Pedro Arede EntrevistaChuxia Deng, investigador e reitor da Faculdade de Ciências Médicas da UM: “É possível prevenir o cancro da mama” Ao fim de quatro anos, uma equipa de 12 investigadores da Universidade de Macau (UM) descobriu um meio de travar a proliferação do cancro da mama e bloquear o aparecimento de metástases após cirurgia. Chuxia Deng, professor que liderou a investigação, aponta o caminho a percorrer e a razão porque Macau, assim como outros países asiáticos, regista muito menos casos que o Ocidente [dropcap]Q[/dropcap]ual a importância deste estudo? A importância desta descoberta assenta sobre vários aspectos. O primeiro de todos é que o cancro da mama ocorre com maior frequência nas mulheres, afectando anualmente mais de dois milhões de pacientes do sexo feminino e provocando a morte a mais de 600 mil. O gene sobre o qual estivemos a trabalhar chama-se BRCA1, cuja mutação está relacionada com o aumento do risco de desenvolver cancro da mama. O que isso quer dizer é que, estando a mutação deste gene relacionada com o aparecimento de cancro da mama de origem hereditária, as pessoas portadoras da mutação do gene BRCA1 têm muito mais possibilidades de contrair cancro da mama. Outro ponto de foco da nossa equipa foi o facto da mutação provocada pelo BRCA1 estar relacionado com os casos mais graves de cancro da mama, os do tipo triplo negativo (TNBC). Apesar deste tipo de cancro da mama ser muito difícil de tratar, descobrimos que o BRCA1 tem uma nova função que revelou ser de extrema importância. Isto porque antes, pensávamos que este gene estava apenas relacionado com a regeneração de ADN, mas no nosso estudo descobrimos que é também responsável por manter a integridade das mitocôndrias que, no caso de estarem danificadas, podem provocar inflamações e, consequentemente, a criação de tumores e metástases. Foi essa a nossa descoberta. Mas fomos mais longe e descobrimos que, ao utilizarmos inibidores contra inflamações, é possível parar a proliferação do cancro e bloquear o aparecimento de metástases. Portanto, esse é também um ponto muito importante desta pesquisa. O que é que na prática passa a poder ser feito de forma diferente no tratamento e prevenção do reaparecimento do cancro da mama? O nosso estudo aborda também um ângulo muito interessante porque em muitas pessoas, após serem operadas para a remoção dos tecidos cancerígenas, por vezes, volta a verificar-se a recorrência e o aparecimento de metástases. Isso quer dizer que após a cirurgia, mesmo que o cancro tenha sido removido, por vezes, ele pode voltar a aparecer. Nesse sentido, descobrimos que a ocorrência de inflamações desempenha um papel crucial porque, no nosso caso, ao conseguirmos tratar da inflamação, bloqueamos a formação de tecido cancerígena e também o aparecimento de metástases. Por isso, o nosso estudo sugere que, em alguns casos, após a cirurgia, o paciente seja tratado com inibidores inflamatórios para reduzir o risco do cancro voltar a aparecer. Isto é algo que temos muita vontade de aplicar. Em que é que o vosso estudo se distância de outros sobre o cancro da mama e quais os próximos passos para futuras investigações? O nosso estudo abordou apenas uma pequena parcela daquilo que é o universo do cancro da mama, porque a maioria dos cancros da mama não estão relacionados com o gene BRCA1. Mas, na minha opinião, podemos começar por assumir uma pequena parte para entender o mecanismo inerente a este tipo de cancro e, assim, gradualmente, sermos capazes de entender uma regra que pode ser aplicável a outros tipos de cancro. Por isso, faseadamente, pretendemos expandir o nosso trabalho a outros tipos de cancro da mama e compreender se o mesmo mecanismo se aplica. Outro objectivo do nosso estudo é compreender se o microambiente tumoral implicado no cancro da mama, também pode ser estendido a outros tipos de cancro, generalizando-o a uma maior fatia da população. Acredita que a evolução do panorama do cancro da mama tem sido positiva? Existem actualmente muitas abordagens relativas ao cancro da mama. O cancro da mama pode ser de vários tipos e, para a maior parte, já estamos preparados para lidar com eles e curá-los. Mas o problema são aqueles que estão relacionados com a mutação do gene BRAC1 ou do tipo triplo negativo, que são os mais difíceis de tratar. Por isso, a nossa estratégia passa por “atacar” estes dois tipos de cancros. No entanto, para os cancros relacionados com a mutação de gene, muitas pessoas já estão sensibilizadas para a questão da prevenção, como são exemplo as doenças genéticas. Nestes casos, é possível fazer sequências para descobrir essas mutações e actuar sobre elas. Um desses exemplos é o caso de Angelina Jolie, que em 2013, quando descobriu que tinha sofrido uma mutação do gene BRCA1, tomou a iniciativa de se sujeitar a uma cirurgia para remover a mama. Mais tarde, acabaria também por remover a outra mama como forma de prevenção. No entanto, existem muitos progressos que estão a ser feitos nesta área e outros factores de prevenção, nomeadamente ambientais e imunológicos relativos ao mecanismo inflamatório. Podemos tomar muitas acções para tentar impedir o aparecimento deste tipo de cancro. O que deve ser feito ao nível da sensibilização e prevenção do cancro da mama? Quais os sinais para os quais as pessoas devem estar atentas? Temos de transmitir que o cancro da mama afecta essencialmente as mulheres e que tem uma elevada taxa de frequência, causando muitas mortes. Mas também queremos que as pessoas saibam que é possível prevenir este tipo de cancro. É possível fazer uma detecção precoce. Em muitos países ocidentais, como os EUA, as mulheres a partir dos 50 anos devem fazer uma mamografia anual, de forma a actuar numa fase inicial sobre um eventual problema. O mesmo deve ser feito também em relação aos casos em que existem antecedentes familiares de cancro da mama. Por isso, este é um tipo de cancro em que é possível actuar de forma preventiva e essa mensagem tem de chegar às pessoas. Também é preciso estar atento às questões do sistema imunitário. Um sistema imunitário forte pode reduzir o aparecimento de inflamações e, consequentemente, deste tipo de cancro. Quais os principais desafios que encontraram durante a investigação? O principal desafio diz respeito à dificuldade na obtenção de amostras clínicas, isto porque Macau não tem assim tantos pacientes diagnosticados com cancro da mama. Por isso, para futuros trabalhos estamos a considerar proceder a ensaios clínicos fora de Macau. Por outro lado, as áreas circundantes têm vários exemplos como Zhuhai e, por isso, gostaríamos de examinar mais casos clínicos. Porque decidiu avançar com este estudo e quando começou a estudar o tema do cancro da mama? Participei num estudo sobre o cancro da mama em 1992, na Universidade de Harvard. A partir desse ano, optei pelo estudo nesta área porque sinto que é muito interessante e porque a taxa de incidência é muito elevada. Nos EUA, a taxa de incidência do cancro da mama é muito maior do que a de Macau ou da China e, por isso, acho que é um grande desafio. Em 1994 comecei a trabalhar sobre o gene BRAC1, por isso já levo 26 anos de trabalho sobre este tema. Qual é o panorama do cancro da mama em Macau? Em Macau, apesar de a taxa de incidência ser inferior à dos países ocidentais, existem anualmente cerca de 150 casos de cancro da mama, acabando por morrer cerca de 30 mulheres. É o tipo de cancro mais comum entre as mulheres de Macau. É preciso actuar. Através da prevenção é possível reduzir, no futuro, os riscos relacionados com o cancro da mama. Qual a razão para o número de casos em Macau e noutros países asiáticos ser consideravelmente mais baixo que nos países ocidentais? O cancro da mama pode ter origem em múltiplos factores. Um diz respeito à própria genética e neste aspecto, os países ocidentais têm maior incidência entre a sua população, nomeadamente quanto à mutação dos genes BRAC1 ou BRAC2. Outro aspecto está relacionado com o estilo de vida, por exemplo, o tipo de alimentação dos países ocidentais pode promover a formação do cancro da mama. Existem estudos a relatar que a taxa de incidência do cancro da mama aumentou em mulheres asiáticas a partir do momento em que se mudaram para os EUA. Por isso, acredito que há uma forte possibilidade de estar relacionado com a alimentação. O mesmo acontece, por exemplo, com o cancro do cólon que é muito mais frequente no Ocidente que no Oriente.
Salomé Fernandes EntrevistaStephen Morgan, futuro reitor da Universidade de São José: “Somos uma instituição de confiança” Nomeado para reitor da Universidade de São José (USJ), o diácono galês Stephen Morgan antevê desafios no rescaldo do novo coronavírus. Quer ouvir antes de traçar objectivos específicos, mas salienta o papel da USJ como ponte entre os mundos chinês e lusófono, e defende que a liberdade de expressão acarreta responsabilidades [dropcap]C[/dropcap]omo se sente depois de ter sido nomeado como reitor? Há dois sentimentos avassaladores. Um é um grande sentido de honra, e o outro uma sensação de gratidão à Fundação Católica por me nomear e gratidão ao meu predecessor, o padre Peter Stilwell, que tem sido notavelmente eficiente e um firme reitor da universidade. Estou um pouco intimidado pelo desafio, mas isso é em parte aliviado pelo facto de a equipa na universidade ser de primeira classe. São pessoas boas e com um sentido de propósito. Como é que a fé despertou em si? Não tenho consciência de nunca ter tido um sentido de confiança em Deus. Pensamos frequentemente em fé enquanto ascensão intelectual a uma série de proposições, e é isso, mas é mais, é um sentimento de confiança. Tenho muita sorte de vir de uma família amorosa e estável. Era um ambiente acolhedor, onde a fé era tida por garantida. Não era algo que uma pessoa se sentisse forçada a fazer – tenho dois irmãos que, tanto quanto sei, não têm qualquer crença religiosa explícita, mas eu cresci com isso. Sou o filho mais velho, e os filhos mais velhos tendem a ser bastante respeitadores e obedientes. Era muito chegado à minha avó, uma mulher católica muito devota. Não fui criado católico, mas protestante, e era muito próximo da minha avó. Quando ficava com ela íamos juntos à missa. Tornou-se uma coisa natural. Mas não houve um momento em que subitamente algo me transformou em crente. Sobre o seu novo papel, o que imagina para a instituição? A universidade tem um número de aspectos que quando colocados em conjunto são uma proposta interessante. Somos a única universidade Católica da China, e isso significa que temos uma responsabilidade para com Macau e a China no sentido de sermos um local de testemunho de uma série de valores que são adquiridos na nossa fé. Mas que podemos reconhecer vastamente como valores humanos sobre a importância da dignidade da pessoa humana e das responsabilidades desta em relação à família e à sociedade. Somos também uma comunidade muito internacional, com mais de 40 nacionalidades no corpo estudantil da universidade, esse lugar de diálogo intercultural é muito importante, abre a visão de uma pessoa. Em terceiro, somos uma comunidade que tenta aprender e ensinar e trabalhar numa língua que não é primeira língua de ninguém na universidade. Temos muito poucos falantes de inglês como primeira língua. Penso que é uma combinação atractiva. Tem objectivos específicos que queira atingir? Acho que é demasiado cedo para dizer. Quero que a Universidade viva, prospere, cresça, seja consciente de, e apreciada pelo seu serviço à comunidade de Macau. À comunidade Católica de Macau em primeira instância, mas também de forma mais vasta. Penso que está na natureza do que uma universidade Católica deve ser: nascida do coração da Igreja, mas ao serviço da sociedade. Acho que antes de começar a traçar objectivos concretos tenho de ouvir muito. Ouvir a universidade, a Igreja, o Governo e a comunidade de Macau. Foi-me dito uma vez que temos uma boca e dois ouvidos, e que o melhor é usá-los nessa proporção. Quais os principais desafios que espera encontrar? Teria tido uma lista diferente se me tivesse feito esta pergunta há seis meses, apesar de nessa altura não ter expectativa de ser reitor da universidade. Acho que no rescaldo do coronavírus o primeiro desafio que a universidade e toda a Macau terá de enfrentar é como voltar à vida normal. E será a vida normal depois do coronavírus igual ao que era antes? Inevitavelmente, não. Uma das coisas que me impressiona mais no novo Governo de Macau é como cuidadosamente, decididamente e sabiamente actuou. Não pode ter sido fácil lidar com isso. (…) Acho que vai afectar, por exemplo, o recrutamento internacional. A probabilidade de os estudantes virem este ano vai descer, isso pode fazer parte do desafio. Sinto que o Governo de Macau vai responder ao período pós-vírus com o mesmo grau de certeza com que actuou durante esta fase. São muito sérios em relação à diversificação da economia e a educação superior tem um papel a desempenhar nisso. Penso que será um desafio para mim. Ponho isso quase acima de tudo o resto. Antes de isso estar na agenda havia todo o tipo de coisas, a maioria delas técnicas em relação ao funcionamento interno da Universidade, porque as decisões grandes e estratégicas, como a mudança para o Campus da Ilha Verde, por exemplo, foram parte do que o actual reitor atingiu (…). O seu predecessor a dada altura fechou cerca de 30 cursos. De momento, como estão as finanças da Universidade? Estáveis. Acho que [foi] uma das maiores conquistas na sua vida na universidade. Não somos uma universidade com enormes reservas, por isso as decisões sempre tiveram de ser feitas com um olhar cuidadoso em relação ao impacto financeiro. Em alguns aspectos tive sorte, com o meu tempo em Hong Kong e depois os 14 anos na diocese. O trabalho que fiz aí foi de director operacional e por isso tinha uma diocese com 73 escolas com 4500 professores, 27 mil crianças e 160 igrejas. Por isso, gestão financeira é algo que passei muito tempo da minha vida a fazer, estou confortável nesse mundo. O facto de o Padre Peter ter conseguido estabilizar e melhorar as finanças da universidade de tal forma que nos últimos quatro anos teve excedente é extraordinário, tendo em conta que é um académico teólogo sem experiência nesse mundo. Mas as finanças estão estáveis. A primeira tarefa nesse processo é demonstrar às pessoas o valor daquilo que temos a oferecer. E se fizermos isso de forma eficiente, acho que a situação financeira ao longo dos próximos anos vai gradualmente melhorar. Nunca vamos estar na situação das universidades de financiamento público, isso está na natureza de ser uma universidade privada. Um estudo da rede “Scholars at Risk” do ano passado concluiu que há uma erosão na autonomia das universidades em Macau. Como é que esta pressão na liberdade académica é sentida na USJ? Não tenho qualquer sensação de pressão na liberdade académica. Não estou ciente de que qualquer dos meus colegas sinta que esteja sob maior pressão do que poderia estar se ensinasse em Portugal ou no Reino Unido. Eu, certamente, não sinto. Fiz algumas conferências aqui, uma delas co-organizada com a Renmin University of China, e não senti qualquer sugestão de que tinha de ter cuidado com o que dissesse. Há algo de que talvez tenhamos perdido a visão, sob a influência do entendimento americano da liberdade de expressão, mas o direito a exprimir opiniões vem com uma responsabilidade. A responsabilidade dessas opiniões. A sensação que tenho, do que vi da nossa interação com o Governo de Macau, não é de estar sob pressão governamental para ser cuidadosos com o que dizemos e fazemos, de todo. É algo à volta de responsabilidade e carinho da parte deles. Claramente, quando estão a gastar o seu próprio dinheiro têm o direito de decidir para onde esse dinheiro vai. Uma vantagem de ser uma universidade privada é que não estamos tão dependentes disso. Vi o relatório do Scholars at Risk, e outro da Human Rights Watch. É muito interessante, mas não é o que se sente em Macau. Qual a sua posição em relação a professores da universidade expressarem a sua opinião política pessoal em público ou nos meios de comunicação? Depende da forma como a pessoa o faz. Estou ciente que há alguns anos, um professor expressou opiniões de uma forma que a universidade teve de lhe dizer adeus. Esta é a interacção entre direitos e responsabilidades. Tivemos um grande caso de tribunal no Reino Unido há alguns anos, sobre a responsabilidade da Igreja e as acções dos padres. Um dos juízes colocou a situação da seguinte forma: se a Igreja puser alguém num púlpito, tem responsabilidade pelo que a pessoa diz, e essa pessoa tem responsabilidade para com a instituição, para garantir que não abusam da sua posição. As pessoas não costumam pedir a opinião do Stephen Morgan porque é o Stephen Morgan, pedem-me a minha opinião porque sou o director de uma faculdade. Quando expresso as minhas opiniões tenho de ter um sentido de responsabilidade por essa razão. Penso que é algo difícil de assimilar para europeus e norte-americanos, porque estamos muito habituados a um sentido de liberdade de expressão que é quase ao nível da permissão completa, sem consideração por consequências do que se diz. Para além disso, temos de reconhecer que enquanto estrangeiros temos o dever de compreender e respeitar a comunidade onde vivemos. Trazer as nossas próprias noções de como a sociedade deve funcionar e ser governada, e assumir que são normativas para toda a gente parece-me neocolonialismo. Quais as expectativas de a USJ receber estudantes da China Continental? Não sabemos porque é que não podemos receber estudantes da China Continental. Mas uma das coisas que aprendi quando estive nesta parte do mundo, há 25 ou mais anos, é que o importante é construir relações de confiança. Não se pode forçar a velocidade a que se constrói uma relação de confiança. Só se pode ganhar a confiança de alguém depois de um período de tempo em que há exposição mútua. Estive em Pequim em Janeiro com o reitor e um dos nossos vice-reitores e fomos recebidos aberta e graciosamente pelo United Front Work Department e pelos presidente e vice-presidente da Conferência Episcopal Católica. Vamos demonstrar que somos uma instituição em que se pode confiar, e com tempo isso pode abrir a nossa universidade a receber estudantes da China Continental. Mas a estratégia da universidade não depende disso.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAnja Visini, residente em Bergamo e doente recuperada de covid-19: “A cada dez minutos passa uma ambulância, noite e dia” Arquitecta, natural de Bergamo, Anja Visini vive num dos epicentros da covid-19 em Itália, país que diariamente soma centenas de mortes causadas pela doença. Em casa a recuperar da patologia causada pelo novo coronavírus, Anja fala de “indecisão” por parte das autoridades italianas na hora de adoptar medidas de combate à pandemia e descreve o cenário caótico vivido pelos profissionais de saúde, que não têm tempo para atender todos os doentes [dropcap]Q[/dropcap]ual é a sua situação clínica actual? Está totalmente recuperada da covid-19? Aqui os médicos não faziam os exames da covid-19 porque a situação já estava tão grave que só faziam testes aos casos de pneumonia. Então há muitíssimas pessoas que estão contagiadas e que não sabem disso, porque não fazem testes e porque estão em casa. Uma vez que fecharam tudo há três semanas ninguém pode sair de casa a não ser para urgências de trabalho, para comprar comida ou medicamentos. A região de Lombardia não estava preparada para fazer exames a toda a população que se suspeitava infectada com o vírus. Pediram às pessoas para não irem ao hospital e ligarem para médicos que, por telefone, diriam o que fazer. Eu tive uma gripe em meados de Fevereiro, antes de rebentar todo este problema. A minha médica disse-me que era uma gripe normal, então tive três ou quatro dias com febre não muito alta, à volta dos 37,5, 38 graus, e depois tive dois dias com febre mais baixa. Depois estive mais três semanas com dificuldade em respirar e tive um dos sintomas fundamentais [da covid-19] que é não ter paladar ou olfacto. Fiquei em casa a pensar que tinha uma gripe normal, mas comecei a falar com amigos sobre os sintomas que tinha. Um amigo teve os mesmos sintomas que eu, e também o pai e a mãe dele, mas a mãe acabou por ir para os cuidados intensivos no hospital. Nessa altura, decidi falar com médicos e confirmaram que, provavelmente, eu também teria a covid-19. Tive de uma forma leve, que não levou a pneumonia ou a graves dificuldades respiratórias. Mas há muitíssimas pessoas que estão na mesma situação que eu, ou seja, tiveram alguma coisa e não sabem o quê, e quando saem para ir às compras transportam o vírus. Há pessoas com febres altas e que estão em casa, porque nos hospitais já não há espaço e os médicos de clínica geral vão monitorizando a situação destes pacientes que ficam em casa com uma bomba de oxigénio ou máscaras para respirar. Os casos mais graves vão para o hospital. Como acha que apanhou covid-19? Acho que apanhei o vírus no dia 15 de Fevereiro, porque tive um encontro com colegas de uma associação da qual faço parte e uma rapariga da associação tinha febre, 37,5º, e foi à reunião, porque tínhamos uma votação. Ela vive numa aldeia que é um dos locais onde houve mais infectados. Ela chegou e contagiou metade da associação, cerca de 50 por cento das pessoas que lá estavam. Mas ninguém pensou que podia ser isto, porque nessa altura, em meados de Fevereiro, havia dois ou três casos e as pessoas pensavam que o vírus era apenas um problema chinês. Em Bergamo e Milão todos pensavam continuar a trabalhar e a fazer a sua vida normal. Eram partilhados hashtags como #milaonaopara ou #bergamoisrunning, ninguém pensava que seria uma coisa assim. Ficou com algumas sequelas da doença? Depois de um mês e meio ainda tenho tosse e alguma dificuldade em respirar. Os cheiros e os sabores ainda não estão recuperados, mas estou bem. Obviamente, fico sempre em casa e não faço muito esforço, não me apercebo se estou muito cansada ou não, mas estou bem agora. Anja Visini é arquitecta e vive num dos epicentros da covid-19 em Itália, na cidade de Bergamo.. Está a ser acompanhada por um médico à distância? Liguei a minha médica, não temos nenhuma atenção particular. Eles estão cheios de pedidos e é uma situação muito crítica, pois há muitos doentes com formas mais graves de covid-19. Não há tempo para atender toda a gente. Ontem liguei à minha médica e ela quis terminar a chamada rapidamente, disse-me que não comia desde o dia anterior devido ao excesso de trabalho. A situação dos médicos cá é grave, porque têm muitíssimo trabalho, muitos não têm protecção e já não vão a casa dos doentes para não se infectarem. As autoridades italianas têm culpa do que está a acontecer no país, por não terem agido a tempo? Seguramente subestimaram o problema. Aqui na região da Lombardia temos um sistema sanitário que foi privatizado e que não estava preparado para esta emergência. O Governo provavelmente não tomou as medidas necessárias. Alguns políticos pediram desde o começo o encerramento das fronteiras e a suspensão dos voos vindos da China, mas não fizeram isso. Aqui, na região de Bergamo, temos o quarto aeroporto mais importante do país e é uma das zonas industriais mais importantes do país e da Europa. Não podiam parar tudo assim desta maneira. Algumas empresas e fábricas fecharam, mas muitas estão abertas e isso constituiu também um veículo de contágio muito grande. Quando a covid-19 começou a rebentar em Bergamo, o presidente da câmara municipal pediu para fechar e fazer uma zona vermelha, mas o Governo não concordou com a proposta. Como é o dia-a-dia em Bergamo neste momento? Agora pode-se sair para fazer compras, uma pessoa por família, ou para ir à farmácia ou para urgências médicas. Também é possível sair para ir trabalhar, mas é necessário ter um certificado. Foram impostas sanções. Se uma pessoa estiver infectada e for encontrada na rua pode ser acusada criminalmente. Não se vê quase ninguém na rua, há poucos carros e a qualidade do ar melhorou muitíssimo. A cidade é silenciosa. Normalmente, noutras zonas de Itália às seis da tarde ou nove da noite as pessoas vão cantar para as janelas, mas isso nunca aconteceu aqui, porque a situação sempre foi muito trágica. O ambiente é bastante silencioso. Passam os carros da protecção civil com altifalantes a avisar as pessoas para ficarem em casa e o pior de tudo é que a cada dez minutos passa uma ambulância, noite e dia. Agora um pouco menos, mas nas últimas três semanas estávamos sempre a ouvir o barulho das ambulâncias. Até que ponto esta experiência, não apenas como doente, mas também como observadora, mudou a sua vida? A minha experiência como doente não foi assim tão problemática. Primeiro, porque não foi muito grave em termos clínicos, mas também porque estava convencida de que tinha uma gripe normal e só depois tive esta revelação. Não foi muito chocante porque já tinha passado. Vejo que muitas pessoas que conheço têm parentes, conhecidos ou amigos que morreram e quando abrimos o Facebook vemos muitas fotos de pessoas que já estão mortas. Aí uma pessoa olha para trás e começa a analisar se a vida que fazia antes valia a pena, se uma pessoa se dedicava a coisas que valiam a pena. É arquitecta. Como está neste momento a sua situação profissional? Trabalho num estúdio muito pequeno onde fazemos trabalho de curadoria, produzimos livros de arquitectura e organizamos projectos para museus e exposições. Por agora, não temos muitos problemas relacionados com o trabalho, porque o estúdio não é formado por muitas pessoas, somos apenas seis, e podemos trabalhar a partir de casa. O que mudou foi o cancelamento de todos os eventos que estávamos a preparar. O estúdio fica em Milão e todos os eventos estavam relacionados com a Bienal de Veneza ou com a Semana de Moda de Milão, e todos foram cancelados ou adiados. Se a situação continuar assim por muitos meses, obviamente vamos ter problemas porque os contratos vão ser cancelados. Todos os que trabalham no estúdio fazem-no em regime de freelance, não têm contratos e não têm subsídio de desemprego. Esse aspecto pode ser problemático. Qual foi o maior erro das autoridades italianas no combate a esta pandemia? A indecisão. Às vezes há que tomar medidas que parecem pouco populares, mas que são medidas responsáveis. O nosso Governo não teve muita clareza nesse aspecto. Como olha para a forma como a China lidou com esta enorme crise? Os chineses têm uma organização diferente da organização italiana. Pode ser mais duro, mas neste caso revelou-se mais eficiente. Os italianos têm uma forma de gozar a liberdade que, por vezes, pode ser um pouco desordenada. Acho que aqui sofremos devido a essa desordem. Por outro lado, nos últimos 10 ou 15 anos o investimento público na saúde diminuiu muito e isso também foi problemático.
Hoje Macau EntrevistaCovid-19 | Jorge Sales Marques aconselha máscaras e isolamento a portugueses Numa altura em que o número de casos de infectados com o covid-19 não pára de subir, Jorge Sales Marques aconselha os portugueses a cumprirem instruções e ajudarem o pessoal médico numa guerra onde não se querem “heróis” [dropcap]O[/dropcap] médico dos Serviços de Saúde Jorge Sales Marques considera que a ‘receita’ para vencer a guerra contra a covid-19 passa por máscaras, lavagem de mãos, isolamento e rastreios. Os conselhos foram deixados para Portugal, numa entrevista à Lusa. O pediatra, que integra a equipa médica de Macau envolvida na linha da frente do combate ao surto, mostrou-se “preocupado”, enquanto médico e português, com o aumento de casos no país europeu e com “algumas imagens” que ilustram situações de incumprimento de regras básicas. “Vejo às vezes, com preocupação, como português, (…) imagens na rua e em locais” que mostram pessoas “que não estão a seguir regras”, que é preciso “cumprir numa situação de pandemia”, afirmou o especialista, à Lusa, salientando que, “a curto prazo (…) será diferente: quando surgirem mais casos e mais mortes o impacto será maior”. Jorge Sales Marques assegurou que boa parte da ‘receita’ para vencer “a ‘guerra’ que está a ser travada” passa pela utilização de máscaras e pela lavagem de mãos, medições exaustivas de temperatura e pelos inevitáveis controlos fronteiriços. O médico vincou ainda a necessidade de se evitar a aglomeração de pessoas, de se impor uma auto-disciplina de isolamento em casa e seguir as orientações associadas ao distanciamento social. “Temos de combater o ponto mais fraco do vírus”, através do “auto-isolamento”, já que este “só se propaga se tiver pessoas, caso contrário vai morrendo, vai perdendo forças, vai diminuindo o número de mutações, e vai acabar por desaparecer”, sustentou. Turnos de 14 dias Jorge Sales Marques faz parte de uma equipa composta por 23 médicos e 60 enfermeiros que combatem em Macau o vírus, em turnos de 14 dias. Segundo o médico, os profissionais estão “completamente equipados com material de protecção individual, que inclui óculos, luvas e máscaras”, seguindo, depois de revezados, para uma quarentena de outros tantos dias, que é cumprida numa residência anexa ao local onde prestam serviço equipada com uma centena de camas, em quartos individuais. “Ficam em isolamento voluntário (…) para impedirem o contágio a familiares ou [a pessoas com] o sistema imunológico comprometido”, frisou. O especialista sublinhou ainda que “os profissionais de saúde que estão na linha da frente, quer em Portugal, quer em Macau, em todos os lados, não querem ganhar essa guerra sozinhos”. “Não queremos ser os heróis desta guerra, temos de partilhar isto”, disse, defendendo duas convicções profundas. A primeira é que “tem de haver sobretudo uma comunhão entre quem manda e quem orienta e quem deve cumprir, que é a população”. A segunda, diz respeito ao momento e às ações definidas. “Só com medidas corajosas é que podemos ganhar terreno. Se tivermos medo de actuar vamos perder o ‘timing’ ideal”, sustentou. Meses de combate à epidemia em Macau e o olhar sobre o que está a ser feito em outros territórios e países em todo o mundo, permitem-lhe fazer uma outra previsão: “Certamente virão novas pandemias e vamos estar mais preparados para as combater logo de início com medidas corajosas”, rematou.
Hoje Macau EntrevistaPresidente da Associação Médicos de Língua Portuguesa: “É altura de Portugal pedir ajuda à China” [dropcap]O[/dropcap] presidente da Associação de Médicos de Língua Portuguesa de Macau (AMLPM) defendeu à Lusa que esta é a altura de Portugal pedir ajuda à China para combater o surto de Covid-19. “A Itália já pediu ajuda à China. Espanha já pediu ajuda à China. Portanto, eu penso que se calhar o Governo português, antes que seja tarde, vai precisar de equipamentos, que são insuficientes. Será uma altura apropriada também de pedir ajuda às autoridades chinesas”, defendeu José Manuel Esteves. “Porque a China está a ultrapassar este grande embate, que foi a epidemia no seu território. As fábricas estão a arrancar, estão a produzir os ventiladores, estão a produzir as máscaras, estão a produzir equipamentos de proteção aos milhões, mas a procura a nível mundial é muita e está na altura de Portugal se pôr na fila e tentar também ter acesso ao que é produzido” e que “vai fazer falta em Portugal dentro de uma semana ou dentro de duas semanas”, salientou o cirurgião. Uma das hipóteses poderá passar por utilizar o papel de Macau enquanto plataforma de cooperação sino-lusófona, mas a abordagem directa a Pequim poderá ser privilegiada. “Se calhar utilizando a plataforma que é Macau ou se calhar abordando diretamente o Governo central da China. Obviamente penso que em Macau há uma predisposição da própria sociedade (…). Mas simultaneamente, parece que seria apropriado o próprio Governo de Portugal fazer um pedido de ajuda formal através dos canais diplomáticos à China para uma outra dimensão”, explicou. Afinal, frisou, o líder da AMLPM, Portugal pode vir a necessitar, mas, como disse, a concorrência para [garantir] essa ajuda vai ser enorme”. Falta de meios e treino preocupa em Portugal José Manuel Esteves disse também à Lusa que a falta de meios e treino em Portugal contrasta com a “enorme tranquilidade” sentida no território no combate ao coronavírus. “Sinto uma enorme tranquilidade a trabalhar aqui”, até porque “toda a sociedade e não apenas os serviços de saúde têm demonstrado um grau de organização e articulação entre as diferentes estruturas”, defendeu José Manuel Esteves. “Há, no âmbito da saúde pública em Macau, uma experiência e traquejo muito grande, que permitiu que esta primeira onda de casos fosse controlada e Macau tivesse estado 40 dias sem novos casos”, assinalou o cirurgião. Uma situação que contrasta com o que se vive em Portugal, sustentou: “Tenho andado em contactos permanentes com muitos dos meus colegas em Portugal e verifica-se uma preocupação extraordinária com a falta de meios, da falta de máscaras, de equipamentos de proteção, (…) e a falta de treino”. O líder da AMLPM frisou que o uso generalizado de máscaras, a adoção de medidas que permitissem lavar e desinfectar espaços públicos, bem como o controlo nas fronteiras têm provado serem eficazes, sustentou. “O caso que nós tivemos hoje, do mundo do homem de negócios espanhol que chegou ao aeroporto e foi identificado como tendo febre (…), nas condições praticadas em Portugal não teria sido possível porque foi sempre divulgado que o controlo não era eficaz. Mas o controlo de fronteiras em Macau provou que pode ser uma medida eficaz”, salientou. Por outro lado, frisou, os casos de médico infectados, e outros em quarentena, não se verificaram em Macau, devido à metodologia adoptada atempadamente pelas autoridades, com a devida separação e proteção das equipas dos profissionais de saúde. “Tudo isto foi devidamente pensado em tempo útil e é isso que os hospitais em Portugal também deveriam ter preparado atempadamente. (…) Houve mais do que tempo para que (…) tivesse havido uma preparação efetiva para aquilo que poderia vir a acontecer”, criticou. “Com grande tristeza minha eu assisti à senhora diretora-geral da Saúde em Portugal a dizer que talvez nunca chegasse a Portugal. E, portanto, com informações destas, que parecem pouco sensatas, é que se perde a credibilidade e se perde a capacidade de mobilizar as pessoas”, lamentou. José Manuel Esteves disse que não se deve “menorizar a inteligência das pessoas”, que “é preciso transmitir mensagens que as pessoas entendam”. Isto para que “quando se lhes pedem que façam uma coisa, como foi feito aqui em Macau, para que fiquem todos em casa, as pessoas ficaram”, afirmou, fazendo a comparação com o que sucedeu em Portugal: “Não é para andar em festas, almoços, jantares, ou ir para a praia”. As epidemias do dengue, da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), a Influenza Aviária A (H5N1) e a gripe suína permitiram “desenvolver toda uma série de mecanismos, e a própria população criou esses mecanismos para se defender destas epidemias”, afirmou o líder da AMLPM. Afinal, “muitas delas tiveram início na Ásia e, portanto, as pessoas aqui têm outra preparação e outra mentalidade em relação a estas epidemias”, acrescentou.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAltamiro da Costa Pereira, director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto: “Negação em nada ajuda” Horas antes do Conselho Nacional de Saúde reunir, em Portugal, e dias antes das escolas encerrarem por todo o país devido à pandemia da Covid-19, o director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto escreveu uma carta a destacar o bom exemplo de Macau. Em entrevista, diz que o território “tomou medidas que se vieram a verificar correctas” e que o sistema de saúde público português não está preparado para este surto [dropcap]A[/dropcap] Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o surto do novo coronavírus uma pandemia. É uma declaração que peca por tardia? Acho que sim. Na verdade, há muito que existiam critérios técnicos para essa declaração, mas talvez a OMS tenha preferido adiar esta designação por critérios de natureza política, de modo a minorar o impacto público dessa declaração. Na carta que enviou ao Conselho Nacional de Saúde, destacou o facto de, à altura, Macau já não ter doentes ou novas infecções com a Covid-19. É um exemplo que as autoridades portuguesas deveriam ter seguido desde o início? Cada território tem as suas particularidades. Sejam elas geográficas, culturais ou políticas. E é muito difícil fazer julgamentos quando não estamos na pele de quem tem o poder, a legitimidade e a obrigação de tomar este tipo de decisões. Mas os factos falam hoje por si. E sim, acho que Macau tomou todo um conjunto de decisões e de medidas que se vieram a revelar correctas. E, contra os factos já conhecidos em Macau não há argumentos. O Governo português não viu os sinais de alerta a tempo, quando teve meses para se preparar desde os primeiros casos, em Dezembro? Repito o que já disse. É muito difícil fazer julgamentos quando não estamos na pele de quem tem a legitimidade e a obrigação de tomar este tipo de decisões. Na verdade, desconheço as razões porque o não fizeram, mas tenho também a certeza de que haverá muitas variáveis que, por não estar nessa pele, desconheço. Mas sim, neste momento acho que estaremos todos de acordo que se deveria ter feito mais. E que ainda falta fazer mais! Não só em Portugal, mas em muitos outros países. O que mais o preocupa na capacidade de resposta do sistema de saúde em Portugal? A eventual falta de sensibilização ou de reconhecimento, tanto por parte dos responsáveis da saúde como da população em geral, relativamente ao grave risco que a pandemia de Covid-19 representa para as pessoas e a sustentabilidade do sistema nacional de saúde. Na verdade, nem o nosso Serviço Nacional de Saúde nem qualquer outro sistema está preparado para uma sobrecarga destas. Mas o estado de negação em nada ajuda a nos preparar para o pior. Na carta que escreveu menciona “os graus de liberdade inerentes às democracias”. Considera que as medidas restritivas impostas pela China foram as mais adequadas e necessárias. Há aqui uma politização da questão? Não creio. Sou um fervoroso adepto da liberdade e da democracia. E não defendo por isso mesmo qualquer ditadura ou sequer democracias musculadas. Mas, em alguns casos, os “graus de liberdade inerentes às democracias” e até poderia acrescentar “ocidentais” podem não ajudar a uma tomada de decisão firme e atempada. Mas isso dependerá, sobretudo, do tal grau de reconhecimento do risco por parte de um dado governo. E, nalguns casos, dependerá ainda muito de quem num dado momento influencia as decisões desses governos ou autoridades de saúde. Como devemos olhar para este novo coronavírus em termos de metodologias terapêuticas e formas de abordar esta pandemia? Penso que ninguém terá dúvidas acerca do desconhecimento deste vírus. Mas, penso também que enquanto não existirem medicamentos mais específicos e inovadores, a utilização de métodos de tratamento convencionais, e já provados como eficazes, será uma medida adequada. A carta de alerta Em busca de “medidas mais restritivas” Foi no passado dia 11 de Março, quando Portugal ainda não tinha chegado a uma centena de casos de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 e quando as escolas estavam a dias de fechar portas, que Altamiro da Costa Pereira disse de sua justiça numa carta enviada ao Conselho Nacional de Saúde. O especialista em Epidemiologia e Saúde Pública alertou para a necessidade se tomarem, “com urgência, medidas mais restritivas que possam ainda vir a conter esta grave pandemia” em Portugal. O director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto frisou o caso bem-sucedido de Macau no combate ao novo coronavírus. “Na China, uma vez reconhecida a magnitude do problema, rapidamente foram colocadas em prática medidas de quarentena cuja efectividade é hoje por demais notória. De facto, Wuhan começa a voltar à normalidade, Macau já não tem novos casos há mais de um mês, e em território chinês teme-se agora os casos importados! Já a Itália demorou mais tempo a tomar medidas mais restritivas, agindo maioritariamente de forma reactiva à medida que o número de novos casos disparava (e com os graus de liberdade inerentes às democracias)”, aponta. De frisar que Macau teve, entretanto, um caso importado, precisamente, da cidade do Porto, depois de ter estado 40 dias sem novas infecções. Uma questão de “timing” Na mesma carta, Altamiro da Costa Pereira defende que “o ‘timing’ para adopção das inevitáveis medidas mais restritivas em Portugal poderá ter importantes consequências. Na verdade, é possível fazê-lo agora e prevenir ao máximo o número de novos casos de infecção, ou é possível manter a atitude que tem sido adoptada de apenas actuar quando surgem novos casos”. “Por mais problemas sociais ou prejuízos económicos que venham a existir, no imediato – face às eventuais medidas de contenção que urge serem tomadas –, estes serão certamente bem menores do que aqueles que poderão advir dentro de duas a quatro semanas quando enfrentarmos o pico da epidemia, já com um SNS exaurido e uma população desamparada e desiludida”. Neste seu contributo no âmbito da pandemia de Covid-19, em Portugal, Altamiro da Costa Pereira afirma que a sua “principal preocupação tem que ver com a limitada capacidade de resposta do SNS para enfrentar uma sobrecarga de procura”. “Se as dificuldades do SNS já eram evidentes antes da pandemia por Covid-19 (algo que se verifica, por exemplo, na dificuldade de manter urgências abertas e funcionais de alguns serviços hospitalares) e se a Linha de Saúde SNS24 já não consegue dar resposta a todas as chamadas neste preciso momento, é de esperar o pior – ou seja, uma situação mais próxima do colapso – com o passar do tempo e subsequente aumento exponencial do número de casos de infecção Covid-19”, sustentou. Actuar de forma rápida Considerando que a voz do Conselho Nacional de Saúde Pública será muito importante para o aconselhamento das autoridades de saúde e do Governo português, Altamiro da Costa Pereira defende que “actuar rapidamente de forma preventiva e efectiva parece-me ser uma absoluta necessidade nesta fase de evolução da epidemia”. “De facto, embora o enfrentamento de uma epidemia destas proporções e num mundo de tal forma globalizado seja algo inédito para todos nós, o facto de os primeiros casos de infecção Covid-19 em Portugal terem sido diagnosticados mais tardiamente que na maioria dos restantes países europeus abre-nos uma janela de oportunidade para implementarmos medidas efectivas de forma preventiva”, considerou o director da Faculdade de Medicina do Porto. Em seu entender, “é ilusório pensar que os próximos dias/semanas não trarão consigo muitos mais novos casos de infecção Covid-19. Nesse sentido, vale a pena olhar para os dois países com um maior número de casos confirmados de infecção e para o modo como foram capazes de responder à mesma”. No final, sublinha o especialista, Itália acabou por ter de decretar quarentena, mas quando o fez já mais de 9000 pessoas tinham sido infectadas e mais de 400 tinham morrido. Acresce que nos hospitais italianos, já há relatos da necessidade de fazer opções relativamente a quem tratar, e o descontrolo italiano foi parte da causa da rápida disseminação da infecção a outros países europeus. “A Itália mostra-nos que este último caminho pode revelar-se demasiadamente perigoso, tanto em termos humanos como em termos socioeconómicos”, frisa.
Andreia Sofia Silva EntrevistaGlenn Mccartney, professor da UM, sobre reabertura dos casinos: “Precisávamos de um sinal positivo” Apesar de defender que, no combate ao surto do Covid-19, a saúde está em primeiro lugar, Glenn Mccartney, professor da Universidade de Macau, defende que a reabertura dos casinos depois de um encerramento de 15 dias era importante para mostrar à população que é necessário seguir em frente. O docente defende que os sectores turístico, hoteleiro e do jogo vão recuperar ao mesmo tempo e de forma interligada, mas só a partir de meados deste ano [dropcap]H[/dropcap]elena de Senna Fernandes [directora dos Serviços de Turismo], disse a semana passada que a crise gerada pelo Covid-19 é pior do que no tempo da SARS. Acredita que, além dos casinos, a recuperação dos sectores hoteleiro e do turismo vai ser lenta? Sim, sem dúvida. Há uma clara ligação entre a recuperação do sector do jogo e outros sectores. Isto porque, nos últimos anos, o alojamento turístico ligado à parte do entretenimento e não às apostas nos casinos tem estado muito dependente do jogo. Então, quando os casinos fecham, há este efeito triplo no alojamento, porque a grande maioria dos quartos são um complemento às apostas nas salas VIP para os clientes premium. Quando se perde esse grande segmento também se registam grandes quebras na taxa de ocupação deste tipo de alojamento. Estão completamente interligados, um sector não recupera sem o outro. Também não temos outros segmentos turísticos além dos casinos, o mercado de convenções e exposições não funciona nesta fase, porque não há conferências. Não existe um verdadeiro mercado fora da indústria do jogo. Assim que o sector do jogo começar a recuperar veremos também uma recuperação dos restantes sectores económicos como é o caso do retalho, da hotelaria e do entretenimento. Não é surpreendente que os casinos tenham aberto portas depois do encerramento de duas semanas, porque é fundamental para a recuperação económica de Macau no seu todo. Poderemos esperar uma recuperação no início de 2021 apenas, ou ainda este ano? Por altura do Verão veremos alguns sinais de procura no sector do jogo e isso vai ser um factor regulador no sector hoteleiro. Faço a minha análise com base em dados históricos de crises anteriores. Entre o período da Páscoa e do Verão começaremos a ver esta tendência de recuperação do sector do jogo e aí todos os restantes sectores, sobretudo o hoteleiro, começarão a recuperar. O preço dos quartos de hotel por noite poderá ser ainda baixo, e poderemos também verificar uma baixa taxa de ocupação. Isto se não surgirem mais casos de infecção em Macau e se as autoridades chinesas abrirem alguns dos ‘corredores’ aéreos e marítimos. Aí poderemos ter uma recuperação em termos do número de visitantes. Está tudo dependente disso, porque não temos nenhum mercado significativo fora da China, não podemos ir aos tradicionais mercados turísticos a nível global, não temos um novo mercado, as coisas não funcionam assim. Vai demorar muito tempo e dependemos da China e de Hong Kong para a recuperação do mercado. Desde a SARS que a génese do sector turístico de Macau é a mesma. Estamos perante uma problemática semelhante em termos da fonte de turistas, se compararmos com o ano de 2003? Há uma série de factores que são diferentes. Em primeiro lugar, em 2003 não tínhamos redes sociais, não havia o WeChat. As redes sociais têm levado à difusão de muita informação [sobre o Covid-19] que não é correcta e que acaba por gerar uma série de reacções e ansiedades. Também não tínhamos o enorme número de visitantes da China em Macau e não tínhamos a Strip do Cotai. Toda a dinâmica se alterou um pouco. As pessoas vão buscar referências à SARS porque é uma espécie de ponto de referência. Em termos médicos as duas epidemias não são iguais, não sou nenhum especialista em medicina, mas vemos que há diferenças. Isso significa que o impacto é maior. Mesmo agora vemos que a abertura dos casinos representa um passo em frente positivo e isso deve-se à acção dos médicos e às políticas adoptadas. Uma associação de defesa dos direitos dos croupiers diz ser contra a reabertura dos casinos. Acredita que estão certos? A economia prevaleceu, neste aspecto? Não. A saúde foi absolutamente prioritária, a economia nunca deveria estar em primeiro lugar. Mas também temos de olhar para a forma como vamos iniciar a recuperação, e fazê-lo da forma mais segura possível. Temos de seguir em frente em prol da normalidade. Em duas semanas não aconteceu absolutamente nada, então quando seria a altura certa [para o regresso das actividades económicas]? Há sempre um estigma muito grande numa crise, e todos usavam máscara. Uma crise de saúde leva sempre muito tempo [a resolver] e é importante ter a mensagem na altura certa de que está tudo bem. Eu venho do mundo da investigação e dos números e é com base nisso que trabalho, e não com base em especulações. O Governo tomou então a decisão certa de decretar a reabertura dos casinos ao fim de duas semanas. Necessitávamos de um sinal positivo para seguir em frente em prol de uma recuperação. Defendi que os casinos iriam abrir mediante certas condições, e foi o que fizeram para garantir a segurança das operações. Em Macau, 85 por cento dos impostos são pagos pelas operadoras de jogo, por isso quanto mais tempo mantivermos os casinos fechados [pior]. Além disso, o sector tem de pagar salários aos funcionários e rendas. Chegamos a uma altura em que o argumento económico tem de surgir, garantindo que as regras de segurança e de saúde são cumpridas. É importante olhar para o lado económico porque há muito investimento em Macau. Não posso dizer que a saúde está em segundo lugar, mas temos sempre de olhar para o início de uma recuperação. Como é que as operadoras de jogo vão levar essa recuperação a cabo? Que tipo de políticas vão implementar? Vão criar pacotes especiais para turistas, por exemplo? O mercado do turismo funciona de uma maneira muito agressiva, portanto assim que surgir o primeiro sinal [de regresso à normalidade], vão mudar as suas mensagens e as suas campanhas, porque o marketing pensado para os meses de Fevereiro e Março já não funciona. Têm de ter os seus corredores abertos para a China, com as suas medidas, para mantermos o mercado [a funcionar] e para que os clientes possam vir. Não tenho dúvidas de que o sector do jogo vai fazer este tipo de aproximação ao mercado e todos os resorts integrados no Cotai vão ser assertivos nas mensagens que vão transmitir, mas as mensagens têm de ser diferentes. O marketing será, sem dúvida, uma parte importante. No que diz respeito às Pequenas e Médias Empresas (PME), os casinos deveriam cooperar com elas, em prol de uma recuperação conjunta, além do apoio que já é dado pelo Governo? Alguns resorts integrados podem de facto ajudar porque facilmente precisam de fornecedores. Nos últimos anos têm procurado fornecedores locais para as suas actividades e isso pode agora ser reforçado. Os pequenos negócios têm sofrido com o problema das rendas e é um grande desafio para estas empresas nesta fase. Todas as PME que não são proprietárias dos imóveis que ocupam vão passar por enormes desafios, por terem de pagar rendas e salários. O Governo já concedia empréstimos sem juros, mas, ainda assim, é mais uma dívida. Sem dúvida que é necessário ter uma estratégia. A SARS gerou um problema semelhante, mas agora temos de ir mais além na ajuda às PME. Alguns negócios vão fechar portas, por isso quanto mais rápido agirmos, agora… como cidade internacional de turismo e de lazer temos de manter as PME. Esse é o meu maior receio. O Lisboa Palace, no Cotai, está ainda em construção. A Sociedade de Jogos de Macau vai estar numa situação mais complicada do que as restantes operadoras de jogo? A competição vai lá estar quando abrir. Quando olhamos para a distribuição do mercado vemos quem tem maiores e menores percentagens ano após ano. Quando abrir [o Lisboa Palace] estará num mercado muito competitivo. Não vejo a dinâmica a mudar com tudo o que está a acontecer e penso que quando abrirem apenas vão ter de participar na competitiva Strip do Cotai. No Cotai é mais difícil porque muitos clientes tornaram-se frequentes, e como se vai buscar de novo essa lealdade? É preciso apostar em novos mercados. O desafio é como se entra na competição aquando da abertura do empreendimento, mas não vejo uma grande mudança em termos de dinâmica. Teremos novos concursos públicos para a concessão de novas licenças. O Governo vai fazer algum tipo de alteração para dar resposta a esta crise? Penso que é algo em que vão pensar. Eu pensaria. Considerando o que aconteceu nos últimos tempos seria um factor a ter em consideração.
Andreia Sofia Silva EntrevistaMarta Temido, ministra da Saúde em Portugal, sobre o Covid-19: “Não há necessidade de reforço de medidas” Em declarações ao HM, a ministra da Saúde em Portugal, Marta Temido, traça um balanço positivo da última reunião em Bruxelas sobre o Covid-19 e diz que não há, por enquanto, necessidade de reforço das medidas nas fronteiras para quem viaja de Macau, Hong Kong ou da China para Portugal. Ainda assim, está a ser equacionada “para muito breve” a distribuição de cartões de localização dos passageiros nestes voos. A ministra promete analisar, “em tempo oportuno”, a possibilidade de a lei vir a prever a quarentena obrigatória neste tipo de casos [dropcap]D[/dropcap]isse que, para já, não serão implementadas medidas nas fronteiras, apesar das muitas críticas ouvidas pelo nosso jornal por parte de cidadãos portugueses a residir em Macau que viajaram voluntariamente para Portugal. Porquê o adiamento de uma tomada de decisão desta natureza? Até agora não há evidência de necessidade de reforço de medidas. As decisões nesse sentido serão consideradas em linha com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, sempre numa medida de proporcionalidade e numa permanente observação e avaliação da evolução do surto de coronavírus. Sublinhe-se que a quase totalidade dos países da União Europeia (UE) segue precisamente as mesmas recomendações. Há espaço para debater uma eventual mudança na legislação relativamente à questão da quarentena obrigatória? Ao abrigo da Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto, e da nova Lei de Bases da Saúde, a possibilidade de determinação de isolamento profilático obrigatório não está afastada, enquanto medida de excepção e em contexto de emergência em saúde pública. A reponderação de quaisquer aspectos deste regime ou de outros, com ele conexos, a entender-se necessária, será efectuada em momento oportuno. Qual o balanço da última reunião em Bruxelas sobre o novo coronavírus? Além da possibilidade de serem distribuídos formulários aos viajantes, que outras medidas podem vir a ser tomadas? Foi uma reunião muito construtiva, com todos os países a reforçar a preocupação em adoptar medidas proporcionais e de acordo com aquilo que é a evidência científica e as recomendações da OMS e do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças. Nos voos originários da China com destino a Portugal são já distribuídos a bordo folhetos informativos com aconselhamento e contactos úteis relativos ao coronavírus. Portugal está a equacionar para muito breve a distribuição de cartões de localização dos passageiros nestes voos. Esta e qualquer medida serão tomadas em linha com as recomendações das autoridades sanitárias referidas. Esta crise causada pelo surto de um novo coronavírus vai obrigar a repensar estratégias por parte do Ministério da Saúde no que diz respeito à resposta dada pelo Serviço Nacional de Saúde? As unidades do Serviço Nacional de Saúde têm preparadas os respectivos Planos de Contingência para infecções emergentes. A Direcção-Geral da Saúde tem seguido, desde o primeiro momento, o desenvolvimento do surto de Coronavírus no contexto da identificação do novo vírus. Foi activado o dispositivo de Saúde Pública do país, com monitorização e vigilância epidemiológica, gestão e comunicação de risco, habituais nestas situações. Como avalia a postura das autoridades chinesas no que diz respeito ao diálogo com outros países relativamente ao coronavírus? As autoridades chinesas têm mantido uma postura de total cooperação sobre esta matéria.
Andreia Sofia Silva EntrevistaPaul Pun, secretário-geral da Caritas, sobre crise do coronavírus: “É um teste à nossa sociedade” O surto do Covid-19 agitou a sociedade e a economia de Macau. Paul Pun, secretário-geral da Caritas, alerta para o facto de grupos sociais mais vulneráveis, como os trabalhadores migrantes ou os portadores de deficiência, estarem a passar dificuldades para as quais o Governo não dá resposta. Paul Pun assegura que, nos últimos dias, os pedidos de ajuda na linha de apoio psicológico não aumentaram, mas as questões mudaram: “Antes tínhamos muitas pessoas a falar de suicídio, mas agora têm medo do futuro, estão preocupadas”, assegura [dropcap]C[/dropcap]omo tem sido o trabalho da Caritas nas últimas semanas? O surto do novo coronavírus trouxe uma crise generalizada? Sem dúvida que todas as pessoas de todas as comunidades estão a sentir algum tipo de efeito. Os mais vulneráveis são os que sofrem mais. Quando falo dos mais vulneráveis refiro-me a pessoas com baixos salários ou que têm recursos limitados. O Governo anunciou um plano para estimular a economia e para assistir os indivíduos, financiando as despesas de electricidade e de consumo de água. Isso vai trazer alguns benefícios, mas os mais vulneráveis continuam a ter de lidar com esta crise e a ter menor capacidade para ter boas condições de vida. Sugiro então que o Governo pense em como pode dar assistência às pessoas ligadas às Pequenas e Médias Empresas (PME), aos seus funcionários, dar alguma atenção especial. Claro que as PME já estão abrangidas por políticas específicas, mas falo dos seus empregados. Há algo que tem de ser feito. Os grupos mais vulneráveis vão ter acesso a apoios mensais, mas os empregados que trabalham e não pedem ajuda financeira ao Governo, vão ter dificuldades. As PME de Macau não vêem futuro no negócio e estão a reduzir o número de funcionários, ou podem exigir licenças sem vencimento. Ninguém tem certezas de quanto tempo esta situação vai durar e de quando estas empresas podem recuperar. Os portadores de deficiência, por exemplo, estão agora numa situação ainda mais vulnerável? As pessoas com deficiência também são afectadas, pois se o mercado não é forte, normalmente estas pessoas não conseguem assegurar o seu trabalho ou não conseguem ter trabalho porque não conseguem competir de igual forma com os trabalhadores sem deficiência. Não são considerados como prioridade para os seus patrões, então estão mais sujeitos a despedimentos, licenças sem vencimento ou ao cumprimento de menos horas de trabalho. É uma tendência normal na sociedade neste momento. Podemos ver mais casos de discriminação? Não diria, mas podem ser um dos alvos [dos patrões]. Mas tudo depende da relação que têm com o patrão. Em circunstâncias normais os portadores de deficiência já estão numa situação de risco porque eles não conseguem competir de igual forma dadas as suas limitações. Falemos agora das ONG que fazem trabalho social. O Governo deveria criar medidas especiais para estas entidades, uma vez que já enfrentam dificuldades? Actualmente, na Caritas, a principal preocupação é ajudar as pessoas. Não estamos a pensar em nós próprios. Mas a questão é se o Governo deveria pensar em nós (risos). Actualmente, usamos os nossos recursos e tentamos maximizá-los ao máximo para ajudar um maior número de pessoas. Não estamos a fazer dinheiro, não temos os lucros como objectivo. Muitas pessoas, quando têm problemas, não pedem ajuda ao Governo mesmo que tenham esse direito, pedem ajuda às associações. E aqueles que não vão pedir ajuda nesta fase não vão conseguir ter um financiamento extra para lidar com esta crise, só têm ajuda para pagar a água e a luz. No que diz respeito às ONG têm de encontrar formas de pagar aos seus trabalhadores. Para aqueles que regressaram da China providenciamos alimentação e temos de encontrar alojamento. O Governo decretou medidas de quarentena e muitos dos que ficaram em casa continuaram a receber o seu salário. Mas para quem trabalha em lares, a providenciar alimentação às outras pessoas… decidi que mesmo quem fica em casa recebe um dia de salário. Claro que não podemos continuar com esta medida para sempre, apenas durante a crise do coronavírus. Tentamos manter os trabalhadores para que não façam viagens arriscadas, gastamos mais dinheiro para os manter em Macau. Mas não temos medidas específicas. Acredita que a Caritas vai ter mais trabalho no apoio às famílias? Espera mais pedidos de ajuda junto do Banco Alimentar? Penso que mais pessoas podem passar a fazer parte desta categoria, porque ficam sem trabalho e sem salário. Neste momento estou no meu escritório, localizado no primeiro andar, e no rés-do-chão estamos a empacotar cabazes de comida doada para levar para as pessoas que não têm elevador em casa, famílias ou idosos que não têm como sair de casa. Cada vez mais vamos ter de fazer este tipo de trabalho para pessoas que precisam. A Caritas tem uma linha de apoio psicológico. Durante os dias de quarentena, têm recebido mais chamadas do que o normal? Não. Notamos um aumento ligeiro, mas as dúvidas e os problemas apresentados são diferentes. Antes tínhamos muitas pessoas a falar de suicídio, mas agora as pessoas têm medo do futuro, estão preocupadas. Falam desta incerteza pelo facto de estar tudo fechado. Não quer dizer que tenham sido afectados pelo vírus, mas querem ter uma ideia do que vai acontecer. São pessoas que têm estado em casa todos os dias, sem trabalho, com os filhos. Muitas vezes ficavam apenas uma hora em casa, ou só iam a casa dormir. No que diz respeito aos trabalhadores migrantes, estão ainda mais vulneráveis do que no passado. O que pode ser feito neste sentido? São um dos grupos vulneráveis. Têm de cuidar da família no seu país natal e algumas pessoas não são pagas devidamente, ou estão com dias de férias. Há uma maior incerteza junto dos trabalhadores migrantes, porque em Macau muitas pessoas não sabem como pedir ajuda. Estão numa situação ainda pior. Muitos locais estão com licenças sem vencimento, mas podem ter a ajuda das famílias e dos amigos. Os trabalhadores migrantes pedem ajudam aos seus amigos que estão na mesma situação. Há quatro dias quatro pessoas vieram aqui dizer que não conseguiam ir para as Filipinas e que estavam a ficar sem dinheiro, então dei-lhes alguma comida. Acredito que mais pessoas vão deixar Macau nestes dias. Seria bom haver alguma ajuda para os trabalhadores migrantes. A Cáritas dá, mas os nossos recursos são limitados. As medidas do Governo não abrangem os trabalhadores migrantes, então estes precisam de uma maior ajuda das comunidades onde se integram. Mas a nossa ajuda é sempre limitada. Estamos a falar de pessoas que têm sempre de ajudar outros. Acredita que as autoridades locais, e também as autoridades das Filipinas ou da Indonésia deveriam fazer mais para ajudar estas pessoas. Sem dúvida, e se não o conseguem fazer directamente devem trabalhar com as ONG. Muitas vezes o Governo não consegue trabalhar dessa forma directa mas as ONG podem fazê-lo, porque não temos de cumprir tantas obrigações. Só temos de dar assistência e garantir que as pessoas não estão em risco. Nenhuma autoridade nos contactou ainda, mas pelo que percebi eles próprios estão muito ocupados. Mas trabalhar de forma conjunta é a melhor forma de combater o surto do coronavírus. Qual o impacto do surto no funcionamento da Caritas? Vai necessitar de mais fundos ou recursos humanos? Muitas vezes não peço mais fundos, mas digo que temos de aprender como resolver os problemas em conjunto. Esta crise expôs ainda mais os problemas sociais de Macau. O Governo precisa de mudar a sua mentalidade, criando políticas mais modernas para lidar com estas questões? Este é o foco principal neste momento, e muitas pessoas estão preocupadas com a economia. Mas para mim o próximo passo é olharmos para a forma como cuidamos uns dos outros. E a razão é muito simples: há uma semana as pessoas começaram a comprar tudo nos supermercados e não pensaram naqueles que não tinham nada. Se eu tirar mais do que aquilo que preciso não é bom. É importante pensar nos outros para construir uma sociedade mais forte. Macau deve ser um sítio onde não pensamos apenas em nós próprios, e há uma hora estava a pensar nisso mesmo. Temos de ser cidadãos do mundo e não pensar apenas em nós, em construir Macau, mas olhar para outros países e as suas dificuldades? Esta crise é um teste ao novo Governo? Não. Isto não é um teste. Todos os governos devem fazer coisas pela sociedade, é a sua responsabilidade. É um teste à sociedade, pensamos apenas sobre nós próprios ou sobre os outros também? Não nos podemos esquecer dos outros.
Hoje Macau EntrevistaJorge Fão, sobre crise do coronavírus: Macau não é como Hong Kong, somos obedientes e ficámos em casa [dropcap]O[/dropcap] presidente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) elogiou hoje a obediência de população e as decisões do Governo local, em contraste com Hong Kong, nos esforços de prevenção face ao coronavírus Covid-19. “Inicialmente aceitámos isto muito bem. Ficámos em casa, muito sossegadinhos, muito obedientes. Macau, de facto, nesse aspecto, somos bons nessas coisas, somos melhores que as pessoas lá de Hong Kong. As pessoas de Macau, sejam portugueses, macaenses ou chineses, nós somos muito obedientes”, sublinhou Jorge Fão em declarações à agência Lusa. Por outro lado, destacou que “o Governo [de Macau] fez um belíssimo trabalho” e que há que “reconhecer que (…) tomou certas decisões em tempo muito oportuno, o que não aconteceu em Hong Kong”. Se as pessoas, “passadas duas semanas, começaram a ficar fartas de estar em casas (…) e começaram a sair”, a verdade é que ao acatar de imediato os apelos governamentais contribuíram para evitar o risco de contágio, defendeu. O mesmo fez a APOMAC, que tem cerca de um milhar de associados, ao fechar a clínica, ao reduzir inicialmente o horário da cantina, que acabou por fechar mais tarde, e ao reforçar o apoio domiciliário junto de centenas de pessoas mais idosas e com dificuldades de mobilidade, destacou Jorge Fão. “Tomámos todas as medidas cautelares”, que incluem a medição da temperatura corporal àqueles que ainda se deslocam à associação, explicou o presidente. Jorge Fão sublinhou ainda os esforços para garantir máscaras, para prevenir qualquer falha no fornecimento por parte do Governo de Macau, obrigado a encomendar 20 milhões dada a crescente procura desde o início da epidemia. Esforços que têm ajudado a que, “nestas paragens”, Macau seja “o sítio que teve menos contágio”. “Temos apenas cinco pessoas hospitalizadas [em Macau] e (…) muito em breve, penso que dentro de alguns dias, não teremos ninguém contagiado”, acrescentou o dirigente. Dos 10 casos identificados desde o início do surto pelas autoridades de Macau, cinco já receberam alta hospitalar. Em Hong Kong há a registar uma morte e 61 pessoas infectadas pelo novo coronavírus.
Andreia Sofia Silva EntrevistaNorberto Rosa, secretário-geral da Associação Portuguesa de Bancos: Grande Baía “é mais uma oportunidade” Os dois protocolos assinados entre a Autoridade Monetária e Cambial de Macau, a Associação de Bancos de Macau e a Associação Portuguesa de Bancos têm sido divulgados junto da banca portuguesa e de expressão lusófona no sentido de fomentar investimentos. Norberto Rosa, secretário-geral da APB, diz que é importante a banca portuguesa diversificar parceiros, pensando também no Oriente, e que tanto o BNU como a sucursal do BCP em Macau foram importantes durante a última crise económica em Portugal [dropcap]A[/dropcap] Associação Portuguesa de Bancos assinou dois protocolos, um com a Associação de Bancos de Macau e outro virado para a cooperação entre a China e os países de língua portuguesa. Na prática, o que tem sido feito nesse sentido? Em 2018 tivemos uma reunião com a Autoridade Monetária e Cambial de Macau (AMCM) numa perspectiva de colaboração entre as autoridades portuguesas, a Associação Portuguesa de Bancos (APB) e a Associação de Bancos de Macau (ABM). Posteriormente tivemos uma reunião com a ABM que nos convidou a participar nesta iniciativa, no sentido de estabelecer um protocolo não só com a ABM, mas também com associações de bancos de países de expressão portuguesa. Tudo com esse objectivo de promover a participação entre a China e esses países, onde Macau serviria como plataforma. A partir daí divulgámos esse protocolo pelos bancos portugueses, porque depois, com base nesse documento, serão os bancos a proceder a uma articulação com as autoridades de Macau no sentido de desenvolver esse processo de cooperação. Cabe então a cada entidade estabelecer essa ligação. Sim. O que entendi desse processo foi que havia uma intenção do Governo de Macau e da China de promover a RAEM como uma plataforma a fim de estabelecer mais facilmente essa relação entre Portugal, os países de expressão portuguesa e a China. Há aqui uma dupla função no sentido de os bancos, mesmo através dos países de expressão portuguesa, se poderem articular de forma mais adequada com a China quer em processos de financiamento ou desenvolvimento desses países, quer na actividade comercial. Há então uma aposta no financiamento de grandes projectos. Sim. Tem duas vertentes. Por um lado, temos esse financiamento [no sentido de] poder haver investimentos cá em Portugal e em outros países de expressão portuguesa. Por outro lado, essa plataforma também poderá ajudar a que empresas que queiram ter relações comerciais com a China sejam apoiadas pelos bancos através desta plataforma. Poderá haver a possibilidade não só de fazer investimentos em actividades já existentes, adquirindo instituições ou empresas, como também de fazer novos investimentos. [Os protocolos] poderão facilitar essa articulação e aí os bancos podem vir a ter um papel importante no apoio às empresas portuguesas e às empresas chinesas que se queiram estabelecer em Portugal, nomeadamente através dos bancos de capital chinês que poderão facilitar essa actuação. Aí Macau poderá também ter um papel preponderante como o interface nesse processo. Os vinte anos da transferência de Administração de Macau celebraram-se o ano passado. Esta aproximação no sector financeiro com Portugal deveria ter acontecido de forma mais visível ao longo dos anos, e não apenas recentemente? Isto tem um momento histórico para acontecer. Portugal viveu também uma crise financeira bastante grande e está ainda num processo de recuperação. Esta abertura da China e de Portugal à entrada de capitais chineses foi uma alteração estrutural que aconteceu recentemente. Antes não havia uma grande participação de capital chinês em Portugal e isso veio aprofundar o relacionamento entre os dois países. Tem-se assistido, por outro lado, a um aumento significativo da estrutura do comércio externo português, em que a China é um mercado importante. Neste momento penso que todas essas tendências poderão ser potenciais com este apoio dos bancos e o apoio da RAEM. Qual é a vantagem? É que há ali uma melhor percepção e compreensão do comportamento de Portugal e, por outro lado, também percebem melhor o comportamento da China. Há aqui uma facilidade de entendimento. Numa intervenção que fez em Macau falou de uma maior estabilidade do sector bancário na zona Euro depois dessa crise. É importante ter alternativas por parte dos bancos face aos desafios que a zona Euro comporta? A China deve fazer parte da alternativa? É sempre importante alguma diversificação. No caso concreto das instituições em Macau, como o BNU e a sucursal do BCP, o [seu] papel foi importante no período de crise em que os bancos passaram por dificuldades. Isto porque [esses dois bancos] continuaram a contribuir para resultados positivos e para a liquidez das instituições financeiras portuguesas quando elas passaram por dificuldades de liquidez. [Essa presença] amenizou, [os bancos] não tinham a dimensão suficiente para impedir que houvesse uma crise, mas amenizou de alguma forma. Ter uma maior diversidade geográfica é importante para mitigar os riscos. Ou seja, uma vez que estamos na Europa onde existem dificuldades estruturais, que se prendem com o facto de estarmos com taxas de juro de referência do BCE negativas, de termos um sistema bancário maduro, com pouca capacidade de crescimento, o facto de existir alguma diversidade mitiga os riscos do sistema bancário nacional, apesar da melhoria que se registou nos últimos anos. A situação dos bancos está hoje muito melhor do que estava há dois ou três anos, mas há ainda problemas estruturais. O sector bancário português deve estar atento ao projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau? É mais uma oportunidade de negócios. Pelo que entendi da apresentação do projecto da Grande Baía estamos a falar de um projecto megalómano no sentido de ter uma grande dimensão, e poderão haver aqui outras oportunidades de negócios fundamentalmente em determinadas áreas industriais portuguesas, nomeadamente da construção, onde os bancos poderão apoiar essas empresas a participarem nesse grande projecto. Em Portugal é um assunto pouco conhecido. Havendo uma maior publicidade, penso que esse projecto teria vantagens e oportunidades para outros sectores que não apenas o financeiro. Mas os bancos que já têm presença em Macau poderão apoiar essas empresas que queiram participar na Grande Baía. Como olha para a presença do BNU em Macau? Surpreende-o este desenvolvimento do banco ao longo dos anos? O BNU tem de ser visto de uma perspectiva quase institucional, quase como o representante de Portugal e mais do que uma instituição em particular. O BNU foi criado como um banco emissor com actividade comercial e está em Macau desde 1902 e foi sempre banco emissor com maior autonomia a partir dos anos 80. O relacionamento com a AMCM e a China foi sempre bom. O banco continua a ter grande prestígio e o facto de ser banco emissor continua a ter essa importância. Esse reconhecimento foi feito pela China quando prorrogou o prazo para continuar a ser o banco emissor. A China tem reconhecido, e a RAEM tem continuado a reconhecer o BNU como uma entidade que contribui para o desenvolvimento da região, uma entidade com prestígio. Esta evolução do BNU não é surpresa. Macau está a passar por uma fase de mudanças no seu sector financeiro, com o fim do regime offshore, por exemplo. Fala-se também na criação de uma bolsa de valores mais virada para o mercado dos países de língua portuguesa. É uma outra oportunidade para o sector bancário? O projecto da bolsa de valores] está articulado com a possibilidade dos próprios países de expressão portuguesa usarem mais o renmimbi. Estive em Macau na altura em que houve a emissão dos panda bonds. A criação de uma bolsa de valores poderá estar mais associada a esse tipo de entidades que tenham uma maior ligação entre a China e os países de expressão portuguesa. No futuro, algumas empresas poderiam usar a bolsa de valores até para se financiarem se tiverem uma actividade importante na China. Há aqui uma questão importante. A China caracteriza-se por ter um excesso de poupança e de liquidez, e portanto, o facto de [Macau] ter uma bolsa de valores é outra alternativa para investimentos. De alguma maneira isso poderá ser a forma de algumas empresas terem uma ligação mais intíma com a China em termos comerciais. As empresas poderão também ter vantagens em ter algum capital ou financiamento através de uma bolsa de valores em Macau, mas isso só o futuro o dirá. Mas compreendo que haja essa intenção de tornar Macau numa perspectiva mais alargada em termos de actividade, ou seja, tornar o território num centro financeiro com várias vertentes.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAlberto Carvalho Neto, presidente da Associação de Jovens Empresários Portugal-China: “Sou contra retirar vantagens de uma crise” Empresário e presidente da Associação de Jovens Empresários Portugal-China, Alberto Carvalho Neto lamenta que, com o surto do novo coronavírus, as empresas que exportam material médico para a China tenham aumentado muito os preços, em muitos casos na ordem dos 1000%, num claro aproveitamento da situação. Carvalho Neto fala de “retracção” em Macau, dada a quebra na importação de produtos alimentares e de um impacto negativo no turismo em Portugal [dropcap]D[/dropcap]e que forma é que a crise do coronavírus está a afectar o comércio entre Portugal e a China? Em Portugal está a notar-se muito uma contracção. A não ser num sector muito específico que é a venda de equipamentos e máscaras cirúrgicas para a China. Isso está a levar a uma discrepância bastante grande de valores e de stock, e infelizmente está a registar-se um grande aumento de preços. Há esse tipo de procura por toda a Europa e norte de África, ao ponto de em muitos países não existir stock disponível. Relativamente aos produtos que são exportados para Macau e China, essa exportação tem diminuído bastante devido ao facto de não haver consumo. Mas acredito que no máximo dentro de três meses o mercado possa voltar ao normal e aí poderá existir de facto uma oportunidade para as empresas portuguesas, que podem começar desde já a tentarem fazer contactos. Contactos para que tipo de vendas? Enlatados, conservas, produtos que sejam fáceis de transportar e que tenham grande valor nutritivo, porque a partir do momento em que a situação estagnar o consumo vai voltar, e teme-se um consumo mais desenfreado. Mas a verdade também é que Portugal, tal como outros países, vai sofrer bastante com esta crise, nomeadamente no turismo. As grandes companhias aéreas deixaram de fazer alguns voos para a China, que era um grande mercado e em expansão. Portanto, isto tudo vai afectar a economia mundial. A curto prazo o impacto para as Pequenas e Médias Empresas (PME) vai ser enorme. Estamos a falar de grandes perdas e algumas já se começaram a reflectir nas encomendas do Ano Novo Chinês. Normalmente estas encomendas começam entre Setembro e Novembro, e nesses meses ainda houve bastantes encomendas. Em Novembro notou-se uma redução, mas depois em Janeiro e Fevereiro estagnou. Para as PME há realmente uma estagnação brutal pois as encomendas não estão a sair, e em algumas zonas da China as encomendas pararam completamente, mesmo as mais pontuais e reduzidas, mas que representam uma grande percentagem para as empresas portuguesas. É algo que vai afectar bastante a nossa balança comercial. Não falo do volume de negócios das grandes empresas, pois as que estão a sofrer mais são as pequenas empresas, e nem falo daquelas que têm média dimensão. Mas dentro da crise pode haver uma pequena oportunidade. Em que sentido? Tem a ver com o facto de o tecido empresarial chinês, tanto as PME como associações, estarem dispostas a, pela primeira vez, pagarem pela nota de encomenda. Isso tem a ver com o facto de estarem todos à procura de material médico, máscaras essencialmente. É preciso cuidado pois podem estar a comprar coisas falsas e fora da validade, então as empresas chinesas estão a tentar contactar várias empresas portuguesas, nomeadamente na área da indústria farmacêutica. Portanto nesse sector há um grande volume de bens transaccionados, mas há uma grande quebra nos outros. Isso faz com que as PME portuguesas que normalmente vendem para a China e que têm de estar à espera alguns meses para receber, possam agora renegociar melhor a forma de pagamentos. Neste sentido concorda com as declarações da ministra portuguesa da Agricultura, que defendeu que a crise do coronavírus pode gerar oportunidades para o sector empresarial. Sou contra retirar vantagens de uma crise, sobretudo uma crise de saúde. Há dias falei do facto de determinadas empresas e associações na Europa estarem a aproveitar-se deste caso para aumentarem exponencialmente os preços de produtos médicos. Acho que é errado. Uma coisa é haver uma lei da oferta e da procura, outra é o exagero de ter margens de mil por cento, é exagerado e errado. Acho errada essa percepção de oportunidade, mas tudo depende da forma como a ministra o disse. Mas as oportunidades que talvez possam surgir serão ao nível de se abrir um leque de exportações. Há muitos produtos que não podem ainda ser exportados para a China. Tal como a carne de porco? A carne de porco pode ser exportada a carcaça, mas não é isso que queremos de Portugal. Durante anos tentou-se fechar o processo dos transformados de carne de porco, que é o que dá valor ao país, e não a carcaça. Provavelmente este será um bom momento para, nos próximos dois ou três meses, Portugal voltar a reagir e pedir à China para finalizar processos de uma forma mais célere, porque a China vai precisar de mais produto. Há também uma maior confiança nos produtos oriundos da Europa, depois de uma crise desta natureza. Muito. Para se ter uma ideia, o que está a acontecer é que empresas chinesas têm tido a preocupação de comprar produtos certificados na União Europeia porque têm medo de ser enganados. Daqui a dois ou três meses pode haver de facto uma oportunidade para voltarmos à carga com os nossos produtos, sobretudo de consumo alimentar, porque a China vai precisar bastante. No caso de Macau, que importa sobretudo produtos alimentares, onde se incluem vinhos, espera-se uma grande quebra, uma vez que a maioria dos restaurantes estão a fechar. Vai haver uma grande retracção. Acredito que venha a ter um grande impacto [a crise do coronavírus], porque os casinos fecharam, o consumo de vinho baixou e nada acontece. Aí sim vamos ter um grande impacto na nossa economia de exportação. Quanto tempo demorará a recuperar o volume de negócios perdido em relação a Macau? Depende muito do que vai acontecer e da abertura do mercado. A China consegue activar meios para conseguir estancar o problema e acho que nós, na Europa, devemos aprender com isso, o que é muito importante. Neste momento, se tivermos uma crise desse género, não estamos preparados. Nem em meios económicos nem em termos de procedimentos das empresas. No caso da China, continuam a existir serviços básicos como a recolha de resíduos sólidos e tratamento de água. Na Europa, nem temos legislação para obrigar as pessoas a ficar de quarentena. Portanto acho que a maioria parte dos países europeus devem começar a repensar como é que a Europa age num momento de crise deste género. Esta crise fez, de certa forma, repensar modelos de negócio? Acredito que tem de se repensar numa estratégia, sobretudo nós [Portugal] a nível nacional. Há bastantes anos que a China tem convidado a estarmos presentes em zonas de comércio livre […] e os primeiros a chegar são quem realmente consegue estar mais próximo do mercado. Nós, como país, devemos repensar como é que queremos estar na China. Este poderá ser um bom ano para nós, como país, trabalharmos em conjunto e tentarmo-nos aproximar dessas oportunidades que existem para começarmos a ter produtos no terreno. Aí poderemos desenvolver o nosso e-commerce. O problema é que, normalmente, as empresas portuguesas não querem apostar com o parceiro chinês e o parceiro chinês também não sabe como vão as coisas acontecer e o e-commerce não funciona porque há muito tempo de espera para chegar ao produto. Está a haver uma resposta suficiente por parte das associações empresariais portuguesas a esta crise? A AICEP tem estado muito atenta a estas questões. Sei que tem havido reuniões para tentar apoiar as empresas portuguesas e para reorganizar o calendário de eventos, porque tudo o que estava agendado para Janeiro, Fevereiro e Março foi tudo cancelado. Isto obrigou a custos para os empresários e associações. Acredito, sim, que deveríamos começar a pensar como é que iríamos reagir numa crise do género. Qual a nossa capacidade de armazenamento, de resposta? Como é que os nossos hospitais estão preparados? Por isso é que é importante criarmos um grupo de trabalho relativo a procedimentos. É também necessário rever a legislação, porque eu não me sinto seguro num país onde a quarentena não é obrigatória. As associações e confederações têm de começar a discutir este tipo de sistemas porque são sistemas de ruptura, que podem levar a um grande impacto na economia. Acima de tudo, o nosso Governo tem de olhar para isto.
Andreia Sofia Silva EntrevistaRaquel Guiomar, do Instituto Nacional Ricardo Jorge, sobre epidemia: “Controlo deve ser variado e coordenado entre si” Coordenadora do Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e Outros Vírus Respiratórios do departamento de doenças infecciosas do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Portugal, Raquel Guiomar assegura que todo o sistema que está a ser implementado no combate ao novo coronavírus beneficia de experiências com a SARS e outro tipo de epidemias [dropcap]E[/dropcap]m traços gerais, como descreve este tipo de coronavírus? Quais as principais diferenças em relação a outro tipo de vírus? Os coronavírus são conhecidos desde os anos 60, estando a sua designação associada à forma que apresentam quando observados por microscopia electrónica, pois apresentam uma forma redonda com projecções na superfície fazendo lembrar uma coroa. É conhecida uma grande diversidade de coronavírus, especialmente no reino animal. Como causa de doença na população humana são conhecidos quatro coronavírus (CoV) que se designam por: CoV NL63 e CoV 229E (Alfacoronvirus) e CoV HKU1 e CoV OC43 (Betacoronavirus). Em 2002 surgiu um novo coronavírus associado à Síndrome Aguda Respiratória Severa (SARS) pertencente aos Betacoronavirus (Subgénero Sarbecovirus) que foi transmitido ao Homem por uma espécie de texugos selvagens, mas também cães e furões vendidos num mercado em Guandong, na China. Em 2012, foi identificado pela primeira vez o coronavírus da Síndrome Respiratória do Médio Oriente, MERS-CoV (Betcoronavirus, subgénero Marbecovirus), associado a um surto de pneumonias na Arábia Saudita. Os camelos dromedários são importantes reservatórios deste vírus e pensa-se que também os responsáveis pela transmissão do MERS-CoV à espécie humana. Em Dezembro de 2019 a investigação do agente causal de um elevado número de pneumonias em trabalhadores de um mercado de Wuhan, na China, levou à identificação de um novo coronavírus, actualmente designado como 2019-nCoV, que não tinha sido anteriormente identificado como agente causal de doença na população humana. A sequenciação do genoma dos vírus detectados nos primeiros casos confirmados de infecção mostraram que o genoma do 2019-nCoV era em 85 por cento semelhante aos genomas de CoV identificados em morcegos. As investigações que decorrem ainda para o melhor conhecimento da epidemia indicam que a transmissão poderá ter ocorrido no mercado num período relativamente curto de tempo e por uma mesma fonte. Pensa-se que este novo coronavírus poderá ter sido transmitido ao Homem por uma ou mais espécies de animais selvagens que era comercializada no mercado. Quais os principais cuidados a ter para quem tem doenças crónicas, crianças e idosos? Que respostas devem ser desenvolvidas consoante os vários tipos de doentes? Até ao momento, a maioria dos casos tem sido confirmada na população adulta acima dos 30 anos, tendo sido reportados escassos casos de infecção em crianças. Esta observação é um assunto ainda em investigação pela comunidade científica. Os estudos serológicos e as metodologias em desenvolvimento poderão permitem avaliar qual o papel do sistema imunitário relativamente à diferença de casos de infecção nos vários grupos etários e em grupos de maior risco. As medidas de prevenção da doença, na ausência de uma vacina especifica para este novo vírus, passam muito pelas regras de higienização frequente das mãos, etiqueta respiratória e evitar o contacto com casos de infecção pelo novo coronavírus. Considera ser possível produzir tão rapidamente uma vacina que saiba dar resposta a uma possível epidemia, uma vez que o vírus ainda está no início em termos de análise? A produção de vacinas e a sua aprovação é um processo complexo e que inclui várias etapas até à disponibilização da vacina para a população. O suporte financeiro que está a ser equacionado no contexto da epidemia do 2019-nCoV à comunidade científica, a nível global, decerto contribuirá para que a investigação nas áreas da prevenção e tratamento num futuro próximo venham contribuir para o controlo da epidemia e a disponibilização da vacina. Que comentários faz em relação à avaliação da Organização Mundial de Saúde sobre esta matéria? Actualmente a OMS está em estreita coordenação com os países que se situam no epicentro da epidemia de 2019-nCoV, nomeadamente com a China e com os países próximos, tendo como principais objectivos o controlo da epidemia e a prestação de cuidados aos doentes. Em Portugal o apoio da OMS tem sido efectuado através da Rede Laboratorial onde está inserido o Laboratório Nacional de Referência para a Gripe e Outros Vírus Respiratórios, global Influenza Surveillance and Response System (GISRS), e a nível estatal. Eliminar o comércio de animais exóticos vivos pode ser a única solução para travar esta epidemia ou devem ser tomadas outras medidas? As medidas para o controlo de epidemias devem ser várias e coordenadas entre si, não só no tempo como no espaço. A eliminação do contacto próximo com as fontes de infecção, que neste caso se pensa ser uma espécie animal, em coordenação com medidas de isolamento social, de higiene e de controlo de contactos, nomeadamente a movimentação das populações, são medidas que quando implementadas no momento e local adequado contribuirão para o controlo da transmissão do vírus e da epidemia. Quais as principais análises que estão a ser feitas no vosso serviço relativo a este coronavírus? Estão em contacto com as autoridades chinesas, incluindo Macau? O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, através do Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios (LNRVG) do seu Departamento de Doenças Infecciosas, garante nesta fase o diagnóstico laboratorial de todos os casos suspeitos de infecção pelo novo Coronavírus (2019-nCoV) sob investigação. A detecção laboratorial do 2019-nCoV é feita através da metodologia de amplificação dos ácidos nucleicos, pela reação de polimerase em cadeia (PCR) em tempo real. O Instituto Ricardo Jorge tem também disponível a metodologia de sequenciação de nova geração, para a realização do estudo do genoma do 2019-nCoV (análise filogenética e detecção de mutações). O PCR é constituído por três reacções de amplificação dirigidas a três diferentes regiões do genoma viral, sendo que um caso confirmado apresentará as três reações de PCR positivas. Os resultados laboratoriais são comunicados à Direcção-Geral da Saúde (DGS) e ao Hospital Referência cerca de cinco horas após a receção das amostras biológicas. Que expectativas coloca em relação à evolução da situação em termos de resposta por parte das autoridades médicas e contágio? Em Portugal, para fazer face ao aparecimento de um novo vírus agente de infecção respiratória, está implementado um plano de contingência que envolve diversas entidades com intervenção na área da saúde, das quais destaco o Ministério da Saúde, Direção-Geral da Saúde, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, Administrações Regionais de Saúde, hospitais de referência, INEM, SNS 24, INFARMED, DGAV, Alto Comissariado para as Migrações, entre outras. Desde o alerta dado pela OMS relativamente ao surto de pneumonias associadas a um novo coronavírus têm sido promovidas reuniões regulares entre todos os parceiros, publicada documentação para profissionais de saúde, mas também para a população e accionados mecanismos de identificação rápida de casos suspeitos com indicação para investigação. O diagnóstico laboratorial permite detectar a infecção pelo novo coronavírus, constituindo informação essencial para o tratamento dos doentes (na fase de contenção em que nos encontramos), constituindo igualmente informação crítica para a implementação de medidas em saúde pública pelos decisores em saúde de forma a evitar a transmissão da infeção pelo 2019-nCoV na população. Todo o sistema implementado beneficia agora de experiências anteriores, nomeadamente na anterior implementação de planos de contingência para a actuação na pandemia de gripe de 2009, mas também em situações de surtos e de emergências como a do SARS e MERS, surtos de Legionella, de hepatite A, de Sarampo e do diagnóstico de casos suspeitos de ébola e de Zika vírus. Instituição disponível para ajudar países da CPLP no diagnóstico O laboratório de referência em Portugal está disponível para ajudar os países da CPLP no diagnóstico de casos suspeitos de coronavírus e já recebeu pedidos de cooperação de Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, disse à Lusa o presidente da instituição. “Estamos sempre disponíveis para ajudar naquilo que são as nossas capacidades e disponibilidades”, afirmou o presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), Fernando de Almeida. O INSA e os laboratórios dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) estão contemplados num protocolo global que envolve os institutos de saúde pública destes estados. Este acordo, explicou Fernando de Almeida, permite a qualquer momento que sejam solicitados apoios de capacitação e colaboração. Foi o que aconteceu na Guiné-Bissau, aquando da ameaça do vírus Ébola e, mais recentemente, em São Tomé e Príncipe, com o caso da celulite necrotizante, recordou. Em relação ao coronavírus, o INSA já recebeu “pedidos de apoio de colaboração” de Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Mais formação Este apoio poderá ser dado ao nível da formação dos profissionais para os diagnósticos ou da actualização das metodologias ou na análise, em Portugal, das amostras dos casos suspeitos detectados nesses países. Fernando de Almeida recordou que a embalagem de produtos biológicos pressupõe uma formação específica que foi dada a estes países por elementos do INSA que, por seu lado, está certificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o fazer. E acrescentou que o INSA tem capacidade para obter os resultados das amostras algumas horas após estas darem entrada no instituto. O presidente do INSA sublinha os contactos já recebidos e congratula-se com o facto de estes países estarem preocupados e mostrarem interesse em garantir uma resposta, no caso de esta ser necessária. “Estamos atentos. Estamos todos a preparar-nos a nível global”, adiantou.
Andreia Sofia Silva EntrevistaJoão Marques da Cruz: “As autoridades chinesas estão a fazer um trabalho notável” O presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC) olha para o desenrolar dos acontecimentos relacionados com o coronavírus com tranquilidade e deposita total confiança no trabalho feito pelas autoridades da China e de Macau. No que diz respeito ao território, João Marques da Cruz defende que não deve existir uma reacção excessiva e aponta para a necessidade de medidas de apoio às Pequenas e Médias Empresas. O responsável diz não compreender a decisão de Carrie Lam de suspender as ligações marítimas entre as duas regiões administrativas especiais [dropcap]A[/dropcap] crise gerada pelo coronavírus apanhou todos de surpresa. Quais são as directrizes que estão a ser seguidas para empresários de Portugal e China? É evidente que este coronavírus apanhou toda a gente de surpresa. Neste momento importa dar duas notas: a primeira é que as autoridades chinesas estão a fazer um trabalho notável de contenção que todo o mundo elogia, começando pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Aquele esforço logístico impressionante, com a construção de um hospital em 10 dias, de abastecimento de cidades que estão de quarentena e que têm 60 milhões de habitantes. Tudo isso é muito relevante e acho que devemos assinalar. Também as declarações da OMS têm sido muito equilibradas, evitando os excessos. Tem de haver um equilíbrio. Sem dúvida que têm de se tomar medidas, mas as medidas não podem ser propiciadoras de isolacionismo, que é sempre mau conselheiro. Temos de ter sempre os pés assentes na terra. Concorda então que a OMS tenha demorado a definir o coronavírus como uma epidemia global. Sim, penso que foram muito ponderados. Acho que, aliás, no actual contexto, a OMS representa uma mistura de serenidade e conhecimento técnico. Mas no que diz respeito às relações Portugal-China, do ponto de vista comercial, as exportações portuguesas para a China são à volta de 600 e 700 milhões de euros. Grosso modo, considerando que as exportações portuguesas para o mundo são 60 mil milhões de euros, nós estamos a falar de 1 por cento. Todas as exportações portuguesas para a China são 1 por cento das exportações portuguesas. Este número relativiza a questão. 600 milhões são 600 milhões, mas é só 1 por cento. O que espero que aconteça é business as usual. Aconteceu o que aconteceu, há casos na província de Hubei, mas importa continuar a funcionar normalmente. A fim de manter essa normalidade, a Câmara de Comércio tem reunido com empresários, têm chegado alguns pedidos de informação? O maior pedido que tem chegado da parte de empresas nossas associadas e que têm negócios na China tem a ver com a necessidade de ajuda no fornecimento de máscaras e outros materiais, e é algo que estamos a fazer. Já identificámos identidades portuguesas que podem prestar essa ajuda aos associados e a empresas portuguesas e chinesas que têm uma relação com Portugal. Mas muita gente coloca dúvidas sobre o que irá acontecer em eventos que são daqui a três meses, e a minha resposta é que seguramente vai acontecer tudo normalmente, porque esta crise vai ser controlada a muito curto prazo, espero. Tudo o que acontece no mês de Fevereiro foi desmarcado. Eu deveria ir na próxima semana a Hong Kong, Macau e Pequim, e obviamente que não vou. Mas a CCILC tem uma delegação em Macau e está muito activa em todos os momentos na promoção das relações comerciais e de investimento entre a China e Portugal. Normalmente falamos de questões económicas apenas, mas neste momento queremos estar activos e solidários nesta questão. Tenho confiança nas autoridades da China e de Macau de que estão a fazer tudo o que é possível para debelar a crise. Tudo o que seja de criticar fica para outra altura. Não deve ser feito agora. Enfrentamos tempos difíceis no comércio mundial, tendo em conta que este novo coronavírus surge depois de uma guerra comercial. Há que separar os dois assuntos. Foi importante as autoridades chinesas darem toda a informação. A China hoje é diferente da China de 2002/2003. Foi em Novembro de 2002 que começou a SARS, que durou nove meses, com aproximadamente oito mil infectados e uma mortalidade muito significativa. Mas independentemente destas distinções, na altura a China demorou algum tempo, demasiado, a reagir. E neste momento foi muito rápida, houve transparência, actualizações contínuas. Diria que temos de estar todos do lado das autoridades chinesas para lidar com esta crise. Vejo os dados actualizados, vejo um evidenciar de que há um problema. É verdade que há casos em todas as províncias, mas o número de mortes noutras províncias chinesas que não Hubei é muito residual. Há várias províncias que têm zero mortes. Há pouco tempo houve o primeiro morto em Pequim, o que mostra que é algo que está muito concentrado e isso resulta do esforço de contenção. Mas falou do problema das trocas comerciais. Espero e desejo que neste momento não haja a menor mistura dos dois assuntos. No caso de Macau, por ser um território mais pequeno, com uma economia mais dependente do jogo, pode vir a sofrer maiores consequências com esta epidemia? É evidente que sendo uma economia baseada no turismo, onde o jogo é o grande atractivo, uma epidemia é a pior coisa que pode acontecer. Obviamente que a economia de Macau vai sofrer e para Macau o que é importante é que esta fase de contenção do vírus tenha sucesso e passe o mais rápido possível. O que será muito mau para a economia de Macau, e espero que não aconteça, até porque não há nenhum sinal nesse sentido, era se houvesse um desenvolvimento não contido do vírus. Houve voos cancelados entre as Filipinas e Macau, está a acontecer algum excesso. Isto porque, quer em Macau quer em Hong Kong, a população que não está afectada pelo vírus é um número de 99,999 por cento. Há que ter um ponto de equilíbrio. Mas é um território densamente povoado e de pequena dimensão, e já existem dez casos confirmados. Vivi em Macau e tive H1N1, fui tratado lá. Macau tem boa capacidade de resposta a estas situações e falo com experiência própria. Acho que não é do interesse de Macau uma reacção excessiva, é mau para todos e para Macau é péssimo. Mas quando fala de reacção excessiva, refere-se a que tipo de medidas? Tenho dificuldade de entender que haja cancelamento de voos entre regiões que não têm casos ou têm casos marginais, para Macau. E a decisão da Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, de suspender as ligações de ferry, também foi exagerada? Com a indicação que eu tenho neste momento, não consigo entender. Não sei se a motivação é para evitar que os 20 e poucos casos que há em Hong Kong, numa população de sete milhões, que se espalhe para Macau, ou da dezena de casos de Macau de ir para Hong Kong. Mas qualquer que seja o movimento acho que há um exagero. Todas essas medidas criam o factor medo, e quando isso entra na cabeça das pessoas, até de forma irracional, apesar de o vírus poder estar totalmente controlado, o factor medo persiste. E tirar da cabeça das pessoas esse medo demora muito mais. Não tenho os dados que estão por detrás dessa decisão do Governo de Hong Kong, mas com a informação que eu tenho, não a entendo. Como tem sido o contacto com as autoridades de Macau no que diz respeito às PME locais e portuguesas? Há também esse sentimento de medo? É importante criar medidas a curto prazo que aliviem essas empresas, nomeadamente no alívio de tesouraria das PME, que sofreram imenso com a ausência de clientes. Sei que o Governo está a tomar medidas concretas nesse sentido. Acredita que depois desta epidemia a China pode mudar a sua postura relativamente ao comércio de animais vivos? Sim, acredito que depois de resolvida esta questão que as autoridades chinesas vão rever [as regras], sobretudo quando estamos a falar de animais vivos selvagens. Mas isto não é a primeira vez que acontece e penso que é justo dizer que o conhecimento científico leva-nos a achar que a razão destes surtos tem que ver com esta promiscuidade que existe entre animais vivos e pessoas.
Andreia Sofia Silva EntrevistaPaolo Longo, jornalista e fotógrafo: “Chineses adoram Xi Jinping” Com a exposição de fotografia “O Caminho Chinês”, patente no Museu do Oriente, em Lisboa, Paolo Longo revela a percepção da população chinesa face às enormes mudanças do país. O HM conversou com o fotógrafo e ex-correspondente do canal italiano RAI na China sobre a aprendizagem que os chineses tiveram de fazer de si mesmo como indivíduos e as diferenças entre os dois líderes que conheceu, Hu Jintao e Xi Jinping [dropcap]C[/dropcap]omecemos pela exposição. Que histórias sobre a China contam estas fotografias? Vivi na China entre 2004 e 2015, um momento muito importante e especial, porque quando cheguei a China era uma região de poder, mas quando saí já era uma região de super poder. Tudo aconteceu neste período, como os Jogos Olímpicos (JO) e a Expo de Xangai. Cheguei com uma ideia geral do que estava a acontecer e estive antes três meses em Nova Iorque a estudar um pouco a China e os chineses. Foi muito interessante tentar compreender como é que a população estava a reagir a tudo o que estava a acontecer à sua volta. A China estava a mudar tão depressa que as pessoas pareciam, muitas das vezes, confusas com o que estava a acontecer. Eu próprio também estava bastante confuso. Como estava a trabalhar para televisão viajava bastante pelo país e fiquei com uma boa impressão das coisas. A exposição conta a história de como vi as pessoas a cooperar com essa revolução que estava a acontecer nas suas vidas. Entre 1949 e a morte de Mao Zedong os chineses não eram indivíduos, mas sim massas. Não estavam autorizados a pensar nas suas vidas pessoais, tinham de pensar no colectivo. De repente estavam autorizados a ser pessoas e eu comecei a tirar fotografias disso, a olhar para elas. A exposição é o resultado de muitas reportagens diferentes por todo o país, milhares de fotografias. O nome da exposição, “O Caminho Chinês”, é uma frase do poeta Lu Xun. Porque escolheu esse título? Lu Xun disse que a esperança é como um caminho no campo, e no início o caminho não está sequer traçado, até que alguém começou a andar. Uma pessoa, duas pessoas, três e o caminho está feito. A ideia da exposição é que na China surgiram vários novos caminhos porque todos estavam a criar os seus. Acredita que hoje as pessoas estão mais capacitadas a pensar por si próprias? Claro que sim. Há um retrato que não usei na exposição, que nunca usei. Chama-se “O Grande Eu” e é numa avenida em Pequim, o epicentro do consumo chinês. Eles descobriram a ideia do “eu” e agora sabem ser eles próprios. Para todas as pessoas é difícil porque têm de voltar atrás muitas vezes, mas para os jovens é diferente, é essa a realidade. Notou muitas diferenças de percepção entre as pessoas do campo e da cidade, por exemplo, face a todos os acontecimentos do país? As fotografias revelam isso? Sim. Na China há as cidades de primeiro nível, como Pequim, Xangai, Shenzhen, e cidades de segundo nível. Vemos as diferenças, até na maneira de vestir das pessoas. Havia ainda muitas bicicletas e pequenas motorizadas que não vemos em Pequim. Depois há as cidades de terceiro nível, mas que têm dois milhões de habitantes. No campo vivem anos e anos atrás em termos de desenvolvimento. Li algo num livro onde o autor chamava a estes lugares “aldeias do cancro”, pois em todas as famílias havia alguém com cancro. Fui ver de perto porque é que isso acontecia. No início, como jornalista, tinha de pedir autorização para viajar e trabalhar em todo o lado, tinha sete documentos diferentes. Mas quando cheguei a uma aldeia encontrei o líder da comunidade sentado no seu carro a bloquear a entrada, e a dizer-me que eu não podia entrar. Entrei e comecei a falar com toda a gente, e as pessoas queriam era falar do facto de o chefe da aldeia ter vendido uns terrenos a pequenas fábricas que trabalhavam com poluentes fortes, químicos, que poluíram a água. Disseram-me que sempre que alguém vinha fazer uma investigação o chefe da aldeia colocava água limpa para diluir os efeitos da poluição tornando os resultados normais. Estes locais são muito maus, vi pessoas a viver em caves com péssimas condições. Agora o Governo está a tentar resolver estes casos, mas mesmo no meio das cidades há áreas onde as pessoas ainda vivem em condições terríveis. Na exposição há uma secção de fotografias sobre os hutongs, que não têm casas de banho, nem privacidade, água canalizada, nada. Estão a destruí-los. Na maioria das fotografias que vemos aqui as casas já não existem, não as querem ver e não se preocupam se as pessoas se queixam. Na verdade, as pessoas não se queixam, só o fazem se não têm dinheiro suficiente. No fundo, sentem-se felizes por sair destes sítios. Nós, estrangeiros, preocupamo-nos com a destruição das cidades velhas, mas as pessoas estão felizes por sair. Porque foi para Nova Iorque para aprender sobre a China? Por um motivo muito estúpido. Trabalhei lá durante 12 anos e ainda tenho uma casa e há um lugar lá chamado “The Asian Society”, que tem livros e livrarias sobre a Ásia. Estavam a ter cursos de chinês e fui para lá aprender e também porque havia bons livros sobre a China em inglês. As diferenças foram grandes entre aquilo que leu e o que vivenciou. Sem dúvida, são sempre. Os livros tinham provavelmente sido escritos dez anos antes e num país como a China as coisas mudam todos os dias. Os americanos, durante muito tempo, não compreendiam o que estava a acontecer na China. Quando cheguei todos me diziam que estava acabado, que o boom económico do país não ia durar muito, que era impossível uma economia capitalista durar tanto tempo com um Estado centralizado. O New York Times, há um ano atrás, escreveu um título que me deixou com inveja, pois gostaria de ter pensado nisso, que dizia “The land that failed to fail”, que significa a terra que todos achavam que ia falhar e não falhou. Nos últimos 40 anos o país não tem parado de crescer. E o crescimento nos primeiros seis anos depois de eu chegar foi na ordem dos 9 a 12 por cento, algo inimaginável em outros países. Esta é a força e a fraqueza do que está a acontecer na China. A força, porque querem tanto crescer e tornar-se num país diferente que tudo foi possível. A fraqueza, porque há problemas estruturais e profundos na economia chinesa. Eles estão a trabalhar nisso, mas muito lentamente. Refere-se ao enorme fosso entre ricos e pobres, por exemplo? Há mais do que isso. Com a política do filho único não há pessoas suficientes para trabalhar e esse problema será mais visível daqui a dez anos. Há uma dívida gigante, mesmo a nível local, nas províncias, nas aldeias, porque até há seis ou sete anos as administrações eram validadas de acordo com a riqueza que produziam. Então tinham incentivos para gastar mais, mas como? Com empréstimos, por exemplo, e isso aumentou imenso a dívida, o que se traduz num problema estrutural. Por outro lado, durante muitos anos de boom económico, a China foi a fábrica do mundo, a economia exportadora. Agora 40 por cento do PIB vem do consumo, e eles estão a tentar convencer as pessoas a gastar, porque até então poupavam para casos de doença, porque os hospitais, a educação, as casas custam uma fortuna. Os Jogos Olímpicos, em 2008, foi o evento que mudou definitivamente o país? Foi, de certa forma, mas com um efeito muito limitado. Os JO constituíam um imenso estádio para o país. Sabiam que todos iriam lá para ver os estádios e os jogos. Mas imediatamente a seguir surgiram muitos problemas, portanto o efeito foi muito limitado. Teve mais efeito na forma como o mundo passou a olhar para a China? Sim, porque o espectáculo foi perfeito. A organização, a criatividade, a construção estrutural, tudo estava perfeito e foi uma boa exibição de poder. Mas havia outros problemas. Houve grandes protestos no Tibete, em Março, e depois houve o terramoto de Sichuan. E isto internamente foi um grande momento, por uma razão…os chineses começaram a pensar sobre os outros chineses e o nível de ajuda foi incrível. E foi também um grande momento para a Internet, porque no início as pessoas estavam tão alarmadas que não houve controlo e durante quatro ou cinco dias todos escreviam o que queriam. Depois as autoridades começaram a controlar, mas de uma forma diferente, não como antes, negando as notícias. Aprenderam a controlar a forma como as notícias eram difundidas, e essa foi uma grande lição que eles aprenderam com o terramoto. Chegou à China quando Hu Jintao era Presidente, e deixou o país quando Xi Jinping já era o chefe da nação. Quais são as grandes diferenças que aponta entre estes dois líderes? Grandes diferenças. No início, quando Xi Jinping se tornou secretário-geral do Partido Comunista Chinês, em 2012, não sabíamos o que esperar dele. Tínhamos um grande Presidente. Hu Jintao estava muito dentro da tradição dos líderes chineses, esteve no poder numa altura importante para o país, mas era um líder cinzento. Até que apareceu Xi Jinping, vindo de uma nova geração, e recordo-me do discurso que ele deu depois de ser eleito como secretário-geral, perante três mil jornalistas, onde falou do sonho chinês. O que era? Não sabíamos, e se calhar nem ele sabia, nem as pessoas que estavam à volta dele. Quando trabalhas na China tens de criar sempre um contexto com as pessoas que estão o mais próximo possível de alguém que tem um cargo de chefia perto do líder. Nunca chegamos aos líderes, nunca nos encontramos com estas pessoas. Tinha um bom contacto na altura, e a senhora chinesa disse-me que Xi Jinping seria um líder muito diferente, muito moderno e muito aberto. Então a questão era: vai ser aberto, porque percebe melhor do que Hu Jintao como usar os novos media. Mas será capaz de continuar com as reformas, sobretudo num partido que começava a pensar que se tinha ido longe de mais nas reformas? Havia esta grande luta. Começou por lutar contra a corrupção, que foi uma forma de afastar os inimigos, mas depois descobrimos que Xi Jinping tinha uma série de novos conceitos e que não tinha a capacidade de lutar contra os mais conservadores do partido, tudo porque desde o início a modernidade era uma fachada. Tudo ficou mais controlado, com mais repressão. O nacionalismo é importante para manter o controlo das pessoas. Os chineses adoram o Presidente Xi. O problema é que muitas coisas pioraram.
Hoje Macau EntrevistaJason Chao diz que contestação é mais dirigida contra governantes locais [dropcap]E[/dropcap]m entrevista à agência Lusa, Jason Chao, ligado à Associação Novo Macau, disse que a contestação que se vive em Macau é mais contra as autoridades locais do que contra o Governo Central. Jason Chao defendeu que será sempre difícil à população manifestar-se contra Pequim, por “estar presa”. O activista, em entrevista à Lusa em Lisboa, salientou que existem muitas diferenças entre as realidades sociais de Macau e de Hong Kong, o território que tem sido palco de violentas manifestações contra a China. Para Jason Chao, de 33 anos, a frequentar um doutoramento na Alemanha, as diferenças entre Hong Kong e Macau resultam da história dos dois territórios e do papel das potências ocupantes na promoção do idioma e valores ocidentais. O espaço do Gabinete de Ligação de Pequim em Hong Kong é um “local de protesto contra a China”, mas na RAEM essa zona “é um centro de protestos contra a gestão e más práticas do governo de Macau”, exemplificou, admitindo que os residentes “tendem a pedir a intervenção do Governo chinês”, porque pensam que os seus governantes “não são competentes para gerir os assuntos locais”. “Em Macau querem-se os problemas resolvidos, independentemente do sistema em que se viva”, disse Jason Chao. Por outro lado, o território antes administrado por Lisboa está demasiado dependente de Pequim para tentar qualquer tipo de rebelião. “Se um dia a população de Macau se quiser revoltar contra a China será economicamente impossível porque está presa”, já que, no território, “só há dois grandes empregadores: os casinos que são dependentes dos turistas da China” e a “administração pública que depende das receitas da indústria do jogo”. Por isso, admitiu Jason Chao, “pelo menos no curto-prazo, não é previsível que Macau vá contra a China, porque isso afecta a única fonte de rendimentos” do território. Laivos da história Ao contrário do que muitos analistas defendem, o activista considerou que o “sistema político de Macau não é formado a partir da Declaração [Conjunta] Sino-Portuguesa”, mas sim pelo acordo entre a China e o Reino Unido sobre Hong Kong. “A declaração em Macau foi assinada após as negociações da China com o Governo britânico” e o acordo com Portugal já introduziu mudanças impostas pela China, explicou Jason Chao. Entre as duas leis básicas há uma “diferença crucial”, porque a “China não fez qualquer promessa de sufrágio universal para o Chefe do Executivo de Macau”, exemplificou Chao, mostrando que, já nos anos 1980, Hong Kong tinha mais exigência democrática que o território sob administração portuguesa. Essas diferenças também “têm a ver com diferentes progressos de desenvolvimento social entre Hong Kong e Macau”, com o território administrado por Londres a ser já um grande centro económico e financeiro da Ásia. Hoje, a “China quer apresentar Macau como o melhor exemplo do princípio ‘Um País, Dois Sistemas’”, mas “quanto mais apresenta Macau como um estudante obediente, mais isso é prejudicial para o auto-denominado ‘Um País, Dois Sistemas’”, avisou Chao. Em Macau, acusou o activista, assiste-se ao “silêncio dos opositores, uma total submissão à lei chinesa e isso é algo que Taiwan e Hong Kong não querem”. Hoje “podemos olhar para este princípio e vemos que essa promessa está a perder credibilidade, especialmente olhando para Hong Kong”, afirmou Jason Chao. Hong Kong vive uma situação semelhante, embora menos evidente, já que muitos dos capitais que fluem para o território devem-se às suas ligações com a China. No entanto, desse lado do delta do Rio das Pérolas, o desenvolvimento económico é antigo e consolidado, pelo que os “jovens em Hong Kong estão a tornar-se, progressivamente, mais pós-materialistas”, dando mais valor à “liberdade e autonomia”. Isto é, notou o activista, “fundamentalmente, uma questão de progresso”. “Não rejeito que a próxima geração de Macau tenha mais desejo de autonomia”, salientou Jason Chao, que se diz “optimista de longo curso”, porque “nenhuma ditadura pode viver para sempre”. “Erosão de direitos” Na mesma entrevista, Jason Chao referiu ainda o aumento da “erosão dos direitos cívicos e securitização” no território, procurando condicionar a liberdade de expressão, com medo de manifestações semelhantes às de Hong Kong. “Quando estava a trabalhar em Macau, pude assistir a um retrocesso e a uma erosão dos direitos e liberdades. Depois de eu ter saído (2017), essa erosão acelerou”, afirmou o activista, que foi dirigente do campo pró-democrata. E “pudemos assistir a uma rápida securitização e uma desvalorização dos direitos humanos durante a visita do Presidente da China”, por ocasião da mudança do governo da Região Administrativa Especial, em Dezembro de 1999, acrescentou. Jason Chao admitiu ter previsto “esta tendência”, mas que não previu “o nível da erosão e da deterioração dos direitos”, alertando para alguns sinais daquilo que considera ser um endurecimento do regime. “Os Governos chinês e de Macau têm visto atentamente os relatos jornalísticos em Macau sobre a situação Hong Kong”, principalmente “os artigos publicados nos media portugueses em Macau, que foram abertos ou, pelo menos, não foram negativos em relação aos protestantes em Hong Kong”, frisou. O “direito à liberdade em Macau continua a deteriorar-se, mas infelizmente a opinião pública não está preocupada”, lamentou Jason Chao, que se mostra optimista, “a longo prazo”, no que respeita ao apoio das novas gerações à causa da democracia. “Quando Macau viver num ambiente mais próspero e mais exposto ao mundo, os jovens terão o mesmo desejo de autonomia e liberdade” que teve ou a sua geração, afirmou o activista. Após a transferência da administração, em 1999, o território tem assistido à chegada de milhares de imigrantes da China e a “doutrinação do regime tem tido grande sucesso nas últimas décadas” nas escolas e nas associações juvenis, mas todas as “ditaduras têm as suas falhas” e, “perante as injustiças, as pessoas começam a estar atentas”, considerou Chao. “Tenho fé num sistema de governo que traga liberdade e justiça”, disse o ex-dirigente da Associação Novo Macau, considerando que esse modelo de governação tem de ser democrático: “Não acredito que uma ditadura possa dar justiça às pessoas”.
Andreia Sofia Silva EntrevistaLeung Kay Yin, professor do Instituto Politécnico de Macau: “Jovens irão para a rua daqui a cinco ou dez anos” A equipa de Ho Iat Seng tomou posse a 20 de Dezembro e, desde então, já houve visitas surpresa a serviços públicos, inúmeras avarias no Metro Ligeiro e um recado deixado a Alexis Tam sobre o despesismo. Leung Kay Yin, professor do Instituto Politécnico de Macau, diz que a maioria dos residentes gosta do novo Governo. A educação nacional e maior controlo secretário são as apostas do Executivo de Ho Iat Seng, diz o professor universitário, que se queixa de alguma pressão para não falar do que se passa em Hong Kong no IPM [dropcap]Q[/dropcap]ue balanço faz do primeiro mês do novo Governo? O público em geral aceita o novo Governo, mas algumas pessoas receiam que Ho Iat Seng venha a pôr termo ao programa de comparticipação pecuniária ou reduzir os valores dos cheques. No que diz respeito ao Metro Ligeiro, a maior parte dos passageiros vem de Hong Kong ou da China, e muitas pessoas em Macau sente que este não é um transporte público para eles, porque o facto de funcionar apenas na Taipa não é muito conveniente. Ainda sobre o Metro Ligeiro, tem faltado um bom mecanismo para informar o público. Ho Iat Seng fez declarações sobre o despesismo na tutela de Alexis Tam, quando era secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Tem havido enormes gastos em todas as tutelas, sobretudo ao nível das Obras Públicas. Pensa tratar-se de uma espécie de jogo político do Chefe do Executivo face a Alexis Tam? De facto, o último Governo gastou muito dinheiro, incluindo na área da segurança social. Ho Iat Seng quer reduzir os gastos, mas ainda não compreendemos bem onde quer exactamente cortar. Talvez se saibam novas informações de como se podem reduzir os gastos do Governo após o Ano Novo Chinês ou depois de Março. Mas deixe-me dizer-lhe que Ho Iat Seng parece ter deixado claro que não será feita uma reforma democrática nos próximos anos. Em que sentido? Penso que ele não tem quaisquer intenções de fazer isso. Comparando com Hong Kong, a Lei Básica de Macau não tem qualquer promessa de que o sistema político seja mais democrático, então os empresários olham para a situação em Hong Kong e pensam que os jovens vão despertar e tentar lutar pelos seus direitos, e isso é algo que os deixa preocupados. Então acha que Ho Iat Seng não está de facto a promover a reforma do sistema democrático. Não há intenção de fazer isso, não há uma força que o faça fazer isso. Mesmo que os jovens peçam uma reforma política apenas uma minoria o fará, e a maior parte das pessoas de Macau gostam do seu país e da estabilidade. Não vão exigir qualquer reforma nos próximos anos, não será gasto muito tempo nisso. No que diz respeito aos protestos em Hong Kong, como é que o Governo de Macau vai continuar a reagir? O Governo de Macau está muito alerta e a prestar muita atenção à juventude de Macau, face à possibilidade de estes aprenderem algo com a situação de Hong Kong. Mesmo que sejam pequenas acções, vão tentar reduzir o raio de acção. Em Agosto, algumas pessoas tentaram organizar uma vigília no Leal Senado, mas a polícia tentou travar o acontecimento, o que significa que o Governo está a prestar cada vez mais atenção ao fenómeno e pensa que em Hong Kong se tente ensinar algo aos jovens de Macau. A nova geração está mais consciente dos seus direitos e daqui a cinco ou dez anos irá lutar por eles na rua. Por outro lado, falou-se na aposta na educação nacional e isso é eco da situação que se vive em Hong Kong, porque pensam que em Hong Kong deveria haver uma maior aposta na educação nacional. Serão gastos mais recursos para que os jovens aprendam mais sobre a China e para que amem o seu país, para que não vão para as ruas. Os jovens de Macau podem ir para as ruas se o Governo não resolver o problema da habitação? Daqui a cinco anos os jovens podem exigir uma maior democracia, porque aqueles que nasceram em Macau têm um maior sentido de pertença ao território do que os seus pais, então vão tentar lutar pelos seus direitos. Muitos académicos dizem que hoje é Hong Kong, amanhã vai ser Macau. As novas gerações têm um nível educacional mais elevado e um grande sentido de pertença a Macau. Ho Iat Seng fez visitas surpresa a vários serviços públicos. Qual a mensagem que ele quer passar? Talvez algum aviso e alerta por parte do Governo para que haja uma maior eficiência, para mostrar quem está no poder. É um estilo muito usado pelos empresários, que querem mostrar quem manda e que os empregados não devem mostrar que não trabalham. Não diria que tem a ver com corrupção, mas é para mostrar que as direcções de serviços têm de trabalhar melhor e cumprir prazos, chegar ao local de trabalho a tempo (risos). Na área da economia e finanças, o secretário Lei Wai Nong já reuniu com algumas associações tradicionais do território. É uma boa estratégia para começar o mandato? Reunir com diferentes associações é muito comum. Nesta fase o Governo com a situação de redução dos impostos sobre o jogo quer mesmo apostar na diversificação económica e isso é mesmo um requisito do Governo Central. Quando o Presidente Xi Jinping esteve em Macau também exigiu que Macau tenha uma economia mais diversificada. Penso que o secretário quer reunir com vários empresários para saber como pode chegar a uma solução nesse sentido nos próximos anos. O Governo Central vem exigindo há muitos anos a diversificação da economia, mas até agora não vimos muitas acções, e penso que Ho Iat Seng quer mesmo avançar com alguma acção para concretizar esse desígnio. Podemos esperar novas medidas de combate à corrupção nas próximas Linhas de Acção Governativa? Muitas pessoas em Macau pensam que se gasta demasiado no sector das obras públicas. No que diz respeito ao Comissariado contra a Corrupção (CCAC), deveriam ser feitos mais relatórios sobre os grandes projectos, para que se possa compreender porque é que as obras demoram tanto tempo e custam tanto dinheiro. Este é um factor crucial para construir um Governo credível nos próximos anos porque o Governo de Macau tem sido afectado por muitos casos de corrupção, alguns deles nas obras públicas. O CCAC deve prestar mais atenção a estas investigações. Sobre o trabalho da secretária Ao Ieong U [Assuntos Sociais e Cultura], o que tem a dizer? Não a conheço, mas dos discursos públicos que fez penso que vai prestar muita atenção à área da educação e dos gastos públicos. Sempre se frisou a necessidade de apostar na educação nacional e este será um ponto no qual ela vai focar a sua atenção. No futuro vai promover mais programas de educação nacional para os mais jovens. O grande foco será sem dúvida a educação. Acredita então que este Governo vai apostar cada vez mais na educação nacional e em mais medidas securitárias? Eles querem monitorizar as pessoas e manter a segurança a um nível elevado. Mesmo para aqueles que façam pequenas acções, tal já constitui um perigo para o Governo, como é o caso da Associação Novo Macau (ANM). O trabalho da ANM vai ser cada vez mais difícil? Sim, porque o Governo não aceita que uma situação como a de Hong Kong aconteça em Macau. A ANM deveria mudar de estratégia? Não vão fazer isso, porque são claros sobre a sua posição, que é a de desempenhar um papel radical. Alguns jovens e radicais da classe média são seus amigos e eles [ANM] querem consolidar esses apoiantes. No que diz respeito ao movimento pró-democrata, foram desaparecendo os protestos nas ruas em datas importantes, como o Dia do Trabalhador, por exemplo. Os jovens estão à espera de mais oportunidades [para protestar]. Caso o Governo faça erros então irão para a rua. Hoje em dia a maior parte das pessoas aceita o novo Governo, mas os jovens vão lutar por mais, pelos seus direitos e uma maior participação no sistema político. É professor no Instituto Politécnico de Macau (IPM). Sente alguma pressão para não falar de política no geral ou apenas sobre a crise em Hong Kong? Talvez (risos). Às vezes sinto uma certa pressão, porque a direcção do IPM pode ter receio de cortes orçamentais ou que haja um limite ao desenvolvimento do IPM devido a discursos públicos dos professores. Em português ou inglês é sempre melhor do que em chinês, porque sentem que em português ou inglês há sempre menos pessoas a ler as coisas. Mas em chinês pensa-se que se pode influenciar a opinião pública e que isso cause insatisfação no Governo. Há linhas orientadoras no IPM para não se falar de HK? Não. Pedem-nos apenas que façamos promoção ao IPM quando falamos aos media.
Andreia Sofia Silva EntrevistaRita Wong, programadora da Cinemateca Paixão: “Temos confiança [numa nova concessão]” O ano de 2019 terminou com uma surpresa nada agradável para o panorama cinematográfico local: a Cinemateca Paixão ia fechar portas devido à ausência de concurso público para a gestão do espaço. O Instituto Cultural promete abrir novo concurso este ano e a Associação Audiovisual Cut está confiante numa nova concessão. Ao HM, Rita Wong fala dos dois festivais de cinema pensados para Abril e Maio, enquanto a Cinemateca mantém portas abertas provisoriamente [dropcap]A[/dropcap]ntes de mais, como explica que o ano tenha chegado ao fim sem que tenha sido lançado o concurso público para a continuação da gestão da Cinemateca? Connosco o contrato de concessão era de três anos, e sabíamos isso desde o início. Esperávamos que houvesse novo concurso público o ano passado. Todos os meses reuníamos com o Instituto Cultural (IC) e a nível de trabalho mantínhamos sempre conversações. Mas penso que necessitavam de orientações superiores e, à medida que o tempo passava, na segunda metade do ano creio, o novo concurso público ainda não tinha sido lançado e todos pensámos que o contrato iria terminar em Dezembro. Não tínhamos quaisquer informações sobre a eventual extensão do contrato, mas penso que não deveria haver qualquer extensão, mas um novo contrato, para assegurarmos o funcionamento da Cinemateca por mais três anos. Apesar de mantermos conversações com o Governo, quando chegou o final do ano tivemos de nos preparar para o fim do contrato. Mas esse assunto não foi discutido previamente? O Governo esqueceu-se que tinha de lançar novo concurso? Não se esqueceram, mas penso que tiveram as suas próprias dificuldades. Esperávamos a chegada do novo concurso público para que nos pudéssemos preparar para concorrer. Eles [IC] sabiam disso, tudo estava a ser trabalhado e nós continuámos à espera. Na segunda metade do ano pareceu-nos que já não ia ser lançado o concurso. Espera que a Associação Audiovisual Cut consiga nova concessão? Claro que temos confiança [em ganhar a concessão], tendo em conta o bom planeamento que fizemos e a experiência que temos. Conhecemos o mercado e esperamos vencer de novo o concurso público para podermos trabalhar para o público. Nestes três anos, a comunicação com o Governo sempre decorreu da melhor forma? Tiveram sempre liberdade para trabalhar? Sempre tivemos uma boa comunicação com os funcionários do IC que trabalham na divisão responsável pela Cinemateca. Tínhamos reuniões mensais onde discutimos directamente os programas dos filmes, porque sempre tivemos uma programação diferente. Sempre nos deram liberdade em termos da escolha dos filmes e obtivemos resposta positiva a tudo. Sempre tivemos confiança [da parte do IC], o que nos permitiu fazer um bom trabalho. De ambos os lados, foi feito um esforço. A abertura da Cinemateca por mais seis meses acabou por ser a solução ideal a curto prazo? Nestes três anos, mostrámos novos filmes e estamos contentes com o facto de termos mais seis meses. Pelo menos não é necessário parar o funcionamento da Cinemateca Paixão por um longo período de tempo. Isto porque o público tem saudades do cinema. Há pessoas que vão à Cinemateca seis dias por semana, por exemplo. As outras salas de cinema de Macau mostram mais filmes de Hollywood, mas nós queremos apresentar uma selecção variada de filmes, com diferentes opções vindas de todo o mundo. Nestes três anos, as pessoas criaram o hábito de ter mais opções de cinema no seu dia-a-dia. Quais os planos para os próximos seis meses de funcionamento da Cinemateca? Teremos dois festivais de cinema, um em Abril e outro em Maio. Em Abril apresentamos um festival especial sobre moda, em que vamos tentar estabelecer uma ligação com marcas locais de moda para criar equilíbrio entre as marcas locais e o mundo da moda a nível mundial. Vai ser interessante e também divertido. Em Maio apresentamos um festival ainda mais importante, o “Panorama do Cinema de Macau”, que é uma mostra de todos os melhores trabalhos deste e do ano passado, e que inclui documentários, curtas-metragens e filmes de animação, entre outros. Vamos também estrear novos filmes feitos em Macau e convidar realizadores da China, Hong Kong e Taiwan para trocas de experiências no festival. Teremos também vários workshops e conferências sobre vários temas ligados à indústria do cinema. Neste período obtiveram um grande apoio da comunidade local contra o fecho. Esse apoio revela que a Cinemateca Paixão se tornou num projecto fundamental para Macau? Sem dúvida. Sentimos o apoio por parte dos meios de comunicação social e também do público. Quando se soube que a Cinemateca Paixão iria fechar, o público sentiu muita tristeza e disseram-nos como iriam ter saudades do espaço. Muitas pessoas disseram-nos que a Cinemateca é, para eles, um lugar de eleição onde vão todas as semanas. Antes de existir a Cinemateca muitas pessoas iam ver filmes a Hong Kong e já tinham este hábito de ir ao cinema. Acredita que há mais associações capazes de fazer o trabalho que a CUT tem feito nos últimos três anos? Talvez haja, mas estou confiante em relação ao trabalho desenvolvido por nós. Em primeiro lugar, temos vários profissionais connosco, vários realizadores e pessoal administrativo. Eu própria também tenho muita experiência e não apenas com base no trabalho que fiz nos últimos três anos, porque já antes também trabalhei com vários projectos cinematográficos. Toda a equipa, antes de trabalhar na Cinemateca, já tinha experiência e profissionalização na indústria. Nestes últimos três anos, com o trabalho que fizemos, obtivemos algumas vantagens. Espero ganhar [uma nova concessão] porque ainda temos muitas ideias e sonhos que queremos desenvolver na área do cinema e trazê-las para o público. O espaço onde funciona a Cinemateca Paixão vai ser alvo de obras de renovação. É o local ideal para o funcionamento de uma entidade como esta, ou necessita de um espaço maior, com outras condições? Este espaço é agradável. Claro que a sala onde são exibidos os filmes é pequena, mas o facto de ter uma pequena dimensão faz dela confortável, sobretudo quando temos realizadores convidados, pois dessa forma eles podem falar de perto com o público. Penso que utilizar um edifício antigo como este, que é património cultural, é muito bom. Em primeiro lugar, é um lugar muito bonito, e depois temos a sala de cinema, a biblioteca, é um espaço de discussão sobre cinema. Estou muito contente com o facto de este se ter tornado num espaço de arte.
Pedro Arede EntrevistaManuel Lopes Porto, académico: “Democracia, o sistema menos mau de todos” O especialista em assuntos europeus e antigo eurodeputado Manuel Lopes Porto condena o proteccionismo de Trump e acredita que é possível competir a nível mundial com o modelo europeu. Ao HM, contou que a democracia continua a ser para si o melhor sistema político e que Portugal tem ainda um papel a desempenhar na China [dropcap]M[/dropcap]acau celebrou recentemente o 20º aniversário da RAEM. Como vê Macau nos dias de hoje? É, claramente, e sem exagero, uma história de sucesso. Por circunstâncias da vida e por já ter uns anos, acontece ter acompanhado este processo desde há bastante tempo. Estive no Parlamento Europeu 10 anos (1989-1999), era membro de diferentes comissões e delegações com países fora da Europa e, por coincidência, fui sempre membro da delegação oficial para a China. Fui a Pequim três vezes oficialmente e cheguei a estar no gabinete do senhor Lu Ping, que foi negociador da integração de Hong Kong e Macau na China. Portanto, foi um processo que foi feito com calma e bem. Houve, desde logo, uma coisa curiosa no começo: quando foi o 25 de Abril a ideia era que todos os territórios portugueses do Ultramar tivessem independência ou fossem integrados. É também interessante recordar que, na altura, ainda era Chefe de Estado aqui na China, o Sr. Mao Zedong. Não era o Deng Xiaoping nem nada desses “liberalões”. Era ele. E ele fez saber que Macau só passava para China quando houvesse, calmamente, um bom acordo. E a pergunta que eu ponho sempre é, “teria sido melhor para a China, logo em 1975, Macau ser integrado na China?” A resposta é que isso não adiantava nada. Era mais um bocado de terreno em que se teria perdido, talvez, possibilidades relacionadas, não só com o jogo, mas também de negócio. Portanto, foi um processo feito com vagar, durante 25 anos (74-99), em que a integração foi feita de forma bem ponderada e os resultados estão à vista. Macau tem dos maiores PIBs per capita do mundo, é uma terra onde se vive com calma e em segurança. Claramente, Macau é um caso de sucesso. Portugal continua a ser importante para a China? Temos de ter a noção da nossa dimensão e da nossa economia. Portugal tem 10 milhões e a Europa 500 milhões de habitantes e depois há a Alemanha, Itália, França e tudo isso. Não digo a principal, mas Portugal é uma porta de entrada na Europa e é importante haver esta ligação que tem circunstâncias curiosas. Uma delas, estou à vontade para dizê-lo, é a questão do Direito. O Direito praticamente é o mesmo que é aqui aplicado desde o tempo do Código Civil, de modo que é curioso que haja aqui um Direito Continental que tem vantagens sobre o direito do Case law dos países anglo-saxónicos, que não sei se são melhores. Portanto, aqui, num país como a China, ou num território da China como é Macau, o Direito Continental com influência alemã, italiana, francesa, etc, é um Direito codificado que dá outra segurança aos negócios. Às vezes perguntam-me aqui se não é melhor irmos para o sistema anglo-saxónico e eu não sei. Para mim, basta comparar o superavit da Alemanha com o deficit do Reino Unido ou dos Estados Unidos. São casos delicados de referir, mas é verdade, é o que está na estatística. Portanto, é um Direito que dá grande segurança e é também uma ligação muito estreita. Eu tenho grandes ligações à Índia e este é outro caso onde há ligações do Direito muito curiosas. O Código Civil ainda hoje aplicado em Goa, Damão e Diu é o Código Civil do Seabra de 1867. Por isso, o Direito é uma via de comunicação curiosa. Já para não falar no Brasil, porque eles querem ter uma ligação enorme connosco como é sabido. Só em Coimbra há mais de dois mil estudantes brasileiros e, portanto, há uma enorme ligação entre os dois países ao nível do Direito. Portanto, em Macau o Direito é um elo de ligação que, de facto, se mantém e penso ser frutuoso e útil para ambas as partes. E quanto à língua portuguesa? Esse é que é o problema. É muito curioso, pois é difícil manter a língua portuguesa em regiões que não sejam o Brasil e os países africanos de língua portuguesa. Não nos consola, mas a questão é que nenhuma língua europeia se manteve, fora o inglês. No Vietnam, onde estive na minha última missão do Parlamento Europeu há 20 anos, quase ninguém fala francês, nas Filipinas quase ninguém fala espanhol, na Malásia e Indonésia, quase ninguém fala holandês. De facto, as línguas europeias não conseguiram manter-se nos territórios da Ásia com a mesma prevalência do inglês. É claro que eu preferia que fosse o português, mas ser o inglês não é mau de todo porque é uma língua que todos temos e que nos dá vantagem. Mas na China há 33 locais onde se aprende português. O português é a língua mais falada do hemisfério sul e a quarta ou quinta mais falada do mundo. Com uma vantagem, que já me tem ajudado a convencer pessoas a ir para Portugal estudar, pois quem sabe português percebe espanhol, sem aprender, e até o próprio italiano. Já o contrário não é verdadeiro. Os espanhóis não percebem português e os italianos nem pouco mais ou menos percebem o português. Portanto, a língua portuguesa dá-nos também acesso aos países de língua espanhola e língua italiana. Uma vez mais, o relatório do congresso norte-americano lamenta a ausência de sufrágio universal em Macau e o Governo de Macau acusou em resposta os EUA de “cegueira selectiva” e de interferência externa. Que comentário merece esta situação que vem sendo habitual? Não tenho dúvida que qualquer democracia, como dizia Churchill, é um sistema mau, mas é o menos mau de todos. É, claramente, o melhor e vê-se em termos de dados internacionais. Um exemplo que eu cito muito é o caso da Alemanha, que tem salários altos, uma democracia política, alternância no poder, direito à greve, modelo social europeu e tem, de longe, o melhor superavit do mundo. Portanto, é possível. A grande questão que se pode colocar, e que é importante para alguns países da Ásia e da América do Sul, é saber se é possível competir no mundo global do século XXI com democracia. Na minha opinião sim, porque a Alemanha dá esse exemplo e compete a nível mundial. É um caso fantástico, comparando até com o Reino Unido que não tem razões de queixa. Tem a sua língua falada em todo o mundo, tem moeda própria e não o horrível Euro e, todavia, tem o segundo maior deficit do mundo. Portanto, é possível, com modelo europeu, competir a nível mundial e a Europa tem uma grande responsabilidade perante o mundo e presta um grande serviço, pois mostra que com fronteiras abertas, normas aproximadas e uma moeda única é possível competir. Como vê a actual ordem mundial onde novas forças, como a China ou Índia se mostram determinadas a ocupar um papel preponderante a nível mundial? É interessantíssimo ver a evolução do mundo. Em 1500 a maior economia do mundo era a indiana e depois a chinesa. Em 1820, há 200 anos atrás, portanto, a China e a Índia tinham 42,7 por cento do PIB mundial e o conjunto da França e da União Soviética, 5,5 por cento, Alemanha 2,3 por cento e os EUA 1,8 por cento. Sim, custa a acreditar. Em 2004, a China e a Índia tinham 6 por cento do PIB mundial. Actualmente, estes são os países mais populosos do mundo e estão a crescer como nunca se viu Como vê a actual conflito económico entre os EUA e a China? É extraordinário como é que o Sr. Trump me presta a mim um bom serviço porque dá actualidade às minhas teses desde há quarenta e tal anos. A minha tese em Oxford em 1976 já falava a favor do livre cambismo, depois trabalhei para o Banco Mundial num grande projecto que comparava a liberalização do comércio com o proteccionismo e claramente também aí saiu melhor o livre-cambismo. Aliás, sempre que houve livre-cambismo o mundo assistiu a tempos de crescimento e menos desemprego comparando com as fases onde existiu proteccionismo. E o Sr. Trump vem agora com esta história das tarifas defender-se, o que é sinal de fraqueza de um país que não consegue ter um superavit na balança de pagamentos, mas que não leva a nada. Quando colocam uma taxa de 20 por cento sobre o México há quem fique prejudicado, e essa gente são os consumidores. O proteccionismo protege, mas à custa de quem? Ou é com impostos alfandegários ou taxações de importações, o que em qualquer caso diminui a oferta. E quem são principais prejudicados, são os milionários ou os pobres? São os pobres. Acho que os EUA têm de se responsabilizar e competir. Devem assumir-se responsabilidades para competir por esforço próprio, como é o caso da Alemanha e da Holanda, que trabalham muito e trabalham bem. Como tem visto a actuação da administração Trump nesse sentido? Os EUA deviam fazer o que faz a Europa, ou seja, ser competitivos. No seu todo, a zona Euro tem um superavit brutal de mais de 400 mil milhões. Já um país como os EUA tem um deficit enorme e isso é que é o problema. Outra coisa que me choca é que as melhores universidades do mundo são todas americanas e inglesas, não há uma única alemã. Os prémios nobel são todos, se não nacionais, radicados nos EUA ou em Inglaterra. Não existe correspondência entre os rankings das universidades e os prémios Nobel com a eficácia dos países. Ou seja, os alemães são assim os laparotos para produzir carros e companhia. Mas não é bem assim, a indústria faz falta. Aquela ideia de que a indústria é para os laparotos, os labregos, que fazem produtos, e que o que dá são as tecnologias e a praça financeira de Londres, não sei se chega. O Reino Unido agora só exporta 10 por cento. Quando foi o referendo de 1975 eu vivia numa casa ao lado da British Legend que fazia carros. Hoje em dia, vamos a uma rua e não vemos um carro inglês. É impressionante como estes países não se adaptam aos tempos modernos. E se vimos bem, apesar de dizermos mal da Europa, onde é que a China e companhia estão a investir? Na Europa. E os chineses não estão mal informados nem são incautos. E no meio de tudo isto temos uma Europa confrontada com a realidade do brexit e atentar manter-se firme na era do populismo… Eu sou comunista, como já terá percebido, e choca-me como é possível que países que fizeram o “homem novo” como a Húngria, a Polónia e companhia, hoje em dia são os mais xenófobos. Portugal é um país com uma sorte fantástica ou mérito. Não tem populismos, nada, nada, tirando o Chega agora, mas trata-se apenas de um caso isolado. Nesse aspecto, nem sabemos a sorte que temos. Mas também eu sou um bocado optimista, dorme-se melhor à noite. A Europa tem de ser complacente. Não pode um país sair e ter a vantagem de ter desvantagens. Um dos argumentos invocados é não pagar por orçamento 9 mil milhões e euros. Com o Brexit vão deixar de pagar, mas deixam também de ter ajuda da agricultura e o que interessa, por exemplo, à Alemanha não é o dinheiro que tem do orçamento, mas sim as oportunidades de mercado que tem com o mercado único europeu. Um país com visão como o Reino Unido devia ter essas oportunidades em vista e não a questão do que paga pelo orçamento e do seu retorno.
Andreia Sofia Silva EntrevistaJorge Arrimar, escritor: “A poesia continua com Macau” É de uma enorme janela virada para o rio Tejo que o autor Jorge Arrimar escreve os seus versos, contos e romances. Poeta de Macau, escritor angolano, são muitas as facetas literárias que assume no triângulo geográfico da sua vida. Actualmente, trabalha num romance histórico sobre Angola e publicou muito recentemente um livro de poesia, “Insomne”, onde Macau surge de forma ténue [dropcap]E[/dropcap]m Setembro esteve numa conferência na Universidade de Macau e falou do I Encontro de Poetas de Macau, nos anos 90, que não voltou a ter mais edições. Que razões aponta para a falta de iniciativa? Nessa conferência tive a oportunidade de falar de um encontro que foi tão importante e único e que depois caiu num véu de silêncio sem se perceber porquê. Do que eu li não há qualquer referência a esse encontro, nunca há. As grandes referências que se fazem, com a Mónica Simas, Fernanda Gil Costa ou Ana Paula Laborinho, entre outros estudiosos, o próprio Seabra Pereira, todos esses fazem uma referência simpática sobre o resultado desse encontro que foi a edição da “Antologia dos Poetas de Macau”. Não se podem imputar culpas. Posteriormente, foram feitas algumas publicações, como a “Antologia dos Poetas de Macau”, que é um reflexo desse ambiente e desse espírito novo que aparece com o encontro. Entretanto dá-se a transição e creio que muitas pessoas do meio da língua portuguesa saíram de Macau, e creio que se criou alguma instabilidade com a transição. Houve muita gente que se sentiu intimidada pela grande mudança que se avizinhava, e outros tinham de sair porque iria haver uma mudança de Administração. Houve muitos motivos para que não se tenha criado de novo esse espírito de forma a haver um encontro similar. Mas criaram-se outros de acordo com as novas realidades. Publicou recentemente “Insomne – Poema em Dez Actos”. Macau surge neste livro? É um livro de carácter geral, mais de emoções com uma carga emocional muito forte. O próprio título acho que o diz, tem a ver com muitas situações da vida que nos marcam, muitas vezes de forma negativa, como a doença, a morte ou o envelhecimento, tem muito essa carga. Isso extravasa qualquer lugar. De qualquer forma, e como não podia deixar de ser, a minha vida…e a minha terra Angola e tem relação com outras terras por onde passei, como os Açores. Macau aparece de uma forma um bocado espumada, de uma forma metafórica, mas não é um livro tão centrado num destes territórios da minha escrita como é o “Rotas Circulares” [editado pela Gradiva em 2017], que é completamente dedicado a Macau. Uma pessoa olha logo para o livro e vê que é dedicado a Macau, este não tem esse cunho. A sua carreira literária é marcada por um triângulo de lugares – Angola, Açores e Macau. Qual deles é o mais importante para si? Sou um escritor angolano e ninguém tem dúvidas disso, e apresento-me e sou recebido como tal, porque nasci em Angola e há mais de 100 anos que lá vivia com os meus antepassados. Portanto, não é apenas 10 anos aqui e 13 anos acolá. Angola é a matriz, tem lugar primordial porque é lá que nasço e cresço. Em Macau e nos Açores só posso ser um escritor de Macau e dos Açores, não sou escritor macaense nem açoriano, há aqui uma diferença pelo menos de grau. Está a escrever um novo romance histórico sobre Angola, mas nunca escreveu Macau em prosa. Porque é que Macau lhe desperta mais a vertente poética? Não é bem assim. A poesia nasce em Angola e continuei sempre a escrever poesia que tem Angola como grande motivo. Macau aparece também nessa expressão, mas não quer dizer que só escreva poesia sobre Macau ou prosa sobre Angola. O que acontece é que acabei por não escrever nenhum conto ou romance sobre Macau nem sei porquê, talvez porque me toque mais a sensibilidade de poeta, mas não lhe sei dar uma explicação clara, calhou assim. Para quando um romance sobre Macau? Macau, para mim, aparece mais na minha escrita no género de poesia. Escrevo alguns artigos e ensaios, e depois a história de Macau que é uma das minhas áreas. Romance… ainda não tentei, nem contos. Tenho estado mais com o romance de Angola, que me ocupa imenso. O romance tem uma linha de trabalho completamente diferente. Mas a poesia também pode ser trabalhosa e pode demorar muito. Cada poema pode ter uma individualidade…enquanto que o romance é todo um trama que tem princípio, meio e fim, e se alonga, e é vasto, um poema pode ser muito curto e pronto, começou e acabou. E como o meu romance é histórico ainda tem a componente de pesquisa, que me exija mais tempo. Quando estou a trabalhar num romance não me sobra mais tempo para outro romance. A poesia continua com Macau e o romance continua com Angola, tenho estado meio dividido. Quando é que o romance de Angola é publicado? Ele está bastante avançado e queria tê-lo terminado no final do ano passado, mas estou com muita vontade de o terminar para do fim de 2020. Ainda falta algum trabalho. Vive em Almada e escreve em casa. Como é que escrever sobre lugares que lhe dizem tanto e que estão distantes geograficamente? Essa é, um bocado, a minha condição. Acabei por me integrar no quotidiano destas terras de que temos vindo a falar. Uma porque nasci e cresci, e outras porque houve uma integração na minha escrita. Passado algum tempo acabo por me irritar e acabo por escrever quase sempre de longe. Não sei se isso se reflecte na escrita, isso cabe às pessoas que me lêem e que me escutam dizer alguma coisa. Da minha parte, penso que a capacidade do cérebro de reter imagens e situações faz com que a falta desses lugares não anule qualquer manifestação artística. Há sempre o peso da distância, saudade e memórias, e isso acaba por se reflectir de forma positiva na escrita. Comigo acontece isso, volto com alguma frequência a esses meus lugares da escrita, não são lugares que ficaram lá aos quais eu nunca mais voltei. Este ano, em três meses, estive em Angola, Açores e Macau. Foi para Macau em 1985 e foi director da Biblioteca Nacional/Central de Macau. Quando saiu, em 1998, sentiu que o trabalho estava feito? Fiz parte do grupo que teve como missão reestruturar o IC, as bibliotecas e os arquivos do território. Nessa altura, houve muitas coisas que foram reestruturadas, como as leis, criou-se o depósito legal, nova legislação e regulamentos. A biblioteca passou a ter novas chefias intermédias, criou-se uma rede de bibliotecas, passou a chamar-se biblioteca central e deixou de ser nacional. Houve um grande trabalho de reestruturação de tudo o que eram leis e regras. Depois as coisas iam acontecendo. A biblioteca e o arquivo tinham direcções separadas. Por isso é que eu digo que nunca pagarei a Macau aquilo que Macau me deu, porque em termos profissionais nunca teria tido a possibilidade que tive ali de ter tudo, biblioteca escolar, pública, tudo. Foi também consultado aquando do primeiro projecto para a Biblioteca Central. Sim, em 2008, para uma das candidaturas. E agora voltaram a perguntar a minha opinião. De uma forma geral, concordei com o projecto. Achei que era uma boa possibilidade, seria central de nome e fisicamente. Penso que é um sítio bonito e quase equidistante em relação a tudo o que há em Macau. À partida, aquele edifício tem uma fachada interessante que é de preservar, é uma forma de o manter. Mas tudo o que for feito lá dentro essa é outra história. Falemos agora do mercado livreiro em Macau. Publica-se muito sobre o território, mas falta um mercado na verdadeira acepção da palavra? Dou exemplos meus. Publiquei a minha tese de doutoramento em Macau, uma edição do IC, e o livro na Livraria Portuguesa (LP) nunca se encontrou à venda. Se não está à venda na LP, sendo um livro escrito em português, não sei onde poderá estar à venda. Haverá alguma falha, mas não estou a dizer que é da LP ou que é da editora. Que é uma falha grande, é. Nem sequer consigo perceber porque é que isso acontece. Isso também acontece com um dos meus últimos livros, “Rotas Circulares”, que foi escrito logo à partida em português e chinês, que faz parte de uma colecção de poetas de Macau, o livro ficou mais caro por causa da versão numa segunda língua, e continua a não ser vendido em Macau e sei que se fizeram esforços nesse sentido. Pelos vistos, não acontece só comigo. Falei com várias pessoas que publicam e me dizem que há essa dificuldade na promoção, venda e distribuição. Em Portugal, tirando a altura da Feira do Livro, não há mais oportunidades, é difícil encontrar livros sobre Macau.
Andreia Sofia Silva EntrevistaIsabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas [dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo? Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa. Como era a relação de Macau com a China nessa altura? Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês. FOTO: Hoje Macau Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão? No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo. Porquê? A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso. Até aos dias de hoje. Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês. Cria-se outro cristianismo. Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal. Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema? Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês. O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores. Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça. Falamos de que ano? O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo. Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua? Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes. Em que sentido? Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching. Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira. No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte. A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica? Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX. Como era Macau nesse tempo? Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda. Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos? Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.
admin EntrevistaIsabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas [dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo? Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa. Como era a relação de Macau com a China nessa altura? Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês. FOTO: Hoje Macau Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão? No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo. Porquê? A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso. Até aos dias de hoje. Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês. Cria-se outro cristianismo. Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal. Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema? Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês. O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores. Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça. Falamos de que ano? O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo. Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua? Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes. Em que sentido? Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching. Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira. No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte. A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica? Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX. Como era Macau nesse tempo? Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda. Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos? Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.
Pedro Arede EntrevistaRAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios” Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro [dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição? Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto. Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou? A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo. Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos? Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim. Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM? Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir. O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade? O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação. Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente? Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos. Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía? Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir. Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro? Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil. Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar? O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.
admin EntrevistaRAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios” Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro [dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição? Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto. Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou? A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo. Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos? Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim. Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM? Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir. O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade? O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação. Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente? Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos. Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía? Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir. Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro? Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil. Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar? O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.