acção conjunta a nível ambiental.
Como ficam os EUA depois de deixarem o Acordo de Paris? Sem Donald Trump é possível voltar atrás?
Não sou adivinho, mas tudo depende de quem chegar ao poder. Nos EUA as emissões por PIB são enormes, estão fora de controlo. O que mais me impressiona é que nos filmes têm sempre céus azuis (risos). Poderiam facilmente reduzir essas emissões, mas o facto de não possuírem uma estratégia, de dependerem dos combustíveis fósseis, sabendo as tecnologias amigas do ambiente estão a ser desenvolvidas lá fora, vai fazer com que o país acabe por perder o barco.
Tendo como base o caso dos EUA, que deixaram o Acordo de Paris com Donald Trump, e a situação dos fogos na floresta da Amazónia, no Brasil presidido por Jair Bolsonaro, acredita que o populismo, e o seu aumento no Ocidente, pode trazer impactos negativos para as políticas ambientais? Há uma relação?
O facto é que todos somos responsáveis. Os nossos carros, os nossos frigoríficos, telemóveis, todas as tecnologias de que somos dependentes, estão a causar esta situação. Os acordos ligados às alterações climáticas, quer seja o de Paris ou Copenhaga, afirmam que os países industrializados não estão dispostos a mudar o seu estilo de vida. A economia está dependente do consumismo, é tudo conduzido dessa forma. Não estamos a avaliar bem as consequências. O Brasil, a situação na Amazónia, as florestas que estão a ser cortadas, é tudo parte de nós. Se os Governos nada fazem as pessoas têm de pressionar as autoridades para que se faça alguma coisa. Se olharmos para a história das políticas ambientais, estas têm sido iniciadas pelas massas. Churchill tornou-se primeiro-ministro do Reino Unido a seguir à II Guerra Mundial, e quando Londres começou a sofrer com as nuvens de fumo causadas pelas indústrias, ele disse que o carvão era o centro da nação, das indústrias, e que nada iria mudar. Em 1952 surgiu uma horrível nuvem de fumo que matou mais de quatro mil pessoas e então houve uma revolta social. Aí surgiu um decreto que proibia o uso do carvão nas casas e nas fábricas, e tudo mudou. A poluição do ar é uma porta de entrada para questões como segurança no trabalho, licença de maternidade, melhores condições de trabalho. Foi isso que levou a uma mudança na China, na Europa, no Japão. As pessoas podem insistir numa mudança e os Governos devem ouvi-las, sobretudo os Governos democráticos.

20 Nov 2019

Bernardo Mendia, presidente da Câmara de Comércio Portugal-Hong Kong: “O mercado de HK tem muitas vantagens”

Criada há pouco mais de um mês, a Câmara de Comércio Portugal-Hong Kong pretende dinamizar ainda mais as relações comerciais entre os dois territórios, que já comportam números significativos. Bernardo Mendia assume querer sensibilizar os empresários de ambas as partes para as oportunidades de negócio e deseja que os protestos em Hong Kong terminem “rapidamente”, uma vez que dão uma “má imagem” ao território

 

Porquê a criação de uma câmara de comércio entre Portugal e Hong Kong nesta fase?

[dropcap]C[/dropcap]uriosamente a iniciativa partiu do Hong Kong Trade Development Council (HKTDC) que teve esta iniciativa no âmbito das inúmeras feiras que lá se realizam. Eles têm esta política de incentivar negócios entre as comunidades que estejam fora do território, mas que tenham ligações a Hong Kong, e fazem esse incentivo através da criação do que eles chamam de business associations. Tenho imenso interesse e uma grande relação com Hong Kong, onde vivi e tenho negócios, e fiquei muito interessado quando falaram connosco. Depois reunimos um grupo de pessoas que pudessem ter interesse, dar força e visibilidade a uma entidade deste tipo e acabamos por decidir que o mais apropriado seria criar uma câmara de comércio e não este conceito de business association, porque as câmaras de comércio têm mais força. Aderimos à Federação das Câmaras de Comércio de Hong Kong e à rede das câmaras de comércio portuguesas, que são duas ferramentas de networking muito importantes, e arrancámos há um mês. Ainda somos um bebé, mas posso garantir que temos um grupo de gente com qualidade e credibilidade. Tivemos muito apoio de toda a gente, incluindo do Consulado-geral de Portugal em Macau e Hong Kong. Esta parte institucional é bastante importante, principalmente para os asiáticos. Também contamos com o apoio da AICEP, que é também muito importante para nós e para eles do lado de lá fazerem negócios cá. Temos ainda um vice-presidente que é residente em Hong Kong, o Gonçalo Frey-Ramos, uma pessoa que em Hong Kong tem dinamizado mais a comunidade portuguesa.

Que projectos a curto prazo pretendem desenvolver? Quais as necessidades mais prementes para as empresas?

Gostava sobretudo que nos vissem assim e que nos passassem a contactar quase que automaticamente, isto no caso das empresas de Hong Kong que investem cá. Já existem algumas, mas são veículos de investimento. Do lado português o que se verifica não é tanto investimento, mas sim empresas que querem exportar, há a participação em feiras. Acontece aí um casamento muito bom entre aquilo que são os objectivos do próprio HKTDC, pois este organismo pretende atrair pessoas para as feiras que são feitas lá e querem dinamizar o comércio. Nós temos um comércio bastante significativo a nível europeu, ao nível das trocas comerciais entre Portugal e Hong Kong falamos de mais de 500 milhões de dólares norte-americanos, em 2018, o que é bastante significativo. Somos dos países que tem maiores trocas comerciais com Hong Kong a nível europeu.

Em termos de acções concretas, o que está na calha?

O que pretendemos é que os empresários estejam mais sensibilizados para as oportunidades tanto de um lado como do outro. Este é um mercado aberto que está sempre à procura de investidores qualificados e também queremos que os empresários portugueses tenham maior apetência pelo mercado de Hong Kong, que tem muitas vantagens.

Significa isso que os empresários não têm tido apetência suficiente?

Qualquer empresário português, quando pensa em exportar, pensa em Espanha. E depois vai andando devagarinho. Os custos são menores e isso importa quando se está a pensar avançar. Nem todas as empresas têm escala e dimensão para ir para mercados tão longínquos, e aí a aposta é mais complicada. É muito importante sensibilizar os portugueses para que percebam que Hong Kong é um território acessível em termos de investimento e é um mercado que tem um poder de consumo muito grande. Do ponto de vista logístico é tudo muito concentrado, os custos não são tão grandes como às vezes se possa pensar. Há uma série de vantagens do mercado que importa que se saibam. Temos Macau ali ao lado, um cônsul-geral e um honorário também em Hong Kong, o empresário Ambrose So, que dá sempre todo o apoio a toda a gente. A AICEP também está presente.

O que é que o mercado de Hong Kong pode oferecer que o de Macau não oferece?

Escala. É o principal factor, porque Macau é muito pequeno. Macau tem, no entanto, uma vantagem, que é o facto de os produtos já lá estarem. Parte dos produtores portugueses que exportam já estão em Macau, o que é uma vantagem, mas os bens estão ali para um pequeno mercado.

Quais são as principais áreas de actividade das empresas que estão sediadas em Hong Kong?

Não tenho esse levantamento. Conheço algumas empresas que são aquelas que todos conhecemos, mas já pedimos ao HKTDC esses dados. Sabemos que a Hovione está lá, a Sogrape, a Somel, ou seja, empresas de áreas muito distintas.

Quando as empresas portuguesas vão para Macau querem sobretudo chegar ao mercado chinês. Quando vão para Hong Kong, há também esse desejo de ligação com a China ou querem penetrar apenas no mercado de Hong Kong que já tem bastante dimensão?

Também querem ir para o mercado chinês. Claro que Hong Kong pode ser mais facilmente um mercado final, mas todos eles querem entrar no mercado chinês. Entrar por Hong Kong tem vantagens, a nível legal, de arbitragem, a nível fiscal também. Mas aí é equiparável a Macau.

Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, anunciou recentemente que pode vir a estabelecer um acordo de comércio com o Reino Unido no âmbito do Brexit. Qual o efeito que poderá surgir para as empresas portuguesas?

Tudo o que sejam acordos de livre comércio de eliminação de barreiras beneficia os empresários do mundo inteiro. Quantos mais acordos de livre comércio e de regulação da dupla tributação tudo isso beneficia os empresários, as pessoas e a economia.

Está receoso do efeito do Brexit no sector empresarial português?

Esses movimentos são o oposto do que falávamos em termos de abertura. Quanto mais integração melhor, cada um pode, e deve manter as suas especificidades, mas quanto maior a integração económica e fiscal melhor para nós, porque menos impostos são absorvidos pelo Estado e mais livre fica a economia.

Hong Kong tem enfrentado vários protestos desde o Verão e a onda de violência é cada vez maior. Até que ponto é que esta situação pode afastar as empresas estrangeiras do território?

Infelizmente estes protestos estão sobretudo a trazer uma imagem muito negativa para Hong Kong. Ainda há pouco tempo vi um relatório sobre o número de abertura de empresas que revelava que mais empresas se estavam a estabelecer em Hong Kong. É óbvio que do ponto de vista económico estes protestos vão prejudicar Hong Kong. Quanto mais tempo se prolongarem mais vão prejudicar, portanto a única coisa que desejamos como câmara de comércio é que estes protestos terminem rapidamente.

Tem receio que o vosso projecto da câmara de comércio sofra com estes acontecimentos?

Esperamos estar cá durante muitos e muitos anos, e na história de todos os países são coisas que acontecem, são cíclicas. A situação prejudica momentaneamente, porque estou convencido que vai prejudicar o comércio de Hong Kong e sobretudo as pessoas que lá vivem. Indirectamente, prejudica todas as pessoas que têm o plano de lá fazerem negócios.

19 Nov 2019

Chong Coc Veng | Presidente da Associação Geral de Automóvel de Macau-China (AAMC) admite que território pode receber campeonato TCR Ásia

A AAMC vai estudar a possibilidade de os pilotos locais competirem com viaturas que adoptam o regulamento TCR Ásia. Se houver interesse, uma prova deste género até pode ser integrada no Grande Prémio de Macau, nos próximos anos. Chong considera ainda que cabe aos pilotos locais viabilizarem carreiras internacionais e que o Governo já fornece grandes apoios

[dropcap]E[/dropcap]stá ligado ao Grande Prémio de Macau desde 2000. Mas quais são as primeiras memórias das corridas?
Acho que as memórias mais antigas e presentes que tenho são de 1979 quando comecei a participar nas corridas, o que fiz até 1989. Na altura era uma espécie iniciado que nem conhecia muito bem os regulamentos.

Como foram resultados?
Não foram nada de especial, mas uma vez fiquei em primeiro. Só que depois como alguém apresentou queixa sobre o carro, houve uma inspecção técnica e perdi alguns lugares ou acabei desclassificado… Deve ter sido isso, acho que fui desclassificado. No ano seguinte participei em mais corridas, antes de Macau, e consegui terminar no pódio.

Onde correu, além de Macau?
Até deixar de correr em 1989 competi em diferentes lugares na Ásia, como no Japão, onde participei na Taça Mitsubishi Mirage. Também havia uma competição com este carro em Macau, mas nunca participei nessa prova, só no Japão.

Ao longo da sua carreira que carros gostou mais de conduzir?
Gostei muito de correr com o Toyota Celica e com o Mitsubishi Lance. Foram realmente carros com que gostei mesmo de competir. Também corri com um Ford Capri que me deixou boas memórias.

FOTO: Rómulo Santos

Deixou as corridas em 1989 e em 2000 assume um lugar na organização do evento. Qual é a tarefa mais complicada, ser piloto ou organizador?
Como piloto só é preciso focarmo-nos nas corridas, mas como gestor é necessário olhar para um panorama muito mais amplo. Temos de conhecer as opiniões dos pilotos, mas também perceber o ambiente das corridas, saber o que a organização pretende, quais os objectivos com as provas e ainda cumprir as directrizes da FIA. São experiências muito diferentes.

Assumo que a tarefa de organização seja mais difícil…
Eu não vou dizer isso porque eu gosto destes desafios. Gosto de ter um desafio para ultrapassar.

Desde que está envolvido, qual é a edição do Grande Prémio que foi mais bem sucedida?
Honestamente, não encaro o Grande Prémio em termos de edições positivas ou negativas. Não acho que tenha havido uma edição muito muito muito boa ou outra má. Vejo as corridas como um desafio e vejo esta equipa [da comissão organizadora], que tem muita dedicação e uma grande paixão pelo automobilismo, a trabalhar para responder a esse desafio e a dar o seu melhor para que as coisas corram bem.

Este ano vamos ver os novos Fórmula 3 em acção. Quem teve a iniciativa de trazer este modelo para Macau?
A mudança partiu da Federação Internacional do Automóvel [FIA], que sugeriu que o novo modelo estivesse em Macau já este ano. Mas a decisão só foi tomada depois de várias reuniões e discussões entre a Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau [COGPM] e a FIA.

Este é um carro mais potente do que o anterior, o que coloca alguns desafios à organização…
Foi preciso fazer melhoramentos na pista. O Circuito da Guia tinha uma homologação de classe três da FIA e para recebermos estes carros foi preciso aumentar o nível para o dois. Foi um processo feito através dos estudos da FIA, que tem uma comissão para trabalhar na segurança dos circuitos. Estudaram-se todas as curvas do circuito e adoptaram-se as recomendações, que focaram a adopção de novos equipamentos de segurança, ou seja, aumentou-se a segurança do circuito, que acabou homologado com o nível dois.

A mudança acontece após o espectacular acidente da Sophia Floersch. Dificultou a escolha?
Sabemos que é sempre difícil evitar os acidentes nas provas de automobilismo. Portanto, o que se faz é estudar profundamente qualquer acidente que resulte das provas para, se possível, evitá-los ou minimizar os efeitos. Foi nesse sentido que aplicamos os pareceres da FIA para aumentar a segurança e nos próximos
anos vai ser este modelo de F3 em Macau.

Até hoje André Couto foi o único vencedor de Macau na F3. Quando é que este feito pode ser repetido?
Eu tenho sempre a esperança que os pilotos locais tenham bons resultados. Mas se tivermos em conta que Macau é um território pequeno, com poucos pilotos, acho que o facto de se chegar a este nível já é muito positivo. Nós gostávamos que houvesse vitórias, mas depende principalmente do trabalho árduo dos
pilotos.

O que quer dizer?
Gostávamos muito de ter outros pilotos como o André Couto, com esta experiência e qualidade. Mas isso depende de vários factores e dos esforço do próprio piloto. Como sabemos, o automobilismo exige muitos recursos financeiros e eu não acredito que haja lugar no mundo onde os pilotos sejam tão apoiados financeiramente como em Macau. Porém, o apoio do Governo e da AAMC tem limites, por isso tem de ser o piloto a conduzir o processo e a arranjar apoios financeiros. O Governo não pode financiar as carreiras dos pilotos a 100 por cento, eles têm de arranjar outros patrocínios.

Como encara que os pilotos estrangeiros consigam apoios das empresas locais, mas que o mesmo não aconteça com os pilotos de Macau?
É uma pergunta que não me compete responder. São escolhas das empresas, que têm a sua actividade comercial e decidem os pilotos que patrocinam de acordo com os seus interesses. Agora, quando se fala dos subsídios atribuídos pelo Instituto do Desporto [ID] parece-me que não existem as injustiças que muitas vezes se contam.  Acho que nenhum Governo atribui um subsídio maior a um piloto do que a outro quando estão nas mesmas condições.

Quanto à AAMC, como apoiam os pilotos locais?
Como os apoios financeiros partem do ID, o nosso apoio é mais na parte técnica, nas questões relacionadas com a interpretação dos regulamentos da FIA. Também disponibilizamos uma rede de contactos com outras associações para os pilotos interessados em participar em corridas fora de Macau. Existe um intercâmbio frequente entre a AAMC e outras associações que fazem parte da FIA.

No último ano, o presidente da COGPM colocou a hipótese da Taça do Mundo de GT sair de Macau. Este ano o número de inscritos subiu de 15 equipas para 17. É suficiente?
Consideramos que se tivermos mais de 15 equipas profissionais, que o número é consideravelmente aceitável. Estamos a falar de equipas profissionais, de topo, que têm outras alternativas e lugares onde podem correr. Por isso, no nosso entender este número muito próximo dos 20 carros é satisfatório.

Na Taça de Carros de Turismo de Macau os pilotos queixam-se porque não gostam que as classes 1.600cc Turbo e 1.9500cc ou superior estejam em pista ao mesmo tempo. Há planos para alterar os regulamentos?
Temos sempre em mente os pilotos. Esses regulamentos foram adoptados há alguns anos e sabemos que é bom mudar. Mas quando mudamos, temos de ter consciência de que há mais custos para os pilotos, que precisam de comprar outros carros. E a maior parte dos pilotos são amadores, não têm recursos para aguentar mudanças constantes nos regulamentos.

Ponderam criar uma corrida em Macau com o regulamento do Campeonato TCR Ásia?
É uma hipótese que está a ser considerada. Mas se houver mudança vai ser feita de forma gradual, ou seja, ao longo do anos, o que não impossibilitará os carros actuais de poderem correr.

A hipótese abre as portas para que mesmo o Campeonato TCR Asia venha a Macau…
Uma corrida com os regulamentos TCR Ásia permitiria convidar não só os pilotos locais, mas também outros pilotos asiáticos. Estamos até a estudar a possibilidade de Macau fazer parte desse campeonato. Mas isto tem de ser feito por fases. Primeiro, temos de ver se há interesse dos pilotos locais, que é o primeiro aspecto a ser considerado. Se estas mudanças foram implementadas talvez seja mais para 2022 ou 2023. Também temos de ver como se desenvolve o automobilismo nos próximos anos.

Isso faria com que tivesse de ser disputada uma outra corrida do Grande Prémio?
Sim, os carros com o regulamento TCR Ásia não iriam competir com os 1.600cc ou 1.950cc. Mas, primeiro o AAMC está a analisar se este tipo de viaturas interessa aos pilotos locais. Só numa segunda fase é que vamos comunicar com a COGPM, que tem a decisão final.

Há dois anos que o apuramento para a Taça de Carros de Turismo de Macau é realizado na pista de Zhaoqing. Antes era disputado em Zhuhai, poderá haver mudanças no próximo ano?
Em 2020 pode ser disputado numa pista diferente. É uma decisão que só vai ser tomada depois de Janeiro. Mas na selecção de uma pista temos em conta diferentes aspectos, como a proximidade, devido aos custos da logística, a existência de hospitais, hotéis, entre outros. Achamos que a rotatividade é importante para que os pilotos não se aborreçam e tenham uma experiência diferente.

Há alguma pista em mente?
Não, só vamos começar a estudar o assunto após o Grande Prémio de Macau, em Janeiro do próximo ano.

Anteriormente foi apresentado um plano para a expansão do edifício do Grande Prémio que nunca foi concretizado. Como estão os trabalhos?
Esta é uma pergunta que compete ao ID responder. Não tenho todos os dados para poder dar uma resposta.

Mas gostava de ter um edifício maior para trabalhar?
Claro que sim. Estamos num edifício construído em 1993 e desde esse período a sociedade sofreu muitas mudanças e uma grande evolução. Por isso, gostava que o edifício também fosse desenvolvido, porque mesmo as exigências das corridas – e Macau é um evento com muito valor para a FIA – também mudaram.

Agradecimentos à herança portuguesa
O presidente da AAMC fez questão de sublinhar a importância da Administração Portuguesa no que diz respeito ao Grande Prémio de Macau e à tradição do automobilismo. “Temos uma tradição muito longa e enraizada no desporto automóvel. É um aspecto em que temos de agradecer aos portugueses porque faz parte da herança e foi o desenvolvimento da prova que fez com que o interesse pela modalidade se desenvolvesse desta forma”, afirmou Chong Coc Veng, presidente do AAMC. “Naquela altura Portugal tinha eventos com nível mundial no automobilismo e trouxe essa experiência para Macau”, acrescentou.

14 Nov 2019

Huawei diz estar preparada para ‘lista negra’ dos EUA

[dropcap]A[/dropcap] tecnológica chinesa Huawei, que foi colocada numa ‘lista negra’ pela administração norte-americana, assegurou hoje estar “preparada” para limitações de negócios com os Estados Unidos, onde tem um volume de vendas pouco significativo, mas lamentou este “tratamento injusto”.

“De uma certa forma, nós estamos preparados”, afirmou o representante chefe da Huawei para as instituições europeias, Abraham Liu, em entrevista à agência Lusa, à margem do Dia Europeu de Inovação da Huawei, que se realizou em Paris.

Numa altura em que Washington e a Huawei estão numa guerra global por causa da cibersegurança e das infraestruturas a nível mundial, que já levou à criação de limites por parte da administração norte-americana nas compras feitas por empresas dos Estados Unidos à companhia chinesa (a chamada ‘lista negra’), Abraham Liu garantiu à Lusa que a fabricante se tem vindo a “preparar para o pior cenário”, ou seja, para a entrada em vigor destas limitações.

O responsável disse também que tais restrições, feitas num contexto de guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, não deverão ter impacto significativo por a Huawei ter “poucas vendas nos Estados Unidos”.

Ainda assim, Abraham Liu criticou a postura da administração norte-americana: “Os Estados Unidos consideram-se a maior potência do mundo e o país mais democrático e equilibrado, mas eu questiono no caso da Huawei, em que não houve qualquer conclusão por parte da justiça, onde está essa verificação e equidade?”.

“Este tipo de medidas contra a Huawei não são, de todo, justas”, lamentou. Segundo Abraham Liu, “o mundo dos negócios tem a sua forma de funcionar e quanto menos os ventos políticos influenciarem esse círculo, melhor, todos beneficiam”.

Princípio da incerteza

O representante da Huawei para a União Europeia (UE), que tem vindo a ser crítico da pressão feita pelos Estados Unidos no espaço comunitário, assinalou também que a administração norte-americana, liderada pelo Presidente Donald Trump, “parece estar baseada na incerteza em relação ao resto mundo”.

Os Estados Unidos têm vindo a acusar a chinesa Huawei de ser uma ameaça à segurança nacional, alegando que utiliza equipamentos para espionagem, o que a tecnológica rejeita.

Em Maio deste ano, os Estados Unidos decidiram banir a Huawei do mercado norte-americano, colocando-a numa ‘lista negra’ que limita os seus negócios no país. A administração norte-americana criou, também nessa altura, isenções temporárias para determinadas empresas norte-americanas que negoceiam com o grupo chinês, permitindo-lhes vender alguns produtos ou mudar de fornecedores durante esse período.

Estas isenções foram prorrogadas em Agosto, aguardando-se agora uma decisão norte-americana sobre a entrada em vigor das limitações relacionadas com a ‘lista negra’. “As suspeitas estão aí há meses, mas onde estão as provas? É injusto. Vá lá, nós somos uma companhia privada e estamos a ser atingidos pelo poder máximo. As suspeitas existem, mas a história tem provado que não cometemos nenhum erro”, adiantou Abraham Liu à Lusa.

Ana Matos Neves, Agência Lusa

7 Nov 2019