Hoje Macau EntrevistaMinistro do Petróleo diz que política em Timor-leste colocou “a carroça à frente dos bois” [dropcap]T[/dropcap]imor-Leste meteu “a carroça à frente dos bois” na estratégia para o sector petrolífero, com a política à frente das questões técnicas e de viabilidade económica, algo que tem agora de ser revertido, disse o ministro da tutela. “Temos primeiro de ouvir dos técnicos, ver o resultado da análise de viabilidade económica. Vamos aguardar por esse parecer. O Estado timorense comprometeu-se com povo com a ideia de que o gasoduto tem de vir para Timor-Leste. Se não for no Tasi Mane [costa sul] pode ser no Tasi Feto [costa norte]”, disse Victor Soares, ministro do Petróleo e Assuntos Minerais em entrevista à Lusa. “Mas, se não for viável não vamos perder dinheiro. Esse é o princípio do negócio. Isso é que vamos defender. O que ocorreu até aqui, foi colocar a carroça à frente dos bois: os políticos decidiram e os técnicos foram atrás dos políticos. Temos de reverter isso”, afirmou. No cargo há apenas dois meses e no intuito de imprimir esse novo cunho, Soares já levou a cabo uma ampla reestruturação na liderança das várias instituições que actuam no sector do petróleo, com mudanças no comando da petrolífera, a Timor Gap, da Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) e do Instituto de Petróleo e Geologia (IPG). As equipas cessantes estiveram envolvidas no que foram, até agora, os passos mais amplos dados por Timor-Leste neste sector, incluindo a delimitação das fronteiras permanentes com a Austrália, o projecto de desenvolvimento da costa sul para o setor petrolífero e os poços do Greater Sunrrise, onde a Timor Gap comprou uma participação maioritária por 650 milhões de dólares. Todos trabalharam de perto com o líder timorense Xanana Gusmão, o principal arquitecto da política para o sector – incluindo o projecto Tasi Mane de desenvolvimento da costa sul e do gasoduto dos poços de Greater Sunrise para Timor-Leste. “Vi o desenvolvimento deste sector ao longo do tempo e considerei que era essencial fazer mudanças. Temos de fazer mudanças de forma estruturante, para responder às expectativas da população”, afirmou. “Este sistema foi montado há mais de 10 anos, mas não vejo que as coisas funcionem de acordo com as políticas decididas e sinto que é necessário fazer alterações tendo em vista uma nova estratégia”, afirmou. Soares é claro sobre o investimento no consórcio do Greater Sunrise: “Penso que foi um grande erro que o Governo fez”, disse. “Não deveria ter sido feito. Pagou para uma coisa que não é nada. Isso foi um erro. Não foi baseado na análise técnica da empresa ou dos técnicos. Foi uma decisão meramente política. Logo nas primeiras reuniões que tive com direcção da Timor Gap, da ANMP e do IPG, confirmamos que o projecto não foi feito com base num estudo de viabilidade”, explicou. Victor Soares sublinha a importância do sector petrolífero para o país: “É fundamental e vital para o progresso de desenvolvimento de Timor-Leste”. Questionado sobre os cenários técnicos e até económicos apresentados por Xanana Gusmão ao longo do tempo, o ministro considera que sempre assentaram “mais em questões políticas que técnicas”, não dando informações certas sobre as análises de viabilidade. Victor Soares disse ainda que o Governo está a debater solicitar uma auditoria externa a “todo o projecto” para ver o que foi feito, como foi feito, o que está certo ou não. Victor Soares é um dos elementos no Governo da Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (Fretilin), o maior partido do país, que se juntou ao actual Executivo para o viabilizar no que resta de mandato, que termina a 2023. O partido votou contra o tratado de fronteiras marítimas e o projecto do Greater Sunrise e contestou a compra da participação maioritária pela Timor Gap. Publicamente, o partido não contesta a decisão de trazer para Timor-Leste um gasoduto do Greater Sunrise – talvez o assunto mais complexo e polémico de todo o projecto, que tem dividido timorenses e australianos e sido contestado pelas petrolíferas internacionais. Em privado, porém, dirigentes do partido questionam não só a viabilidade do gasoduto, mas até a localização da unidade de gás natural liquefeito a criar, admitindo a sua transferência da costa sul, como prevê o actual projecto, para a costa norte. Com a questão do gasoduto a ser politicamente colada ao tema da soberania nacional – posição vincada por Xanana Gusmão e defendida na política do actual Governo – o partido admite que apresentar uma versão contrária poderia ter um custo político ou eleitoral. Questionado pela Lusa sobre o facto de a Fretilin não admitir publicamente as suas reservas sobre o assunto, Victor Soares refere-se à “euforia” da população. “Esta política tem vindo a ser desenvolvida, e os timorenses ouviram e expressaram que a fronteira marítima devia ser definida e o gasoduto ou oleoduto devia vir para Timor-Leste. Isto foi consumo público e toda a gente está com esta euforia de ter esta soberania e a nossa riqueza, mesmo a qualquer custo”, disse. “As pessoas mais formadas que conhecem a área e que têm acesso às informações específicas sabem que não é totalmente viável. Mas como a política já foi decidida, temos de ter cuidado com o partido. O nosso eleitorado não são todos políticos, não têm conhecimento de nível alto. Vamos ter esse cuidado”, admitiu. Independentemente disso, insiste, o importante é que os técnicos da Timor Gap e da ANMP concluam “uma análise de viabilidade económica de todo o projecto”, tendo em conta vários cenários para o preço do crude e os novos “parâmetros” no quadro do impacto da covid-19. “Temos de tomar uma decisão dependendo do estudo de viabilidade económica”, disse. “Mas estamos a pensar agora fazer um ajustamento, definir uma nova estratégica. Deixemos os técnicos do Timor Gap, os parceiros do consórcio e outras partes envolvidas no projeto, que vejam se é viável ou não, se é lucrativo ou não. E depois disso apoiaremos a escolha”, referiu. O Governo, explicou, partiu dessa base de que o gasoduto tem que vir para a costa sul do país, porém, sublinha Soares, essa opção terá necessariamente impacto naquela que é uma das principais zonas de agricultura do país, sector de que vive a ampla maioria da população. Motivo pelo qual, disse, a política tem que também ter em conta um adequado plano territorial que analise as melhores localizações possíveis. Empresa estatal na calha O Governo timorense quer criar uma empresa estatal, equivalente à petrolífera Timor Gap, para os minerais, e uma autoridade específica que permita regulamentar adequadamente o sector, adiantou também o ministro da tutela. “Tem de haver uma empresa estatal, como a Timor Gap. Vai haver discussão do código mineiro na especialidade e com certeza vai passar. Mas depois temos que elaborar os regulamentos e estabelecer uma autoridade específica para o sector dos minérios”, referiu. Actualmente a responsabilidade regulatória recai na Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) que, segundo Victor Soares, vai ser dividida em duas, para que a nova entidade “possa fazer regulamento mais específicos para toda as actividades mineiras”. O governante garante que “várias empresas locais e internacionais expressaram intenção de investir nessa área” e que, para isso, há que terminar toda a regulamentação necessária. No cargo há apenas dois meses e no intuito de imprimir esse novo cunho, Soares já levou a cabo uma ampla reestruturação na liderança das várias instituições que actuam no sector do petróleo, com mudanças no comando da petrolífera, a Timor Gap, da Autoridade Nacional de Petróleo e Minerais (ANPM) e do Instituto de Petróleo e Geologia (IPG). Um dos elementos centrais do trabalho no sector é o futuro Código Mineiro, aprovado no final de Julho na generalidade no Parlamento e que vai agora ser analisado na especialidade, eventualmente com o apoio de técnicos especializados. Em preparação há vários anos, o código suscitou amplas diferenças de opinião entre partidos, interpretações sobre como o sector deve ser gerido, questões sobre licenças ambientais e até sobre a criação ou não de uma empresa pública para o sector. Uma primeira proposta apresentada ao Parlamento caducou, dado o fim da legislatura – Timor-Leste teve eleições legislativas em 2017 e antecipadas em 2018, tendo a versão aprovada na generalidade sido apresentada em julho de 2019, assinada por deputados do Congresso Nacional da Reconstrução Timorense (CNRT), do Partido Libertação Popular (PLP) e do Kmanek Haburas Unidade Nacional Timor Oan (KHUNTO) – que integravam a anterior coligação do Governo – e ainda do Partido Democrático (PD). No sector, um dos projectos que se arrasta há vários anos é o da unidade de produção de cimento em Baucau, o TL Cement, onde têm havido avanços e recuos e onde se está prestes a esgotar o prazo da valência de um ‘depósito’ de 50 milhões de dólares, pelo Governo, como parceiro no projecto. Victor Soares explica que têm havido contactos com a empresa, mas que depois dos fundos já investidos pelo Governo é preciso que a empresa “contribua com o seu capital”. Igualmente em curso continua o projecto, no sector do petróleo ‘onshore’, da empresa Timor Resources, na zona sul do país. “Estivemos com os representantes timorenses, fizemos uma vídeo-conferência com a CEO [directora executiva] e o diálogo foi muito positivo. Estão interessados em continuar a investir e pediram o apoio político, da ANMP e Timor Gap para que possam continuar”, referiu. Em termos gerais, Victor Soares sustenta que Timor-Leste está “bem”, com um Governo “em pleno funcionamento e um parlamento com ampla maioria” e que a viabilidade está garantida. “Os investidores e os nossos parceiros não devem ter anseios e dúvidas e desconfianças porque Timor está bem e vamos trabalhar até ao fim do nosso mandato. Sempre encorajo todos a que devem confiar neste Governo”, disse. “Devem acreditar que Timor está no rumo certo” afirmou.
Pedro Arede EntrevistaJenny Ip, gestora de operações da In Limitada, responsável pela gestão da Cinemateca Paixão Ao fim de dois meses, a nova gestora da Cinemateca Paixão quebrou o silêncio. Jenny Ip, a gestora de operações da Companhia de Produção de Entretenimento e Cultura In Limitada conta como os principais inimigos da perfeição têm sido o tempo e as comparações com a CUT. Manter a confidencialidade dos clientes é a razão apresentada para que não se saiba mais sobre o passado da empresa [dropcap]C[/dropcap]omo está a ser o processo de reabertura da Cinemateca tendo em conta a continuidade do trabalho que tem vindo a ser feito? Estaria a mentir se dissesse que não estamos a sentir a pressão do público mas, somos uma equipa nova de jovens que tem, na capacidade de ouvir, a sua maior força. Talvez seja verdade que não temos toda a experiência da equipa responsável pelo que foi construído ou feito aqui, mas somos uma equipa com paixão que quer fazer melhor. Por isso, estamos a fazer todos os possíveis e tudo o que está ao nosso alcance para ouvir o feedback e os conselhos do público, de forma a aplicar mudanças imediatas e promover bons programas nos próximos anos, ao mesmo tempo que asseguramos serviços de qualidade e procuramos corresponder às expectativas do público. Temos enfrentado muitas dificuldades, sobretudo porque somos constantemente comparados com a antiga gestora [CUT]. Pessoalmente, sempre fui fã da Cinemateca Paixão, sempre vim cá ver filmes. Por isso, na verdade, este tipo de pressão funciona como fonte de motivação e isso faz-nos lutar para estar ao nível das expectativas do público. Mas provavelmente o nosso maior desafio tem sido o tempo, porque desde que nos comprometemos com este projecto, não tivemos muito tempo para nos prepararmos, especialmente quando começámos a abordar os distribuidores de filmes. A nossa programação de Setembro é composta essencialmente por clássicos, honestamente, tem sido difícil encontrar distribuidores disponíveis durante o Verão. Tem sido muito desafiante, mas somos persistentes. Porquê a decisão de focar a programação de Setembro nos clássicos? A ideia passa por compreender o impacto que a pandemia teve em cada um de nós e na indústria do cinema, que compete hoje com uma miríade de plataformas online em crescimento. Perante isto perguntámo-nos qual será o futuro do cinema, as alterações que a indústria está a enfrentar e como é que a cultura cinematográfica está a evoluir em termos de visionamento. Por isso, nesta reabertura queremos prestar tributo ao cinema com o programa “Uma carta de amor ao cinema: Produção cinematográfica nos grandes ecrãs”. Nesta programação seleccionámos nove trabalhos de diferentes territórios que estão relacionados com o cinema. Em termos de bilheteira, os números têm sido animadores e considero que tem sido um bom começo. Queremos convidar o público a vir e entrar nas mentes destes realizadores para ver filmes que falam de filmes. Por isso é como se estivéssemos a escrever cartas de amor ao cinema e a partilhar esse amor com o público. Muitos produtores locais estão desiludidos com a ausência do cinema independente e de produções locais. Que comentário faz? À parte deste festival com um tema definido, temos também aquilo a que chamamos a “Selecção de Setembro”, onde temos quatro filmes artísticos, que nunca passaram em Macau. Ao nível das produções locais, um dos principais objectivos passa por garantir que são exibidas na Cinemateca, porque em Macau não existem muitos cinemas interessados em passar filmes locais, optando antes por filmes mais comerciais. Acreditamos que temos um papel importante em assegurar que as produções locais são vistas. Ao longo do ano vamos exibir filmes locais e já iniciámos contactos com alguns realizadores e produtores de Macau. O que é que a In está a fazer para reconquistar a confiança dos produtores locais? Em Outubro, haverá outro festival, onde vão ser exibidos filmes de Macau e de territórios vizinhos, como a China, Taiwan e Hong Kong. Vamos continuar a contactar produtores locais, este é um passo muito importante. Claro que não os conhecemos a todos, mas queremos mostrar que estamos aqui para ajudar. Não queremos excluir ninguém. Queremos ter uma relação próxima porque, pessoalmente, dou muito valor ao trabalho dos produtores de Macau. A sua persistência é inegável quanto a perseguir os seus sonhos e concluir projectos, mesmo com recursos limitados. Achamos também que as oportunidades que existem actualmente para que sejam vistos, não são suficientes e que, apesar de a Cinemateca desempenhar um papel importante, continua a ser um sítio pequeno. Temos de os tornar visíveis nas regiões vizinhas e no resto do mundo. Esta é a visão que queremos alcançar nos próximos três anos, ou seja, explorar o maior número de oportunidades e colaborações com outras regiões. Por exemplo, em Taiwan ou na China há vários cinemas ligados a produções artísticas com os quais já estamos em contacto para trazer alguns filmes independentes e vice-versa. Além disso, vamos promover encontros mensais com produtores das regiões vizinhas para partilhar ideias. Acredito que este tipo de eventos vai contribuir para o desenvolvimento do cinema de Macau e para recuperar a confiança dos produtores locais. Porque se queremos que os produtores locais confiem em nós não basta dizer para o fazerem, é preciso mostrar que os podemos ajudar a explorar mais oportunidades e recursos. O que tem a dizer ao grupo “Macau Cinematheque Matters” que tem sido bastante crítico quanto à nova gestão? Claro que compreendemos as preocupações que têm vindo a mostrar porque não têm certezas sobre a nossa experiência. Isto é perfeitamente compreensível e agradecemos todo o feedback que nos possam dar. Claro que não somos perfeitos, somos uma equipa jovem, mas temos vontade de ouvir, ajustar e fazer mudanças. Esperamos que durante estes três anos possamos provar que partilhamos um objectivo comum, que é fazer deste lugar um dos mais importantes de Macau. Desde que o novo website da Cinemateca foi lançado, surgiram reacções negativas sobre falta de informação, a impossibilidade de comprar bilhetes online e a inexistência de versões em chinês simplificado e português. Porque é que estas funcionalidades não foram implementadas? O que podemos assegurar é que no dia 1 de Setembro tudo estará a funcionar correctamente, incluindo as versões em chinês simplificado e português e a bilheteira online. Claro que lamentamos qualquer inconveniente causado, mas estamos a trabalhar para que no primeiro dia, quando as portas abrirem ao público, esteja tudo de acordo com o caderno de encargos do concurso público. Mas o problema foi a falta de tempo? Sabíamos o que tínhamos de fazer e inicialmente a ideia era apenas deixar tudo pronto no dia 1 de Setembro. Mas também percebemos que o público queria saber mais sobre os filmes e comprar os bilhetes com antecedência e, por isso, preparámos tudo para começar a funcionar uma semana antes. Durante esta semana estamos a testar intensamente o sistema de venda de bilhetes online para garantir que não há erros e que tudo está pronto antes do lançamento. Claro que tenho de admitir que o tempo, desde o momento em que agarramos o projecto até agora, é muito curto tendo em conta o trabalho que há para fazer. Estavam à espera de receber a advertência escrita por parte do Instituto Cultural (IC)? Como tem sido essa relação? Na verdade, temos estado em constante conversação com o IC. Temos um grupo de Whatsapp onde comunicamos praticamente todos os dias e reunimos todas as semanas para garantir que estamos a remar para o mesmo lado. Não estávamos à espera da advertência do IC, mas aceitamo-la, porque compreendemos que temos muito espaço para melhorar. Na verdade, até acaba por ser mais um factor de motivação. Porque é que até hoje a In Limitada não foi capaz de apresentar exemplos da sua experiência na área do cinema? Acredito que este projecto da Cinemateca Paixão é um dos maiores actualmente em curso na empresa e já lançámos, entretanto, o nosso próprio website onde revelamos algumas das nossas experiências passadas. Compreendemos as preocupações do público mas, na verdade, após comunicarmos internamente, a razão pelo qual não podemos revelar muito prende-se com questões de confidencialidade dos nossos clientes. Até porque temos recebido muita atenção por parte do público. Por isso, o feedback que recebemos dos clientes não tem sido positivo em relação a revelarmos a sua identidade. A forma como estamos a lidar com o assunto passa por tentar manter a confidencialidade dos clientes. Adoraria revelar mais, mas não posso. Mas assim não parece que estão a esconder alguma coisa? Sim, nós compreendemos, mas é difícil fazer essa gestão. Por um lado, queremos revelar mais mas, ao mesmo tempo, temos de proteger os clientes, evitando que se transformem em focos de atenção. Por isso, estamos concentrados em dar a conhecer a nossa equipa, porque agora somos nós que estamos ao leme deste projecto, não é a antiga gestora. Queremos muito que as pessoas conheçam a nossa equipa e quem somos, em vez de se focarem naqueles sobre quem não podemos falar. Mesmo sem revelar clientes, qual a experiência da equipa na área do cinema? A nossa directora de operações Tung Mei Yi tem experiência na gestão de cinemas em Hong Kong e juntamente com a June Wu, tem ajudado muito a levar o projecto para a frente. Eu e algum do staff recém recrutado, participámos em trabalhos relacionados com o cinema e a produção cinematográfica nos últimos anos. Por isso, apesar poucas pessoas nos conhecerem, temos experiência. Acreditamos que, apesar de as pessoas não estarem muito confiantes que somos capazes de fazer este trabalho, nos próximos meses, com a programação e a estratégia que vamos apresentar, vão ver o esforço que estamos a fazer. Se não estivermos a fazer um bom trabalho, por favor, digam-nos e nós vamos mudar. Então porquê manter o silêncio ao longo de tanto tempo? Não considera que isso contribuiu para danificar uma relação já de si complicada? Compreendemos e lamentamos que tenha sido assim. Tínhamos muita coisa na cabeça no início do projecto e não era o momento apropriado para desvendar as nossas ideias porque tínhamos acabado de vencer o concurso público e era necessário construir a equipa. Tudo leva tempo. Compreendemos que as pessoas possam pensar “será que nos estão a esconder alguma coisa?”, mas garanto que não. Apenas estamos a preparar tudo antes de aparecermos com uma postura forte sobre o que queremos fazer e os nossos objectivos. Pode partilhar mais acerca do proprietário da empresa? O proprietário é o senhor Leong Chan Weng e foi ele que construiu a equipa quando foi anunciado que a empresa venceu o concurso público. Está à frente da In desde a sua fundação e partilha connosco o objectivo de querer fazer parte da indústria cinematográfica, pela qual tem uma grande paixão. Não sei como descrevê-lo, mas é, simultaneamente, um apaixonado pelo cinema e um homem de negócios que nos uniu nesta missão e que quer muito que o projecto vá para a frente. Consegue esclarecer a relação que existe entre a In e a Associação de Cultura e Produções de Filmes e Televisão de Macau (MFTP), presidida por Alvin Chau, e que organiza o Festival Internacional de Cinema (IFFAM)? Tanto quanto sei, não existe qualquer ligação com essa empresa. Mas a nossa equipa já participou nalguns trabalhos do IFFAM e outros festivais. Como equipa, não temos qualquer ligação com a MFTPA. Sente que existe liberdade na escolha dos conteúdos a exibir? Sim, sem dúvida. Mas sob a monitorização atenta do IC. A minha única preocupação é que seja bom para o público e que vão ao encontro da expectativas e exigências do IC. Que comentário tem a fazer sobre o orçamento da In e o apresentado pela CUT, que era mais do dobro? Acho que a melhor forma de mostrar ao público a nossa qualidade é através da programação porque, por exemplo, a obtenção dos direitos para a exibição dos clássicos em Setembro é bastante rara e não é propriamente barata. Desde o dia em que começámos a preparar a participação no concurso, não sabíamos como é que os outros candidatos iriam calcular os gastos mas, até agora, não estamos em qualquer risco de défice e o orçamento está sob controlo. Não podemos comentar como é que os outros calculam os gastos. De que forma a Cinemateca Paixão irá participar no Festival Internacional de Cinema? Até agora ainda não fomos contactados por ninguém em relação ao IFFAM.
Hoje Macau EntrevistaRui Gomes: Excessiva politização em Timor-Leste tem afectado desenvolvimento [dropcap]O[/dropcap] ex-ministro das Finanças Rui Gomes disse que a excessiva politização em Timor-Leste, a “epidemia incurável” que é a falta de confiança na liderança e relegar capital humano para segundo plano condicionaram o desenvolvimento nacional. “A politização tem sido uma arma poderosa de descomprimir a determinação e a vontade política do lado de quem detém o poder”, disse Rui Gomes, em entrevista à Lusa. “As distrações são constantes e a falta de confiança na liderança tornou-se uma epidemia incurável. É essa parte não económica que poderá vir a afetar o desempenho das pessoas e das instituições responsáveis pelas medidas propostas para a recuperação da economia pós-covid-19”, sublinhou. Rui Gomes liderou nos últimos dois meses uma comissão criada pelo Governo timorense para preparar um Plano de Recuperação Económica (PRE) que ajude a reactivar a economia nacional, com medidas a curto, médio e longo prazo, para estancar a perda de empregos e rendimentos, corrigir a “fraqueza estrutural e a incapacidade do tecido produtivo nacional em gerar empregos produtivos com um nível de produtividade que gere rendimentos satisfatórios”. Optimismo na retoma O ex-ministro mostrou-se optimista sobre uma “retoma da economia em U”, depois de anos de crise política e do impacto da pandemia covid-19, mas considera que o principal risco é “a politização do PRE, como tem sido a prática em Timor-Leste”. “O instrumento é bom, mas as pessoas têm de estar confiantes naquilo que fazem. Por falta de leitura e conhecimento das coisas, as pessoas (principalmente os políticos) tendem sempre a levar pelo lado político das coisas”, referiu. Apostando num plano “centrado nas pessoas”, Rui Gomes sustentou que até aqui tem-se relegado para segundo plano o capital humano, com políticas viradas para o capital físico. O nível de formação de capital humano “é muito baixo, em termos absolutos e em relação à maioria dos países vizinhos”, porque “se tem optado por investir significativamente em capital físico”, nomeadamente infra-estruturas. Prova disso são os sucessivos Orçamentos Gerais do Estado que “ao longo de mais de uma década não estavam virados para as pessoas”, contrário ao discurso político. Nos nove anos entre 2011 e 2019, os investimentos nos sectores de Saúde, Educação, Agricultura/Irrigação e Turismo, receberam uma verba total do Fundo de Infra-estruturas de cerca de 83 milhões de dólares. Um “nítido contraste com os 3.066 milhões de dólares afectos ao capital físico, 37 vezes mais que a verba afeta” aos sectores referidos. “É certo que há a necessidade de colocar uma fatia maior na formação bruta do capital físico; mas o que tem acontecido é que durante a última década esse investimento tem sido mais nas estradas, que não edifícios, cujos custos são demasiado elevados para os cofres do Estado para a sua construção e, eventualmente, manutenção”, afirmou. “Muitos destes investimentos estão nitidamente sobre-dimensionados, levando a um desperdício significativo de recursos que poderiam ser melhor aplicados noutras atividades do Estado”, sustentou. Daí que, defendeu, é precisa “uma mudança de direcção” face ao investimento no campo das infra-estruturas”, com queda nas receitas petrolíferas e na “rentabilidade potencial dos projetos previstos” para o Mar de Timor. “Não quero com isso dizer que os grandes projectos devem ser esquecidos. Mas podemos estar confiantes de que os grandes projectos são de qualidade e produzem efectivamente efeitos positivos na economia e na sociedade timorense – onde 66% da população vive da agricultura de subsistência e a pobreza afeta mais de 40% -, particularmente no que toca à oferta e consumo nacionais e na melhoria do seu capital físico e humano? Qual é o nível de execução dos grandes projectos?”, questionou. Um PRE “realista” Neste quadro, Rui Gomes considerou o PRE “realista” e sublinhou a sua “boa receptividade”, notando que o primeiro-ministro, Taur Matan Ruak, deu instruções “para os trabalhos de ajustamentos necessários das medidas propostas face aos programas e atividades desenvolvidas” pelos vários ministérios e agências autónomas, “incluindo a construção de indicadores de monitorização e avaliação da implementação do PRE”. “A grande maioria das medidas propostas foi devidamente ajustada. Está a decorrer o exercício da orçamentação das medidas propostas para o próximo OGE”, sublinhou. Ainda assim, e perante potenciais riscos na implementação, que condicionem a eficácia do plano, Rui Gomes defendeu a necessidade de “simplificar os processos e de envolver menos partes a fim de evitar a dispersão de recursos escassos em muitas áreas”. Indicar um órgão do Estado para desempenhar o papel de coordenador geral, e que siga de perto “quem faz o quê, quando e onde”, definir claramente responsabilidades e expectativas, atribuir-lhes recursos “adequados” e alcançar resultados “concretos e mesuráveis” são outras exigências. “Aquele que poderia ser o principal constrangimento à implementação, claramente não existe: há claramente vontade política”, disse. Num país onde, tradicionalmente, se questiona a eficácia da implementação de planos de desenvolvimento, Rui Gomes explicou que depois do planeamento e aprovação política, é precisar concretizar as medidas. Para isso, e depois da aprovação dos OGE, deve-se “organizar a monitorização, a coordenação e assegurar níveis elevados de execução para que haja um impacto efetivo na criação de emprego, no aumento dos rendimentos, no crescimento económico e, consequentemente, na melhoria das condições de vida dos (…) cidadãos”, disse. “O grande esforço e que torna de valor e eficaz o que foi feito é o que vem a seguir. Exigirá muito trabalho e muita eficácia. O Governo já tem um instrumento fundamental para a sua atuação até ao fim do seu mandato”, afirmou. A intervenção na economia Rui Gomes defendeu ainda que o Governo timorense tem um “horizonte limitado” para actuar e evitar que a economia nacional se “afunde”, implementando eficazmente o plano de recuperação económica que aprovou. “A perda do Produto Interno Bruto foi grande nestes últimos três anos de inércia e de incertezas políticas e a presença da covid-19, bem como as cheias do mês de março que causaram grandes estragos no património privado servem de razão para agir com mais rapidez e força”, disse. “Além do horizonte temporal ser mesmo limitado, não se pode deixar que a economia se afunde cada vez mais ao ponto de ser incapaz de auto recuperar”, afirmou. Rui Gomes liderou nos últimos dois meses uma comissão criada pelo Governo timorense para preparar um Plano de Recuperação Económica que ajude a reactivar a economia nacional, seriamente danificada. Com um limitado horizonte temporal, até dois anos e meio – o que resta de mandato do atual Governo – as medidas do PRE, explicou Gomes, procuram “atenuar o máximo possível os problemas no curto prazo” e, assim, procurar “estancar o desaparecimento dos postos de trabalho e a perda de rendimentos”. Assenta ainda em soluções a médio e longo prazo para “tudo aquilo que a ameaça da covid-19 veio expor” na realidade económica e social timorense, “nomeadamente a fraqueza estrutural e a incapacidade do tecido produtivo nacional em gerar empregos produtivos com um nível de produtividade que gere rendimentos satisfatórios”. “Quero acreditar que a implementação eficaz das medidas propostas resultará num número apreciável de postos de trabalho produtivos e dignos, gerados por investimentos (públicos e privados) que sejam mais mão-de-obra intensivos do que capital-intensivos, sem necessariamente descurar todos os tipos de investimento”, disse. Mais investimentos na educação, saúde, habitação, protecção social e sectores produtivos – como agricultura e turismo – ajudarão, disse, a criar “novos empregos produtivos com melhores remunerações” e a “alterar a estrutura produtiva e dos factores que concorrem para o crescimento económico”. Medidas de apoio para 2020 O PRE está dividido em duas partes, com medidas a aplicar ainda este ano, de apoio a empresas, famílias e trabalhadores do setor informal para mitigar os impactos da crise económica causada pela pandemia da covid-19. Estas quatro medidas, que têm um custo estimado de 113 milhões de dólares incluem uma cesta básica a famílias, um subsídio mensal para empresas, a dispensa do pagamento de contribuições sociais e um apoio a trabalhadores do setor informal. Inclui ainda 71 medidas a médio e longo prazo – a aplicar entre 2021 e 2023 – e que estão agora a ser introduzidas na proposta do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2021, que o Governo quer aprovar até outubro. Rui Gomes destaca desse pacote de medidas seis “prioritárias”, incluindo a “estratégia de substituição de importações”, incentivando a produção nacional “de certos produtos, fundamentalmente alimentícios, como o arroz, milho, feijão, soja e água”. Outras medidas passam por promover o eco-turismo, a construção de “bairros infra-estruturados em algumas cidades para implantação de habitações de renda económica” e programas ativos de emprego, incluindo um programa público de emprego rural, em áreas trabalho-intensivas, como a construção civil (estradas rurais, fontanários, mercados, pequenas obras de recuperação de instalações públicas) ou o turismo. O ex-ministro destacou ainda parcerias com o setor bancário, para criar melhores condições de financiamento (taxas de juros e períodos de carência) e os bancos a serem eventualmente compensados, através de concessão de benefícios fiscais apropriados. “Transversal a todas as medidas, e foco daquela que penso ser a melhor estratégia de desenvolvimento para o nosso país, é investir mais, e a longo prazo, nas áreas sociais, incluindo a proteção social, a educação e a saúde”, afirmou. “Não estamos a falar de implementar medidas assistencialistas, mas sim programas que invistam na autonomia das pessoas e na sua dignidade, e lhes ofereçam condições de maior resiliência em momentos de crise”, disse. O PRE, explicou Rui Gomes, assenta na “recalibração do investimento público centrado nas pessoas”, procurando garantir o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável” do país. “As pessoas só podem ser a riqueza de uma nação quando tiverem oportunidades de escolha. Sem essas oportunidades de escolha dificilmente as pessoas terão acesso a muitas outras oportunidades”, afirmou. “Não podemos querer um país verdadeiramente desenvolvido, apenas com o crescimento do PIB e da produção; é fundamental investir nas pessoas. A economia também são as pessoas”, sublinhou. O estado do sector privado O ex-ministro das Finanças timorense defendeu que o sector privado em Timor-Leste vive há anos uma situação financeira “preocupante” e está fortemente descapitalizado, sendo essencial melhorar as condições de acesso ao crédito. Melhorar a capacidade de produção nacional, formalizar o sector informal e diversificar progressivamente a economia são outras acções que ajudariam o país a consolidar o seu desenvolvimento, defendeu. O ex-governante notou que o país “ainda não tem um ‘salvador’” económico, correndo o risco de “dilapidar o seu único fundo soberano, se continuar a engordar a Administração Pública e o consumo, negligenciando a acumulação do capital humano para o tornar a verdadeira riqueza da nação”. “Os timorenses têm de voltar a começar a trabalhar, voltar às terras abandonadas e aprender a consumir daquilo que produzem”, sustentou Rui Gomes. Depois de vários anos de crise económica – devido a tensão política e agora à covid-19 – Rui Gomes notou que a situação do sector privado se agravou consideravelmente e que, por isso, parte do PRE aposta na sua revitalização e na estruturação das condições gerais do país. Entre outros aspectos, referiu a falta da “prioritária” regulamentação de toda a legislação associada às terras, “um entrave ao investimento produtivo no país por parte do sector privado”, tanto nacional como externo. É ainda essencial, defendeu, “rever profundamente” o funcionamento do sistema de Justiça, “incluindo o que diz respeito ao enquadramento legal do funcionamento das empresas, nomeadamente “transparência da ação dos serviços públicos, intolerância à corrupção, mecanismos de financiamento através do acesso ao crédito, regime de falências/insolvências e deliberação sobre disputas e arbitragem comercial”. Um dos possíveis “estimuladores” da ação do setor privado, disse, é uma “estratégia de substituição limitada de importações”, um dos elementos previsto no PRE. “O setor privado precisa de dotar-se de meios para lançar as suas empresas, nomeadamente dispor de alguma capacidade financeira e de gestão”, enfatizou. “O Estado deve proporcionar os meios financeiros necessários através de parcerias com os bancos comerciais que dispõem de elevada liquidez, mas cujos recursos não são mobilizados porque os empresários não têm capacidade de apresentar os projetos e as garantias reais devidas”, frisou. “A maioria das empresas não dispõe de contabilidade organizada e isso também constitui um entrave para o crédito bancário: o apoio nesta área, designadamente através da aprovação de um plano de contas e do apoio à formação, é fundamental”, sublinhou. Os baixos níveis de rendimento, “em muitos casos pouco acima da simples sobrevivência” e níveis de pobreza ainda elevados, “com significativas desigualdades regionais”, são outros riscos “sérios” à economia nacional. “Mais do que a pobreza monetária, a natureza da pobreza multidimensional e das capacidades das pessoas para aceder a bens e serviços essenciais também representa um dos principais riscos que a economia timorense enfrenta”, disse. “Mesmo famílias que vivem acima da linha de pobreza nacional têm, muitas vezes e sobretudo no interior do país, dificuldades no acesso a bens e serviços que lhes permitam satisfazer necessidades básicas, designadamente a nível de educação, saúde, serviços sociais ou mesmo de nutrição de qualidade”, afirmou. A pandemia da covid-19, que veio mostrar muitas das fraquezas estruturais do país, fez sobressair, considerou, a necessidade do reforço do capital humano e mostrar “quão importante é dispor de serviços públicos de qualidade e abrangentes, em particular do sistema nacional de saúde, do sistema público de educação e do sistema de proteção social”. Um longo processo Central a todo o debate económico em Timor-Leste – onde as receitas não-petrolíferas do Estado não cobrem nem um terço das despesas públicas recorrentes – tem estado a questão da diversificação económica. Rui Gomes defendeu que este processo “que pode demorar duas décadas ou mais”, deve ser acelerado agora, quando o país ainda dispõe de meios financeiros. O actual “nível de complexidade económica muito baixo (ou capacidade produtiva muito limitada), dificulta a transformação da estrutura produtiva actual” e, por isso, é necessário, primeiro, “acumular capacidades produtivas” para conseguir “elevar a produção ao nível mais complexo, por exemplo, na manufactura ou indústria transformadora mais complexas”. Devem, nesse sentido, identificar-se alguns produtos já na estrutura produtiva atual – como café ou baunilha –, introduzindo a sua transformação para “acrescentar valor”, depois verificar se estes produtos “concordam com a realidade económica do país” e, finalmente, através do sector privado, “identificar e procurar assegurar os mercados internacionais ou regionais que dão mais-valia a esses produtos”. “A promoção da produção nacional é um dos focos para a recuperação económica do país”, disse, sublinhando a importância da produção elevada de alimentos a preços acessíveis. “O primeiro teste à produção nacional será brevemente feito através da implementação da medida da cesta básica, onde 50% dos bens alimentícios que compõe a cesta será oriundo da produção local”, disse. Reduzir gradualmente a dependência do Fundo Petrolífero, garantindo a sua manutenção a longo prazo, capitalizar na “simpatia” dos países doadores e recorrer a empréstimos e emissão de dívida pública, são estratégias que devem ser adoptadas, disse. Paralelamente devem explorar-se mais as parcerias público-privadas, emagrecer a máquina do Estado para combater o “despesismo”, criando “um Estado melhor e não um Estado maior” e apoiar a formalização do sector informal, são outras medidas.
Andreia Sofia Silva EntrevistaSpencer Li, coordenador do estudo “Macao Social Survey”: “Macau é ainda uma sociedade conservadora” Pela primeira vez foi produzido um estudo abrangente sobre o panorama socioeconómico e político do território, da autoria de vários académicos da Universidade de Macau e coordenado pelo sociólogo Spencer Li. A desigualdade social e a falta de transportes públicos são os principais problemas apontados pelos residentes. Spencer Li denota que a sociedade é inclusiva em relação aos trabalhadores estrangeiros, mas consumidores de droga, portadores de HIV ou homossexuais são marginalizados dropcap]R[/dropcap] efere que, com este estudo, os académicos têm maior capacidade para fazer sugestões ao Governo de políticas. De que forma concreta este estudo pode ajudar o Executivo na governação? O foco mais importante das políticas a implementar deveria ser a resolução dos problemas que identificámos no estudo. O principal problema identificado pelos residentes prende-se com a falta de transportes públicos. Há limitações geográficas, pois Macau é um território muito pequeno, onde circulam muitos veículos. Então o melhor que devemos fazer é apostar nos transportes públicos. O Governo tem agido para reduzir o problema, mas há outros problemas que mencionamos no livro. O segundo mais grave é a desigualdade social, que sempre foi muito elevada. Isso pode levar ao descontentamento popular e conflitos sociais, especialmente entre as gerações mais novas que não veem oportunidades de crescer socialmente em algumas áreas. Outro problema mencionado é o ambiente, além do facto de Macau precisar de um desenvolvimento generalizado na área da educação. Nos últimos 10 anos, o nível de educação aumentou, mas ainda não é suficiente, especialmente se compararmos Macau com outras regiões ou cidades desenvolvidas. Macau é um território desenvolvido e muito rico, mas em termos educacionais ainda não atingimos um determinado nível. Deveríamos prestar atenção a esse aspecto. Mas há ainda outro problema, muito óbvio aliás, que é a dependência de uma única indústria, a do jogo e do turismo. Isso cria problemas para quem procura trabalho em outras áreas, sobretudo os mais jovens. Podem não conseguir trabalhar fora da indústria do jogo, do retalho ou do turismo, sobretudo tendo em conta o facto que o nível de educação é cada vez maior. Os jovens querem trabalhar em áreas nas quais Macau não oferece oportunidades. Como explica o baixo nível de educação, tendo em conta o desenvolvimento do ensino superior dos últimos anos? Pela minha experiência como professor vejo, que a maior parte dos alunos são motivados. Muitos dos meus alunos estudam e trabalham ao mesmo tempo e não terminam os estudos pós-graduados ou mesmo as licenciaturas. E porquê? Não veem qualquer objectivo nisso. Têm interesse, mas não veem qualquer utilidade em fazer um mestrado, por exemplo. Como refere o livro, para encorajar mais as pessoas a seguir os estudos superiores é preciso recompensas e oportunidades. Se as pessoas não virem a recompensa, então ficam menos motivadas. Há uma grande desconexão entre o sistema educativo e as oportunidades. Podem estudar no Reino Unido, na Austrália ou na China, mas depois regressam e não conseguem encontrar um trabalho fora da indústria do jogo. O problema está no mercado de trabalho. Sim. O mercado laboral é muito limitado e virado para um só segmento. Para termos uma melhor força laboral é preciso melhorar o mercado. Qual deveria ser o papel do Governo aqui? Não sou economista. A situação causada pela pandemia do novo coronavírus reduziu as reservas financeiras do Governo, mas essa não é a norma. O Governo ainda tem muito dinheiro e penso que se tem esforçado em investir em novas indústrias. Mas, até agora, não temos visto grandes resultados. O Governo tem de continuar a apostar em novas indústrias para dar oportunidades à força laboral educada. Sobre a desigualdade social. A pandemia da covid-19 pode aumentar ainda mais o fosso entre ricos e pobres? Em primeiro lugar, perderam-se muitos empregos e rendimentos. Macau tem muitos empreendedores na área do retalho ou dos restaurantes, que vivem de pequenos negócios. Mas devido à crise, que levou ao fecho de restaurantes e lojas, muitas entraram em falência. Isso pode ser muito difícil. Os ricos continuam a ter muitas opções, pois podem investir noutras áreas, e se em Macau não funciona podem investir na China ou outros países. Na verdade, a crise causada pela pandemia trouxe mais oportunidades a bilionários, que não estão a lutar pela sobrevivência. Pelo contrário os mais pobres estão numa situação muito pior e isso é uma preocupação. Pode, de facto, aumentar a desigualdade entre ricos e pobres. Outra das conclusões do estudo é que a maior parte dos residentes se sentem próximos da China. De certa forma, não é uma conclusão surpreendente. No entanto, até agora tínhamos algumas percepções, mas não sabíamos se era verdade ou não. O nosso estudo é o primeiro que verdadeiramente apresenta dados que confirmam isso. Há várias explicações. A primeira é que 95 por cento dos residentes são chineses e descendem de gerações mais antigas que vieram da China. Têm esses laços. A segunda explicação surge pelo facto de estarmos ligados economicamente à China, além de que a maior parte dos turistas vêm da China. Muitas pessoas vivem em Zhuhai e trabalham em Macau. A terceira explicação surge pelo facto de Macau beneficiar de inúmeros acordos com a China, algo que nos beneficia, como os turistas chineses, e a política “um país, dois sistemas”. Considera Macau uma sociedade inclusiva? Pergunto isto porque há muito a ideia de oposição entre residentes e não-residentes. De uma forma geral penso que é inclusiva. Temos pessoas de origens diferentes em Macau. Descobrimos com o nosso estudo que a maior parte dos residentes são inclusivos e tolerantes. A maior parte das pessoas que entrevistamos não tem problemas em viver no mesmo território com pessoas que falam outra língua e que vêm de outro sítio. Mas também descobrimos que esse problema não se verifica tanto com determinados grupos étnicos. Há marginalização em relação a problemas sociais ou a estilos de vida diferentes. As pessoas não querem vizinhos consumidores de drogas, cerca de 50 por cento dos inquiridos responderam isso. Também não querem viver com pessoas que têm HIV ou homossexuais. Então não falamos propriamente de um sentimento contra grupos étnicos, mas sim contra estilos de vida não convencionais. Nesse sentido, Macau é ainda uma sociedade conservadora. Se a sociedade é inclusiva, como explica posições de deputados contra trabalhadores não residentes? O estudo não abordou esta questão, mas se pergunta a minha opinião digo-lhe que isso se deve a motivos económicos. Macau é tão pequeno que há o receio de que os trabalhos sejam roubados aos residentes pelos trabalhadores que vêm de fora. Os trabalhadores estrangeiros trabalham mais horas e ganham menos. Os residentes podem não estar dispostos a isso e penso que essa atitude se deve à economia. Eu próprio sou um trabalhador estrangeiro, embora seja um trabalhador qualificado. Não falo cantonense, só falo mandarim e inglês, mas sempre fui bem tratado. O que sinto é que a maior parte das pessoas não tem qualquer tipo de problema em lidar com trabalhadores estrangeiros, mas receiam a ameaça económica. É isso que leva à preocupação em relação aos não residentes. Sobre a participação política da população, o estudo conclui que a maior parte está ligada a associações de cariz político. Existem mesmo participação política ou a motivação prende-se com benefícios ou contrapartidas? Não acredito que as compensações sejam a principal motivação para a participação nas eleições. Mais de 50 por cento dos residentes inquiridos disseram fazer parte de associações, muitas delas com representantes políticos ou que têm as suas preferências políticas, incentivando o voto. Essa é a força motriz. Claro que esses residentes também têm as suas preferências políticas. Em relação às consultas públicas promovidas pelo Governo, os residentes também participam nesses processos. Algumas destas associações são muito antigas. Continuam, assim, a ser muito importantes para a população de Macau. Sim, muito importantes. Essa é uma das características da sociedade de Macau, a ligação das associações à comunidade. As pessoas participam na política porque são membros destas associações.
Pedro Arede EntrevistaMaria Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo: “Sentimos Portugal como uma família estendida” O HM falou com a directora dos Serviços de Turismo, antes do anúncio do regresso dos vistos de turismo para entrar em Macau, e a responsável não tem dúvida de que o preço dos testes à covid-19 vai ser determinante para viajar e vê com bons olhos uma eventual retoma do voo directo entre Macau e Portugal. Quanto a nomes de ruas, defende que a maioria é pela coexistência do passado e presente das culturas chinesa e portuguesa [dropcap]P[/dropcap] erante tantas incertezas, como é vivido o dia-a-dia dos Serviços de Turismo? Entrámos agora numa nova etapa, pois não há nada que possamos fazer para alterar a situação gerada pela pandemia. Mas já estamos a ter mais movimento e podemos ir avançando com mais trabalhos. Durante os últimos meses temos vivido tempos de grande incerteza porque, a cada dia, podem surgir situações completamente diferentes do dia anterior e, por isso, é preciso grande flexibilidade e capacidade de planeamento, apesar de muitos projectos acabarem por não se concretizar. Temos de estar física e mentalmente preparados para isso, porque há muitas frustrações, mas temos de ter sempre uma mentalidade muito aberta e capacidade para aceitar diferentes situações em momentos diferentes. Apesar disso, a nossa equipa tem alcançado alguma coisa nos últimos meses. Isto, depois do desafio de ajudar os Serviços de Saúde [SS] e outros departamentos a controlar a situação da pandemia. Ultrapassada esta etapa, o dia-a-dia já é mais suave, porque temos mais experiência, os SS têm mais informação sobre o vírus e a forma como, dentro de Macau, estamos a tentar evitar qualquer contágio também contribuiu para dar mais confiança às pessoas. O foco da DST passa agora por reanimar a actividade económica? Ninguém pensou que iríamos passar tantos meses sem turistas ou pessoas a entrar, pois todos os clientes são locais. Por isso, estamos a passar de uma altura em que estávamos dedicados a conter o vírus para outra, em que temos que reabrir a indústria e a actividade económica, algo que tem de ser feito passo a passo. Acho que estamos no bom caminho e, apesar de não termos muitos turistas, passámos de 200 ou 300 visitantes diários para mais de cinco mil. Há mais movimento nas fronteiras e dentro da cidade, mas ainda estamos longe da recuperação económica, porque isso não depende só de nós. Agora já não é a área do turismo a fazer planos sobre quais os mercados com mais potencial. É a área da saúde que diz quais os mercados sobre os quais podemos trabalhar. Daqui para a frente vamos ainda ter grandes desafios, porque o mundo do turismo vai ser completamente diferente. Muito se tem falado em diversificação económica. Que solicitações recebeu a DST nesse sentido? A diversificação da economia vai ser um trabalho conjunto e nós fazemos parte disso, assim como o Instituto Cultural [IC] e o Instituto do Desporto [ID] que estão também a fazer muitos planos. Vamos trabalhar também mais estritamente com o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento [IPIM] na área das convenções e exposições e com a Direcção dos Serviços de Economia [DSE] para desenvolver as lojas com características tradicionais de Macau, porque também podem ser atracções. Também a área da saúde, ao nível do bem-estar como está a acontecer em Hengqin como o projecto NovoTown, pode ser uma maneira de atrair pessoas. Daqui para a frente, além de dizer que Macau é uma cidade com grandes atracções turísticas, também temos de mostrar aos potenciais clientes que temos um bom histórico na contenção da pandemia, de forma a transmitir confiança para as pessoas voltarem a visitar Macau. Este vai ser um ponto muito importante até ao fim do ano e provavelmente em 2021. Foram anunciados cortes de mais de 30 por cento no orçamento da DST para 2020. Prevê que ainda possam existir mais ajustes? O nosso orçamento foi cortado, mas isso não quer dizer que o Governo deixou de investir. O Governo está a subsidiar directamente outras indústrias com muitos milhões, mas, na área do turismo, está a apoiar de forma indirecta através da campanha “Vamos! Macau!”, que inclui as excursões locais, e a plataforma de descontos [Macau Ready Go] que lançámos. Isto permite ajudar os que trabalham no turismo e, através do movimento dos residentes locais, ajudar outras áreas a recuperar. Não vai ser uma recuperação completa, porque o total de residentes é ainda muito menor que o número de visitantes que costumamos ter anualmente, mas, pelo menos, há movimento a recomeçar. Utilizamos também estas excursões para descobrir novas atracções de Macau, ou melhor dizendo, atracções que já existiam, mas que nunca foram utilizadas na área do turismo. Acho que as excursões que estão a ter maior adesão podem ser transformadas em produtos comerciais no futuro para os visitantes. Admite que as excursões locais possam ser prolongadas? A ideia inicial é que o programa dure até 30 de Setembro. Não estamos a pensar estender porque o objectivo passa pela reabertura do turismo à China. De facto, as excursões locais têm tido uma grande adesão, quase 110 mil pessoas já se inscreveram, mas, mesmo assim, é uma fracção do turismo que normalmente recebemos. Não vamos agora, de um dia para o outro, recomeçar o turismo e fazer com que tudo seja igual ao que era antes da pandemia, porque há muitos factores em jogo e o mercado tem de reabrir passo a passo. A longo prazo temos de reabrir o turismo para ajudar a indústria. As excursões locais estão de facto a ajudar muito, mas não podemos ter toda a gente de Macau, todos os dias, a viajar dentro de Macau. Toda a indústria está à espera da reabertura total do turismo. Neste momento não [ponderamos prolongar], mas é muito difícil dizer com toda certeza. Espero que não haja necessidade de prolongar as excursões locais porque seria mau sinal. Se temos de continuar, quer dizer que não há hipótese de abrir o mercado turístico, não é? Por isso, acho que temos de continuar a trabalhar para a reabertura total do turismo. Para já, o nosso trabalho vai focar-se nas províncias que têm mais facilidade de viajar para Macau, quer por via aérea ou de comboio, ou seja, a província de Fujian e Hunan. Mas também isso só vai ser possível, passo a passo, não vai ser amanhã. Há residentes estrangeiros que se sentem esquecidos no alargamento de isenções para Guangdong. Esta situação pode ser alterada em breve? Neste momento, é muito difícil de dizer porque, na China, quando fazem uma isenção [nas fronteiras] não é só para quem vive em Macau, mas para o país inteiro. Vai ser uma consideração bastante complicada, porque não podem apenas dizer: “os estrangeiros que estão em Macau podem viajar para a China, mas os outros estrangeiros não”. Isto seria até uma discriminação de alguns estrangeiros em relação a outros, de regiões diferentes. Se a pandemia se prolongar por muito mais tempo, a DST planeia investir no turismo internacional mais cedo que o previsto? Estamos sempre a investir no mercado internacional, mas este ano temos de ser objectivos nos nossos planos. Agendámos reuniões online com representantes dos EUA, Europa, Austrália e outras partes da Ásia. Nessas reuniões, recolhemos informações sobre as novas considerações dos diferentes mercados. Um exemplo muito simples: mesmo abrindo para diferentes mercados, uma grande condicionante vai ser o teste de ácido nucleico. Durante algum tempo, este vai ser, para além do passaporte, uma necessidade para viajar. No entanto, mesmo que em Macau não seja assim tão caro (120 patacas) e na China seja ainda menos (75 renminbis), em diferentes partes do mundo o custo é bastante elevado. Falámos com o nosso representante na Indonésia e na Coreia do Sul e disseram-nos que nestes países o teste custa cerca de 150 dólares americanos. Por isso, o custo dos testes vai influenciar em grande medida a vontade de viajar. Se contabilizarmos 150 dólares americanos por pessoa, uma família de quatro pessoas já vai ter de gastar 600 dólares só para os testes, ainda sem contar com os custos das viagens e alojamento. Não podemos pensar apenas que a pandemia já passou e vai ser tudo igual ao que era. Não vai ser assim, temos de ter todos estes novos factores em consideração e ver quais as regiões com maior potencial, tendo em conta estas condicionantes. Esses alvos já estão identificados? É bastante difícil. Mesmo que as pessoas de Hong Kong queiram viajar para Macau agora, eles têm de gastar mais de 1.000 dólares de Hong Kong. Apesar de ser um mercado muito atraente pelo preço da viagem, a partir de agora vão pensar três vezes antes de decidir onde vão viajar, porque os custos não vão ser os mesmos. Macau esteve perto de abrir as fronteiras com Hong Kong? Tivemos grandes esperanças no final de Junho que isso pudesse acontecer, até porque Hong Kong não tinha novos casos há muitos dias, mas infelizmente, a situação piorou de repente. Em Macau, ainda bem que temos a possibilidade de abrir as portas ao Interior da China. Hong Kong está a passar por uma fase muito difícil. Fui ver o número de entradas de visitantes em Julho e Macau recebeu 22 mil pessoas. Depois fui ver o número de visitantes para Hong Kong na mesma altura e fiquei chocada, porque tivemos mais pessoas a visitar Macau do que Hong Kong, que apenas recebeu 15 mil. Isto é impensável. Desde que entrei na DST nunca tinha visto esta situação. Se achamos que a situação em Macau é difícil, a situação de Hong Kong é ainda pior em termos de turismo. A dependência que Macau tem do aeroporto de Hong Kong para aceder a outros mercados ficou à vista devido à pandemia? Gostava muito que o aeroporto tivesse mais capacidade de receber voos de médio e longo curso, mas isto não depende só da nossa vontade, porque existem considerações comerciais. De facto, Macau tem esta dificuldade porque temos uma população bastante pequena e, para sustentar um voo de longo curso, este não pode depender apenas dos habitantes. No futuro, temos que pensar de que forma podemos trabalhar em conjunto com a Grande Baía para que essas pessoas venham a Macau e utilizem o nosso aeroporto para atrair voos directos de outras partes do Mundo, pois só com a população de Macau é muito difícil. A hipótese de estabelecer um voo directo para Portugal pode ser equacionada no futuro? Portugal é um país com o qual partilhamos sempre grandes emoções e, apesar de estar distante, estamos próximos quando falamos do coração. Além disso, temos muitos estudantes lá e muitos portugueses a trabalhar aqui, por isso, sentimos Portugal como se fosse uma família estendida. Em relação ao voo, comercialmente não é fácil, mas se fosse possível era muito bom para Macau. Preservar o patrimómio cultural de Macau vai continuar a ser uma das prioridades da DST? Sem dúvida nenhuma. O centro histórico de Macau é património mundial e é preciso protegê-lo. Além disso, porque há sempre aspectos positivos mesmo em contextos difíceis, acho que temos de ter sempre uma mentalidade optimista. Por causa disso, mesmo nas excursões locais, há boas ideias que podem ser aproveitadas. É necessário ter imaginação e abertura, mas o património é, e vai continuar a ser sempre, uma parte muito importante das nossas operações turísticas. Além do património físico, o património intangível também é importante, como o patuá e a ópera chinesa. Daqui falo, não só do património Ocidental, mas também a mistura que se vive dentro de Macau. Nesse sentido, como classifica as palavras do vogal do Conselho Consultivo do IAM Chan Pou Sam que defendeu recentemente a alteração dos nomes das ruas para apagar os vestígios do passado colonial? Este tipo de pensamento pode ser prejudicial para o turismo? Os visitantes da China querem vir a Macau porque Macau é diferente das outras províncias do Interior. Esta diferença existe porque temos uma grande tradição e uma longa história de convivência com diferentes culturas. Este é um aspecto que temos de continuar a defender. Em 2020 celebramos os 15 anos da entrada do centro histórico de Macau na lista do Património Mundial e esta possibilidade existe por causa da nossa mistura de culturas. Quando nos candidatámos a “Cidade Criativa de Gastronomia”, também conseguimos convencer a UNESCO que merecíamos ser incluídos na lista, devido ao resultado da convivência entre as diferentes culturas. Temos sempre que defender a coexistência das diferentes culturas. Claro que há quem tenha ideias diferentes, mas acho que a maioria das pessoas de Macau dá muito valor à coexistência das culturas Ocidental e Oriental, sobretudo da cultura chinesa e portuguesa. Dado o contexto, o podemos esperar da edição deste ano do Festival Internacional de Cinema de Macau? O festival vai acontecer, mas o grande problema é que as pessoas não podem vir cá. Uma parte será virtual e outra presencial, onde, mesmo assim, teremos de reduzir o número de pessoas na assistência por causa das novas restrições de saúde. O Mike [Goodridge] e a equipa de programação já contactaram responsáveis por vários filmes que queremos exibir e estamos no bom caminho. Infelizmente, ainda não sabemos se vamos ter filmes locais, pois tem sido um ano muito difícil para todas as produções a nível mundial, mas temos esperança que venha a acontecer. Estamos a trabalhar num evento híbrido, em que o público poderá ver uma parte nos cinemas e outra, talvez até de forma mais confortável, em casa. Ainda persistem muitas incertezas, mas confiamos que vamos conseguir fazer um festival, apesar de diferente, com bons filmes e qualidade para mostrar à audiência local. De que forma o orçamento do IFFAM vai ser afectado este ano? O orçamento não vai ser igual ao dos anos anteriores, mas ainda não conseguimos dizer porque vamos lançar concursos em breve, tendo em conta diferentes modelos. Estamos a estudar, em termos de online o que é preciso fazer e investir num sistema de Geoblock, ou seja restringir o visionamento dos filmes em algumas partes do mundo. Estamos também a analisar as obras que podem ser exibidas online e por isso essa triagem está a ser feita para decidir quais os filmes que vão ser exibidas em sala e as que vão ser transmitidas online. Mesmo online vai existir uma limitação em termos dos “lugares” que podem ser vendidos. Que participação a Cinemateca vai ter no festival deste ano? A utilização da Cinemateca durante o festival já foi aceite pelo IC. Estamos a falar de assistências muito reduzidas porque, infelizmente, dos 70 lugares disponíveis só poderão ser vendidos cerca de 30. Vai ser difícil para quem quer ver os filmes, mas continuamos a achar que a Cinemateca é um bom local. No futuro, estamos a planear uma sala de exibição de filmes dentro do novo museu do Grande Prémio. No entanto, não vai estar pronta este ano. Como tem sido a relação com a nova gestão da Cinemateca, que tem levantado tanta polémica? Acredito que não haja grandes dificuldades, mas, até lá, não posso dizer com certeza porque ainda não fizemos qualquer reunião técnica. Para já, as discussões têm sido apenas entre a DST e o IC e ainda não entrámos em pormenores com a companhia que está a gerir o espaço. Acho que isto vai acontecer apenas quando tivermos mais informações sobre os filmes que vamos passar. Até lá, julgo que não deve haver grandes transtornos. Conseguimos sempre arranjar uma solução e penso que desta vez vai acontecer o mesmo.
Andreia Sofia Silva EntrevistaTurismo | Surto em Hong Kong obriga a viragem para Guangdong, diz Glenn Mccartney O académico da Universidade de Macau defende que o terceiro surto de covid-19 em Hong Kong vai obrigar as autoridades de Macau a virarem-se para a província de Guangdong. O especialista em turismo acredita que os vistos individuais podem começar a ser emitidos dentro de semanas e defende que a aposta no turismo doméstico não é viável a longo prazo [dropcap]A[/dropcap] terceira vaga de casos de infecção em Hong Kong, que permanece longe de estar controlada, obriga as autoridades de Macau a olharem para a província de Guangdong como a tábua de salvação dos sectores do jogo e do turismo. A ideia é defendida por Glenn Mccartney, professor da Universidade de Macau (UM) e especialista na área do turismo, que fala hoje numa conferência promovida pela Câmara de Comércio Britânica em Macau. “Claro que se a recuperação de Hong Kong e Macau tivesse ocorrido ao mesmo tempo seria o ideal, mas isso não vai acontecer porque Hong Kong está a enfrentar muitos casos de infecções. Macau olha agora para Guangdong como um corredor de viagens. E penso que tem de ir por aí, porque não pode continuar sempre à espera”, defendeu ao HM. Gleen Mccartney indica que as autoridades de Guangdong têm vindo a implementar vários códigos de saúde que garantem a segurança de quem viaja, além de que a situação sócio-económica tem voltado ao normal. “Não olho para Hong Kong como parte dessa recuperação, mas olho para esse corredor com Guangdong”, disse. Nas próximas semanas, o académico acredita que os vistos individuais podem voltar a ser emitidos, apenas para a província de Guangdong. “Um dos cenários possíveis será o levantamento da atribuição dos vistos individuais nas próximas semanas. Este é um primeiro passo e depois de Guangdong podemos olhar para outras províncias e cidades da China, mas vamos aprendendo à medida que as semanas vão avançando”, explicou. Programa insuficiente O académico da UM adiantou ainda que o programa “Vamos! Macau!”, que visa levar os residentes a conhecer o território através de percursos turísticos subsidiados, não tem viabilidade económica a longo prazo. “Macau não tem o mesmo tamanho de um país e não pode basear-se por muito mais tempo no turismo doméstico. A economia interna não aguenta como a de um país que tem turismo de massas a nível interno. Macau está a subsidiar o turismo doméstico. A curto prazo é bom, mas a longo termo não é a solução, temos de abrir as nossas fronteiras para trazer dinheiro à economia.” Ainda assim, Glenn Mccartney diz tratar-se de uma “boa medida” pois mantém os funcionários das concessionárias a trabalhar. “Essa é uma vantagem, as pessoas estão preparadas para o regresso do turismo e penso que essa é uma boa abordagem por parte do Governo.” Além disso, a população “pode compreender a importância desta indústria chave” e saber mais sobre o património de Macau, remata. O académico acredita que a pandemia pode também levar o Governo a fazer algo que faltou nos últimos anos: planeamento. “No passado não tem havido um grande planeamento em termos de previsões e cenários e esse é um bom exercício. A pandemia pode acelerar esse processo”, rematou.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAULP | Orlando da Mata diz que reconhecimento de cursos com Portugal “abre portas” O reconhecimento automático dos cursos de universidades portuguesas em Macau “abre portas” e é um passo para a internacionalização do ensino superior, entende Orlando da Mata, presidente da Associação de Universidades de Língua Portuguesa. No próximo ano, Macau acolhe o 30º encontro da associação, adiado devido à pandemia da covid-19 [dropcap]O[/dropcap]rlando da Mata, presidente da Associação de Universidades de Língua Portuguesa (AULP) e reitor da Universidade Mandume Ya Ndemufayo, de Angola, disse ao HM que o reconhecimento automático dos cursos de universidades portuguesas em Macau, e vice-versa, “abre portas” e é uma medida positiva para a crescente internacionalização. “O reconhecimento facilita e desperta o interesse dos estudantes. Abre portas. É muito bom que isso aconteça”, disse o responsável em entrevista ao HM. Para Orlando da Mata, “temos de abraçar esse desafio [de internacionalização]”, tendo em conta que existem cerca de 300 milhões de falantes de português no mundo. “O português tem um grande potencial de expansão pelo mundo. A internacionalização do ensino superior nos países de língua portuguesa é um grande desafio que temos pela frente e o reconhecimento dos estudos é fundamental”, acrescentou. Encontro em Macau Orlando da Mata está em final de mandato e, no próximo ano, será eleita em Macau a nova direcção da AULP. O território acolhe o 30º encontro da associação, adiado devido à pandemia. “Vai coincidir com os 40 anos da Universidade de Macau (UM). Vamos fazer uma avaliação do trabalho realizado nos últimos anos”, adiantou o reitor, sem querer adiantar mais detalhes sobre o trabalho feito até aqui à frente da direcção da AULP. Quanto ao Programa de Mobilidade da AULP, que funciona com todas as universidades dos países de língua portuguesa e de Macau aderentes, está temporariamente suspenso devido à pandemia. “Neste momento, estão envolvidas 66 das 140 universidades que fazem parte da AULP e temos cerca de 132 alunos seleccionados. Infelizmente, devido à pandemia da covid-19 está parcialmente suspenso, mas assim que as condições estiverem reunidas iremos dar sequência ao programa.” Orlando da Mata destaca o trabalho feito por Rui Martins, vice-reitor da UM, “um grande dinamizador”. Além da participação da UM e do Instituto Politécnico de Macau na AULP, também a Universidade de São José “já manifestou interesse em aderir à AULP”. O reitor queria, no entanto, acolher na AULP mais instituições do território. “Seria muitíssimo interessante que outras instituições de ensino superior de Macau integrassem a AULP. O interesse é todo nosso”, frisou. Relativamente ao desenvolvimento do ensino superior em Macau, “tem estado a desenvolver-se e a afirmar-se com qualidade na região”, disse Orlando da Mata, dando destaque à UM, que é hoje “uma universidade de referência, não só pela qualidade do ensino, mas também da investigação científica”. Em tempos de covid-19 impõe-se a necessidade de pensar o ensino superior fora da caixa, com uma maior aposta no online, defendeu. “Um dos grandes desafios é a adaptação e re-invenção. Se antes estávamos mais focados no ensino presencial hoje temos de utilizar outras formas para complementar o que não é possível fazer neste momento com o ensino presencial. As universidades têm de ser inovadoras e criativas para darmos resposta a esta pandemia”, rematou.
Hoje Macau EntrevistaDiplomacia | Embaixador diz que relação entre Portugal e China vai além de Macau Numa videoconferência promovida pela Câmara de Comércio Luso-Chinesa, o embaixador português em Pequim, José Augusto Duarte, exortou os empresários portugueses a não ficarem presos ao passado no que à relação com a China diz respeito. O responsável defendeu a criação de mais voos entre Portugal e a China e a aposta nos turistas chineses [dropcap]O[/dropcap] embaixador de Portugal em Pequim, José Augusto Duarte, afirmou na sexta-feira que a relação bilateral entre Portugal e a China vai além de Macau e que os empresários portugueses não devem ficar na sombra dos antepassados. “O papel de Macau tem uma ligação incontornável na relação com a China. É um caso de estudo daquilo que deve ser o diálogo entre as nações”, disse o embaixador, numa videoconferência organizada pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC), lembrando que “a relação com a China é mais vasta do que Macau e não pode ser um livro de nostalgia”. O diplomata, que falava a uma centena de empresários e gestores sobre “As Relações Bilaterais e a Nova Fase da Parceria Estratégica”, evento que se realizou no âmbito do ciclo “Connecting China to Portugal”, organizado pela CCILCA, desafiou assim os empresários a construírem “um novo legado e um novo futuro”. José Augusto Duarte admitiu, no entanto, que no quadro do Fórum Macau há actualmente o desafio de “aliviar as barreiras alfandegárias” nas exportações que passam por Macau para a China continental. Os países de língua oficial portuguesa, ao exportarem para a China Continental através de Macau, enfrentam uma dupla tributação e novas barreiras alfandegárias. “Temos aqui um desafio e seria bom aliviar as barreiras alfandegárias”, prosseguiu, realçando o papel do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Macau). “Parceiro incontornável” O embaixador disse ainda que a China é “um parceiro incontornável em todo o mundo” e que a “aposta e compreensão deste mercado” pelos empresários portugueses “é fundamental”. Portugal “tem de estar unido e ter uma enorme parceria estratégica entre o Estado e os privados. É uma responsabilidade colectiva”, realçou, desafiando os empresários a exportarem para a China, lembrando que os termos de troca das exportações pelas importações são desfavoráveis a Portugal. Mesmo assim, referiu que no primeiro trimestre deste ano, o peso das exportações de bens agroalimentares nacionais no total das exportações para a China aumentou 255 por cento face ao período homólogo de 2019. As empresas portuguesas já se encontram habilitadas a exportar carne de porco, produtos aquáticos, laticínios, uvas de mesa, bens agroalimentares de baixo risco como o azeite, vinho ou mel. Adiantou que diversos processos negociais estão em curso entre Portugal e a China para permitir a exportação, nomeadamente de carne bovina, aves, ovinos e de peras e citrinos. “Há que não ter receio e sofrer de timidez para irmos para este mercado [de 1,4 biliões de consumidores]. Há que superar as dificuldades e é desejável e saudável para uma relação equilibrada”, realçou José Augusto Duarte. A resposta da China face à pandemia da covid-19 torna este país um dos que “mais rapidamente recuperarão”, pelo que se trata de “uma aposta certa”, pois será o que “terá o maior crescimento na próxima década”. Além disso, o embaixador considerou que Portugal tem capacidade para absorver mais capital chinês, investimento que “cumpre as regras de mercado e respeita a leis portuguesas”. Voos unidos José Augusto Duarte defendeu ainda a importância das negociações do acordo bilateral de investimento entre a China e a União Europeia (UE), considerando que deveriam ficar concluídas ainda durante a presidência alemã da UE, que antecede a portuguesa. “Era um passo muito importante devido ao desgaste que a pandemia tem causado e iria estimular muito a produtividade e as trocas comerciais”, disse o diplomata, lembrando também que o transporte aéreo regular, de passageiros e mercadorias, é da “maior importância” na conectividade com a China. Neste domínio, disse que o “ideal era haver todos os dias” ligações aéreas entre os dois países e defendeu que Portugal deve apostar nos turistas chineses, pois são “ordeiros e não conflituosos, gostam de consumir e pertencem ao segmento de turismo de alta gama”.
Pedro Arede EntrevistaNair Cardoso, directora da Creche Internacional de São José: “O errado não existe na sala” Apesar dos entraves colocados pelo IAS, a directora da nova Creche Internacional de São José (CISJ) está decidida a implementar uma filosofia pedagógica diferente, assente nas artes e na criatividade. Ainda com data de abertura incerta, o novo espaço vai admitir crianças que não tenham BIR [dropcap]C[/dropcap]omo surgiu a ideia de criar a Creche Internacional de São José? Não fiz parte do início do projecto e comecei apenas em Julho. O projecto nasceu mais ou menos em 2018, através da Universidade de São José (USJ), parte de uma vontade muito grande do padre Peter [Stiwell] de criar uma creche. Até porque existe uma aposta muito grande na área da educação na USJ, nomeadamente nos cursos de licenciatura, pós-graduação e mestrado em educação e agora também no doutoramento, frequentado por muitas pessoas. Portanto, haveria sempre uma grande aposta para se avançar com uma creche e eu penso que está aberta a porta para abrir um infantário, num futuro próximo. Com a saída do Peter Stilwell e a entrada do novo reitor, acharam que a creche precisava de mais apoios e então passou a ser da diocese. Isto calhou precisamente com a minha entrada na diocese. Vamos ter aqui voluntários que nos vão ajudar na área da psicologia e da educação e talvez possamos receber aqui alunos para fazer intercâmbios. Como estão a correr os preparativos para a abertura? Já foi definida uma data? Estamos a aguardar a decisão do Governo, como todas as outras escolas. Até Abril, a creche estava à espera de licença e em Abril conseguiu a licença do Instituto de Acção Social (IAS), que é uma fase bastante complexa e complicada. O IAS, que apoia totalmente esta creche, vem aqui inspeccionar o espaço e diz o que falta, ao nível dos equipamentos, o que é preciso comprar e a formação que as pessoas precisam de ter para ser contratadas. Quando cheguei já tínhamos todos os 22 funcionários contratados. O plano era abrir em Setembro. Para mim calhava bem porque esta fase, Julho e Agosto, é óptima para mudar pedagogias, coisas que a outra directora tinha em mente e que eu, como venho de uma escola internacional, vejo de forma diferente. Por isso, estou a implementar procedimentos alternativos, a formar pessoal e a mudar a disposição das salas. Criámos, inclusivamente, um atelier para apostar na arte. Venho com uma perspectiva diferente e tenho um sonho diferente para este espaço. Como vai ser materializada essa pedagogia, assente na exploração de estímulos, na brincadeira e nas artes? Quando recebi o desafio achei logo interessante. Venho de uma escola muito realizada que é a Escola Internacional de Macau (TIS). Trabalhei lá quatro anos, fui líder pedagógica num infantário, estava bem e sentia-me realizada. O desafio aqui é muito grande, porque deixei as crianças dos 4 e 5 anos, para trabalhar com crianças do 1 aos 3. Paralelamente, tenho um projecto dedicado a actividades extracurriculares, inspirado numa filosofia pedagógica totalmente diferente, chamada Regio Emilia, que é uma aposta que vai 100 por cento nesse sentido. Por isso, quando cheguei aqui pensei logo: vou implementar este sistema aqui na creche. No entanto, não é possível devido aos protocolos que o IAS nos exige, nomeadamente, quanto à utilização de materiais reciclados, que não podem ser usados, pelo facto de as crianças ainda serem muito pequenas e poderem ter alergias, por exemplo, com as tintas que queremos usar. Por isso, agora estou a pensar como vou implementar este sonho, que é o de implementar pedagogias alternativas e não tão tradicionais numa creche, pensando sempre na segurança das crianças. Então, decidimos apostar nas artes, porque é importante que as crianças explorem os sentidos e não há nada melhor do que a arte para o fazer. Ainda para mais, o meu mestrado e doutoramento são focados na pedagogia dos sentidos. Através deles é possível ensinar outras coisas que as crianças têm de aprender, como socializar e discutir umas com as outras. Isso tudo é importante e possível de desenvolver através da arte, para que as crianças não estejam sentadas no seu lugar. Aliás, nós não queremos crianças sentadinhas o tempo todo. Elas precisam de mexer, têm que mexer e precisam de mexer para saber o que aprender a seguir. É essa mudança de mentalidades que quero implementar aqui na creche. Como é que essa filosofia pedagógica vai ser adaptada para funcionar de acordo com as regras do IAS? O IAS tem 12 volumes de manuais pedagógicos que têm de ser implementados na creche, mas só existem em chinês. Sei falar fluentemente mandarim, mas não sei ler. Tive várias reuniões com o IAS e essa tem sido a minha luta. Vou dar o exemplo da música. As crianças têm de tocar um ritmo padrão e eu pergunto: o que é que as crianças de 1 ano vão entender com isso e porque é que a música tem de ser aprendida com uma pandeireta seguindo um determinado padrão? Porque é que não podemos colocar uma música a dar, deixando as crianças pintarem e explorarem, enquanto dançam e se sujam, tudo ao menos tempo? O IAS diz que, não é que não possa ser feito assim, mas, no entanto, é preciso ter em atenção a regra que fala da alergia dos materiais. Pensei então na filosofia da reciclagem do Regio Emilia e, por isso, estamos a testar usar as sobras das cascas das cenouras e das couves, para fazer tintas com a comida. Por isso, estamos nesta fase de experimentação e a ver o que é possível ou não fazer, sem que as crianças não têm a preocupação do certo e do errado. O errado não existe na sala. Como se retira essa preocupação do que é certo e errado? Por exemplo, e sem querer ferir susceptibilidades de outras escolas, eu não concordo com o puzzle. Não quer dizer que esteja errado e outras pessoas não possam educar as crianças de outra forma, mas só há uma maneira para encaixar um puzzle, não há criatividade nenhuma. Até podem estar a desenvolver, talvez, a coordenação motora, mas, para mim, é preferível, pôr uma série de blocos à frente dos miúdos para eles montarem o que quiserem. Cada peça pode ser, sei lá, uma nave espacial, um boneco ou o pai e a mãe. Chamamos a isso “open ended materials”, que é o que eu pretendo aos poucos colocar nas salas. Não há certo ou errado nesta idade. Nesta fase, as crianças têm de explorar os sentidos, ser felizes e alegres. O maior desafio para uma criança do 1 aos 3 anos é a separação. Claro que vão existir regras, não vamos montar aqui uma selva, mas de uma forma em que as crianças não são frustradas. Não há stress aqui. Os pais se quiserem deixar os filhos dentro da sala podem deixar. Se quiserem ficar um pouco dentro da sala de aula também podem. Vou tentar criar um ambiente o mais parecido possível com o sítio de onde vêm. Podemos estar a passar ao lado de muitos talentos, só porque não abrimos as “portas certas” às crianças ou assumimos, à partida, um determinado caminho? Infelizmente, as creches são regidas pelo IAS e, a meu ver, elas deveriam ser integradas na Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ). A pergunta que eu faço a Macau é: porque é que as creches têm de ser vistas como uma componente social? Ou seja, em Macau as creches fazem parte do trabalho comunitário social que se oferece aos pais para tomar conta das crianças enquanto trabalham. Contudo, do 1 aos 3 anos já existem muitas potencialidades, as crianças podem brincar com arte, explorar a música, dançar, já sabem comer sozinhas. Não são seres que precisam de um adulto a monitorizá-los a toda a hora, todos os seus movimentos. Além disso, as creches oferecem um horário muito extenso, porque há pais, aqui em Macau, que trabalham por turnos e eu concordo com isso. No entanto, acho que deviam saber se os pais precisam mesmo deste serviço, porque as crianças não podem estar oito horas nas escolas. Aqui abrimos às 8h e fechamos às 20h, de segunda a sábado. É importante que as crianças estejam com os pais, irmãos, avós. Qual a importância de apostar na multiculturalidade numa cidade como Macau? A aposta na arte é a melhor linguagem, por isso é que também se apostou nessa área. Queremos implementar as línguas oficias de Macau aqui na creche. Infelizmente, a equipa, neste momento, não poderá ajudar tanto na utilização do português e do inglês nas salas e será mais o cantonês e o mandarim. Mas, a linguagem vem aos poucos e tanto as crianças vão poder ajudar os professores, como o contrário também é verdade. Os alunos estão aqui para ajudar e há uma ligação com o ambiente, em que ele próprio é também um “professor”, segundo a pedagogia que queremos aplicar. O professor está na sala, mas crianças também vão ensinar umas às outras. Nada melhor do que as crianças falarem a sua própria língua umas com as outras. Nunca vai haver a situação de “agora só vamos falar chinês” ou “agora é hora do inglês” e a multiculturalidade vem por aí. Porque em Macau, nós vemos miúdos a falar inglês, português, chinês, mandarim, vietnamita, tailandês e é precisamente essa a nossa aposta. As crianças podem falar a língua que usam em casa e daí poder influenciar os outros e todos poderem aprender. Os não residentes também podem ser admitidos na creche? Nesta fase, não temos nenhuma objecção do IAS para termos algumas vagas para crianças que não tenham BIR e isso foi o primeiro pedido que fiz. Eles disseram que dependendo da creche podemos atribuir um número para não residentes e acho que isso é importante, porque, às vezes, é um desespero os pais que detêm bluecard não terem escolas para os filhos. Ainda não sei o número definido, mas vamos ter uma quota para crianças que não têm BIR. As que têm BIR as propinas são equiparadas a todas as escolas do IAS, ou seja, 2.500 patacas mensais, o dia todo, já incluindo refeições. O preço é o de uma escola pública e o serviço é equiparado a uma escola privada. Quais os objectivos de ocupação neste primeiro ano lectivo? Com a licença que temos, podemos ter no máximo 240 crianças com as oito salas a funcionar. No entanto, numa primeira fase, vamos tentar restringir-nos, no máximo a 120, porque o número de pessoal que temos actualmente só dá para funcionar cinco salas. Para já, o objectivo é receber entre 80 e 90 crianças em quatro salas. Isto porque é preciso adaptação a uma nova filosofia de ensino e pedagogia, até porque temos de ganhar a confiança dos pais. Somos novos. Não é como uma creche que está aberta há 10 ou 11 anos na qual os pais confiam de olhos fechados. Os pais têm muito receio das doenças transmitidas nas salas e das intoxicações alimentares e essa é outra preocupação. Por isso estamos a dar formação ao pessoal sobre a maneira como se desinfecta os brinquedos e as salas. Estamos também a testar o menu que a cozinha está a preparar. Está preocupada com o efeito que a pandemia pode ter no dia a dia da creche? Na verdade, a pandemia até me vai ajudar, porque os pais já educaram as crianças nesse sentido e elas já sabem desinfectar as mãos, lavar as mãos várias vezes, usar a máscara e manter alguma distância das outras crianças. Isso ajudou, porque desde Fevereiro que estamos nesta situação e as crianças tiveram mais do que tempo para se adaptar e os pais também estão mais mentalizados para isso.
Pedro Arede EntrevistaAndré Antunes, chefe da equipa de astrobiologia da MUST: “Existe vida em Marte e nós vamos encontrá-la” Investigador português que lidera a equipa de astrobiologia da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST) não duvida que é uma questão de tempo até se encontrar vida extraterrestre. Sobre a missão chinesa a Marte, André Antunes considera a Tianwen-1 “extremamente ambiciosa” [dropcap]O[/dropcap] que considera ser uma missão bem-sucedida e uma missão aquém das expectativas? É difícil responder a essa questão. Neste tipo de missões, que obviamente envolvem custos bastante elevados, existem sempre expectativas muito altas. Mas, tendo em conta o interesse e a relevância de Marte numa perspectiva de evolução humana futura, se eventualmente conseguirmos algumas respostas para a maior pergunta que a humanidade alguma vez fez, já será um sucesso. Estamos ou não sozinhos no universo? Existe vida em mais algum sítio? Qualquer espécie de dados ou informação que nos permita chegar mais perto dessas respostas, são vitais. Em que difere esta missão de outras que já foram feitas a Marte? Um aspecto bastante interessante em relação à Tianwen-1 é o facto de ser uma missão extremamente ambiciosa. A maior parte das missões anteriores a Marte, consistem apenas num tipo de módulo. Ou há um módulo orbital, ou seja, uma sonda que fica em órbita do planeta, ou há um módulo que pousa na superfície do planeta e que fica mais ou menos estático ou ainda eventualmente um Rover, um veículo que se desloca à superfície. Neste caso, a China optou por enviar três módulos de uma só vez. Por isso, do ponto de vista técnico, é um desafio e um risco muito maior. É muito mais complicado, mas a ter sucesso, é um enorme salto em frente por parte da China. Qual o propósito da criação da unidade de astrobiologia da MUST? O nosso objectivo é fazer de Macau o ponto de referência da astrobiologia para toda a China. Existe alguma investigação que se faz no Interior da China nesta área, mas não há nenhuma espécie de centro coordenador desses esforços. A ideia é precisamente que Macau e a unidade de astrobiologia da MUST, através do Laboratório Estatal de Referência das Ciências Lunares e Planetárias (State Key Lab), funcionem como ponto agregador destas actividades. Do ponto de vista científico e tecnológico, o primeiro passo é a criação dos laboratórios, que devem estar concluídos em Setembro. Depois disso, queremos formar uma equipa que esteja preparada para estudar amostras que venham de Marte. Esse é um dos próximos grandes passos. Como nós, há outras agências espaciais interessadas em trazer amostras de Marte para a Terra, com o objectivo de estudar a possível existência de vida, actual ou passada, em Marte. Que tipo de apoio vai ser prestado pelo laboratório nas missões a Marte? A unidade de astrobiologia não está directamente ligada a esta missão, mas pretendemos tratar de amostras em missões futuras. A ideia é procurar locais no nosso planeta que tenham condições semelhantes a Marte e ver se lá existe vida ou não. A unidade de astrobiologia em Macau serve para congregar esforços existentes na China e promover a ligação com o exterior, porque Macau funciona, segundo a história e a tradição, como ponto de ligação entre o Interior da China e o resto do mundo. Nesse aspecto, estamos numa localização privilegiada e este é parte do motivo pelo qual o State Key Lab foi aqui instalado. Com o estudo de ambientes semelhantes que existem um pouco por todo o planeta, vamos conseguir compreender melhor os limites e as adaptações da vida e informar futuras missões chinesas sobre os melhores locais para recolher amostras, o que fazer com as amostras quando vierem e como estudá-las. A ideia é precisamente criarmos aqui a capacidade laboratorial, técnica e a equipa que estará pronta para estudar estas amostras quando elas chegarem. O nome da missão Tianwen-1, em português, significa “questões celestiais”. Quais são as áreas de investigação onde esperam encontrar mais surpresas? Está em cima da mesa encontrar vida em Marte? Eu sou suspeito nestas coisas, mas tudo o que tem a ver com o facto de estarmos mais próximos de desvendar se existe vida ou não, considero uma descoberta incrível, uma coisa impressionante. Estou plenamente convicto de que existe vida em Marte e nós vamos encontrá-la. Vai ser uma revolução de todo o tamanho a nível científico. Há duas hipóteses. Ou há vida parecida com aquela que existe na Terra, o que seria muito interessante, porque há teorias que dizem que a vida poderá ter tido origem em Marte e ter passado para a Terra através do trânsito de material espacial entre os dois planetas, no início da sua formação. Ou então pode ser uma coisa completamente diferente e isso seria fenomenal. Acho que ainda estamos muito limitados, porque continuamos a ter uma visão muito antropocêntrica, centrada naquilo que conhecemos e na nossa realidade. Por vezes, temos dificuldade em expandir os nossos horizontes ou ter ideias e percepções diferentes, porque só conhecemos vida num único sítio. Estamos a falar, para já, ao nível de microrganismos? Sim, mas mesmo falando de microrganismos pode ser uma coisa completamente diferente e nós assistimos a esse tipo de situações, mesmo ao nível do estudo microbiológico no nosso planeta, por exemplo, com a descoberta de microrganismos que conseguem viver em condições extremas e isso é uma coisa completamente inesperada. Ninguém pensava que fosse possível. Alguma vez imaginou estar envolvido num projecto desta natureza? Como é que, de repente, acaba a trabalhar numa missão espacial? Não foi uma coisa planeada, mas desde criança que gosto muito deste tipo de tópicos. Sempre adorei o espaço, saber mais sobre os outros planetas e ciências planetárias. Durante muitos anos, quando me perguntavam o que é que eu queria ser quando fosse grande, eu respondia sempre: astrónomo. Em Portugal a astronomia não tem propriamente grande visibilidade ou opções de formação. Por isso, à medida que fui crescendo, fui aferindo um pouco o caminho e optei pela biologia. Mais tarde, dediquei-me à microbiologia, mas mantive sempre uma paixão forte pelo espaço e pelas ciências planetárias. Por coincidência, ou talvez até tenha sido uma decisão subconsciente, a área da microbiologia, que acabei por estudar, foi a microbiologia de ambientes extremos, que está directamente ligada à astrobiologia e à procura de vida noutros planetas. Ao longo dos anos fui trabalhando com ambientes extremos em vários locais, como o Médio Oriente, onde estive bastante tempo. Trabalhei também com amostras do fundo do Mar Vermelho, estive em Cabo Verde e ainda no Reino Unido antes de vir para Macau. Nos últimos anos acabei por ter uma ligação mais forte com alguns projectos ligados à Agência Espacial Europeia e ligações com a NASA e, por isso, quando surgiu a oportunidade de vir para Macau, a transição foi completamente natural. Obviamente que não me passava pela cabeça estar envolvido nas missões chinesas a Marte, mas estar aqui é uma feliz coincidência de caminhos. Como é a relação da agência espacial chinesa em comparação com a europeia e a NASA? Ainda é cedo para falar sobre agência espacial chinesa, mas tenho feito contactos e inclusivamente submeti um projecto para enviar micróbios para o espaço e, ao nível do diálogo, tem corrido muito bem. Inclusivamente, do ponto de vista de colaborações internacionais, porque pode haver dúvidas se há algum problema em envolver parceiros de outros países, a abertura tem sido completa. Há muito interesse em colaborar e nas ligações internacionais. A grande limitação que tem havido tem sido, de facto, a covid-19, que me tem impedido de ir a Pequim. Que semelhanças existem entre a Terra e Marte, que tornam o seu estudo tão importante? Há uma série de características que tornam Marte particularmente interessante do ponto de vista do estudo científico e de novas descobertas que possam surgir. Marte é o planeta do sistema solar mais parecido com a Terra. Do ponto de vista da temperatura, apesar de ser mais frio, é o planeta que tem as temperaturas mais próximas e reúne outras condições curiosas, como o facto de a duração dos dias ser muito parecida com a duração na Terra. Mas há outras características semelhantes, como a presença de uma atmosfera, que é mais ténue, e a existência de grandes reservas de gelo de água. Acredita que, no futuro, vai ser possível viver em Marte? É uma possibilidade, mas não acho que seja um plano de curto prazo, independentemente daquilo que se possa ler ou pensar. É um tema que tem sido bastante badalado por iniciativas do sector privado, com o Ellon Musk [Tesla] à cabeça, que fala em enviar pessoas para Marte. Mas, na minha opinião, ainda não estamos nesse ponto. A nível tecnológico ainda não estamos suficientemente preparados para estabelecer qualquer tipo de base permanente, semi-permanente ou de fazer um esforço de colonização. Estamos a falar de coisas complicadas e que custam muito dinheiro. Além disso, precisamos de esforços adicionais ao nível dos materiais de construção, ou seja, vamos construir noutro planeta ou, em vez disso, enviamos já tudo construído da Terra. Quanto a suportar a vida humana noutros planetas, e atenção que Marte está bem posicionado porque tem reservas de gelo de água, o primeiro passo será sempre a Lua. A Lua está bem mais próxima e é um bom local de teste e implementação de procedimentos que depois poderão a ser úteis em Marte. Além disso, mesmo que se trate apenas de pôr a primeira pessoa em Marte, é uma missão que acarreta riscos do ponto de vista de uma possível contaminação do planeta. Este é outro dos ramos da astrobiologia, a protecção planetária. Isto é, assegurarmos que qualquer espécie de missão ou material que venha da Terra e que aterre em qualquer parte do sistema solar onde possa existir vida, os riscos de contaminação sejam minimizados dentro do possível. Como os micróbios têm capacidade de sobreviver no espaço e ao transporte até lá chegar, corremos o risco de, tendo condições, que se multipliquem e destruam ecossistemas completos noutros planetas que nós nem sabemos ainda que lá estão. Do ponto de vista científico, imaginemos que uma missão de milhões, com o objectivo detectar vida em Marte, depois de ter um resultado positivo, chega à conclusão que a sonda foi carregada de micróbios e que o que detectou foi nada mais, do que aquilo que levou. O prazo de validade do nosso planeta pode levar-nos a ter que o deixar mais cedo? Aquilo que consideramos o prazo de validade da Terra depende muito da utilização que lhe damos. Actualmente sabemos que o Sol não irá durar para sempre e que isso pode significar que a Terra deixa de existir nesse momento. Quanto à utilização da Terra e dos recursos que existem, a continuar ao ritmo que estamos, a gastar recursos naturais como se não houvesse amanhã, obviamente que a capacidade do planeta para sustentar vida humana, fica comprometida.
Andreia Sofia Silva EntrevistaLuís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados de Portugal: “Acordo de Extradição deveria ser revisto” Bastonário da Ordem dos Advogados de Portugal até 2022, Luís Menezes Leitão diz que é certo o regresso do protocolo com a Associação dos Advogados de Macau, cujos detalhes estão a ser ultimados. Relativamente ao Acordo de Extradição assinado com Macau, o bastonário defende uma revisão e diz que as respostas do Ministério da Justiça português “não são minimamente convincentes” [dropcap]O[/dropcap] Acordo de Extradição assinado entre Portugal e Macau está parado, mas não suspenso, segundo notícias recentes. A actual direcção da Ordem dos Advogados (OA) mantém a mesma posição contra o documento, tal como a anterior direcção? Esse Acordo sempre nos suscitou bastantes preocupações e devemos dizer que a resposta que o Ministério da Justiça deu relativamente às preocupações que foram expressas pelo meu antecessor [Guilherme de Figueiredo] não pareceram minimamente convincentes. Alegaram a Convenção de Extradição anterior sem fazer referência expressa a que estamos perante um Acordo posterior, ou seja, relativamente a todas estas questões. Por outro lado, verifica-se que nada foi alterado relativamente aos problemas que existiam, isto porque, de facto, o Acordo poderá envolver uma extradição relativamente a factos que não estavam previstos na lei quando foram praticados. O Acordo admite a possibilidade de existirem pedidos de extradição relativamente a factos que não são crime em Portugal e também o facto de ocorrerem situações em que está expressamente prevista a extradição para outras regiões da China. Não nos esqueçamos da polémica que suscitou relativamente a Hong Kong com as leis de extradição e que estão a gerar todas estas questões. Estamos também perante uma situação estranha ao dizer que o Acordo está parado mas não está suspenso. O que verificamos é que ainda não se avançou neste âmbito, mas compreendemos que nesta situação de pandemia não há tempo para discutir tudo e o Parlamento [Assembleia da República] tem estado ocupado com inúmeras matérias. A nosso ver esse Acordo suscita-nos reservas, não ficamos esclarecidos com a resposta do Ministério e queremos sensibilizar os grupos parlamentares para essa questão. Portugal tem uma longa tradição relativamente a situações de garantias de defesa e esperamos que continue a mantê-la neste quadro relativamente a esta situação. A OA tem de manter essa posição sobre este Acordo. Foram feitos novos pedidos de esclarecimento junto do Ministério da Justiça? Que eu saiba não houve qualquer alteração da posição do Ministério, bem pelo contrário. Em todas as declarações públicas o Ministério tem mantido a sua posição e parece-me que também o MNE tem colocado a mesma posição. Mas não é o Governo que terá a última palavra sobre este assunto, também haverá uma palavra do Parlamento e do Presidente da República. É algo sobre o qual nos vamos bater para que os princípios que defendemos fiquem aqui consagrados. Como explica este compasso de espera para a promulgação deste Acordo de mais de um ano, e que coincide agora com a entrada em vigor da lei da segurança nacional de Hong Kong? O Governo português pode revelar aqui alguma falta de estratégia na conclusão deste dossier de forma atempada? Não sei, tem de perguntar ao Governo. Mas a situação de Hong Kong tem evoluído de forma muito rápida e talvez de uma forma que não se previa. Uma série de Estados estão a pôr em causa os acordos assinados com Hong Kong e esse é um factor que tem dias. Não tenho a certeza de que possa haver uma ligação entre as duas situações. De qualquer das formas, acho que a situação de Hong Kong tem de fazer ponderar tudo o que existe hoje e que leva a que a OA se tenha pronunciado como se pronunciou. Isso é algo que tem de ser verificado porque o que se está a passar em Hong Kong suscita de facto alguma preocupação no quadro dos diversos países europeus e nos EUA. O Governo português deveria suspender o Acordo? O Acordo deveria, pelo menos, ser revisto de forma a esclarecer as coisas mais preocupantes. Apesar de ter havido uma assinatura, tem de haver uma ratificação, e por isso neste quadro a situação deveria ser revista. Não vou ao ponto de defender uma total suspensão, mas seria preferível que houvesse de facto um acautelamento das preocupações que existem e que foram expressas pela OA. Acho que ambas as partes, quer Portugal e RAEM, teriam a ganhar com essa situação até devido ao afastamento da comparação com Hong Kong, que não me parece que seja minimamente desejável. O Governo de Macau já referiu que há aspectos da lei da segurança nacional que necessitam de ser revistos ou reforçados. Teme esta revisão da lei? Esperamos que Macau, que tem tido uma relação com Portugal bastante grande neste âmbito, também acautele os padrões que nós temos e que pensamos serem comuns em termos de justiça e segurança. Quero crer que todas as posições que venham a ser tomadas em Macau estejam em conformidade com o património que partilhamos neste âmbito em termos de tutela das garantias e de defesa e protecção das pessoas. Não antecipamos nada em sentido contrário. Olhando para a situação de Hong Kong está em causa uma progressiva perda de autonomia e uma eventual violação da Declaração Conjunta? Não vou ao ponto de fazer essa avaliação. Mas o que temos visto é algo que, na perspectiva de existir uma jurisdição autónoma, de acordo com o quadro “um país, dois sistemas” que se manteve nas diversas declarações, estamos a ver uma aproximação muito grande a uma jurisdição que se está a afastar relativamente ao que era em termos de autonomia. Isso, a nível internacional, está a ser avaliado pelos diversos países e estas questões estão a ser colocadas relativamente aos acordos de extradição. Parece-me que seria preferível que se mantivesse essa autonomia, o que é uma garantia em relação a Hong Kong, a nível internacional e também para a própria posição da República Popular da China. Ter-se colocado a perspectiva de haver um período de transição de 50 anos, que começou em 1997, e que terminará em 2047, [significa que] ainda faltam 27 anos para haver uma aproximação grande como está a ocorrer já no âmbito deste sistema. Seria preferível, e até para o papel da China no mundo, que essas duas jurisdições mantivessem o período de transição que está previsto e que deveria ser respeitado. Pelo menos a nível internacional a imagem que está a dar é que existe uma certa antecipação, o que não me parece que seja adequado. A situação política em Hong Kong e o possível impacto em Macau estão a causar algum receio aos advogados portugueses em Macau? Nota uma maior vontade de regresso a Portugal ou maior receio do exercício da profissão no território? Não tenho notado nada disso. Os colegas de Macau com quem tenho falado estão perfeitamente integrados e bastante satisfeitos com o exercício da advocacia em Macau. Não temos visto nada, até agora, em que se coloque algum problema em termos do exercício da advocacia em Macau. E devo dizer que a situação em Macau não se compara minimamente com Hong Kong. Não nos parece que o quadro da advocacia em Macau, com base no que tenho contactado, nomeadamente com o presidente da Associação dos Advogados de Macau, [tenha sofrido alterações]. [É um quadro] bastante satisfatório. Não temos tido queixas algumas. Há vozes críticas por parte de alguns advogados da crescente erosão da autonomia, mas também do Estado de Direito em Macau. Qual a sua posição sobre isso? Espero que a situação de Hong Kong não seja vista como um precedente. A situação de Macau sempre foi tratada de forma muito distinta face a Hong Kong e o processo de transição também ocorreu de forma completamente distinta e com uma melhor relação entre a China e Portugal do que a relação que a China teve com o Reino Unido. Compreendo que a situação de Hong Kong possa ser vista como um precedente para Macau, mas desejo que isso não venha a acontecer. Alguns receios que se têm colocado relativamente a este Acordo de entrega justificam o facto de esperarmos que o património jurídico existente em Macau se mantenha durante 50 anos. Não vemos que haja justificação para esses receios, mas por isso é que pequenas coisas que não são correctas devem ser logo alvo de aviso, como é o caso deste Acordo. Portugal deveria ter defendido melhor neste Acordo o que são os princípios jurídicos essenciais relativamente ao que é o Direito português e que faz parte do património que temos em comum com Macau. Relativamente ao protocolo com a Associação dos Advogados de Macau, vai ser retomado no seu mandato? A nossa intenção é essa. Já falámos com o dr. Jorge Neto Valente que manifestou o máximo interesse para que haja uma renovação do protocolo que já existia, mas que esteve interrompido durante um longo período. Discutimos isso no Conselho Geral e temos o máximo interesse. É também uma forma de mantermos a nossa ligação em termos jurídicos com Macau onde neste momento existe ainda um grande património jurídico comum. Achamos que ambas as advocacias podem trabalhar em conjunto. Já há uma data concreta para que esse protocolo entre em vigor? Temos tido alguma dificuldade de comunicação devido à pandemia. Já tivemos várias reuniões, já me encontrei com o dr. Jorge Neto Valente aqui em Portugal e temos estado em contacto. O nosso Conselho Geral está também a discutir o protocolo e esperamos que muito brevemente ele possa ser retomado. Penso que é útil para ambas as partes. Há pontos que têm de ser alterados ou melhorados? Não estávamos insatisfeitos com o protocolo anterior. Há sempre melhorias a fazer e temos um grupo de colegas que estão a trabalhar nisso. Contamos que terminem esse trabalho muito brevemente para que o protocolo possa ser assinado. A OA pondera fazer protocolos com outras jurisdições? Há espaço para protocolos com a China, por exemplo? É algo que possamos sempre equacionar. Esses protocolos onde existe uma língua completamente distinta, como é o caso da China, podem ser mais difíceis de fazer, mas neste momento temos em debate um protocolo com a Ordem dos Advogados da Ucrânia. Estamos sempre disponíveis e se houvesse interesse da parte da Ordem dos Advogados chinesa essa proposta seria examinada.
Hoje Macau EntrevistaHelena de Senna Fernandes sobre impacto da pandemia no turismo: “Já deixámos de fazer previsões” A directora dos Serviços de Turismo confessou à agência Lusa que a constante alteração dos dados relativos à pandemia da covid-19 fez com que o Governo tenha deixado de fazer previsões. Helena de Senna Fernandes fala de um aumento do desemprego no sector e defende que a normalização do turismo em Macau só vai acontecer depois do surgimento da vacina contra a covid-19 [dropcap]A[/dropcap] normalização do turismo em Macau, território que em 2019 recebeu quase 40 milhões de visitantes, só será possível com uma vacina para a covid-19, disse à Lusa Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo. “Muitos países neste momento estão a testar as possíveis vacinas. Espero que as vacinas ajudem a dar confiança a recomeçar o movimento de turistas”, afirmou. As indicações que têm sido dadas por diferentes fontes, explicou a responsável, apontam que a retoma de viagens é “muito condicionada pelo aparecimento de vacinas”. No início da semana, cientistas da Universidade de Oxford afirmaram que os resultados preliminares de testes a uma vacina contra a covid-19 mostraram que provocou uma resposta imunitária em centenas de pessoas. Após testes com cerca de mil voluntários iniciados em Abril, os cientistas disseram que a vacina produziu uma resposta imune dupla em pessoas com idades entre os 18 e 55 anos, que duraram pelo menos dois meses, refere o artigo publicado na revista Lancet. Apesar destes resultados animadores, não só desta vacina, mas também de outras que estão a ser testado, Maria Helena de Senna Fernandes admitiu ser “muito difícil dizer quando essas vacinas com efeito vão ser produzidas e em que quantidade vão ser produzidas”. Macau foi um dos primeiros territórios a identificar casos de covid-19, tem ainda as suas fronteiras praticamente encerradas. Por essa razão, o número de visitantes em Macau caiu mais de 90 por cento em Junho e 83,9 por cento no primeiro semestre, em relação a iguais períodos de 2019. “Em Junho só tivemos 22 mil turistas”, afirmou a responsável, lembrando os últimos dados oficiais, divulgados na segunda-feira. Antes da pandemia, reforçou, o número de turistas diário era muito superior ao registado em todo o mês de Junho. “Já deixamos de fazer previsões” por causa das medidas que vão sendo actualizadas, disse, ao ser questionada sobre qual seria a aposta do número de visitantes até ao final do ano. Nos primeiros seis meses do ano visitaram o território 3.268.900 pessoas, quando no mesmo período de 2019 Macau tinha sido visitado por mais de 16,5 milhões. “Mesmo com o teste nucleico é difícil de ter uma retoma em grande quantidade de turismo. Porque vai ser condicionado pelo número de testes que podem ser possíveis de fazer”, avançou. Macau está a tentar reforçar o número de testes, mas esse número para já só chega a 7.500 pessoas por dia, disse. “Vai ainda haver bastante dificuldade de muita gente ter acesso a testes”, explicou, reforçando: “não estou a prever grandes números de movimentos de turistas” porque ainda há muita gente que precisa destes testes para visitar as famílias no interior da China. Só quando houver testes para estas pessoas é que se pode pensar numa normalização do movimento de turistas, detalhou Maria Helena de Senna Fernandes. Desemprego a subir Relativamente à taxa de desemprego, que já ultrapassou os três por cento, Maria Helena de Senna Fernandes disse que o impacto se verifica sobretudo no sector do turismo, considerado o pilar da economia do território. “A taxa de desemprego em Macau subiu durante os últimos meses. Sabemos nós que agora já ultrapassou os 3 por cento”, revelou, esperando que os dados não piorem no território que sofre dos efeitos sócio-económicos causados pela pandemia desde meados de janeiro de 2020. Os últimos dados oficiais das autoridades de Macau, em finais de Junho, apontavam para uma taxa de desemprego até maio de 2,4 por cento, sendo que os números agora revelados pela responsável da directora dos Serviços de Turismo (DST) representam uma subida de mais de 0,6 pontos percentuais. “Tivemos durante muito anos taxas de desemprego com menos de 2 por cento e esta subida já é violenta para muita gente”, sublinhou Maria Helena de Senna Fernandes, acrescentando que “todos os sectores foram afectados desta vez”. No sector do turismo, detalhou, houve um grande efeito, porque está praticamente parado há mais de seis meses. “Agências de viagens, guias turísticos, condutores de autocarros de turismo. Toda esta gente quase não teve possibilidade de ter qualquer emprego durante vários meses”, disse. Recomeçar o sector do turismo, principalmente através do mercado interno, tem sido o objectivo do Governo de Macau, que, com os vistos individuais chineses suspensos, vê-se agora obrigado a focar-se no consumo dos próprios residentes para alavancar o sector chave de Macau. As autoridades de Macau, recordou Maria Helena de Senna Fernandes, ofereceram cartões de consumo aos residentes, uma medida criada para relançar a economia. Um primeiro montante de três mil patacas foi atribuído aos mais de 600 mil residentes, para ser gasto em Maio, Junho e Julho. A partir de Agosto, os residentes voltam a receber mais cinco mil patacas. “Vai ajudar o sector em grande”, apostou a responsável, salientando que o principal beneficiário foi o sector da restauração. Com as fronteiras ainda praticamente encerradas para visitantes, o Governo de Macau lançou também, a 5 de Junho, a aplicação ‘Macau Ready Go’, que integra as promoções oferecidas por várias indústrias, empresas e lojas. Em paralelo, está em vigor a isenção do imposto turístico durante seis meses e foi criado o plano de turismo doméstico “Vamos Macau”, que contempla 25 roteiros, 13 comunitários e 12 de lazer, com os residentes a receberem 560 patacas caso participem em duas excursões. Uma campanha que vai “até finais de Setembro”, afirmou a directora da DST, data em que espera que o turismo proveniente do exterior possa recomeçar. “Julgo que a partir daí vamos ter turistas a voltar”, afirmou. Promoção com foco na pandemia A entrevista abordou também as novas campanhas promocionais dos Serviços de Turismo, cuja mensagem vai centrar-se na promoção de Macau enquanto destino seguro, sem casos activos e ou registo de um surto local. Depois da pandemia, as pessoas vão alterar a forma como planeiam as suas viagens e o que procuram, afirmou Maria Helena de Senna Fernandes: “Em vez de só avaliar um destino com as atracções turísticas, também vão pensar em viagens porque esses destinos podem dar confiança em termos de protecção”. Por essa razão, a mensagem para o exterior será agora completamente diferente, frisou. “Antigamente só pensávamos em promover Macau com o património, a gastronomia, com o que é que as pessoas podiam usufruir e quais as atracções turísticas que as pessoas podiam ter acesso”, explicou a responsável pelo turismo da capital mundial dos casinos. “Depois da pandemia temos de dar em primeira mão confiança para viagens para Macau. (…) Já estamos a fazer muitas novas mensagens, vídeos de promoção de Macau durante os últimos meses, alguns deles, de facto, como é que Macau está a controlar a situação da pandemia e quais são as medidas que estão implementadas (…) e os efeitos dessas medidas”, detalhou a directora dos Serviços de Turismo. Apesar desta ‘nova imagem’ que está a ser partilhada pelas autoridades do turismo de Macau, a responsável admitiu que “neste momento ainda muitas pessoas têm medo de viajar, sobretudo viagens de longo curso”. “As pessoas vão pensar três vezes antes de viajarem”, afirmou Maria Helena de Senna Fernandes, admitindo ser “difícil saber até quando este efeito vai continuar”. “Até voltar ao nível antes da pandemia ainda vai demorar mais alguns anos”, apostou. Até porque, acrescentou, o grande mercado de Macau, o da China continental, ainda não retomou o turismo para fora e, mesmo o turismo entre províncias, só recomeçou há cerca de uma semana. Para já, o foco da promoção do Governo estará centrado na China. “O interior da China vai ser o primeiro mercado que podemos trabalhar”, salientou Maria Helena de Senna Fernandes. “Hoje em dia, o mercado onde podemos trabalhar está muito condicionado pelas medidas de migração que estão neste momento a ser implementadas em todo o mundo”, explicou a responsável pelo turismo de Macau, sublinhando que agora é necessária “flexibilidade para trabalhar em diferentes mercados”.
Hoje Macau EntrevistaMoçambique | Bispo de Pemba diz que “o mundo não tem ideia do que está a acontecer” em Cabo Delgado [dropcap]O[/dropcap] bispo de Pemba disse hoje que o mundo ainda não tem ideia do que está a acontecer em Cabo Delgado, norte de Moçambique, onde ataques armados estão a provocar uma crise humanitária que afecta mais de 700.000 pessoas. “Não, o mundo não tem ainda ideia do que está a acontecer por causa da indiferença e porque parece que nós já nos acostumámos a guerras. Há guerra no Iraque, há guerra na Síria e também há agora uma guerra em Moçambique”, referiu Luíz Fernando Lisboa, em entrevista à Lusa. O fim da tarde de segunda-feira é um momento calmo nas instalações da diocese na capital provincial de Cabo Delgado, a contrastar com o resto do quotidiano agitado do bispo, marcado por pedidos de ajuda. “Não temos ainda a solidariedade que deveria haver”, disse, apesar de considerar que a situação melhorou nos últimos três meses – em especial, sublinhou, depois de o papa Francisco ter feito referência à situação de Cabo Delgado na missa de domingo de Páscoa. “Quando a pessoa não está sentindo na própria pele [aquilo que se passa] é difícil entender. Compreendo isso. Mas quanto mais tomamos contacto com a realidade, aí vemos a verdadeira dimensão” da crise, referiu o bispo, uma das vozes que mais se tem feito ouvir acerca da situação. O último apelo das Nações Unidas, dirigido exclusivamente para a região, resume o drama humano. A ONU, em coordenação com o Governo moçambicano, pediu no início de junho 35 milhões de dólares para um Plano de Resposta Rápida para Cabo Delgado a aplicar até Dezembro. A fuga da população das suas aldeias aumentou rapidamente à medida que a violência cresceu desde início do ano, refere a ONU, estimando que haja agora 250.000 pessoas que largaram tudo e procuraram refúgio seguro noutras povoações – num conflito que já matou, pelo menos, 1.000 pessoas. Somando as comunidades de acolhimento, também já de si empobrecidas, estima-se que haja 712.000 pessoas a necessitar de ajuda e o plano pretende apoiar 354.000, cerca de metade. Alguns dos ataques são desde há um ano reivindicados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico e a ameaça terrorista é reconhecida dentro e fora do país, tendo os grupos de rebeldes ocupado importantes vilas de Cabo Delgado (situadas a mais de 100 quilómetros da capital costeira, Pemba) durante dias seguidos, antes de saírem sob fogo das Forças de Defesa e Segurança moçambicanas. Para as vítimas em fuga (que deixam para trás vilas quase abandonadas), a insegurança alimentar é uma das mais graves ameaças, mas não é a única. “Não nos podemos contentar em dar comida. É muito pouco”, alertou Luíz Fernando Lisboa durante a entrevista de hoje à Lusa, salientando que “há muitos traumas”. A alimentação “é importante, mantém as pessoas de pé, alimenta o corpo, mas há pessoas que estão quebradas, traumatizadas com tudo o que viveram”, disse, destacando que “o apoio psicossocial é essencial”. “Estar com essas pessoas, reunir, ouvir”, criando grupos onde haja elementos preparados para descobrir os traumas “que vão necessitar de resposta”. Há residentes no norte de Moçambique cuja vida não voltará a ser a mesma. Alguém que “perdeu a casa ou viu outra pessoa da família ser morta ou não sabe ainda onde está algum familiar”. Lares desfeitos, com crianças separadas dos pais, uns à procura dos outros, é um cenário comum, acrescentou, escusando-se a entrar em mais detalhes de outros casos humanamente chocantes. A própria igreja, tal como todas as congregações e crenças, perdeu catequistas e outros dinamizadores nas paróquias, o próprio bispo teve de dar ordem de saída urgente a missões cujos membros foram dos últimos a partir, sob risco de vida, para tentar apoiar populações sob ataque. “Todos em Cabo Delgado sofremos direta ou indiretamente”, resumiu, numa província maioritariamente muçulmana (representam ligeiramente mais de metade dos 2,3 milhões de habitantes) e onde diz haver harmonia entre religiões. Nos relatos, há também o reverso da perda, há histórias de resiliência, contou, como a de uma mulher que deu à luz enquanto fugia de uma aldeia atacada. Parou no meio do mato e depois do parto seguiu, conta Luíz Fernando Lisboa, que logo a seguir juntou um exemplo de solidariedade: há semanas acolheu cerca de 30 crianças que se juntaram numa fuga, separados dos pais. “Todos foram recolhidos” por familiares mais afastados ou amigos, já com casas cheias, mas sem receio de acolher mais bocas para alimentar. O ano de 2020 está a ser o pior desde o início dos ataques armados, em 2017, disse. Hoje, tal como na altura, permanece o debate sobre as razões da violência, mas o bispo de Pemba mantém uma “esperança”: de que “a guerra termine” e que 2021 seja um ano de muito trabalho, mas em paz.
Hoje Macau EntrevistaBernard-Henry Levy, filósofo: “Uma pandemia é uma pandemia. Não é uma guerra e não há mais guerra biológica” [dropcap]O[/dropcap] filósofo francês Bernard-Henri Lévy questiona-se se a covid-19 fará com que as pessoas pensem nos outros além de si mesmas, e lembrou que há pessoas a morrer aos “portões da Europa”. Bernard-Henri Lévy falava à agência Lusa a propósito do seu novo livro, “Este vírus que nos enlouquece”, publicado com tradução de João Luís Zamith e André Tavares Marçal, pela Guerra & Paz. “É possível que a covid-19 nos faça pensar em todos nós, principalmente além dos seres humanos que têm necessidades terríveis?”, pergunta o filósofo. Questionado sobre se a situação de pandemia pode ser entendida como uma possibilidade para rever os moldes do comportamento humano, como o disseram vários responsáveis políticos, Lévy questionou: “Qual renovação?”. “Por enquanto, vejo o retorno das fronteiras. A cacofonia na Europa. A ascensão do egoísmo. Uma retirada generalizada, e assim por diante… A contenção, em outras palavras, provavelmente era necessária. Mas como um mal necessário. Como uma medida essencial, mas ruinosa para a economia, angustiante para os indivíduos e criando muito desastre nas sociedades”, argumentou. Levy salientou a questão da fome no mundo, cujas vítimas “foram multiplicadas por dois, ou até três”. O autor francês referiu os “sem -abrigo”, “pessoas a quem lhes é dito ‘fiquem em casa’, quando não têm ‘casa’, os refugiados da [ilha grega] de Lesbos, que nunca foram tão numerosos, e são completamente ignorados”. “Há países, em África, por exemplo, onde quase não há covid, mas onde essa fixação obsessiva obscurece completamente pragas, a cólera, a varíola, o dengue e outras febres amarelas que não são testadas ou tratadas, sem mencionar, que, na Nigéria, por exemplo, onde há menos vítimas da covid do que pessoas baleadas pela polícia por terem rompido o confinamento, ou em Moçambique, onde o auto-proclamado Estado Islâmico está ganhando terreno com indiferença quase geral”, sentenciou. O autor de “Este vírus que nos enlouquece” referiu à Lusa que a pandemia reforçou o sentimento de medo no ser humano: “O medo é um problema, sim. Primeiro, porque é absurdo: esta pandemia tem precedentes, um vírus como este, houve e ainda haverá muitos, e este vírus, além disso, é menos letal que outros, mas acima de tudo o medo é um sentimento negativo que nos faz perder a cabeça”. No prólogo da sua obra, Lévy refere que este tipo de desastre “sempre existiu” e recorda a gripe espanhola que causou 50 milhões de mortes, “sem dúvida mais pessoas do que a covid alguma vez vitimará”. Levy recorda ainda a gripe de Hong Kong, depois de 1968, que causou a morte a um milhão de pessoas, “com lábios cianóticos, hemorragia pulmonar ou asfixia” ou ainda, a gripe asiática que surgiu na China, passou pelo Irão, Itália, leste da França e América. “O mais impressionante é a forma, muito estranha como estamos a reagir”, escreve o autor, realçando “o medo que se abate pelo mundo” que paralisa os mais ousados. O autor francês refere no livro como cidades se esvaziaram e se tornaram cidades-fantasma, bem como a “retórica do inimigo invisível”. À Lusa afirmou: “Uma pandemia é uma pandemia. Não é uma guerra e não há mais guerra biológica”. A obra, na qual contesta a ideia de que depois da covid-19 “nada vai ser como antes”, divide-se em cinco partes: “Volta, Michel Foucault”, “Surpresa Divina”, “O Delicioso Confinamento”, “A Vida Dizem Eles”, e “O Adeus ao Mundo?”. Bernard-Henri Lévy completa 72 anos em Novembro próximo, tem formação como epistemólogo e faz parte da denominada “Nova Corrente Filosófica” surgida no final da década de 1970. Assina, semanalmente, uma crónica na revista Le Point. Nascido em Argel, Lévy foi discípulo do físico e filósofo Georges Canguilhem (1904-1995).
Andreia Sofia Silva EntrevistaStephanie Chiang, fundadora e directora do projecto Girls in Tech Macau: Ligação a Hengqin “ajuda muito” Fundado nos Estados Unidos, o movimento Girls in Tech chegou a Macau o ano passado por iniciativa de Stephanie Chiang. A trabalhar na área do marketing digital, a responsável pretende apostar em mais recursos educativos para fomentar a ligação das mulheres à tecnologia. Stephanie Chiang defende que será difícil que a tecnologia se transforme num sector económico de peso por si só devido à falta de talentos, mas acredita que a ligação a Hengqin constitui uma ajuda fundamental [dropcap]A[/dropcap] Girls in Tech Macau apresentou o seu primeiro evento na RAEM em Setembro do ano passado. Quais são os vossos principais objectivos? A Girls in Tech é uma organização sem fins lucrativos com um programa internacional e foi criada em 2007 pela primeira vez nos EUA. O objectivo é promover o diálogo e partilhar as nossas experiências. O ano passado apresentei a candidatura [para fundar o Girls in Tech em Macau]. Felizmente em Fevereiro do ano passado recebi a aprovação para trazer o projecto para cá e fizemos o nosso primeiro evento em Setembro. Temos a ideia de criar uma associação sem fins lucrativos, mas está apenas na fase de projecto, ainda não foi oficialmente criada. Pretendemos construir uma comunidade segura, diversa e inclusiva para as mulheres de Macau apaixonadas por tecnologia e empreendedorismo. Oferecemos oportunidades educativas e de networking para ajudar as mulheres a descobrirem os seus poderes. Que outros projectos pretendem desenvolver? Queremos promover programas na área do marketing digital e partilha de experiências por parte de mulheres empreendedoras. Todos os eventos que tínhamos programados para este ano tiveram de ser adiados por um ano devido à pandemia. Mas vamos organizar o concurso “She Loves Tech Hong Kong, Taiwan & Macau District” tendo Macau como parceiro organizador. Trata-se da maior competição mundial ao nível da tecnologia e das startups e que irá acontecer online a 26 de Setembro. Ainda estamos à procura de candidatos de Macau. Quais são os principais desafios que as mulheres em Macau enfrentam nesta área? Penso que há uma falta de recursos de aprendizagem. Acho que é muito difícil desenvolver conhecimentos na área da codificação ou programação, e foi por isso que decidimos trazer este projecto internacional para Macau, a fim de providenciar mais recursos de aprendizagem para os locais. Acredita que as universidades necessitam de investir mais recursos na área da investigação tecnológica? As universidades já investiram muitos recursos nesta área, mas há ainda muitas empresas que dizem não conseguir encontrar os talentos de que necessitam. Poderíamos ter mais workshops na área da tecnologia ou hackathons [maratonas de programação] para providenciar outros recursos internacionais e oportunidades para que os estudantes locais aprendam com os talentos de outras cidades. Isso pode ser motivador para eles. Têm alguns programas em conjunto com universidades locais? Ainda não temos qualquer cooperação com universidades locais. Também sou uma das fundadoras do Macau Startup Club, que é mais diverso e não está apenas virado para as mulheres. Nesse projecto fazemos vários eventos na área das startups e trabalhamos muito com as universidades e com as PME. Temos uma iniciativa chamada “Startup Weekend”, onde juntamos estudantes universitários para que possam conhecer melhor o universo das startups. Trabalhamos com a Universidade de São José e Universidade Cidade de Macau. Que análise faz à tecnologia que se vai desenvolvendo no meio académico? Pelo que sei as universidades têm investido muitos recursos na área da tecnologia. Sei que a Universidade de Macau e a MUST já investiram muito, mas talvez nem todos os alunos estejam interessados neste tipo de investigação. É preciso motivação e é necessário aprender com alunos de outras cidades. Tive um projecto e queria encontrar alunos locais para colaborarem comigo, mas não consegui. Eu tinha um projecto relacionado com electricidade e não consegui encontrar nenhum colaborador que estivesse familiarizado com esta área. Uma das razões pelas quais isto acontece é pelo facto de não haver muitas empresas que exijam este tipo de formação. O que também se deve ao facto de Macau não ter uma economia diversificada. Noutras cidades é muito fácil encontrar estes sectores-chave na área da tecnologia e quando os alunos terminam os seus cursos conseguem facilmente encontrar trabalho, mas em Macau mesmo que façam um curso nesta área não conseguem especializar-se. Considera que Macau tem condições para se tornar num hub tecnológico, com maior competitividade, à semelhança do que acontece com cidades como Shenzhen e Hong Kong? É muito difícil. Não temos um bom ambiente para que isso aconteça. Não temos muitas indústrias. O facto de estarmos ligados a Hengqin, em Zhuhai, ajuda muito pois permite que empresas abram as suas sucursais na Ilha de Hengqin e, dessa forma, pode-se construir um ambiente favorável e mais competitivo. Sem Hengqin é difícil devido à falta de espaço e pelo facto de a população em Macau ser reduzida. Graças ao programa de financiamento para “Projectos de Investigação Científica realizados através da Cooperação entre Duas Partes” já há quatro laboratórios de Macau com presença em Hengqin e que têm como objectivo tornarem-se centros internacionais de inovação. Trabalham em áreas como a medicina tradicional chinesa, cidades inteligentes, chips, Internet, ciência especial. O Girls in Tech Macau gostaria de promover soluções tecnológicas para ajudar as PME com as suas operações diárias e também para que haja uma transformação digital. Há capacidade para que a tecnologia seja um verdadeiro sector económico? Penso que será sempre um sector interligado com outros. É difícil fazer com que a tecnologia constitua um sector económico por si só. Mas podemos associar a tecnologia à cultura ou ao desporto, por exemplo. Estas áreas podem usar a tecnologia em prol da diversificação e do desenvolvimento do sector. Macau continua a não ter talentos suficientes na área da tecnologia e é necessário investir mais em educação. Sem dúvida que a tecnologia pode ser, no futuro, uma área importante, mas neste momento só se pode desenvolver com outras indústrias em prol de uma maior inovação. As mulheres, em Macau, têm menos oportunidades do que os homens na área da tecnologia? Têm oportunidades, mas não há muitas mulheres a optarem pela informação tecnológica como área de formação. Sentimos que esses cursos muito técnicos são mais escolhidos por homens. E digo isto porque há dois anos tentei fazer um evento ligado ao empreendedorismo feminino nas startups. E quando estava à procura de pessoas para participarem na nossa iniciativa descobrimos que eram raras as mulheres que estavam no ramo da tecnologia, a maior parte dos participantes era do sexo masculino. Não foi fácil encontrar membros do júri ou mesmo participantes por esse motivo. Penso que é uma questão cultural e que também está relacionada com a falta de recursos de aprendizagem. No entanto, sei que há cada vez mais mulheres com cargos de topo em empresas de tecnologia, o que requer capacidades de gestão e de comunicação. É uma transformação que vem provar que a tecnologia não está apenas ligada à programação ou à criação de códigos, é mais diversa e inclusiva. No Girls in Tech Macau queremos promover que a tecnologia é para todos, com diferentes ferramentas. Relativamente à tecnologia na área do jogo, Macau poderia investir mais neste sector? Sei que há algumas startups que já trabalham com os casinos. Há uma incubadora que trabalha com casinos e desenvolve manufactura na área do jogo e soluções tecnológicas relacionadas com o entretenimento. Uma vez que o jogo é a actividade económica principal talvez seja mais fácil desenvolver a tecnologia neste sector, mas não só. Penso que poderíamos associar também a tecnologia ao sector artístico, por exemplo.
Andreia Sofia Silva EntrevistaJenny Guan e Sandy Sio, académicas: “Casinos estão a estender apoio às PME” A liberalização do jogo mudou a forma como empresas e a sociedade olham para a responsabilidade social corporativa. Com a renovação das licenças de jogo no horizonte, as académicas Jenny Guan e Sandy Sio, do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau, defendem que a responsabilidade social vai assumir maior peso nos concursos públicos. As académicas do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau destacam que com a pandemia as empresas alteraram o paradigma de actuação na sociedade [dropcap]Q[/dropcap]ue análise fazem à responsabilidade social corporativa (RSC) das empresas de Macau, em termos históricos? Sandy Sio (SS) – As empresas têm-se focado na maximização de lucros e na responsabilidade de manter estabilidade de emprego para atingirem os seus objectivos. Depois da liberalização do jogo, Macau passou a atrair muito investimento estrangeiro com a introdução de operadoras de jogo internacionais e outras operações nas áreas financeira, construção civil, imobiliário e turismo. Com os negócios veio também uma grande comunidade de expatriados. A diversidade demográfica e das estruturas dos negócios fez com que as empresas de Macau tivessem de preencher necessidades de uma população maior e mais variada. A actual geração de gestores está mais sensibilizada para as medidas internacionais de RSC, e as empresas procuram promover os esforços socioeconómicos que fazem junto da sociedade de uma maneira mais eficiente e visível. Como funcionavam as empresas, ao nível da RSC, antes da liberalização do jogo? SS – Devido à restrição de recursos públicos no tempo da Administração portuguesa, o Governo estava dependente da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) e de algumas empresas estatais chinesas para assumir responsabilidades nos cuidados providenciados à comunidade de Macau e no investimento em várias infra-estruturas públicas e serviços. Esse foi o padrão até agora. Quando as empresas de Macau possuem recursos relativamente abundantes, nomeadamente os casinos e empresas estatais chinesas, partilham responsabilidades sociais com o Governo. É uma consequência dessa ligação histórica. A chegada dos casinos norte-americanos mudou o panorama da RSC em Macau? SS – As empresas americanas introduziram novos modelos de negócio como reuniões integradas, convenções, centros comerciais e entretenimento nas operações dos casinos, o que levou ao investimento de larga-escala. Além disso, as seis operadoras de jogo listaram-se na bolsa de Hong Kong em finais do ano 2000 para procurar mais capital para a construção e operação dos resorts integrados. A transformação da indústria do jogo, de casinos satélite para resorts integrados, constituiu uma enorme mudança na economia de Macau e no ambiente social. Com a presença em bolsa, estas empresas passaram a estar sujeitos a regras mais rigorosas em termos ambientais, sociais e de governança por parte de órgãos reguladores exteriores a Macau. As empresas americanas adoptaram padrões internacionais de RSC que também foram implementados nos seus negócios em Macau, o que resultou no aumento da consciência face às dimensões económica, ambiental e social da RSC. A RSC é importante para haver maior aceitação social do jogo em Macau? Jenny Guan (JG) – Mais do que afirmar que a sociedade deveria aceitar mais a indústria do jogo graças à adopção da RSC, e independentemente das expectativas do Governo ou da questão da legitimidade, a RSC deveria ser um requisito assegurado pela indústria do jogo. Isto para manter o “contrato social” que prova que as suas operações são legítimas e que trazem um novo e positivo impacto à sociedade. Além disso, algumas acções de RSC são determinadas, em grande parte, pelas características de operação das empresas, estando mais alinhadas com as práticas sociais das empresas do que com a responsabilidade dessas para obter uma identidade social. Como por exemplo? JG – Em termos de recursos humanos está implementado um sistema de protecção dos trabalhadores locais e as empresas de jogo providenciam mais formação e educação contínua para os residentes empregados. Isto contribui para a melhoria do nível de educação em Macau. Além disso, uma vez que as empresas de jogo adoptam padrões internacionais de qualidade, muitos seminários e formações dados aos locais ajudam as pequenas e médias empresas (PME) a melhorar a qualidade geral do seu produto e serviço. A pandemia alterou os padrões da RSC nas empresas de Macau nos últimos meses? SS – Antes da pandemia, muitos gestores viam a RCS como instrumento de relações públicas ou marketing para “decorar” uma imagem positiva das empresas. Contudo, em tempos de crise, muitos líderes têm apelado a respostas socialmente responsáveis do sector privado para ajudar a recuperar a economia e as actividades sociais junto da comunidade. O Governo de Macau também adoptou medidas, incluindo o encerramento dos casinos durante 15 dias e apoios à economia local. O Chefe do Executivo defendeu, numa conferência de imprensa, que os operadores de jogo deveriam contribuir para a sociedade. Notamos que as empresas e os casinos estão a responder mais aos apelos do Governo para aumentar as medidas de RSC. Qual deve ser o papel do Governo no que diz respeito à RSC de empresas e casinos? JG – Pode assumir a liderança da promoção de medidas de RSC nas empresas públicas e privadas, incluindo criar um quadro regulatório para alguns sectores, tal como a indústria do jogo e os serviços que operam sob concessões públicas. O Governo acaba por promover indirectamente o conceito e as medidas da RSC, que são, em primeiro lugar, inseridas nas funções governamentais e que depois se estendem às comunidades locais e aos sectores económicos. A garantia da saúde e do bem-estar em todas as idades e da educação de qualidade, bem como a promoção da aprendizagem ao longo da vida, são disso exemplos. As medidas de RSC nos casinos podem mudar no futuro, com maior aposta nas PME, por exemplo? SS – Vemos que há tendência dos operadores de jogo de aumentar a proporção de adjudicações a PME locais e a fomentar parcerias. Os casinos estão a esforçar-se para estender o apoio às PME através de colaborações intensivas, que tenham impacto económico positivo. Acreditam que a RSC pode assumir um papel importante na revisão dos contratos de jogo? JG – Sem dúvida [que vai ter um papel importante]. Especialmente quando Ho Iat Seng defendeu que as operadoras de jogo devem assumir acções de RSC “genuínas”. Depois desse alerta vários académicos e associações não governamentais defenderam que as acções de RSC deveriam estar estipuladas nos futuros contratos de concessão. Também é defendido que as acções das operadoras sejam tidas em conta aquando da realização dos concursos públicos para as novas licenças. Como se espera que o jogo seja o maior sector económico depois da revisão dos contratos, pensamos que o Governo, enquanto regulador, e os casinos, enquanto agentes do sector, devem colocar a RSC como uma grande prioridade na revisão dos contratos. De que forma isso pode ser feito? JG – A fim de maximizar a segurança social dos residentes e os custos sociais das operações de jogo, o Governo deve considerar o histórico da performance de RSC das operadoras que concorrerem a novas licenças. Entretanto, o Governo pode ter um papel proactivo para definir futuras obrigações. É possível comparar o panorama de RSC das empresas de Macau e de Hong Kong? SS – Desde 2000 que em Hong Kong se promove a RSC enquanto prática regular das empresas. Foi implementada, em 2014, uma nova ordem que decreta que devem incluir nos relatórios anuais as políticas ambientais adoptadas, bem como as relações com empregados, clientes ou fornecedores. Além disso o Hang Seng Índex lançou o Hang Seng Corporate Sustainability Index em 2010, além de ter sido lançado o Environmental, Social and Governance Reporting Guide em 2016. Neste sentido, as empresas de Hong Kong estão sujeitas a maiores obrigações em termos de performance e de divulgação dos resultados das medidas de RSC. Em Macau há, portanto, menos regulação? SS – Comparando com Hong Kong, o reconhecimento do público das medidas de RSC para as empresas de Macau parece estar num nível inferior. Além disso, as empresas de Macau devem melhorar a forma de comunicar as regulações a que estão sujeitas. Com estas medidas acreditamos que as contribuições de RSC das empresas locais podem ser mais reconhecidas e satisfaçam duplamente a entidade reguladora e a comunidade. Macau faz parte do projecto da Grande Baía. Isso vai ter impacto ao nível da RSC? JG – Nesse âmbito, o posicionamento de Macau é diferente de Hong Kong. As responsabilidades sociais das empresas de Macau não devem apenas estar de acordo com os requisitos legais do continente, mas também respeitar a direcção do desenvolvimento de Macau, tal como a diversificação económica ou a construção de um centro mundial de turismo e lazer. Além disso, as empresas de Macau necessitam de reforçar a consciência em matéria de RSC a fim de respeitar padrões internacionais em termos de fornecimento e procura de produtos e serviços para países inseridos no projecto “Uma Faixa, Uma Rota.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAlbano Martins, economista e presidente da ANIMA: “[Processo da Nam Van] foi a minha grande frustração” Quatro décadas em Macau chegaram para Albano Martins erguer a maior associação de defesa dos animais, fechar o Canídromo, trabalhar como economista ao lado de grandes personalidades. Sai com a sensação de dever cumprido, mas descontente com a saída da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, onde foi director financeiro. “Foi uma decisão errada”, assume [dropcap]O[/dropcap] futuro da ANIMA preocupa-o, agora que se prepara para deixar o território? Preocupa-me a capacidade da ANIMA poder encontrar fundos para sobreviver. Durante vários anos fui eu que, através de pessoas importantes de Macau, consegui fundos. A Fundação Macau estabilizou nos 5 milhões de patacas, mas não há garantia de que não volte atrás, e a ANIMA tem um orçamento que dificilmente é inferior a 10 milhões por ano. Temos meses em que chegamos a ter 150 mil patacas de despesas com veterinários, nem dinheiro temos para ter um veterinário connosco, porque a nossa clínica está transformada num abrigo para animais. Esse é o maior problema, porque a ANIMA tem jovens dedicados que podem fazer esse trabalho. Estamos bem organizados e trabalhamos melhor do que muitas organizações e empresas. O problema é a capacidade para chegar aos fundos. Durante muitos anos, quando não havia dinheiro, eu próprio fazia donativos. Já pus na ANIMA mais de um milhão de patacas. Temos outra situação que incomoda, porque tivemos pessoas prepotentes que nos arranjaram problemas. Como por exemplo? Temos um terreno que ninguém queria, que nos foi dado há muitos anos com uma licença temporária de um ano. Tivemos uma guerra com o anterior secretário [para os Transportes e Obras Públicas], Lau Si Io, que nos congelou a licença do terreno. Houve alguma intimidação, disseram que tínhamos de sair, com o pessoal e os animais. Quando nos telefonaram disse que íamos pôr todos os cães e gatos em frente à sede do Governo. Recuaram imediatamente. Neste momento, temos um grande apoio do secretário Raimundo do Rosário. Quando ele entrou para o Governo a primeira coisa que ele fez foi dar de novo uma licença temporária, por um ano. E depois disse-nos que íamos trabalhar para ter uma licença definitiva. Acredita que vão mesmo ter essa licença? O secretário diz estar a trabalhar nisso. Sempre esperei que essa licença surgisse antes de me ir embora, porque sou eu o único que conheço o processo todo, que é muito complicado. Tem algum nome para o substituir? Tenho um nome pensado, por experiência, mas vamos ter uma reunião na próxima semana e se passo agora o nome para a imprensa vai parecer que vou forçar uma pessoa da minha responsabilidade. A ANIMA já está madura para escolher [o novo presidente]. Embora termine o meu contrato com a Nam Van em Fevereiro, tenciono ir-me embora definitivamente de Macau em Junho do próximo ano, mesmo vindo cá de três a três meses só para ajudar a ANIMA. Parte de Macau com a sensação de dever cumprido? Há sempre coisas que podiam ser feitas. Estive 10 anos na Autoridade Monetária onde fiz muitas coisas que não existiam cá, como o primeiro centro de formação de bancários. Consegui que as estatísticas tivessem PIB trimestral, porque naquela altura nem PIB anuais nos chegavam, ou chegavam com um ano e meio de atraso. Houve algumas coisas de que tenho algum orgulho, como por exemplo a constituição das sociedades anónimas com três pessoas. Isso surgiu com um artigo que escrevi, que o Governador gostou muito, quando disse que para formar uma sociedade anónima levava o meu cão, os meus gatos para formar as 10 pessoas necessárias para formar uma sociedade anónima, que eu não conhecia. Passados dois dias, o Governador mandou-me um projecto de lei para que o número baixasse para três sócios necessários. E isso ainda hoje se mantém. A luta pelos direitos dos animais foi sem dúvida a sua grande bandeira. Estou em Macau desde 1981, a luta pelos direitos dos animais começa em 2003. Nunca me tinha passado pela cabeça que não houvesse associações de defesa dos direitos dos animais. E só em 2003 é que uma pessoa me chamou à atenção para isso. Havia pessoas que estavam há 10 anos a tentar construir uma associação e não conseguiam. A primeira coisa que fiz foi pagar 20 mil patacas a um escritório de advogados, foi o meu primeiro donativo para a ANIMA. Mas nunca fui membro da direcção. Porquê? Sempre achei que uma coisa era apoiar a associação e outra coisa era armar-me em esperto porque era o fundador, a pessoa que estava por detrás [do projecto]. Fiquei no conselho fiscal, mas fui acompanhando a associação. Em 2007 a então presidente da associação, uma neta de Stanley Ho, apareceu no escritório cheia de problemas porque estava a gastar muito dinheiro. De facto, gastou porque não fazia campanhas, pois era uma senhora rica e achava que o dinheiro não tinha valor, quando percebeu já tinha posto na associação quatro ou cinco milhões de patacas. Eu disse que arranjava quem a substituísse, mas nunca consegui, essa foi a grande batalha. Espero que finalmente, no próximo mês, haja uma direcção onde eu não esteja. Em todos estes anos alguma vez o acusaram de má gestão de fundos ou teve outros dissabores na gestão da ANIMA? Nunca tive uma situação desse tipo na ANIMA. Na associação não podemos receber dinheiro sem passar recibos, não contamos caixas de donativos sem ser à frente de duas pessoas. Tive uma crítica de uma pessoa no passado, mas era uma crítica do tipo “você é um ditador”. Mas aí, acho que até tinha razão. Sente-se um “ditador”? Nós temos regras próprias e percebo que haja choques, e houve muitos neste período. Um deles é a ideia de que as associações de defesa dos animais têm o dever de recolher todos os animais da rua. Isso é tecnicamente impossível, e a ANIMA criou um Código de Ética que diz que só recolhemos animais que estão em perigo. Mesmo assim, temos mais de 400 cães e mais de 300 gatos. Nós não matamos, é uma das nossas vitórias, e está no Código de Ética. O animal só é abatido se estiver muito doente e mesmo assim é preciso um veterinário confirmar e dois membros da direcção aprovarem. Em Hong Kong matam-se mais animais do que o Canil Municipal de Macau, porque só ficam com os animais adoptáveis. Olhando para trás, como encara a forma como lidou com os diversos governantes que estiveram à frente do Executivo de Macau? De todos os governantes houve uma pessoa que ainda hoje tem uma relação belíssima comigo, me deu força e disse: “Albano, vamos pôr Macau no mapa das cidades que são amigas dos animais”. Essa pessoa é Edmund Ho. Foi ele que deu milhões de patacas para construir a ANIMA, o terreno foi dado na sua governação e sempre nos auxiliou quando tínhamos um problema. Depois da saída de Edmund Ho as coisas foram mais complicadas, mas no final do último mandato conseguimos uma maior proximidade com o Governo que não nos hostilizou, mas não tinha a vertente virada para a protecção dos animais. Ainda hoje, Edmund Ho é nosso amigo e tenho reuniões com ele. Às vezes, ajuda através de amigos que dão apoio à ANIMA. O actual Chefe do Executivo poderá continuar a apoiar a ANIMA? Não conheço Ho Iat Seng, nunca tive uma conversa com ele. Mas, felizmente, conheço os casinos e a maior parte deles têm apoiado. O problema é que este ano, com o coronavírus e as receitas a caírem a pique, é muito complicado, por isso é que vou continuar a apoiar a ANIMA até Junho do próximo ano. O pior que poderia acontecer, e os nossos estatutos preveem isso, era todos os nossos activos irem para o Governo caso não tenhamos capacidade monetária. Essa seria uma derrota. Conheceu também Stanley Ho e teve uma relação profissional com a STDM e SJM. Fale-me desse período. Vim para Macau convidado para o então Instituto Emissor de Macau por duas pessoas que me conheciam da faculdade. Saí depois para um projecto onde conheci o Stanley Ho. Não o conheci muito, só nas reuniões. Tive algumas questões privadas, assuntos que têm a ver com questões familiares que não posso revelar. Tive uma relação simpática com ele, mas era um conhecido de Stanley Ho. Na Sociedade de Empreendimentos Nam Van, ele era o presidente do conselho de administração e eu era director financeiro e ex-director adjunto e tinha essa relação com ele, mas não mais do que isso. Como surgiu a oportunidade de ir para a Sociedade de Empreendimentos Nam Van? Estava na Autoridade Monetária há 10 anos e, nessa altura, surgiu o empreendimento do Fecho da Baía da Praia Grande. Nesta zona à volta escoavam todos os esgotos, tudo cheirava mal. E houve um projecto para reordenar aquilo que foi assumido por uma sociedade, com interesses diversos, de chineses, portugueses. Era um projecto em que havia um empreiteiro geral, mas havia vários lotes de terreno e era preciso que alguém montasse toda a parte financeira. Desde o início, até agora, fiz toda a parte financeira da Sociedade sozinho. A Nam Van já perdeu a concessão de vários terrenos em tribunal. Essa foi a grande frustração da minha vida naquela Sociedade. Ver quem fez todas essas estradas, esses lagos, os parques de estacionamento todos, perder 13 lotes de terreno porque o Governo, ao longo desses anos, não fez o plano para que a Sociedade fizesse o desenvolvimento. Como poderíamos reordenar se não tínhamos o espaço reordenado? O Governo fez uma nova Lei de Terras e esqueceu-se desse pormenor, e a Sociedade não reparou nisso. Olho para esse processo e é uma grande injustiça. O Governo não vai dar as terras, mas pelo menos vai ter de indemnizar, e esse é o processo que está em curso nos tribunais. A pessoa que, durante estes anos todos, distribuiu os custos e está dentro desse processo tem o contrato terminado em Fevereiro de 2021. Como é possível? Foi uma decisão errada, mas quem decide que assuma a responsabilidade. Está então confiante que a Nam Van ganhe nos processos por indemnização. Se houver pessoas da Sociedade capazes de explicar tudo em tribunal, terá de ganhar. Acreditamos que os tribunais têm de estar do lado da razão. Não é pelo facto de a Sociedade ter cortado a minha relação laboral em Fevereiro que vou dizer o contrário. A responsabilidade disto tudo é do Governo, da burocracia e da incapacidade de resolução. Se a Nam Van ganhar, o Governo vai perder biliões de patacas. Lamenta que os sectores financeiro e económico não estejam tão desenvolvidos como poderiam estar? Claro. Acho que depois de tudo aquilo que criámos quando fui para Macau o mercado não se desenvolveu. O mercado financeiro de Macau tornou-se numa pequenina aldeia, não está vivo. Quando já estava na Sociedade de Empreendimentos Nam Van, Edmund Ho era o presidente da Associação de Bancos de Macau e pediu-me para ser o secretário-geral da associação. Eu disse que tinha de ser alguém a tempo inteiro. E todos os bancos me apoiavam, mas os ingleses disseram que não podia ir a tempo parcial. Apesar do grande esforço do Félix Pontes na formação bancária, o sistema financeiro não se modernizou, não houve progressos nenhuns. É simplesmente incrível. Falta, sobretudo, conhecimento.
Hoje Macau EntrevistaGeorges Chikoti: “China está em cada país africano, mas Europa não perdeu a batalha” [dropcap]O[/dropcap] secretário-geral da Organização dos Estados de África, Caraíbas e Pacífico, Georges Chikoti, nota que a China está hoje presente “em cada um dos 54 países africanos”, mas considera que a “batalha” está longe de estar perdida para a Europa. Em entrevista à Lusa, em Bruxelas, o responsável angolano lembra que, ao longo das últimas décadas, a China foi progressivamente crescendo e ocupando no continente africano “um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado”, mas não tem dúvidas de que, se for esse o seu desejo, a Europa “tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, até porque pelo seu “bom e melhor conhecimento de África”. Olhando em retrospectiva, Chikoti observa que “a Europa viveu um período de dizer ‘nós colonizámos o continente, somos culpados pela colonização’ e abandonaram” África, cujos países, e respetivas economias, foram naturalmente crescendo ao longo dos últimos 50, 60 anos. “E neste crescimento das suas economias, eles também têm estado a lidar com vários parceiros. Surgiu a China, uma China que entrou em África no início dos anos 60 de maneira muito tímida, que não mostrou e não indicou muita coisa”, tendo a construção do Tazara, linha ferroviária a ligar a Tanzânia à Zâmbia co-financiada por Pequim, sido “provavelmente uma das primeiras grandes obras que fizeram em África”, juntando-se a construção de “alguns estádios de futebol e algumas grandes casas”. Nas décadas de 70, 80 – prosseguiu – “houve transferência de muita tecnologia da Europa para a China”, que a partir daí começou a crescer como potência económica, ironicamente graças ao forte investimento europeu (e também norte-americano). “Se forem fazer a leitura de como é que a China emergiu, a China criou, com capital e investimento europeu, adquiriu tecnologia, adquiriu capital e começou a produzir. E criou um mercado interno. Com a tecnologia europeia, eles produziram as mesmas coisas. Você fabrica um carro na China, eles vão produzir um carro chinês com a sua tecnologia, mas vão dar-lhe um nome chinês. Foi o que aconteceu em todos os setores”, aponta. Recordando visitas que efetuou “no início dos anos 90” a fábricas na China, o antigo chefe da diplomacia angolana diz ter constatado que em todas elas tinham “mão de obra 100% chinesa, 100%” e administração chinesa, “mas o capital investido era geralmente europeu, americano e outro”. “Depois, não podemos ficar admirados que muito rapidamente tenha crescido um capital chinês e uma grande capacidade de produção chinesa. E primeiros mercados quais são? Vieram para os nossos países, com o seu capital, com os seus produtos. Em África encontram um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado. Eu olho para as minas da Zâmbia, do Congo, de Angola, que durante os anos 60, 70 eram propriedade de empresas europeias. O que os chineses fizeram foi meter novo capital, começar a explorar, e naturalmente que os bens começaram a ir para a China”, aponta. Nos dias de hoje, “de facto, a China está em cada um dos 54 países africanos, com investimentos pequenos ou grandes, mas está] em todos os países […] De algum modo, a Europa tinha abandonado um espaço que alguém ocupou”. “Mas penso que essa não é uma batalha perdida. Estamos em economias abertas e livres, o que quer dizer que no mercado há vários concorrentes. Há uma maior concorrência, mas acho que Europa tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, considera, apontando designadamente a “tecnologia de ponto geralmente apreciada” e o facto de os europeus “conhecem bem o mercado, conhecem bem as mentalidades africanas”. “Mesmo que haja também uma grande presença chinesa, [os europeus] têm sempre um bom e melhor conhecimento de África, certamente. Nós em Angola temos famílias de origem portuguesa que estão há 200, 300 anos em Angola. Portanto, tudo isso representa um bom ponto de partida. Em vez de abandonar esses mercados, há que criar maiores possibilidades de investimento. Os nossos mercados precisam de capitais. Há muitas possibilidades de iniciar negócio e há muito ausência de capital”, frisou. Georges Chikoti sublinha que a Europa não pode esperar que a China ‘desapareça do mapa’, mas sim ganhar consciência de que precisa de investir e competir com o gigante asiático. “Sim, há uma maior presença chinesa, mas ainda há um potencial muito grande que pertence à Europa, que tem uma relação histórica, antiga, com o continente africano. A China está aí. Simplesmente, provavelmente nunca lhe tínhamos reconhecido o potencial que agora criou. Portanto agora está aqui, vamos ter que viver com ela, e vamos ter que cooperar com ela, trabalhar com ela, concorrer com ela”, enfatizou. “Não há ninguém que à partida tenha perdido uma batalha, mas também é importante que a Europa tome consciência de que tem capacidade, tem capital, e pode de facto investir mais e concorrer melhor. Acho que ainda há um terreno ainda muito aberta para que a Europa possa fazer bem e melhor com os países africanos”, concluiu o dirigente angolano.
Andreia Sofia Silva EntrevistaCinemateca Paixão | “Receio a censura por parte da nova empresa [de gestão]”, diz Vincent Hoi A decisão do Instituto Cultural de atribuir a gestão da Cinemateca Paixão a uma nova empresa, da qual pouco se sabe, fez o cineasta Vincent Hoi assinar uma petição contra a mudança. Ao HM, diz que “há 95 por cento de certezas” da empresa estar ligada ao empresário Alvin Chau e receia mais censura, na Cinemateca, a filmes feitos em Taiwan [dropcap]V[/dropcap]incent Hoi, um dos principais nomes do cinema de Macau, está preocupado com uma das casas onde se projectam as suas obras. A mudança de gestão da Cinemateca Paixão está envolta em mistério, defende, e o futuro é, para já, uma incógnita. Num recente concurso público, o Instituto Cultural (IC) decidiu atribuir, por um período de três anos, a gestão da Cinemateca Paixão à Companhia de Produção de Entretenimento e Cultura In Limitada, da qual pouco se sabe. De cena sai a Associação Audiovisual CUT, que nos últimos três anos presenteou os amantes de cinema com as melhores produções independentes ou mais comerciais da Ásia e Europa. Vincent Hoi foi um dos signatários da petição entregue ao IC que questiona esta adjudicação e tem acompanhado as tentativas de contacto feitas por jornalistas. “Parece que há 95 por cento de certeza de que essa empresa está ligada a Alvin Chau e ao Festival Internacional de Cinema de Macau (IFFAM, na sigla inglesa), embora a empresa não tenha qualquer informação pública sobre isso”, disse ao HM. O cineasta lamenta o secretismo da parte do IC, que não divulgou informações sobre a nova empresa gestora. “Como é possível ser um segredo? Não deveria ser porque [a gestão da Cinemateca] se relaciona com todas as pessoas de Macau, não só o público, mas com a indústria do cinema.” “Não é razoável dar o projecto da Cinemateca a esta empresa por estar relacionada com o festival de cinema”, acrescentou. Vincent Hoi denuncia o “mau trabalho” que tem sido feito com a exibição dos filmes no festival “nos últimos dois ou três anos”. “Se queremos comprar um bilhete para ir ver um filme, ou se queremos saber mais sobre ele, muitas vezes é difícil obter a informação, ou esta nem sequer está correcta. E quando vou ver um filme há sempre vários membros do público que se sentam à minha frente a jogar no telemóvel o tempo todo. Pode ser porque os bilhetes são gratuitos, mas penso que ver um filme é, para eles, um trabalho. A entidade que organiza o festival pode recear que ninguém vá ver o filme e contrata algumas pessoas para assistirem à sessão.” Neste sentido, Vincent Hoi assume não ter “qualquer confiança na nova empresa que vai gerir a Cinemateca”, mas espera que se aposte “nos mesmos conteúdos que a CUT exibiu nos últimos três anos, com uma boa selecção de filmes”, e que o façam “de forma apaixonada”. O cineasta diz estar “com receio de censura por parte da nova empresa” quanto aos filmes que serão exibidos nos próximos três anos. Como exemplo, recorda o facto de a edição de 2019 do IFFAM não ter contado com produções de Taiwan no cartaz. “Talvez se possa argumentar de que não se fizeram bons filmes em Taiwan para serem exibidos no festival, mas na verdade foram feitos muito bons filmes.” Assim sendo, “se a nova empresa está mesmo relacionada com Alvin Chau ou com as pessoas que fazem o festival penso que pode haver mais censura nos filmes exibidos, talvez não apenas sobre a China, mas sobre alguns temas sensíveis”, frisou. O novo projecto Apesar de estar envolvido nesta iniciativa pública, Vincent Hoi não deixa o cinema de lado e está neste momento a trabalhar num novo filme que só deverá ser lançado em 2022. Ainda não tem, sequer, um nome. “A história começou a ser pensada o ano passado, entre a noite de 2 de Junho e a manhã do dia 3, quando entrou em vigor o novo regulamento dos táxis que pode restringir os taxistas de cobrar mais aos passageiros”, contou ao HM. Desta forma, Vincent Hoi quer colocar nas telas do cinema um problema que afecta todas as pessoas de Macau. “A minha história será sobre um taxista que cobra mais aos passageiros na noite anterior à entrada em vigor do novo regulamento dos táxis.” Vincent Hoi assegura que continua a ser difícil realizar filmes no território, uma situação que se agravou ainda mais com a pandemia da covid-19. “Desde há algum tempo que fazer filmes em Macau é difícil, e o coronavírus tornou a situação ainda mais difícil. No entanto, a crise trouxe-me novas ideias para a escrita de um guião, e esta nova ideia pode estar relacionada com pessoas que são forçadas ao isolamento nas suas casas ou hotéis durante 14 dias, e de como enfrentaram essa situação”, descreveu ao HM. Falhas de um sector Quanto ao desenvolvimento da indústria do cinema, e apesar do financiamento público e das apostas na Cinemateca Paixão e no IFFAM, há ainda muito a fazer para desenvolver este sector, assegura o cineasta. “O desenvolvimento da indústria de cinema de Macau não é muito bom, e talvez possamos dizer que a ‘indústria do cinema’ não existe ainda por completo. Não temos talentos suficientes, realizadores, produtores, engenheiros de som… Não temos apoio financeiro suficiente embora Macau seja uma cidade muito ‘rica’.” Para ultrapassar estes obstáculos, os realizadores de Macau poderiam cooperar com Hong Kong e Taiwan, defende Vincent Hoi, uma vez que a cultura cinematográfica de Macau é semelhante às de Hong Kong e Taiwan. Por outro lado, o realizador diz “não concordar com a cooperação com a China”, uma vez que “a China pode impor muitas restrições no guião ou nas ideias do filme”. “Há muitas coisas que não se podem colocar num filme, especialmente relacionadas com política, violência, fantasmas e espíritos, e se Macau cooperar com a China pode perder as características locais, tal como acontece com os filmes feitos em Hong Kong actualmente”, frisou. Apontando que o financiamento público está longe de ser suficiente para fazer filmes, o cineasta acredita que a aposta deveria ser feita na inclusão de mais aspectos comerciais nas histórias ou incluir mais actores de renome, “a fim de atrair mais investimentos por parte de empresas de produção privadas”. Mas, para isso acontecer, “seria importante cooperar com Hong Kong e Taiwan, uma vez que em Macau é difícil encontrar investidores”.
Andreia Sofia Silva EntrevistaMestre da UM defende mais iniciativas ambientais por parte da Sinopec, State Grid e CNPC As três maiores empresas chinesas listadas no índice Fortune 500, a Sinopec, a State Grid e a China National Petroleum Corporation, deveriam apostar mais no ambiente como forma de responsabilidade social corporativa. É a grande conclusão de um estudo feito por Cristina Lu, membro do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau. Em relação à covid-19, a responsável defende uma maior aposta nos apoios aos funcionários [dropcap]C[/dropcap]ristina Lu, mestre pela Universidade de Macau (UM) e membro do Instituto para a Responsabilidade Social Corporativa na Grande China em Macau, concluiu recentemente a sua tese de mestrado que olha para as acções de responsabilidade social corporativa levadas a cabo pelas três maiores empresas de cada um dos países que compõem os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e, desde 2010, a África do Sul), com base no índice Fortune 500. Intitulado “A look into corporate social responsibility in China and other BRICS countries”, o trabalho foca-se nas acções da Sinopec, China National Petroleum Corporation (CNPC) e State Grid em matéria de responsabilidade social corporativa. Ao HM, Cristina Lu defende que estas empresas deveriam apostar mais em acções ambientais como forma de responsabilidade social corporativa. “As empresas chinesas deveriam focar-se mais na redução do consumo de água e das emissões de gases de efeito de estufa”, apontou. “Vi que as iniciativas das empresas chinesas estavam mais voltadas para doações e investimentos na comunidade. No entanto, penso que é necessário apostar mais em iniciativas ligadas à área ambiental.” Para a autora do estudo, cabe às empresas apostarem nesta área através de uma melhor comunicação. Estas “deveriam ter práticas mais amigas do ambiente e isso deveria ser melhorado através de uma maior comunicação com a população”. Para isso, as empresas em causa deveriam fazer “publicidade que chegasse a todos”, além de promover “uma cultura de sustentabilidade, pois esta tem de partir das famílias”, disse. A tese conclui que “a China deve concentrar-se em três grandes tópicos relacionados com a sustentabilidade”. A redução do consumo de água “é um desafio, tendo em conta que a população chinesa é uma das maiores do mundo, e há uma procura massiva por este bem essencial”. “Com mais pessoas, mais a pegada ecológica é uma questão importante, e a China necessita de se focar mais na redução das emissões de gases de efeitos de estufa, uma vez que esse é um ponto que não está muito bem esclarecido nos relatórios nem nos resultados apresentados”, escreve Cristina Lu. O estudo diz ainda que “a China tem vindo a fazer os máximos esforços na redução da emissão de outros gases poluentes, tendo em conta os resultados positivos por comparação aos anos anteriores”. No entanto “são necessários mais esforços para a redução dessas emissões”, pode ler-se. Fundada em 2002, a State Grid é uma empresa de electricidade estatal e a terceira maior do país, sendo também uma das maiores eléctricas do mundo. “A empresa procura energias limpas e alternativas, é orientada para as pessoas e conduzida por um espírito de equipa, além de trabalhar em linha com a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’”, descreve Cristina Lu na tese. A CNPC é a segunda maior empresa chinesa e a terceira maior empresa de combustíveis do mundo. Foi fundada em 1988 depois de uma reforma na política dos combustíveis e depois do fim do controlo estatal deste sector. Inicialmente, explica Cristina Lu, a empresa era responsável apenas pela produção onshore, enquanto que a China National Offshore Oil Corporation operava no ramo offshore e a Sinopec na área dos produtos petroquímicos. “Os valores da empresa focam-se no dinamismo, lealdade, honestidade e compromisso, e a sua estratégia é a expansão do mercado para todo o mundo, com o foco nas tecnologias inovadoras e na extração de recursos naturais”, aponta a autora da tese. Por sua vez, a Sinopec, criada no ano 2000, é tida como a maior empresa de energia da China. É líder no fornecimento de produtos petroquímicos e feitos a partir de petróleo, além de ser responsável pelo refinamento, processamento, distribuição, transporte e comércio de gás natural e combustíveis. A Sinopec “trabalha com valores, inovação, gestão de recursos, abertura em termos corporativos”, procurando sempre chegar às baixas emissões de carbono. “A empresa tem como foco ser líder mundial nos sectores da energia e da indústria química”, lê-se na tese de Cristina Lu. China lidera donativos Comparando com os restantes países que compõem os BRICS, as empresas chinesas em análise são as que “mais fizeram donativos como contribuições para a saúde, alívio da pobreza, educação e ambiente”. Cristina Lu defende que não é possível afirmar qual o país dos BRICS que possui melhores práticas de responsabilidade corporativa. “Segundo a minha análise, as companhias indianas sobressaíram bastante na área ambiental, e vi que, entre 2017 e 2019, conseguiram diminuir bastante a emissão dos gases de efeitos de estufa. Em relação à Rússia as empresas focaram-se mais na parte económica e nas doações. Já o Brasil, melhorou bastante na área ambiental, só que a qualidade dos relatórios poderia ser melhor, uma vez que poderiam ter relatórios de sustentabilidade separados, ao invés de apresentarem um relatório integrado juntamente com o relatório anual.” Relativamente à África do Sul, as empresas analisadas “conseguiram ser bem determinadas e tornar claro o seu foco, que é o combate à pobreza e à fome”, lê-se. No que diz respeito às empresas brasileiras, estas “prestaram muito mais atenção aos impactos ambientais”, com os resultados “neste campo a serem consideravelmente prósperos”, escreveu a autora do estudo. Falta fiscalização Cristina Lu analisou os relatórios de responsabilidade social corporativa da Sinopec, CNPC e State Grid do ano de 2018, e em todos eles encontrou uma falha comum: a falta de fiscalização de uma terceira entidade. “Todos os relatórios de sustentabilidade deveriam ter um parecer de uma empresa externa independente, de auditoria. Vi que faltava esse parecer nas empresas chinesas, e esse é um dos pontos negativos.” Para a autora, o facto de estas três empresas não terem uma auditoria independente às acções de responsabilidade social corporativa faz com que a China deva olhar para os bons exemplos dos restantes países dos BRICS. “É essencial enfatizar que os aspectos positivos dos relatórios de outras empresas dos BRICS podem ser considerados como um modelo para as futuras publicações por parte das empresas chinesas”, lê-se na tese. “Os relatórios de auditoria são preciosos para os interesses das pessoas, e os relatórios das empresas russas e brasileiras apresentam auditorias nas suas últimas páginas, pelo que podem ser considerados bons exemplos”, compara a autora. Apesar desta falha, a responsável denota que os documentos respeitam as directrizes internacionais em termos de responsabilidade social corporativa, com dados detalhados. A tese de Cristina Lu traça também um cenário histórico das grandes empresas estatais, que começaram a desenvolver-se a partir da implementação da República Popular da China, em 1949. “[A responsabilidade social corporativa] começou nos anos 50. Antes, as empresas estatais estavam na liderança e focavam-se mais nos direitos dos funcionários, na parte social. Depois das privatizações é que as empresas se começaram a focar mais na área ambiental, que é outra parte da responsabilidade social corporativa. Desde 2005 até aos dias actuais o relatório de sustentabilidade passou a ser obrigatório para as grandes empresas”, explica Cristina Lu ao HM. O impacto covid-19 O estudo de Cristina Lu contém também um ponto relativamente à forma como estas empresas devem dar resposta ao impacto da pandemia da covid-19. “Do ponto de vista económico, os resultados financeiros das empresas deverão obviamente registar quedas drásticas devido ao abrandamento da economia mundial causado pelo confinamento de cidades, quarentenas, redução do turismo e menos poder de compra. A consciência da responsabilidade social deveria aumentar com a atribuição de mais subsídios aos funcionários com necessidades e donativos concedidos a centros de abrigo”, lê-se no documento. Além disso, a tese aponta para o impacto ambiental negativo devido à produção de mais máscaras cirúrgicas e gel desinfectante, o que implica um maior consumo de plástico e de água. Mas, além do impacto ambiental e das respostas necessárias, Cristina Lu acredita que a pandemia da covid-19 deveria levar as empresas a adoptarem novas práticas para com os funcionários e a comunidade. “Acredito que as empresas devem responsabilizar-se mais pelos custos em relação aos produtos de higiene e tentar conter despesas desnecessários. Em relação ao pessoal, devem ter uma atenção redobrada, porque sei que as grandes empresas possuem funcionários de vários países, portanto deve-se focar na ajuda a estes. Na área da habitação, [poderiam ser atribuídos] subsídios extra para as famílias dos funcionários afectados, além de outras ajudas”, frisou ao HM.
Hoje Macau EntrevistaChris Patten avisa para maior influência do PCC em Macau [dropcap]O[/dropcap] último governador britânico de Hong Kong frisou que a antiga colónia do Reino Unido e Macau estiveram sempre numa posição “muito diferente”, apontando a maior influência histórica do Partido Comunista Chinês no território outrora controlado por Portugal. “Julgo que é acertado dizer que a Frente Unida [organização de influência no exterior do Partido Comunista Chinês], foi um pouco mais hábil a escolher os líderes chineses locais em Macau do que em Hong Kong”, disse à agência Lusa Chris Patten. “Macau esteve sempre numa posição muito diferente de Hong Kong: tem uma economia que depende em grande parte do amor das pessoas pelo jogo. É muito menor. E não tem uma longa tradição de crer em algo como o Direito comum e as liberdades associadas a uma sociedade aberta”, apontou. Ressalvando que gostou muito de trabalhar com Vasco Rocha Vieira, o último governador português de Macau, Chris Patten lembrou que ambos tinham “responsabilidades muito diferentes”. “Sobretudo porque Portugal, pelo que me lembro, tentou devolver Macau após a revolução [do 25 de Abril], mesmo antes de ter que o fazer, pelo que são histórias diferentes”, observou. O britânico, que é actualmente reitor da Universidade de Oxford, tem sido um dos maiores críticos da decisão de Pequim em promulgar uma controversa lei de segurança de Hong Kong. Iniciativa “orwelliana” O último governador britânico afirmou que a lei de segurança nacional faz parte de uma iniciativa “orwelliana” para eliminar a oposição pró-democracia, violando o acordo de entrega do território a Pequim. A lei em causa proíbe “qualquer acto de traição, separação, rebelião, subversão contra o Governo Popular Central, roubo de segredos de Estado, a organização de atividades em Hong Kong por parte de organizações políticas estrangeiras e o estabelecimento de laços com organizações políticas estrangeiras por parte de organizações políticas de Hong Kong”. Entre os sete artigos propostos por Pequim, está uma disposição para um mecanismo legal que permite ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, o órgão legislativo chinês, articular legislação que vise prevenir e punir uma série de suposições, incluindo “subversão contra o poder do Estado”, frequentemente usada na China continental para prender ativistas e dissidentes. Chris Patten defendeu o anúncio de Londres de que concederia residência a quase 3 milhões de cidadãos de Hong Kong, apesar de Pequim ter considerado que a medida viola a Declaração Conjunta [sino-britânica], negociada no âmbito da transferência de soberania. “Se eles violaram a Declaração Conjunta [sino-britânica], como é que podem usar a Declaração Conjunta para nos impedir de fazer algo que é um direito soberano nosso”, questionou. Patten disse que a legislação é desnecessária porque o código legal de Hong Kong já inclui disposições para combater o terrorismo, crimes financeiros e outras ameaças à segurança. “O que Pequim quer é algo que lide com aqueles crimes orwellianos como sedição, o que quer que isso seja”, acusou. O Governo central pode estar também à procura de motivos para desqualificar candidatos da oposição nas eleições de setembro para a legislatura local, disse. Chris Patten defendeu ainda que os Estados Unidos devem unir outros países democráticos para combater as tácticas de Pequim. “É o Partido Comunista Chinês que nos ataca, que intimida, que diz às empresas que têm raízes nos nossos países que, a menos que façam o que a China quer, não farão negócios na China”, observou. “É assim que a máfia se comporta e o resto do mundo não deve tolerar isso, porque se o fizermos, as democracias ficarão a perder”, alertou.
Andreia Sofia Silva EntrevistaAdriano Moreira, jurista e professor catedrático jubilado | Neste globo sem bússola Ex-ministro do Ultramar no tempo do Estado Novo, Adriano Moreira foi professor catedrático na área da ciência política e relações internacionais e fundador do CDS-PP. Em 2014, foi distinguido pelo Instituto Politécnico de Macau como professor coordenador honorário. Neste “século sem bússola”, a pandemia da covid-19 “alterou o conceito de realidade internacional”, mas Adriano Moreira defende que o multilateralismo continua a ser a resposta. Sobre a situação em Hong Kong, o professor deposita algumas esperanças [dropcap]D[/dropcap]epois da guerra comercial, surge agora uma guerra na saúde entre a China e os Estados Unidos. Acredita que podemos assistir à expansão de uma nova “Guerra Fria” entre estas duas potências? O grave da ordem internacional é que a utopia da ONU, sobre uma legalidade mundial marcada pelos princípios do “mundo único”, isto é, sem guerras, e “a terra casa comum dos homens”, foi afectado pela concorrência de supremacia global entre EUA, China, e Rússia, com a multiplicação das “diplomacias de Clube” dos emergentes que se reservam defender o desenvolvimento em paz ou sem ela, e, podendo, sem participar ou sofrer as consequências. Tenho insistido em que “o imprevisto está à espera de uma oportunidade”. A seu ver, a pandemia da covid-19 veio testar ou comprovar lideranças? Quais os maiores efeitos desta pandemia ao nível das relações internacionais? A pandemia alterou seguramente a hierarquia e conceito da realidade internacional, porque é infelizmente visível que alguns antigos grandes Estados voltaram ao método político do “Estado Espectáculo”, que cria imagens quando não conhece, nem aprecia a realidade. Está a acontecer desde os EUA ao Brasil. Há uma nova sede do poder real que se traduz na intervenção autêntica, cívica, humana, das universidades, institutos de investigação, profissionais do saber médico, responsáveis pela segurança e protecção das pessoas. Espero que finalmente sejam os apoiantes das “vozes encantatórias” que encontrem resposta política para a reformulação da ordem, que compreendam que “o multilateralismo” é superior ao “unilateralismo” para conseguir que o globo continue a ser habitável. Está satisfeito com a resposta da União Europeia a esta crise gerada pela covid-19? Quanto à “crise” da saúde, encontrou a prova científica, e adesão cultural, das populações, que apoia, como disse, uma intervenção que é geralmente de qualidade indiscutível. Mas a “política” anterior à súbita explosão do ataque à saúde e vida, teve três dificuldades visíveis: a queda do Muro de Berlim, juntou à meia Europa democrática da União, a meia Europa que lutou pelo regresso à soberania histórica que perdera pela ocupação. São evidentes as preocupações com as diferenças herdadas do respectivo regime, a relação fatigada dos vários eleitorados, o péssimo exemplo do Brexit, o vazio da conjugação de pensamento do Norte e Sul do Continente Americano, e a crise do real mostra que a cultura e valores são diferentes na origem e na vigência. A crise do “globo” vai exigir reformulação das interdependências que serão inevitavelmente globais. Mas o tempo será exigente, na leitura do passado, na imaginação do presente, e na identificação de um futuro possível. A Europa possui certamente uma capacidade histórica, científica, ética, que, cremos, encontrará as vozes criativas. Na última sessão da Assembleia Popular Nacional, pela primeira vez, não houve previsão de crescimento económico. Que expectativas tem em relação ao posicionamento da China nos próximos tempos, em termos económicos e políticos? A China é uma das potências que se encontra na competição entre EUA-China-Rússia, frequentemente à margem da Utopia da ONU. A compreensão do globalismo, com sacrifícios históricos dos regimes, foi, dificultada neste século XXI, que muitos cientistas ocidentais consideram “sem bússola”. É de salientar o avanço do “soft power”, que também foi de Obama, e que a vencida senhora Clinton quis chamar “soft power”. Nesta data o ataque à China tem sobretudo que ver com o Estado Espectáculo, embora seja o interesse da Humanidade que exige o jogo com o saber dos factos, e por isso necessita que os responsáveis que assumem o dever da ciência, da sua aplicação, e da segurança, consigam o direito respeitado da autenticidade e solidariedade. A China, uma civilização de milénios, é neste dever que se espera que se empenhará, com paz em relação às críticas verbais, às quais responderá com verdade, tranquilidade, e sobretudo com participação ética reconhecida. Na última sessão da APN, foi aprovado o projecto da lei de segurança nacional para Hong Kong. O Conselho Legislativo de Hong Kong já deveria ter avançado para a legislação do artigo 23 da Lei Básica? O regime “Um País, Dois Sistemas” tinha prazo, e lembro-me desse tempo. O fim do período, que é esperado, e que agora só acompanho com leituras, porque não viajo, traz consigo uma estrutura cultural e política específica e diferente. Do ponto de vista sócio-político não pode deixar de estar presente uma especificidade de formação que exigiu criatividade. É preciso sempre reconhecer que os factos e os valores exigem ser reconhecidas as identidades dos indivíduos e das comunidades. Infelizmente há muitos anos que não vou nem à China nem a Hong Kong. Os anos passam, embora sem eliminar a meditação sobre o desafio do futuro. A posição internacional nova da China espera-se que corresponda à avaliação respeitada das comunidades diferenciadas. Não posso conhecer a totalidade dos factos, mas julgo que a China tem pluralismo suficiente para conseguir assumir a identidade específica de Hong Kong que governou desde a retirada do Reino Unido, considerando que a paz é correspondente ao respeito pelos direitos humanos. São observações que se multiplicaram nos noticiários nacionais, mas não tenho informação suficiente da relação do pensamento político que consiga a paz da relação entre as diferenças dos encontros atuais e do futuro reorganizado em paz por esta época de século sem bússola. Como olha para a manutenção do Direito de Macau e o ensino do Direito em Macau? A lei, pelo que com interesse vou ouvindo, tem sido respeitada, e assim julgo que continuará, um facto que justificará a importância e autenticidade do ensino multicultural. Compreendi que passaram anos suficientes, pelo que as saudades crescem, por vezes, mais do que a informação, mas nesta evolução espero que o bom futuro tenha maioria. Falando agora dos primórdios da sua carreira, enquanto ministro do Ultramar. Que papel tinha Macau para o Estado Novo? E, como ministro, que visão tinha para o território? O problema de Portugal nessa época, e segundo o que foi aprovado na ONU, não abrangia Macau, que a China não considerava uma colónia: não se trata de independência, mas de fim do acordo cumprido mutuamente por ambos os Estados, sem violar a paz da cooperação chinesa e portuguesa. A África era outra questão porque correspondia à decisão da ONU de colocar um ponto final no Império Euromundista, que abrangia, com dificuldades, a Holanda, a Bélgica, o Reino Unido, a França, Portugal. A questão de Portugal foi severa, mas a minha intervenção está longamente escrita, e não teve a menor dificuldade com Macau. Havia a preocupação de que aquilo que se passava em Goa, Damão e Diu pudesse, de certa forma, afectar Macau e Timor? Como foi gerida essa tensão na Índia Portuguesa? A questão de Timor, que o povo sofreu, mas com coragem, começa, julgo, no facto mais cruel, porque a entrada de Portugal no chamado regime de Neutralidade Cooperante, de resto imposto por ultimato, não incluía os territórios do Oriente. Daqui veio o drama que os heroicos timorenses sofreram da intervenção brutal dos japoneses, e mais tarde da invasão indonésia. Tive a intervenção que pude organizar, sobretudo nas Nações Unidas, mas a única coisa que tem valor destacar foi a coragem do povo. Passaram muitos anos, e tive, no ano 2015, a surpresa de o Presidente de Timor me convidar para visitar Timor, o que o meu médico proibiu. Enviaram então uma condecoração que me trouxeram a Lisboa, que me comoveu inesquecivelmente pelo sentimento expresso e que dei ao 14.º dos meus netos, um Adriano de 4 anos e afectado de má saúde, para se lembrar dela quando crescer, e sobretudo de um bom exemplo – que é Timor. A Índia não tem qualquer ligação com Timor, nem fadiga com a legalidade. Considera que Macau poderia ter tido mais desenvolvimentos socioeconómicos no período do Estado Novo? Era um território “esquecido”? Tão esquecido como a minha aldeia de Grijó do Vale Benfeito onde nasci numa família pobre de pais católicos. O esquecimento do desagradável é melhor compreendido com a relação vivida entre deveres e recursos. A ética exigente é inviolável e inesquecível. Conheci jovem, na família e na aldeia pobre e responsável, que sabiam e procediam com a relação assumida desses factores. Um grande escritor português, Miguel Torga, atribuiu isto ao “espírito santo do povo”. No meu tempo de vida com Macau nunca o vi ou reconheci como uma colónia. E que as boas relações continuaram quando o acordo findou, sem descurar as relações futuras, apreço respectivo, e população de ambas as origens, mas solidárias. É um bom exemplo, neste globo sem bússola.
Salomé Fernandes EntrevistaNg Kuok Cheong, deputado e fundador da UDD: “Aos cinco anos fui vendido” Foi comprado por uma família de Macau e chegou a deputado. Durante este percurso, Ng Kuok Cheong foi um dos fundadores da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia. Em entrevista ao HM, o deputado sublinhou que não ambiciona mudar a China Continental, mas mantém-se fiel ao fardo de recordar o que aconteceu em Pequim [dropcap]A[/dropcap]ntes de o massacre acontecer já tinha consciência política. Quais eram as suas principais preocupações? Naquela altura era estudante, formei-me e fui para o banco trabalhar. Depois, à noite, participava em algumas actividades sociais. De acordo com o meu conhecimento, Macau ia mudar, já que ia regressar à China. E sentia que a sociedade chinesa não se preocupava com o que ia acontecer e mudar. Não estava optimista nem triste: a China ia recuperar Macau, mas podia ter uma ideia mais aberta, ou não. E Portugal ia desistir de Macau, mas antes de ir embora queria fazer alguma coisa. Como residentes de Macau devemos preocupar-nos com o que acontece e [reflectir sobre] o que queremos apoiar e manter em mente. Na altura, era um jovem. Discutia com os meus amigos e a preocupação era com Macau. O que aconteceu em Macau e Pequim nesse ano foi muito importante, não só para mim, muitos cidadãos de Macau sentiram que era importante e tínhamos de prestar atenção. Na altura, os meios de comunicação locais e de Hong Kong todos os dias davam informação. Debatíamos quase todas as noites. O que levou à criação da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia? Em 1989, de Maio a Junho tentámos organizar actividades sociais. Quando isso acontecia aconselhávamos o Governo. Sentimos que devíamos tentar juntar-nos. Mas depois do 4 de Junho, subitamente, sentimos que em Macau a maioria da sociedade virou costas. Sentimo-nos surpreendidos, mas claro que não os condenamos, sabemos porque o quiseram fazer. Mas para mim temos o dever de insistir no que acreditamos serem os factos e depois organizámos a União. (…) Não para a China, mas para Macau. Macau é uma cidade muito pequena e não consegue mudar toda a China Continental. Mantemos os factos desse dia porque sentimos que temos de promover a democracia em Macau, não na China. No dia a seguir ao massacre muita gente saiu à rua em protesto. Estava lá? Claro. Tínhamos recomendado ao Governo a actividade. Claro que quando o fizemos não sabíamos o que ia acontecer, mas depois dessa noite muita gente saiu à rua (…). Na noite antes, chegou informação pela televisão. A maioria dos cidadãos saiu à rua. Não [só] os membros da nossa união, mas todos os residentes sentiram que era muito importante, a sociedade tradicional chinesa também pensava isso. Mas depois do início de Junho mudaram. Quando olhamos para as vigílias dos últimos anos poucas centenas aparecem. Porquê? Talvez a maioria das pessoas sinta que aquilo que fazemos não pode influenciar a China, por isso não têm esperança neste movimento e não saem. Mas ainda há pessoas que insistem em sair durante muitos anos. Isto não significa que sentem que podem mudar a China (…). É diferente de Hong Kong, acho que as pessoas de lá sentem que podem liderar todos os chineses do mundo para mudar a China. Para nós, desde o primeiro dia da União, sentimos que Macau é muito pequeno e não tem poder. A China pode mudar, mas não por Macau. Porém, temos o fardo de recordar. Quando desenvolveu consciência política? Quando acabei a educação secundária em Macau fui para a Universidade Chinesa de Hong Kong. Passei muito tempo a estudar o que aconteceu política e economicamente na China, não só a aprender do ponto de vista académico. Claro que estudei, a minha licenciatura é em economia, mas o mais importante é que quando tinha cinco anos de idade fui comprado por uma família em Macau. Nasci em Cantão, mas quando tinha cinco anos fui vendido. Queria saber porquê. (…) Sei que a China nessa altura estava a passar pelo chamado ‘Grande Salto em Frente’, houve muita pobreza e muita gente ficou sem meios de subsistência, então vendiam os filhos. Dormi várias noites na biblioteca para descobrir o que aconteceu. Pensei que a China ia mudar. Por isso, de acordo com o meu conhecimento de então, o que aconteceu em 1989 foi um ponto crítico para a China. A maioria dos jovens tornou-se adulta, a força laboral era muito forte, o modelo produtivo social podia adoptar estas forças laborais para desenvolver o país. Era um ponto crítico. Não podiam continuar com o modelo antigo, em que cada um devia distribuir riqueza. Portanto, a China estava a mudar, mas que estrada ia seguir? De acordo com o meu conhecimento, Deng Xiaoping abriu portas à experiência de adoptar o capitalismo, mas naquele tempo não havia sistema democrático para supervisionar o Governo, por isso muitas pessoas ricas, e recursos saíram. Os estudantes universitários sentiram que o país estava a ficar rico, mas eles eram pobres e não conseguiam encontrar trabalho e queriam perguntar aos seus líderes: porquê? E tiveram um movimento de 1987 a 1989. Queriam alguma mudança. Talvez não fossem tão maduros, mas descobriram a pergunta. A resposta do Governo Central foi um ponto crítico. Na altura, não prestava atenção ao mundo, só a Macau e à China. Agora olho para as coisas de outra forma. Aconteceram muitos movimentos sociais na Ásia, o capitalismo e o comunismo enfrentaram desafios muito importantes incluindo na Coreia, Filipinas, Indonésia. Depois de 1989 decidiram desistir do comunismo completamente. Seguiram a via do capitalismo do Estado usando a força laboral e absorvendo técnicas do mundo capitalista para desenvolver a economia depois dos anos 90. Mas [não responderam] sobre o porquê de terem matado as pessoas. Na Polónia, na Alemanha Oriental, foi-se desistindo do comunismo depois de 4 de Junho e mudaram totalmente. Mas o Partido Comunista Chinês não mudou, não enfrentou esse fardo. Quer controlar o país para sempre. O Governo de Macau diz que são precisos mais regulamentos de segurança nacional. O que sente em relação a isto? É uma ideia política do Governo Central. Não estou muito surpreendido. Na universidade calculei que a força laboral da China se ia tornar forte depois de 1963, aumentar anualmente durante 50 anos, até 2013. Assim sendo, significa que nos últimos 25 anos construímos um país muito forte. Nenhum país consegue providenciar em 20 anos tanta força laboral. Depois de 2013, a situação mudou. A China tentou reduzir a natalidade e depois desse ano a mão-de-obra começa a descer. As pessoas idosas dependiam dos jovens. Isto vai continuar por cerca de 25 anos. Com a força laboral a descer na China, muitas pessoas dependem de outras para comer. O crescimento forte do país ia parar, precisávamos mudar a estrutura. (…). Agora podemos ver o que aconteceu. Desde cerca de 2013, o Governo Central, especialmente o Partido Comunista Chinês adoptou uma nova decisão. Antes o caminho era seguir Deng Xiaoping, que dizia que passo a passo tudo se podia abrir. O novo caminho é fortalecer a liderança do Partido Comunista Chinês e lidar com o mercado livre. De acordo com o meu conhecimento, a nova decisão não é assim tão boa. Dizem às pessoas que somos muito fortes, mas a força não foi de Xi Jinping, resultou dos líderes anteriores e dos anos que já passaram. Só se pode desafiar o mundo por causa da riqueza do passado. Por isso, a China e o Governo Central vão enfrentar alguns perigos no futuro. Claro que Macau é muito pequeno, não podemos mudar a mente do Governo Central nisto, mas podemos continuar para ver o que acontece. Qual é o futuro da democracia em Macau? Em Macau, daqui a cinco ou mais anos vamos enfrentar diferentes dificuldades. A primeira é a nova decisão do Governo (Central). Vão parar todos os democratas, se sentirem que não apoiam a sua governação. É uma matéria pessoal, mas não acho que seja uma boa decisão. Talvez no futuro enfrentem perigos ou mudanças. Por outro lado, em Macau agora temos 15 anos de educação gratuita e 90 por cento dos jovens vão para a universidade. O nível académico é muito bom e o crescimento económico também melhorou. O PIB per capita é muito bom. Comparando, o salário dos jovens de Hong Kong é baixo, quase não tiveram aumentos face a 1997, mas em Macau já subiu 300 por cento em comparação a 1999. Por isso, a situação é completamente diferente. Digo aos jovens de Macau que devem sair e falar porque têm um nível académico alto e sabem muitas coisas, podem apontar o que está errado na sociedade. Mas quando saem só posso sugerir para se juntarem a uma luta feliz. Não por serem pobres, mas porque sabem o que está errado. Actualmente, o ambiente económico das pessoas não é tão mau em Macau, e o papel que a família desempenha na sociedade é muito positivo. Como é que a sociedade tradicional chinesa olha para as suas ideias políticas? Os meios de comunicação chineses ainda têm algumas reportagens anteriores à nova decisão do Governo Central. Acho que os líderes da sociedade tradicional têm conhecimento sobre o 4 de Junho. Não prestam atenção porque acham que não lhes é adequado. Assim sendo, não falam, não prestam atenção e não recebem informação da internet. Sabem o que aconteceu nesses anos, mas sentem que a realidade mudou. Macau nessa altura ainda era muito pobre, agora é muito rico. Por isso, a maioria dos líderes da sociedade tradicional acha que o seu maior fardo é manter a riqueza actual. Nasceu na China, mas cresceu em Macau. É imigrante. Porque é que na Assembleia Legislativa defende tantas diferenças de tratamento entre residentes de Macau e trabalhadores não residentes? Não devemos enfatizar as diferenças. Prestamos atenção apenas à política de emprego, a protecção de direitos humanos devia ser igual. Em Hong Kong podem contratar-se empregadas domésticas de outros lados, mas a maioria dos outros trabalhadores são de Hong Kong, por isso entendem que podem manter bons salários. Mas em Macau há uma ideia diferente, temos muitos trabalhadores do exterior para apoiar a escala económica. Para as pessoas locais devemos aceitar estrangeiros, incluindo da China Continental, mas a quantidade é muito importante. Qual é a diferença? Em demasia vai destruir completamente o mercado laboral em Macau. Por isso, temos de prestar atenção. Se continuarmos com esta escala económica devemos aceitar uma certa proporção de trabalhadores que vêm não só da China Continental como de outros países. Mas devemos manter uma quantidade adequada. No entanto, os direitos laborais devem proteger todos.
Andreia Sofia Silva EntrevistaPeter Stilwell, ex-reitor da Universidade de São José: “Somos procurados por alunos de Hong Kong” Peter Stilwell deixa a reitoria da Universidade de São José com a sensação de dever cumprido, esperando novos desenvolvimentos para o departamento de português. O ex-reitor, substituído por Stephen Morgan, defende que a pandemia da covid-19 pode levar os alunos de Macau a olhar mais para as instituições de ensino superior locais. Por outro lado, a instabilidade social e política em Hong Kong obriga estudantes a ver Macau como opção [dropcap]Q[/dropcap]uando assumiu o cargo de reitor encontrou uma universidade a precisar de reestruturação. Quais eram os principais problemas de gestão da Universidade de São José (USJ)? Havia três ou quatro pontos prioritários. O primeiro tinha a ver com as finanças, pois o dinheiro que havia na altura esgotava-se no final do mês de Maio e já havia problemas com o pagamento de salários de Junho. Depois, era necessária organização académica. Havia uma multiplicidade de cursos, muitos deles criados para viver à base de sinergias com outros cursos. Isso significou um trabalho de análise aos cursos que existiam, reduzi-los a uma dúzia, eliminando cursos de ultra especialização. Penso que fechei 30 cursos na altura. Ao mesmo tempo era preciso olhar para o quadro docente. Havia professores que estavam subaproveitados, porque não havia trabalho suficiente para todos. Um terço dos professores que estavam no quadro foram despedidos. Isso teve de ser feito em três meses antes de começar um novo ano lectivo. Depois, a entidade titular da universidade, a Fundação Católica para o Ensino Superior, não era convocada há bastante tempo e isso criou uma situação delicada ao nível das relações com a Fundação Macau. Isto porque o financiamento para o campus e projectos submetidos deveriam passar pela entidade titular, e com uma entidade dispersa isso não funcionaria. Convocou-se uma reunião dois dias depois de ter chegado e tudo começou a funcionar regularmente. Não havia então comunicação entre a Fundação Católica e a reitoria da universidade. Essa foi uma das razões pelas quais fui chamado a reorganizar a universidade. A reitoria achou que poderia funcionar de forma autónoma sem passar pela entidade titular, e criou-se um problema juridicamente complicado. Havia a questão do campus, tinha-se feito a colocação das estacas no terreno e o concurso, mas ficou tudo em suspenso, sem decisão. O concurso terminava em Junho e era necessário decidir que empresa iria construir o campus. Foi a Fundação Católica que tomou a decisão. A USJ apostou no ensino da língua portuguesa. Com essa aposta, a USJ chegou a outro patamar? Já se ensinava português na USJ, mas era apenas um ano lectivo para todos os alunos da licenciatura. Quando organizámos a minha segunda equipa de vice-reitores convidei a professora Maria António Espadinha, conhecida aqui em Macau por ter experiência na área. Ela ajudou-nos a montar um mestrado na área do português. Queríamos oferecer algo de mais avançado em relação ao que já existia. A primeira edição do mestrado funcionou de forma interessante, mas rapidamente percebemos que havia espaço para tentarmos outra coisa. O Governo aproximou-se de nós e pediu-nos para fazermos o teste dos diplomas de associado, de dois anos, e tentámos abrir um diploma de associado na área da tradução do português-chinês. Foi um sucesso. Isso levou ao pedido para uma licenciatura. E é o que existe neste momento, com algum sucesso, pois todos os anos temos alunos candidatos. Gostaríamos que o departamento de português se fortalecesse. Numa instituição privada como somos, sem grandes recursos financeiros, as coisas são sempre muito lentas, temos sempre de construir à medida daquilo que os alunos procuram. Espero que com a nova direcção o departamento de português ganhe ainda mais fôlego do que tem actualmente. Relativamente ao pedido para alunos da China frequentem a USJ. Deixa o cargo de reitor sem essa autorização. É uma pergunta que também faço e não sei responder. A questão não está do nosso lado. Tudo fizemos, batemos em quase todas as portas, pode ser alguma em que não tenhamos batido. Talvez o meu sucessor consiga descobrir a chave para a questão. O problema não está do lado da Direcção dos Serviços do Ensino Superior, que nos tem apoiado sempre em relação a esta proposta. Em Pequim, fomos aos serviços da tutela do sector religioso, disseram que o problema não era deles. No Ministério da Educação disseram-nos que não havia problema nenhum em a USJ recrutar alunos, e está assim a questão. Não há nenhuma resposta concreta, não há um sim ou um não concreto. Aguarda-se que o tempo apropriado chegue. No entanto, houve um benefício disso. Qual? Quando chegou o novo coronavírus, enquanto outras universidades e institutos tiveram um problema de terem os seus alunos na China, nós pudemos fazer a transformação da nossa universidade numa universidade online no espaço de 10 dias. Ao contrário do que aconteceu com outras instituições, na USJ não houve uma única queixa de alunos, e confirmámos isso com uma sondagem que acabámos de fazer. Temos 800 alunos com aulas regulares, 70 por cento responderam de forma positiva. Para mim, é uma satisfação ver a universidade trabalhar como equipa. Quem procura a USJ nos dias de hoje? Alunos de Hong Kong, de Macau, de outros países? De Hong Kong começamos a ter procura, o que é curioso. Deve ter a ver com a instabilidade que se vive em Hong Kong, porque normalmente Hong Kong não olhava para Macau neste campo, havia essa questão cultural, de Hong Kong olhar para Macau de cima para baixo. Macau vem-se afirmando gradualmente na área do ensino superior, com grande investimento do Governo, com muito trabalho do GAES e agora da DSES, e as instituições melhoraram em termos de qualidade. Temos recebido alunos estrangeiros, uma parte deles são funcionários locais de empresas que procuram ensino em inglês. E aqui penso nos mestrados que cresceram nos últimos anos. De ano para ano mantemos a proporção de 70 por cento de alunos locais e 30 por cento de alunos internacionais, de nacionalidades diferentes. É uma coisa a desenvolver, mas a reflexão que faço com os meus colegas nesta altura é que o panorama é capaz de mudar nos próximos dois anos. Em que sentido? As dificuldades nas viagens vão levar a que famílias e alunos de Macau, que antes procuravam ensino superior fora de Macau, comecem a achar que o território é um local mais seguro para estudar. Enquanto o coronavírus não passar, se calhar vêm bater à porta das instituições locais e talvez a beneficiemos disso. Outra grande área do ensino em Macau é o Direito. A USJ parece nunca ter apostado muito nessa área. Deixou bases para esse projecto? Criámos um centro de estudos e lançámos este ano um mestrado na área do Direito. Decidimos que a melhor aposta seria nos mestrados, pois as licenciaturas são sempre uma coisa pesada. Coloca-nos em concorrência com o ensino do Direito na Universidade de Macau, onde tem estado tradicionalmente colocado. Depois para montar a licenciatura é preciso garantir que funciona quatro anos e ter um corpo docente especializado. Não é fácil encontrar doutorados em Direito dispostos a vir para uma pequena universidade para algo que pode não vingar. É uma possibilidade trabalharmos com a Universidade Católica Portuguesa (UCP) pois tem uma faculdade de Direito de grande prestígio. Sai da reitoria da USJ com uma questão judicial pendente, o processo colocado por Eric Sautedé. Qual o seu comentário relativamente ao caso? Não há nada a dizer neste momento, porque o processo está na justiça. Mas lamenta deixar o cargo de reitor com estas suspeitas de censura, com acusações de pôr em causa a liberdade académica na USJ? Não me pronuncio. O que espera para a USJ com Stephen Morgan? Compete-lhe dizer aquilo que pretende fazer na universidade, não me antecipo ao que o meu sucessor fará. A universidade encontra-se num bom momento de desenvolvimento interno, de contexto da relação com Macau em geral. O que acho que não consegui fazer, e que é importante a universidade conseguir, é estabelecer uma melhor ponte com a comunidade de língua chinesa em Macau. Conseguiu fazer uma ligação às comunidades de língua portuguesa, sentirem que a universidade espelha os interesses e valores que a comunidade macaense tem encarnado ao longo dos séculos, de encontro de culturas e ao nível da espiritualidade. Macau, além do jogo, é um lugar de formação de missionários para todo o sudeste asiático e, neste momento, formamos anualmente 60 alunos que são de todo o sudeste asiático. É algo que remonta aos tempos do Colégio de São Paulo. A área da Teologia tem, portanto, espaço para crescer. Prevêem-se mudanças nessa área? Os cursos vivem da estabilidade. As congregações religiosas apostam em cursos que mostraram ser válidos. O curso tem articulação com a UCP e isso dá alguma estabilidade e segurança a quem queira vir aqui estudar. Mesmo em termos eclesiásticos, a possibilidade de circular depois por outras entidades católicas e faculdades de teologia está garantido. A Santa Sé estabeleceu regras novas para o ensino da teologia e filosofia. Na UCP essas regras estão a ser implementadas, a USJ irá funcionar em articulação com isso. A USJ apostou no ensino do patuá. Como está a procura pelo curso? Não temos uma licenciatura, mas temos alguma especialização nessa área que gostaríamos de ver crescer. Falo do desenvolvimento de pós-graduações ou doutoramentos, pessoas que queiram estudar os crioulos portugueses do Oriente. Temos quem tenha capacidade para acompanhar esse tipo de estudo. Depois desta experiência, quais são os seus planos? Vou voltar para Portugal quando os voos regressarem ao normal. Estou em contacto com o bispo, que é o patriarca de Lisboa, e disse que estou disponível para qualquer coisa que ele necessite no próximo ano. Mas pedi-lhe algo mais leve, pois estou com funções administrativas há 18 anos e é bastante esgotante. Tenho gosto pela parte da escrita, leitura, investigação. Há coisas que gostaria de pôr por escrito. Queria ter um ano sabático.