Helena de Senna Fernandes sobre impacto da pandemia no turismo: “Já deixámos de fazer previsões”

A directora dos Serviços de Turismo confessou à agência Lusa que a constante alteração dos dados relativos à pandemia da covid-19 fez com que o Governo tenha deixado de fazer previsões. Helena de Senna Fernandes fala de um aumento do desemprego no sector e defende que a normalização do turismo em Macau só vai acontecer depois do surgimento da vacina contra a covid-19

 

[dropcap]A[/dropcap] normalização do turismo em Macau, território que em 2019 recebeu quase 40 milhões de visitantes, só será possível com uma vacina para a covid-19, disse à Lusa Helena de Senna Fernandes, directora dos Serviços de Turismo. “Muitos países neste momento estão a testar as possíveis vacinas. Espero que as vacinas ajudem a dar confiança a recomeçar o movimento de turistas”, afirmou.

As indicações que têm sido dadas por diferentes fontes, explicou a responsável, apontam que a retoma de viagens é “muito condicionada pelo aparecimento de vacinas”. No início da semana, cientistas da Universidade de Oxford afirmaram que os resultados preliminares de testes a uma vacina contra a covid-19 mostraram que provocou uma resposta imunitária em centenas de pessoas. Após testes com cerca de mil voluntários iniciados em Abril, os cientistas disseram que a vacina produziu uma resposta imune dupla em pessoas com idades entre os 18 e 55 anos, que duraram pelo menos dois meses, refere o artigo publicado na revista Lancet.

Apesar destes resultados animadores, não só desta vacina, mas também de outras que estão a ser testado, Maria Helena de Senna Fernandes admitiu ser “muito difícil dizer quando essas vacinas com efeito vão ser produzidas e em que quantidade vão ser produzidas”.

Macau foi um dos primeiros territórios a identificar casos de covid-19, tem ainda as suas fronteiras praticamente encerradas. Por essa razão, o número de visitantes em Macau caiu mais de 90 por cento em Junho e 83,9 por cento no primeiro semestre, em relação a iguais períodos de 2019. “Em Junho só tivemos 22 mil turistas”, afirmou a responsável, lembrando os últimos dados oficiais, divulgados na segunda-feira. Antes da pandemia, reforçou, o número de turistas diário era muito superior ao registado em todo o mês de Junho.

“Já deixamos de fazer previsões” por causa das medidas que vão sendo actualizadas, disse, ao ser questionada sobre qual seria a aposta do número de visitantes até ao final do ano. Nos primeiros seis meses do ano visitaram o território 3.268.900 pessoas, quando no mesmo período de 2019 Macau tinha sido visitado por mais de 16,5 milhões.

“Mesmo com o teste nucleico é difícil de ter uma retoma em grande quantidade de turismo. Porque vai ser condicionado pelo número de testes que podem ser possíveis de fazer”, avançou.
Macau está a tentar reforçar o número de testes, mas esse número para já só chega a 7.500 pessoas por dia, disse.

“Vai ainda haver bastante dificuldade de muita gente ter acesso a testes”, explicou, reforçando: “não estou a prever grandes números de movimentos de turistas” porque ainda há muita gente que precisa destes testes para visitar as famílias no interior da China.

Só quando houver testes para estas pessoas é que se pode pensar numa normalização do movimento de turistas, detalhou Maria Helena de Senna Fernandes.

Desemprego a subir

Relativamente à taxa de desemprego, que já ultrapassou os três por cento, Maria Helena de Senna Fernandes disse que o impacto se verifica sobretudo no sector do turismo, considerado o pilar da economia do território. “A taxa de desemprego em Macau subiu durante os últimos meses. Sabemos nós que agora já ultrapassou os 3 por cento”, revelou, esperando que os dados não piorem no território que sofre dos efeitos sócio-económicos causados pela pandemia desde meados de janeiro de 2020.

Os últimos dados oficiais das autoridades de Macau, em finais de Junho, apontavam para uma taxa de desemprego até maio de 2,4 por cento, sendo que os números agora revelados pela responsável da directora dos Serviços de Turismo (DST) representam uma subida de mais de 0,6 pontos percentuais.

“Tivemos durante muito anos taxas de desemprego com menos de 2 por cento e esta subida já é violenta para muita gente”, sublinhou Maria Helena de Senna Fernandes, acrescentando que “todos os sectores foram afectados desta vez”.

No sector do turismo, detalhou, houve um grande efeito, porque está praticamente parado há mais de seis meses. “Agências de viagens, guias turísticos, condutores de autocarros de turismo. Toda esta gente quase não teve possibilidade de ter qualquer emprego durante vários meses”, disse.

Recomeçar o sector do turismo, principalmente através do mercado interno, tem sido o objectivo do Governo de Macau, que, com os vistos individuais chineses suspensos, vê-se agora obrigado a focar-se no consumo dos próprios residentes para alavancar o sector chave de Macau.

As autoridades de Macau, recordou Maria Helena de Senna Fernandes, ofereceram cartões de consumo aos residentes, uma medida criada para relançar a economia. Um primeiro montante de três mil patacas foi atribuído aos mais de 600 mil residentes, para ser gasto em Maio, Junho e Julho. A partir de Agosto, os residentes voltam a receber mais cinco mil patacas. “Vai ajudar o sector em grande”, apostou a responsável, salientando que o principal beneficiário foi o sector da restauração.

Com as fronteiras ainda praticamente encerradas para visitantes, o Governo de Macau lançou também, a 5 de Junho, a aplicação ‘Macau Ready Go’, que integra as promoções oferecidas por várias indústrias, empresas e lojas. Em paralelo, está em vigor a isenção do imposto turístico durante seis meses e foi criado o plano de turismo doméstico “Vamos Macau”, que contempla 25 roteiros, 13 comunitários e 12 de lazer, com os residentes a receberem 560 patacas caso participem em duas excursões.

Uma campanha que vai “até finais de Setembro”, afirmou a directora da DST, data em que espera que o turismo proveniente do exterior possa recomeçar. “Julgo que a partir daí vamos ter turistas a voltar”, afirmou.

Promoção com foco na pandemia

A entrevista abordou também as novas campanhas promocionais dos Serviços de Turismo, cuja mensagem vai centrar-se na promoção de Macau enquanto destino seguro, sem casos activos e ou registo de um surto local.

Depois da pandemia, as pessoas vão alterar a forma como planeiam as suas viagens e o que procuram, afirmou Maria Helena de Senna Fernandes: “Em vez de só avaliar um destino com as atracções turísticas, também vão pensar em viagens porque esses destinos podem dar confiança em termos de protecção”.

Por essa razão, a mensagem para o exterior será agora completamente diferente, frisou.
“Antigamente só pensávamos em promover Macau com o património, a gastronomia, com o que é que as pessoas podiam usufruir e quais as atracções turísticas que as pessoas podiam ter acesso”, explicou a responsável pelo turismo da capital mundial dos casinos.

“Depois da pandemia temos de dar em primeira mão confiança para viagens para Macau. (…) Já estamos a fazer muitas novas mensagens, vídeos de promoção de Macau durante os últimos meses, alguns deles, de facto, como é que Macau está a controlar a situação da pandemia e quais são as medidas que estão implementadas (…) e os efeitos dessas medidas”, detalhou a directora dos Serviços de Turismo.

Apesar desta ‘nova imagem’ que está a ser partilhada pelas autoridades do turismo de Macau, a responsável admitiu que “neste momento ainda muitas pessoas têm medo de viajar, sobretudo viagens de longo curso”. “As pessoas vão pensar três vezes antes de viajarem”, afirmou Maria Helena de Senna Fernandes, admitindo ser “difícil saber até quando este efeito vai continuar”.

“Até voltar ao nível antes da pandemia ainda vai demorar mais alguns anos”, apostou.
Até porque, acrescentou, o grande mercado de Macau, o da China continental, ainda não retomou o turismo para fora e, mesmo o turismo entre províncias, só recomeçou há cerca de uma semana.
Para já, o foco da promoção do Governo estará centrado na China. “O interior da China vai ser o primeiro mercado que podemos trabalhar”, salientou Maria Helena de Senna Fernandes.

“Hoje em dia, o mercado onde podemos trabalhar está muito condicionado pelas medidas de migração que estão neste momento a ser implementadas em todo o mundo”, explicou a responsável pelo turismo de Macau, sublinhando que agora é necessária “flexibilidade para trabalhar em diferentes mercados”.

22 Jul 2020

Moçambique | Bispo de Pemba diz que “o mundo não tem ideia do que está a acontecer” em Cabo Delgado

[dropcap]O[/dropcap] bispo de Pemba disse hoje que o mundo ainda não tem ideia do que está a acontecer em Cabo Delgado, norte de Moçambique, onde ataques armados estão a provocar uma crise humanitária que afecta mais de 700.000 pessoas.

“Não, o mundo não tem ainda ideia do que está a acontecer por causa da indiferença e porque parece que nós já nos acostumámos a guerras. Há guerra no Iraque, há guerra na Síria e também há agora uma guerra em Moçambique”, referiu Luíz Fernando Lisboa, em entrevista à Lusa.

O fim da tarde de segunda-feira é um momento calmo nas instalações da diocese na capital provincial de Cabo Delgado, a contrastar com o resto do quotidiano agitado do bispo, marcado por pedidos de ajuda.

“Não temos ainda a solidariedade que deveria haver”, disse, apesar de considerar que a situação melhorou nos últimos três meses – em especial, sublinhou, depois de o papa Francisco ter feito referência à situação de Cabo Delgado na missa de domingo de Páscoa.

“Quando a pessoa não está sentindo na própria pele [aquilo que se passa] é difícil entender. Compreendo isso. Mas quanto mais tomamos contacto com a realidade, aí vemos a verdadeira dimensão” da crise, referiu o bispo, uma das vozes que mais se tem feito ouvir acerca da situação.

O último apelo das Nações Unidas, dirigido exclusivamente para a região, resume o drama humano. A ONU, em coordenação com o Governo moçambicano, pediu no início de junho 35 milhões de dólares para um Plano de Resposta Rápida para Cabo Delgado a aplicar até Dezembro.

A fuga da população das suas aldeias aumentou rapidamente à medida que a violência cresceu desde início do ano, refere a ONU, estimando que haja agora 250.000 pessoas que largaram tudo e procuraram refúgio seguro noutras povoações – num conflito que já matou, pelo menos, 1.000 pessoas.

Somando as comunidades de acolhimento, também já de si empobrecidas, estima-se que haja 712.000 pessoas a necessitar de ajuda e o plano pretende apoiar 354.000, cerca de metade.

Alguns dos ataques são desde há um ano reivindicados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico e a ameaça terrorista é reconhecida dentro e fora do país, tendo os grupos de rebeldes ocupado importantes vilas de Cabo Delgado (situadas a mais de 100 quilómetros da capital costeira, Pemba) durante dias seguidos, antes de saírem sob fogo das Forças de Defesa e Segurança moçambicanas.

Para as vítimas em fuga (que deixam para trás vilas quase abandonadas), a insegurança alimentar é uma das mais graves ameaças, mas não é a única.

“Não nos podemos contentar em dar comida. É muito pouco”, alertou Luíz Fernando Lisboa durante a entrevista de hoje à Lusa, salientando que “há muitos traumas”.

A alimentação “é importante, mantém as pessoas de pé, alimenta o corpo, mas há pessoas que estão quebradas, traumatizadas com tudo o que viveram”, disse, destacando que “o apoio psicossocial é essencial”.

“Estar com essas pessoas, reunir, ouvir”, criando grupos onde haja elementos preparados para descobrir os traumas “que vão necessitar de resposta”.

Há residentes no norte de Moçambique cuja vida não voltará a ser a mesma. Alguém que “perdeu a casa ou viu outra pessoa da família ser morta ou não sabe ainda onde está algum familiar”.

Lares desfeitos, com crianças separadas dos pais, uns à procura dos outros, é um cenário comum, acrescentou, escusando-se a entrar em mais detalhes de outros casos humanamente chocantes.

A própria igreja, tal como todas as congregações e crenças, perdeu catequistas e outros dinamizadores nas paróquias, o próprio bispo teve de dar ordem de saída urgente a missões cujos membros foram dos últimos a partir, sob risco de vida, para tentar apoiar populações sob ataque.

“Todos em Cabo Delgado sofremos direta ou indiretamente”, resumiu, numa província maioritariamente muçulmana (representam ligeiramente mais de metade dos 2,3 milhões de habitantes) e onde diz haver harmonia entre religiões.

Nos relatos, há também o reverso da perda, há histórias de resiliência, contou, como a de uma mulher que deu à luz enquanto fugia de uma aldeia atacada.

Parou no meio do mato e depois do parto seguiu, conta Luíz Fernando Lisboa, que logo a seguir juntou um exemplo de solidariedade: há semanas acolheu cerca de 30 crianças que se juntaram numa fuga, separados dos pais.

“Todos foram recolhidos” por familiares mais afastados ou amigos, já com casas cheias, mas sem receio de acolher mais bocas para alimentar.

O ano de 2020 está a ser o pior desde o início dos ataques armados, em 2017, disse. Hoje, tal como na altura, permanece o debate sobre as razões da violência, mas o bispo de Pemba mantém uma “esperança”: de que “a guerra termine” e que 2021 seja um ano de muito trabalho, mas em paz.

21 Jul 2020

Bernard-Henry Levy, filósofo: “Uma pandemia é uma pandemia. Não é uma guerra e não há mais guerra biológica”

[dropcap]O[/dropcap] filósofo francês Bernard-Henri Lévy questiona-se se a covid-19 fará com que as pessoas pensem nos outros além de si mesmas, e lembrou que há pessoas a morrer aos “portões da Europa”. Bernard-Henri Lévy falava à agência Lusa a propósito do seu novo livro, “Este vírus que nos enlouquece”, publicado com tradução de João Luís Zamith e André Tavares Marçal, pela Guerra & Paz.

“É possível que a covid-19 nos faça pensar em todos nós, principalmente além dos seres humanos que têm necessidades terríveis?”, pergunta o filósofo.

Questionado sobre se a situação de pandemia pode ser entendida como uma possibilidade para rever os moldes do comportamento humano, como o disseram vários responsáveis políticos, Lévy questionou: “Qual renovação?”.

“Por enquanto, vejo o retorno das fronteiras. A cacofonia na Europa. A ascensão do egoísmo. Uma retirada generalizada, e assim por diante… A contenção, em outras palavras, provavelmente era necessária. Mas como um mal necessário. Como uma medida essencial, mas ruinosa para a economia, angustiante para os indivíduos e criando muito desastre nas sociedades”, argumentou.

Levy salientou a questão da fome no mundo, cujas vítimas “foram multiplicadas por dois, ou até três”. O autor francês referiu os “sem -abrigo”, “pessoas a quem lhes é dito ‘fiquem em casa’, quando não têm ‘casa’, os refugiados da [ilha grega] de Lesbos, que nunca foram tão numerosos, e são completamente ignorados”.

“Há países, em África, por exemplo, onde quase não há covid, mas onde essa fixação obsessiva obscurece completamente pragas, a cólera, a varíola, o dengue e outras febres amarelas que não são testadas ou tratadas, sem mencionar, que, na Nigéria, por exemplo, onde há menos vítimas da covid do que pessoas baleadas pela polícia por terem rompido o confinamento, ou em Moçambique, onde o auto-proclamado Estado Islâmico está ganhando terreno com indiferença quase geral”, sentenciou.

O autor de “Este vírus que nos enlouquece” referiu à Lusa que a pandemia reforçou o sentimento de medo no ser humano: “O medo é um problema, sim. Primeiro, porque é absurdo: esta pandemia tem precedentes, um vírus como este, houve e ainda haverá muitos, e este vírus, além disso, é menos letal que outros, mas acima de tudo o medo é um sentimento negativo que nos faz perder a cabeça”.

No prólogo da sua obra, Lévy refere que este tipo de desastre “sempre existiu” e recorda a gripe espanhola que causou 50 milhões de mortes, “sem dúvida mais pessoas do que a covid alguma vez vitimará”. Levy recorda ainda a gripe de Hong Kong, depois de 1968, que causou a morte a um milhão de pessoas, “com lábios cianóticos, hemorragia pulmonar ou asfixia” ou ainda, a gripe asiática que surgiu na China, passou pelo Irão, Itália, leste da França e América.

“O mais impressionante é a forma, muito estranha como estamos a reagir”, escreve o autor, realçando “o medo que se abate pelo mundo” que paralisa os mais ousados. O autor francês refere no livro como cidades se esvaziaram e se tornaram cidades-fantasma, bem como a “retórica do inimigo invisível”. À Lusa afirmou: “Uma pandemia é uma pandemia. Não é uma guerra e não há mais guerra biológica”.

A obra, na qual contesta a ideia de que depois da covid-19 “nada vai ser como antes”, divide-se em cinco partes: “Volta, Michel Foucault”, “Surpresa Divina”, “O Delicioso Confinamento”, “A Vida Dizem Eles”, e “O Adeus ao Mundo?”.

Bernard-Henri Lévy completa 72 anos em Novembro próximo, tem formação como epistemólogo e faz parte da denominada “Nova Corrente Filosófica” surgida no final da década de 1970. Assina, semanalmente, uma crónica na revista Le Point. Nascido em Argel, Lévy foi discípulo do físico e filósofo Georges Canguilhem (1904-1995).

17 Jul 2020

Stephanie Chiang, fundadora e directora do projecto Girls in Tech Macau: Ligação a Hengqin “ajuda muito”

Fundado nos Estados Unidos, o movimento Girls in Tech chegou a Macau o ano passado por iniciativa de Stephanie Chiang. A trabalhar na área do marketing digital, a responsável pretende apostar em mais recursos educativos para fomentar a ligação das mulheres à tecnologia. Stephanie Chiang defende que será difícil que a tecnologia se transforme num sector económico de peso por si só devido à falta de talentos, mas acredita que a ligação a Hengqin constitui uma ajuda fundamental

 

[dropcap]A[/dropcap] Girls in Tech Macau apresentou o seu primeiro evento na RAEM em Setembro do ano passado. Quais são os vossos principais objectivos?

A Girls in Tech é uma organização sem fins lucrativos com um programa internacional e foi criada em 2007 pela primeira vez nos EUA. O objectivo é promover o diálogo e partilhar as nossas experiências. O ano passado apresentei a candidatura [para fundar o Girls in Tech em Macau]. Felizmente em Fevereiro do ano passado recebi a aprovação para trazer o projecto para cá e fizemos o nosso primeiro evento em Setembro. Temos a ideia de criar uma associação sem fins lucrativos, mas está apenas na fase de projecto, ainda não foi oficialmente criada. Pretendemos construir uma comunidade segura, diversa e inclusiva para as mulheres de Macau apaixonadas por tecnologia e empreendedorismo. Oferecemos oportunidades educativas e de networking para ajudar as mulheres a descobrirem os seus poderes.

Que outros projectos pretendem desenvolver?

Queremos promover programas na área do marketing digital e partilha de experiências por parte de mulheres empreendedoras. Todos os eventos que tínhamos programados para este ano tiveram de ser adiados por um ano devido à pandemia. Mas vamos organizar o concurso “She Loves Tech Hong Kong, Taiwan & Macau District” tendo Macau como parceiro organizador. Trata-se da maior competição mundial ao nível da tecnologia e das startups e que irá acontecer online a 26 de Setembro. Ainda estamos à procura de candidatos de Macau.

Quais são os principais desafios que as mulheres em Macau enfrentam nesta área?

Penso que há uma falta de recursos de aprendizagem. Acho que é muito difícil desenvolver conhecimentos na área da codificação ou programação, e foi por isso que decidimos trazer este projecto internacional para Macau, a fim de providenciar mais recursos de aprendizagem para os locais.
Acredita que as universidades necessitam de investir mais recursos na área da investigação tecnológica?
As universidades já investiram muitos recursos nesta área, mas há ainda muitas empresas que dizem não conseguir encontrar os talentos de que necessitam. Poderíamos ter mais workshops na área da tecnologia ou hackathons [maratonas de programação] para providenciar outros recursos internacionais e oportunidades para que os estudantes locais aprendam com os talentos de outras cidades. Isso pode ser motivador para eles.

Têm alguns programas em conjunto com universidades locais?

Ainda não temos qualquer cooperação com universidades locais. Também sou uma das fundadoras do Macau Startup Club, que é mais diverso e não está apenas virado para as mulheres. Nesse projecto fazemos vários eventos na área das startups e trabalhamos muito com as universidades e com as PME. Temos uma iniciativa chamada “Startup Weekend”, onde juntamos estudantes universitários para que possam conhecer melhor o universo das startups. Trabalhamos com a Universidade de São José e Universidade Cidade de Macau.

Que análise faz à tecnologia que se vai desenvolvendo no meio académico?

Pelo que sei as universidades têm investido muitos recursos na área da tecnologia. Sei que a Universidade de Macau e a MUST já investiram muito, mas talvez nem todos os alunos estejam interessados neste tipo de investigação. É preciso motivação e é necessário aprender com alunos de outras cidades. Tive um projecto e queria encontrar alunos locais para colaborarem comigo, mas não consegui. Eu tinha um projecto relacionado com electricidade e não consegui encontrar nenhum colaborador que estivesse familiarizado com esta área. Uma das razões pelas quais isto acontece é pelo facto de não haver muitas empresas que exijam este tipo de formação. O que também se deve ao facto de Macau não ter uma economia diversificada. Noutras cidades é muito fácil encontrar estes sectores-chave na área da tecnologia e quando os alunos terminam os seus cursos conseguem facilmente encontrar trabalho, mas em Macau mesmo que façam um curso nesta área não conseguem especializar-se.

Considera que Macau tem condições para se tornar num hub tecnológico, com maior competitividade, à semelhança do que acontece com cidades como Shenzhen e Hong Kong? 


É muito difícil. Não temos um bom ambiente para que isso aconteça. Não temos muitas indústrias. O facto de estarmos ligados a Hengqin, em Zhuhai, ajuda muito pois permite que empresas abram as suas sucursais na Ilha de Hengqin e, dessa forma, pode-se construir um ambiente favorável e mais competitivo. Sem Hengqin é difícil devido à falta de espaço e pelo facto de a população em Macau ser reduzida. Graças ao programa de financiamento para “Projectos de Investigação Científica realizados através da Cooperação entre Duas Partes” já há quatro laboratórios de Macau com presença em Hengqin e que têm como objectivo tornarem-se centros internacionais de inovação. Trabalham em áreas como a medicina tradicional chinesa, cidades inteligentes, chips, Internet, ciência especial. O Girls in Tech Macau gostaria de promover soluções tecnológicas para ajudar as PME com as suas operações diárias e também para que haja uma transformação digital.

Há capacidade para que a tecnologia seja um verdadeiro sector económico?

Penso que será sempre um sector interligado com outros. É difícil fazer com que a tecnologia constitua um sector económico por si só. Mas podemos associar a tecnologia à cultura ou ao desporto, por exemplo. Estas áreas podem usar a tecnologia em prol da diversificação e do desenvolvimento do sector. Macau continua a não ter talentos suficientes na área da tecnologia e é necessário investir mais em educação. Sem dúvida que a tecnologia pode ser, no futuro, uma área importante, mas neste momento só se pode desenvolver com outras indústrias em prol de uma maior inovação.

As mulheres, em Macau, têm menos oportunidades do que os homens na área da tecnologia?

Têm oportunidades, mas não há muitas mulheres a optarem pela informação tecnológica como área de formação. Sentimos que esses cursos muito técnicos são mais escolhidos por homens. E digo isto porque há dois anos tentei fazer um evento ligado ao empreendedorismo feminino nas startups. E quando estava à procura de pessoas para participarem na nossa iniciativa descobrimos que eram raras as mulheres que estavam no ramo da tecnologia, a maior parte dos participantes era do sexo masculino. Não foi fácil encontrar membros do júri ou mesmo participantes por esse motivo. Penso que é uma questão cultural e que também está relacionada com a falta de recursos de aprendizagem. No entanto, sei que há cada vez mais mulheres com cargos de topo em empresas de tecnologia, o que requer capacidades de gestão e de comunicação. É uma transformação que vem provar que a tecnologia não está apenas ligada à programação ou à criação de códigos, é mais diversa e inclusiva. No Girls in Tech Macau queremos promover que a tecnologia é para todos, com diferentes ferramentas.

Relativamente à tecnologia na área do jogo, Macau poderia investir mais neste sector?

Sei que há algumas startups que já trabalham com os casinos. Há uma incubadora que trabalha com casinos e desenvolve manufactura na área do jogo e soluções tecnológicas relacionadas com o entretenimento. Uma vez que o jogo é a actividade económica principal talvez seja mais fácil desenvolver a tecnologia neste sector, mas não só. Penso que poderíamos associar também a tecnologia ao sector artístico, por exemplo.

14 Jul 2020

Jenny Guan e Sandy Sio, académicas: “Casinos estão a estender apoio às PME”

A liberalização do jogo mudou a forma como empresas e a sociedade olham para a responsabilidade social corporativa. Com a renovação das licenças de jogo no horizonte, as académicas Jenny Guan e Sandy Sio, do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau, defendem que a responsabilidade social vai assumir maior peso nos concursos públicos. As académicas do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau destacam que com a pandemia as empresas alteraram o paradigma de actuação na sociedade

 

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue análise fazem à responsabilidade social corporativa (RSC) das empresas de Macau, em termos históricos?

Sandy Sio (SS) – As empresas têm-se focado na maximização de lucros e na responsabilidade de manter estabilidade de emprego para atingirem os seus objectivos. Depois da liberalização do jogo, Macau passou a atrair muito investimento estrangeiro com a introdução de operadoras de jogo internacionais e outras operações nas áreas financeira, construção civil, imobiliário e turismo. Com os negócios veio também uma grande comunidade de expatriados. A diversidade demográfica e das estruturas dos negócios fez com que as empresas de Macau tivessem de preencher necessidades de uma população maior e mais variada. A actual geração de gestores está mais sensibilizada para as medidas internacionais de RSC, e as empresas procuram promover os esforços socioeconómicos que fazem junto da sociedade de uma maneira mais eficiente e visível.

Como funcionavam as empresas, ao nível da RSC, antes da liberalização do jogo?

SS – Devido à restrição de recursos públicos no tempo da Administração portuguesa, o Governo estava dependente da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) e de algumas empresas estatais chinesas para assumir responsabilidades nos cuidados providenciados à comunidade de Macau e no investimento em várias infra-estruturas públicas e serviços. Esse foi o padrão até agora. Quando as empresas de Macau possuem recursos relativamente abundantes, nomeadamente os casinos e empresas estatais chinesas, partilham responsabilidades sociais com o Governo. É uma consequência dessa ligação histórica.

A chegada dos casinos norte-americanos mudou o panorama da RSC em Macau?

SS – As empresas americanas introduziram novos modelos de negócio como reuniões integradas, convenções, centros comerciais e entretenimento nas operações dos casinos, o que levou ao investimento de larga-escala. Além disso, as seis operadoras de jogo listaram-se na bolsa de Hong Kong em finais do ano 2000 para procurar mais capital para a construção e operação dos resorts integrados. A transformação da indústria do jogo, de casinos satélite para resorts integrados, constituiu uma enorme mudança na economia de Macau e no ambiente social. Com a presença em bolsa, estas empresas passaram a estar sujeitos a regras mais rigorosas em termos ambientais, sociais e de governança por parte de órgãos reguladores exteriores a Macau. As empresas americanas adoptaram padrões internacionais de RSC que também foram implementados nos seus negócios em Macau, o que resultou no aumento da consciência face às dimensões económica, ambiental e social da RSC.

A RSC é importante para haver maior aceitação social do jogo em Macau?

Jenny Guan (JG) – Mais do que afirmar que a sociedade deveria aceitar mais a indústria do jogo graças à adopção da RSC, e independentemente das expectativas do Governo ou da questão da legitimidade, a RSC deveria ser um requisito assegurado pela indústria do jogo. Isto para manter o “contrato social” que prova que as suas operações são legítimas e que trazem um novo e positivo impacto à sociedade. Além disso, algumas acções de RSC são determinadas, em grande parte, pelas características de operação das empresas, estando mais alinhadas com as práticas sociais das empresas do que com a responsabilidade dessas para obter uma identidade social.

Como por exemplo?

JG – Em termos de recursos humanos está implementado um sistema de protecção dos trabalhadores locais e as empresas de jogo providenciam mais formação e educação contínua para os residentes empregados. Isto contribui para a melhoria do nível de educação em Macau. Além disso, uma vez que as empresas de jogo adoptam padrões internacionais de qualidade, muitos seminários e formações dados aos locais ajudam as pequenas e médias empresas (PME) a melhorar a qualidade geral do seu produto e serviço.

A pandemia alterou os padrões da RSC nas empresas de Macau nos últimos meses?

SS – Antes da pandemia, muitos gestores viam a RCS como instrumento de relações públicas ou marketing para “decorar” uma imagem positiva das empresas. Contudo, em tempos de crise, muitos líderes têm apelado a respostas socialmente responsáveis do sector privado para ajudar a recuperar a economia e as actividades sociais junto da comunidade. O Governo de Macau também adoptou medidas, incluindo o encerramento dos casinos durante 15 dias e apoios à economia local. O Chefe do Executivo defendeu, numa conferência de imprensa, que os operadores de jogo deveriam contribuir para a sociedade. Notamos que as empresas e os casinos estão a responder mais aos apelos do Governo para aumentar as medidas de RSC.

Qual deve ser o papel do Governo no que diz respeito à RSC de empresas e casinos?

JG – Pode assumir a liderança da promoção de medidas de RSC nas empresas públicas e privadas, incluindo criar um quadro regulatório para alguns sectores, tal como a indústria do jogo e os serviços que operam sob concessões públicas. O Governo acaba por promover indirectamente o conceito e as medidas da RSC, que são, em primeiro lugar, inseridas nas funções governamentais e que depois se estendem às comunidades locais e aos sectores económicos. A garantia da saúde e do bem-estar em todas as idades e da educação de qualidade, bem como a promoção da aprendizagem ao longo da vida, são disso exemplos.

As medidas de RSC nos casinos podem mudar no futuro, com maior aposta nas PME, por exemplo?

SS – Vemos que há tendência dos operadores de jogo de aumentar a proporção de adjudicações a PME locais e a fomentar parcerias. Os casinos estão a esforçar-se para estender o apoio às PME através de colaborações intensivas, que tenham impacto económico positivo.

Acreditam que a RSC pode assumir um papel importante na revisão dos contratos de jogo?

JG – Sem dúvida [que vai ter um papel importante]. Especialmente quando Ho Iat Seng defendeu que as operadoras de jogo devem assumir acções de RSC “genuínas”. Depois desse alerta vários académicos e associações não governamentais defenderam que as acções de RSC deveriam estar estipuladas nos futuros contratos de concessão. Também é defendido que as acções das operadoras sejam tidas em conta aquando da realização dos concursos públicos para as novas licenças. Como se espera que o jogo seja o maior sector económico depois da revisão dos contratos, pensamos que o Governo, enquanto regulador, e os casinos, enquanto agentes do sector, devem colocar a RSC como uma grande prioridade na revisão dos contratos.

De que forma isso pode ser feito?

JG – A fim de maximizar a segurança social dos residentes e os custos sociais das operações de jogo, o Governo deve considerar o histórico da performance de RSC das operadoras que concorrerem a novas licenças. Entretanto, o Governo pode ter um papel proactivo para definir futuras obrigações.

É possível comparar o panorama de RSC das empresas de Macau e de Hong Kong?

SS – Desde 2000 que em Hong Kong se promove a RSC enquanto prática regular das empresas. Foi implementada, em 2014, uma nova ordem que decreta que devem incluir nos relatórios anuais as políticas ambientais adoptadas, bem como as relações com empregados, clientes ou fornecedores. Além disso o Hang Seng Índex lançou o Hang Seng Corporate Sustainability Index em 2010, além de ter sido lançado o Environmental, Social and Governance Reporting Guide em 2016. Neste sentido, as empresas de Hong Kong estão sujeitas a maiores obrigações em termos de performance e de divulgação dos resultados das medidas de RSC.

Em Macau há, portanto, menos regulação?

SS – Comparando com Hong Kong, o reconhecimento do público das medidas de RSC para as empresas de Macau parece estar num nível inferior. Além disso, as empresas de Macau devem melhorar a forma de comunicar as regulações a que estão sujeitas. Com estas medidas acreditamos que as contribuições de RSC das empresas locais podem ser mais reconhecidas e satisfaçam duplamente a entidade reguladora e a comunidade.

Macau faz parte do projecto da Grande Baía. Isso vai ter impacto ao nível da RSC?

JG – Nesse âmbito, o posicionamento de Macau é diferente de Hong Kong. As responsabilidades sociais das empresas de Macau não devem apenas estar de acordo com os requisitos legais do continente, mas também respeitar a direcção do desenvolvimento de Macau, tal como a diversificação económica ou a construção de um centro mundial de turismo e lazer. Além disso, as empresas de Macau necessitam de reforçar a consciência em matéria de RSC a fim de respeitar padrões internacionais em termos de fornecimento e procura de produtos e serviços para países inseridos no projecto “Uma Faixa, Uma Rota.

7 Jul 2020

Albano Martins, economista e presidente da ANIMA: “[Processo da Nam Van] foi a minha grande frustração”

Quatro décadas em Macau chegaram para Albano Martins erguer a maior associação de defesa dos animais, fechar o Canídromo, trabalhar como economista ao lado de grandes personalidades. Sai com a sensação de dever cumprido, mas descontente com a saída da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, onde foi director financeiro. “Foi uma decisão errada”, assume

 

[dropcap]O[/dropcap] futuro da ANIMA preocupa-o, agora que se prepara para deixar o território?

Preocupa-me a capacidade da ANIMA poder encontrar fundos para sobreviver. Durante vários anos fui eu que, através de pessoas importantes de Macau, consegui fundos. A Fundação Macau estabilizou nos 5 milhões de patacas, mas não há garantia de que não volte atrás, e a ANIMA tem um orçamento que dificilmente é inferior a 10 milhões por ano. Temos meses em que chegamos a ter 150 mil patacas de despesas com veterinários, nem dinheiro temos para ter um veterinário connosco, porque a nossa clínica está transformada num abrigo para animais. Esse é o maior problema, porque a ANIMA tem jovens dedicados que podem fazer esse trabalho. Estamos bem organizados e trabalhamos melhor do que muitas organizações e empresas. O problema é a capacidade para chegar aos fundos. Durante muitos anos, quando não havia dinheiro, eu próprio fazia donativos. Já pus na ANIMA mais de um milhão de patacas. Temos outra situação que incomoda, porque tivemos pessoas prepotentes que nos arranjaram problemas.

Como por exemplo?

Temos um terreno que ninguém queria, que nos foi dado há muitos anos com uma licença temporária de um ano. Tivemos uma guerra com o anterior secretário [para os Transportes e Obras Públicas], Lau Si Io, que nos congelou a licença do terreno. Houve alguma intimidação, disseram que tínhamos de sair, com o pessoal e os animais. Quando nos telefonaram disse que íamos pôr todos os cães e gatos em frente à sede do Governo. Recuaram imediatamente. Neste momento, temos um grande apoio do secretário Raimundo do Rosário. Quando ele entrou para o Governo a primeira coisa que ele fez foi dar de novo uma licença temporária, por um ano. E depois disse-nos que íamos trabalhar para ter uma licença definitiva.

Acredita que vão mesmo ter essa licença?

O secretário diz estar a trabalhar nisso. Sempre esperei que essa licença surgisse antes de me ir embora, porque sou eu o único que conheço o processo todo, que é muito complicado.

Tem algum nome para o substituir?

Tenho um nome pensado, por experiência, mas vamos ter uma reunião na próxima semana e se passo agora o nome para a imprensa vai parecer que vou forçar uma pessoa da minha responsabilidade. A ANIMA já está madura para escolher [o novo presidente]. Embora termine o meu contrato com a Nam Van em Fevereiro, tenciono ir-me embora definitivamente de Macau em Junho do próximo ano, mesmo vindo cá de três a três meses só para ajudar a ANIMA.

Parte de Macau com a sensação de dever cumprido?

Há sempre coisas que podiam ser feitas. Estive 10 anos na Autoridade Monetária onde fiz muitas coisas que não existiam cá, como o primeiro centro de formação de bancários. Consegui que as estatísticas tivessem PIB trimestral, porque naquela altura nem PIB anuais nos chegavam, ou chegavam com um ano e meio de atraso. Houve algumas coisas de que tenho algum orgulho, como por exemplo a constituição das sociedades anónimas com três pessoas. Isso surgiu com um artigo que escrevi, que o Governador gostou muito, quando disse que para formar uma sociedade anónima levava o meu cão, os meus gatos para formar as 10 pessoas necessárias para formar uma sociedade anónima, que eu não conhecia. Passados dois dias, o Governador mandou-me um projecto de lei para que o número baixasse para três sócios necessários. E isso ainda hoje se mantém.

A luta pelos direitos dos animais foi sem dúvida a sua grande bandeira.

Estou em Macau desde 1981, a luta pelos direitos dos animais começa em 2003. Nunca me tinha passado pela cabeça que não houvesse associações de defesa dos direitos dos animais. E só em 2003 é que uma pessoa me chamou à atenção para isso. Havia pessoas que estavam há 10 anos a tentar construir uma associação e não conseguiam. A primeira coisa que fiz foi pagar 20 mil patacas a um escritório de advogados, foi o meu primeiro donativo para a ANIMA. Mas nunca fui membro da direcção.

Porquê?

Sempre achei que uma coisa era apoiar a associação e outra coisa era armar-me em esperto porque era o fundador, a pessoa que estava por detrás [do projecto]. Fiquei no conselho fiscal, mas fui acompanhando a associação. Em 2007 a então presidente da associação, uma neta de Stanley Ho, apareceu no escritório cheia de problemas porque estava a gastar muito dinheiro. De facto, gastou porque não fazia campanhas, pois era uma senhora rica e achava que o dinheiro não tinha valor, quando percebeu já tinha posto na associação quatro ou cinco milhões de patacas. Eu disse que arranjava quem a substituísse, mas nunca consegui, essa foi a grande batalha. Espero que finalmente, no próximo mês, haja uma direcção onde eu não esteja.

Em todos estes anos alguma vez o acusaram de má gestão de fundos ou teve outros dissabores na gestão da ANIMA?

Nunca tive uma situação desse tipo na ANIMA. Na associação não podemos receber dinheiro sem passar recibos, não contamos caixas de donativos sem ser à frente de duas pessoas. Tive uma crítica de uma pessoa no passado, mas era uma crítica do tipo “você é um ditador”. Mas aí, acho que até tinha razão.

Sente-se um “ditador”?

Nós temos regras próprias e percebo que haja choques, e houve muitos neste período. Um deles é a ideia de que as associações de defesa dos animais têm o dever de recolher todos os animais da rua. Isso é tecnicamente impossível, e a ANIMA criou um Código de Ética que diz que só recolhemos animais que estão em perigo. Mesmo assim, temos mais de 400 cães e mais de 300 gatos. Nós não matamos, é uma das nossas vitórias, e está no Código de Ética. O animal só é abatido se estiver muito doente e mesmo assim é preciso um veterinário confirmar e dois membros da direcção aprovarem. Em Hong Kong matam-se mais animais do que o Canil Municipal de Macau, porque só ficam com os animais adoptáveis.

Olhando para trás, como encara a forma como lidou com os diversos governantes que estiveram à frente do Executivo de Macau?

De todos os governantes houve uma pessoa que ainda hoje tem uma relação belíssima comigo, me deu força e disse: “Albano, vamos pôr Macau no mapa das cidades que são amigas dos animais”. Essa pessoa é Edmund Ho. Foi ele que deu milhões de patacas para construir a ANIMA, o terreno foi dado na sua governação e sempre nos auxiliou quando tínhamos um problema. Depois da saída de Edmund Ho as coisas foram mais complicadas, mas no final do último mandato conseguimos uma maior proximidade com o Governo que não nos hostilizou, mas não tinha a vertente virada para a protecção dos animais. Ainda hoje, Edmund Ho é nosso amigo e tenho reuniões com ele. Às vezes, ajuda através de amigos que dão apoio à ANIMA.

O actual Chefe do Executivo poderá continuar a apoiar a ANIMA?

Não conheço Ho Iat Seng, nunca tive uma conversa com ele. Mas, felizmente, conheço os casinos e a maior parte deles têm apoiado. O problema é que este ano, com o coronavírus e as receitas a caírem a pique, é muito complicado, por isso é que vou continuar a apoiar a ANIMA até Junho do próximo ano. O pior que poderia acontecer, e os nossos estatutos preveem isso, era todos os nossos activos irem para o Governo caso não tenhamos capacidade monetária. Essa seria uma derrota.

Conheceu também Stanley Ho e teve uma relação profissional com a STDM e SJM. Fale-me desse período.

Vim para Macau convidado para o então Instituto Emissor de Macau por duas pessoas que me conheciam da faculdade. Saí depois para um projecto onde conheci o Stanley Ho. Não o conheci muito, só nas reuniões. Tive algumas questões privadas, assuntos que têm a ver com questões familiares que não posso revelar. Tive uma relação simpática com ele, mas era um conhecido de Stanley Ho. Na Sociedade de Empreendimentos Nam Van, ele era o presidente do conselho de administração e eu era director financeiro e ex-director adjunto e tinha essa relação com ele, mas não mais do que isso.

Como surgiu a oportunidade de ir para a Sociedade de Empreendimentos Nam Van?

Estava na Autoridade Monetária há 10 anos e, nessa altura, surgiu o empreendimento do Fecho da Baía da Praia Grande. Nesta zona à volta escoavam todos os esgotos, tudo cheirava mal. E houve um projecto para reordenar aquilo que foi assumido por uma sociedade, com interesses diversos, de chineses, portugueses. Era um projecto em que havia um empreiteiro geral, mas havia vários lotes de terreno e era preciso que alguém montasse toda a parte financeira. Desde o início, até agora, fiz toda a parte financeira da Sociedade sozinho.

A Nam Van já perdeu a concessão de vários terrenos em tribunal.

Essa foi a grande frustração da minha vida naquela Sociedade. Ver quem fez todas essas estradas, esses lagos, os parques de estacionamento todos, perder 13 lotes de terreno porque o Governo, ao longo desses anos, não fez o plano para que a Sociedade fizesse o desenvolvimento. Como poderíamos reordenar se não tínhamos o espaço reordenado? O Governo fez uma nova Lei de Terras e esqueceu-se desse pormenor, e a Sociedade não reparou nisso. Olho para esse processo e é uma grande injustiça. O Governo não vai dar as terras, mas pelo menos vai ter de indemnizar, e esse é o processo que está em curso nos tribunais. A pessoa que, durante estes anos todos, distribuiu os custos e está dentro desse processo tem o contrato terminado em Fevereiro de 2021. Como é possível? Foi uma decisão errada, mas quem decide que assuma a responsabilidade.

Está então confiante que a Nam Van ganhe nos processos por indemnização.

Se houver pessoas da Sociedade capazes de explicar tudo em tribunal, terá de ganhar. Acreditamos que os tribunais têm de estar do lado da razão. Não é pelo facto de a Sociedade ter cortado a minha relação laboral em Fevereiro que vou dizer o contrário. A responsabilidade disto tudo é do Governo, da burocracia e da incapacidade de resolução. Se a Nam Van ganhar, o Governo vai perder biliões de patacas.

Lamenta que os sectores financeiro e económico não estejam tão desenvolvidos como poderiam estar?

Claro. Acho que depois de tudo aquilo que criámos quando fui para Macau o mercado não se desenvolveu. O mercado financeiro de Macau tornou-se numa pequenina aldeia, não está vivo. Quando já estava na Sociedade de Empreendimentos Nam Van, Edmund Ho era o presidente da Associação de Bancos de Macau e pediu-me para ser o secretário-geral da associação. Eu disse que tinha de ser alguém a tempo inteiro. E todos os bancos me apoiavam, mas os ingleses disseram que não podia ir a tempo parcial. Apesar do grande esforço do Félix Pontes na formação bancária, o sistema financeiro não se modernizou, não houve progressos nenhuns. É simplesmente incrível. Falta, sobretudo, conhecimento.

30 Jun 2020

Georges Chikoti: “China está em cada país africano, mas Europa não perdeu a batalha”

[dropcap]O[/dropcap] secretário-geral da Organização dos Estados de África, Caraíbas e Pacífico, Georges Chikoti, nota que a China está hoje presente “em cada um dos 54 países africanos”, mas considera que a “batalha” está longe de estar perdida para a Europa.

Em entrevista à Lusa, em Bruxelas, o responsável angolano lembra que, ao longo das últimas décadas, a China foi progressivamente crescendo e ocupando no continente africano “um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado”, mas não tem dúvidas de que, se for esse o seu desejo, a Europa “tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, até porque pelo seu “bom e melhor conhecimento de África”.

Olhando em retrospectiva, Chikoti observa que “a Europa viveu um período de dizer ‘nós colonizámos o continente, somos culpados pela colonização’ e abandonaram” África, cujos países, e respetivas economias, foram naturalmente crescendo ao longo dos últimos 50, 60 anos.

“E neste crescimento das suas economias, eles também têm estado a lidar com vários parceiros. Surgiu a China, uma China que entrou em África no início dos anos 60 de maneira muito tímida, que não mostrou e não indicou muita coisa”, tendo a construção do Tazara, linha ferroviária a ligar a Tanzânia à Zâmbia co-financiada por Pequim, sido “provavelmente uma das primeiras grandes obras que fizeram em África”, juntando-se a construção de “alguns estádios de futebol e algumas grandes casas”.

Nas décadas de 70, 80 – prosseguiu – “houve transferência de muita tecnologia da Europa para a China”, que a partir daí começou a crescer como potência económica, ironicamente graças ao forte investimento europeu (e também norte-americano).

“Se forem fazer a leitura de como é que a China emergiu, a China criou, com capital e investimento europeu, adquiriu tecnologia, adquiriu capital e começou a produzir. E criou um mercado interno. Com a tecnologia europeia, eles produziram as mesmas coisas. Você fabrica um carro na China, eles vão produzir um carro chinês com a sua tecnologia, mas vão dar-lhe um nome chinês. Foi o que aconteceu em todos os setores”, aponta.

Recordando visitas que efetuou “no início dos anos 90” a fábricas na China, o antigo chefe da diplomacia angolana diz ter constatado que em todas elas tinham “mão de obra 100% chinesa, 100%” e administração chinesa, “mas o capital investido era geralmente europeu, americano e outro”.

“Depois, não podemos ficar admirados que muito rapidamente tenha crescido um capital chinês e uma grande capacidade de produção chinesa. E primeiros mercados quais são? Vieram para os nossos países, com o seu capital, com os seus produtos. Em África encontram um espaço que durante muito tempo foi esquecido, abandonado. Eu olho para as minas da Zâmbia, do Congo, de Angola, que durante os anos 60, 70 eram propriedade de empresas europeias. O que os chineses fizeram foi meter novo capital, começar a explorar, e naturalmente que os bens começaram a ir para a China”, aponta.

Nos dias de hoje, “de facto, a China está em cada um dos 54 países africanos, com investimentos pequenos ou grandes, mas está] em todos os países […] De algum modo, a Europa tinha abandonado um espaço que alguém ocupou”.

“Mas penso que essa não é uma batalha perdida. Estamos em economias abertas e livres, o que quer dizer que no mercado há vários concorrentes. Há uma maior concorrência, mas acho que Europa tem tudo para ter um bom lugar em África, tudo para ganhar”, considera, apontando designadamente a “tecnologia de ponto geralmente apreciada” e o facto de os europeus “conhecem bem o mercado, conhecem bem as mentalidades africanas”.

“Mesmo que haja também uma grande presença chinesa, [os europeus] têm sempre um bom e melhor conhecimento de África, certamente. Nós em Angola temos famílias de origem portuguesa que estão há 200, 300 anos em Angola. Portanto, tudo isso representa um bom ponto de partida. Em vez de abandonar esses mercados, há que criar maiores possibilidades de investimento. Os nossos mercados precisam de capitais. Há muitas possibilidades de iniciar negócio e há muito ausência de capital”, frisou.

Georges Chikoti sublinha que a Europa não pode esperar que a China ‘desapareça do mapa’, mas sim ganhar consciência de que precisa de investir e competir com o gigante asiático.

“Sim, há uma maior presença chinesa, mas ainda há um potencial muito grande que pertence à Europa, que tem uma relação histórica, antiga, com o continente africano. A China está aí. Simplesmente, provavelmente nunca lhe tínhamos reconhecido o potencial que agora criou. Portanto agora está aqui, vamos ter que viver com ela, e vamos ter que cooperar com ela, trabalhar com ela, concorrer com ela”, enfatizou.

“Não há ninguém que à partida tenha perdido uma batalha, mas também é importante que a Europa tome consciência de que tem capacidade, tem capital, e pode de facto investir mais e concorrer melhor. Acho que ainda há um terreno ainda muito aberta para que a Europa possa fazer bem e melhor com os países africanos”, concluiu o dirigente angolano.

29 Jun 2020

Cinemateca Paixão | “Receio a censura por parte da nova empresa [de gestão]”, diz Vincent Hoi

A decisão do Instituto Cultural de atribuir a gestão da Cinemateca Paixão a uma nova empresa, da qual pouco se sabe, fez o cineasta Vincent Hoi assinar uma petição contra a mudança. Ao HM, diz que “há 95 por cento de certezas” da empresa estar ligada ao empresário Alvin Chau e receia mais censura, na Cinemateca, a filmes feitos em Taiwan

 

[dropcap]V[/dropcap]incent Hoi, um dos principais nomes do cinema de Macau, está preocupado com uma das casas onde se projectam as suas obras. A mudança de gestão da Cinemateca Paixão está envolta em mistério, defende, e o futuro é, para já, uma incógnita.

Num recente concurso público, o Instituto Cultural (IC) decidiu atribuir, por um período de três anos, a gestão da Cinemateca Paixão à Companhia de Produção de Entretenimento e Cultura In Limitada, da qual pouco se sabe. De cena sai a Associação Audiovisual CUT, que nos últimos três anos presenteou os amantes de cinema com as melhores produções independentes ou mais comerciais da Ásia e Europa.

Vincent Hoi foi um dos signatários da petição entregue ao IC que questiona esta adjudicação e tem acompanhado as tentativas de contacto feitas por jornalistas. “Parece que há 95 por cento de certeza de que essa empresa está ligada a Alvin Chau e ao Festival Internacional de Cinema de Macau (IFFAM, na sigla inglesa), embora a empresa não tenha qualquer informação pública sobre isso”, disse ao HM.

O cineasta lamenta o secretismo da parte do IC, que não divulgou informações sobre a nova empresa gestora. “Como é possível ser um segredo? Não deveria ser porque [a gestão da Cinemateca] se relaciona com todas as pessoas de Macau, não só o público, mas com a indústria do cinema.”

“Não é razoável dar o projecto da Cinemateca a esta empresa por estar relacionada com o festival de cinema”, acrescentou. Vincent Hoi denuncia o “mau trabalho” que tem sido feito com a exibição dos filmes no festival “nos últimos dois ou três anos”.

“Se queremos comprar um bilhete para ir ver um filme, ou se queremos saber mais sobre ele, muitas vezes é difícil obter a informação, ou esta nem sequer está correcta. E quando vou ver um filme há sempre vários membros do público que se sentam à minha frente a jogar no telemóvel o tempo todo. Pode ser porque os bilhetes são gratuitos, mas penso que ver um filme é, para eles, um trabalho. A entidade que organiza o festival pode recear que ninguém vá ver o filme e contrata algumas pessoas para assistirem à sessão.”

Neste sentido, Vincent Hoi assume não ter “qualquer confiança na nova empresa que vai gerir a Cinemateca”, mas espera que se aposte “nos mesmos conteúdos que a CUT exibiu nos últimos três anos, com uma boa selecção de filmes”, e que o façam “de forma apaixonada”.

O cineasta diz estar “com receio de censura por parte da nova empresa” quanto aos filmes que serão exibidos nos próximos três anos. Como exemplo, recorda o facto de a edição de 2019 do IFFAM não ter contado com produções de Taiwan no cartaz.

“Talvez se possa argumentar de que não se fizeram bons filmes em Taiwan para serem exibidos no festival, mas na verdade foram feitos muito bons filmes.”

Assim sendo, “se a nova empresa está mesmo relacionada com Alvin Chau ou com as pessoas que fazem o festival penso que pode haver mais censura nos filmes exibidos, talvez não apenas sobre a China, mas sobre alguns temas sensíveis”, frisou.

O novo projecto

Apesar de estar envolvido nesta iniciativa pública, Vincent Hoi não deixa o cinema de lado e está neste momento a trabalhar num novo filme que só deverá ser lançado em 2022. Ainda não tem, sequer, um nome.

“A história começou a ser pensada o ano passado, entre a noite de 2 de Junho e a manhã do dia 3, quando entrou em vigor o novo regulamento dos táxis que pode restringir os taxistas de cobrar mais aos passageiros”, contou ao HM.

Desta forma, Vincent Hoi quer colocar nas telas do cinema um problema que afecta todas as pessoas de Macau. “A minha história será sobre um taxista que cobra mais aos passageiros na noite anterior à entrada em vigor do novo regulamento dos táxis.”

Vincent Hoi assegura que continua a ser difícil realizar filmes no território, uma situação que se agravou ainda mais com a pandemia da covid-19. “Desde há algum tempo que fazer filmes em Macau é difícil, e o coronavírus tornou a situação ainda mais difícil. No entanto, a crise trouxe-me novas ideias para a escrita de um guião, e esta nova ideia pode estar relacionada com pessoas que são forçadas ao isolamento nas suas casas ou hotéis durante 14 dias, e de como enfrentaram essa situação”, descreveu ao HM.

Falhas de um sector

Quanto ao desenvolvimento da indústria do cinema, e apesar do financiamento público e das apostas na Cinemateca Paixão e no IFFAM, há ainda muito a fazer para desenvolver este sector, assegura o cineasta.

“O desenvolvimento da indústria de cinema de Macau não é muito bom, e talvez possamos dizer que a ‘indústria do cinema’ não existe ainda por completo. Não temos talentos suficientes, realizadores, produtores, engenheiros de som… Não temos apoio financeiro suficiente embora Macau seja uma cidade muito ‘rica’.”

Para ultrapassar estes obstáculos, os realizadores de Macau poderiam cooperar com Hong Kong e Taiwan, defende Vincent Hoi, uma vez que a cultura cinematográfica de Macau é semelhante às de Hong Kong e Taiwan.

Por outro lado, o realizador diz “não concordar com a cooperação com a China”, uma vez que “a China pode impor muitas restrições no guião ou nas ideias do filme”. “Há muitas coisas que não se podem colocar num filme, especialmente relacionadas com política, violência, fantasmas e espíritos, e se Macau cooperar com a China pode perder as características locais, tal como acontece com os filmes feitos em Hong Kong actualmente”, frisou.

Apontando que o financiamento público está longe de ser suficiente para fazer filmes, o cineasta acredita que a aposta deveria ser feita na inclusão de mais aspectos comerciais nas histórias ou incluir mais actores de renome, “a fim de atrair mais investimentos por parte de empresas de produção privadas”. Mas, para isso acontecer, “seria importante cooperar com Hong Kong e Taiwan, uma vez que em Macau é difícil encontrar investidores”.

23 Jun 2020

Mestre da UM defende mais iniciativas ambientais por parte da Sinopec, State Grid e CNPC

As três maiores empresas chinesas listadas no índice Fortune 500, a Sinopec, a State Grid e a China National Petroleum Corporation, deveriam apostar mais no ambiente como forma de responsabilidade social corporativa. É a grande conclusão de um estudo feito por Cristina Lu, membro do Instituto para a Responsabilidade Social das Organizações na Grande China em Macau. Em relação à covid-19, a responsável defende uma maior aposta nos apoios aos funcionários

 

[dropcap]C[/dropcap]ristina Lu, mestre pela Universidade de Macau (UM) e membro do Instituto para a Responsabilidade Social Corporativa na Grande China em Macau, concluiu recentemente a sua tese de mestrado que olha para as acções de responsabilidade social corporativa levadas a cabo pelas três maiores empresas de cada um dos países que compõem os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e, desde 2010, a África do Sul), com base no índice Fortune 500.

Intitulado “A look into corporate social responsibility in China and other BRICS countries”, o trabalho foca-se nas acções da Sinopec, China National Petroleum Corporation (CNPC) e State Grid em matéria de responsabilidade social corporativa. Ao HM, Cristina Lu defende que estas empresas deveriam apostar mais em acções ambientais como forma de responsabilidade social corporativa.

“As empresas chinesas deveriam focar-se mais na redução do consumo de água e das emissões de gases de efeito de estufa”, apontou. “Vi que as iniciativas das empresas chinesas estavam mais voltadas para doações e investimentos na comunidade. No entanto, penso que é necessário apostar mais em iniciativas ligadas à área ambiental.”

Para a autora do estudo, cabe às empresas apostarem nesta área através de uma melhor comunicação. Estas “deveriam ter práticas mais amigas do ambiente e isso deveria ser melhorado através de uma maior comunicação com a população”.

Para isso, as empresas em causa deveriam fazer “publicidade que chegasse a todos”, além de promover “uma cultura de sustentabilidade, pois esta tem de partir das famílias”, disse.

A tese conclui que “a China deve concentrar-se em três grandes tópicos relacionados com a sustentabilidade”. A redução do consumo de água “é um desafio, tendo em conta que a população chinesa é uma das maiores do mundo, e há uma procura massiva por este bem essencial”.

“Com mais pessoas, mais a pegada ecológica é uma questão importante, e a China necessita de se focar mais na redução das emissões de gases de efeitos de estufa, uma vez que esse é um ponto que não está muito bem esclarecido nos relatórios nem nos resultados apresentados”, escreve Cristina Lu.

O estudo diz ainda que “a China tem vindo a fazer os máximos esforços na redução da emissão de outros gases poluentes, tendo em conta os resultados positivos por comparação aos anos anteriores”. No entanto “são necessários mais esforços para a redução dessas emissões”, pode ler-se.

Fundada em 2002, a State Grid é uma empresa de electricidade estatal e a terceira maior do país, sendo também uma das maiores eléctricas do mundo. “A empresa procura energias limpas e alternativas, é orientada para as pessoas e conduzida por um espírito de equipa, além de trabalhar em linha com a iniciativa ‘Uma Faixa, Uma Rota’”, descreve Cristina Lu na tese.

A CNPC é a segunda maior empresa chinesa e a terceira maior empresa de combustíveis do mundo. Foi fundada em 1988 depois de uma reforma na política dos combustíveis e depois do fim do controlo estatal deste sector. Inicialmente, explica Cristina Lu, a empresa era responsável apenas pela produção onshore, enquanto que a China National Offshore Oil Corporation operava no ramo offshore e a Sinopec na área dos produtos petroquímicos.

“Os valores da empresa focam-se no dinamismo, lealdade, honestidade e compromisso, e a sua estratégia é a expansão do mercado para todo o mundo, com o foco nas tecnologias inovadoras e na extração de recursos naturais”, aponta a autora da tese.

Por sua vez, a Sinopec, criada no ano 2000, é tida como a maior empresa de energia da China. É líder no fornecimento de produtos petroquímicos e feitos a partir de petróleo, além de ser responsável pelo refinamento, processamento, distribuição, transporte e comércio de gás natural e combustíveis.

A Sinopec “trabalha com valores, inovação, gestão de recursos, abertura em termos corporativos”, procurando sempre chegar às baixas emissões de carbono. “A empresa tem como foco ser líder mundial nos sectores da energia e da indústria química”, lê-se na tese de Cristina Lu.

China lidera donativos

Comparando com os restantes países que compõem os BRICS, as empresas chinesas em análise são as que “mais fizeram donativos como contribuições para a saúde, alívio da pobreza, educação e ambiente”.

Cristina Lu defende que não é possível afirmar qual o país dos BRICS que possui melhores práticas de responsabilidade corporativa. “Segundo a minha análise, as companhias indianas sobressaíram bastante na área ambiental, e vi que, entre 2017 e 2019, conseguiram diminuir bastante a emissão dos gases de efeitos de estufa. Em relação à Rússia as empresas focaram-se mais na parte económica e nas doações. Já o Brasil, melhorou bastante na área ambiental, só que a qualidade dos relatórios poderia ser melhor, uma vez que poderiam ter relatórios de sustentabilidade separados, ao invés de apresentarem um relatório integrado juntamente com o relatório anual.”

Relativamente à África do Sul, as empresas analisadas “conseguiram ser bem determinadas e tornar claro o seu foco, que é o combate à pobreza e à fome”, lê-se. No que diz respeito às empresas brasileiras, estas “prestaram muito mais atenção aos impactos ambientais”, com os resultados “neste campo a serem consideravelmente prósperos”, escreveu a autora do estudo.

Falta fiscalização

Cristina Lu analisou os relatórios de responsabilidade social corporativa da Sinopec, CNPC e State Grid do ano de 2018, e em todos eles encontrou uma falha comum: a falta de fiscalização de uma terceira entidade.

“Todos os relatórios de sustentabilidade deveriam ter um parecer de uma empresa externa independente, de auditoria. Vi que faltava esse parecer nas empresas chinesas, e esse é um dos pontos negativos.”

Para a autora, o facto de estas três empresas não terem uma auditoria independente às acções de responsabilidade social corporativa faz com que a China deva olhar para os bons exemplos dos restantes países dos BRICS.

“É essencial enfatizar que os aspectos positivos dos relatórios de outras empresas dos BRICS podem ser considerados como um modelo para as futuras publicações por parte das empresas chinesas”, lê-se na tese.

“Os relatórios de auditoria são preciosos para os interesses das pessoas, e os relatórios das empresas russas e brasileiras apresentam auditorias nas suas últimas páginas, pelo que podem ser considerados bons exemplos”, compara a autora.

Apesar desta falha, a responsável denota que os documentos respeitam as directrizes internacionais em termos de responsabilidade social corporativa, com dados detalhados.

A tese de Cristina Lu traça também um cenário histórico das grandes empresas estatais, que começaram a desenvolver-se a partir da implementação da República Popular da China, em 1949.

“[A responsabilidade social corporativa] começou nos anos 50. Antes, as empresas estatais estavam na liderança e focavam-se mais nos direitos dos funcionários, na parte social. Depois das privatizações é que as empresas se começaram a focar mais na área ambiental, que é outra parte da responsabilidade social corporativa. Desde 2005 até aos dias actuais o relatório de sustentabilidade passou a ser obrigatório para as grandes empresas”, explica Cristina Lu ao HM.

O impacto covid-19

O estudo de Cristina Lu contém também um ponto relativamente à forma como estas empresas devem dar resposta ao impacto da pandemia da covid-19. “Do ponto de vista económico, os resultados financeiros das empresas deverão obviamente registar quedas drásticas devido ao abrandamento da economia mundial causado pelo confinamento de cidades, quarentenas, redução do turismo e menos poder de compra. A consciência da responsabilidade social deveria aumentar com a atribuição de mais subsídios aos funcionários com necessidades e donativos concedidos a centros de abrigo”, lê-se no documento.

Além disso, a tese aponta para o impacto ambiental negativo devido à produção de mais máscaras cirúrgicas e gel desinfectante, o que implica um maior consumo de plástico e de água. Mas, além do impacto ambiental e das respostas necessárias, Cristina Lu acredita que a pandemia da covid-19 deveria levar as empresas a adoptarem novas práticas para com os funcionários e a comunidade.

“Acredito que as empresas devem responsabilizar-se mais pelos custos em relação aos produtos de higiene e tentar conter despesas desnecessários. Em relação ao pessoal, devem ter uma atenção redobrada, porque sei que as grandes empresas possuem funcionários de vários países, portanto deve-se focar na ajuda a estes. Na área da habitação, [poderiam ser atribuídos] subsídios extra para as famílias dos funcionários afectados, além de outras ajudas”, frisou ao HM.

19 Jun 2020

Chris Patten avisa para maior influência do PCC em Macau

[dropcap]O[/dropcap] último governador britânico de Hong Kong frisou que a antiga colónia do Reino Unido e Macau estiveram sempre numa posição “muito diferente”, apontando a maior influência histórica do Partido Comunista Chinês no território outrora controlado por Portugal.

“Julgo que é acertado dizer que a Frente Unida [organização de influência no exterior do Partido Comunista Chinês], foi um pouco mais hábil a escolher os líderes chineses locais em Macau do que em Hong Kong”, disse à agência Lusa Chris Patten.

“Macau esteve sempre numa posição muito diferente de Hong Kong: tem uma economia que depende em grande parte do amor das pessoas pelo jogo. É muito menor. E não tem uma longa tradição de crer em algo como o Direito comum e as liberdades associadas a uma sociedade aberta”, apontou.

Ressalvando que gostou muito de trabalhar com Vasco Rocha Vieira, o último governador português de Macau, Chris Patten lembrou que ambos tinham “responsabilidades muito diferentes”.

“Sobretudo porque Portugal, pelo que me lembro, tentou devolver Macau após a revolução [do 25 de Abril], mesmo antes de ter que o fazer, pelo que são histórias diferentes”, observou.

O britânico, que é actualmente reitor da Universidade de Oxford, tem sido um dos maiores críticos da decisão de Pequim em promulgar uma controversa lei de segurança de Hong Kong.

Iniciativa “orwelliana”

O último governador britânico afirmou que a lei de segurança nacional faz parte de uma iniciativa “orwelliana” para eliminar a oposição pró-democracia, violando o acordo de entrega do território a Pequim.

A lei em causa proíbe “qualquer acto de traição, separação, rebelião, subversão contra o Governo Popular Central, roubo de segredos de Estado, a organização de atividades em Hong Kong por parte de organizações políticas estrangeiras e o estabelecimento de laços com organizações políticas estrangeiras por parte de organizações políticas de Hong Kong”.

Entre os sete artigos propostos por Pequim, está uma disposição para um mecanismo legal que permite ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, o órgão legislativo chinês, articular legislação que vise prevenir e punir uma série de suposições, incluindo “subversão contra o poder do Estado”, frequentemente usada na China continental para prender ativistas e dissidentes.

Chris Patten defendeu o anúncio de Londres de que concederia residência a quase 3 milhões de cidadãos de Hong Kong, apesar de Pequim ter considerado que a medida viola a Declaração Conjunta [sino-britânica], negociada no âmbito da transferência de soberania.

“Se eles violaram a Declaração Conjunta [sino-britânica], como é que podem usar a Declaração Conjunta para nos impedir de fazer algo que é um direito soberano nosso”, questionou.

Patten disse que a legislação é desnecessária porque o código legal de Hong Kong já inclui disposições para combater o terrorismo, crimes financeiros e outras ameaças à segurança. “O que Pequim quer é algo que lide com aqueles crimes orwellianos como sedição, o que quer que isso seja”, acusou.

O Governo central pode estar também à procura de motivos para desqualificar candidatos da oposição nas eleições de setembro para a legislatura local, disse.

Chris Patten defendeu ainda que os Estados Unidos devem unir outros países democráticos para combater as tácticas de Pequim. “É o Partido Comunista Chinês que nos ataca, que intimida, que diz às empresas que têm raízes nos nossos países que, a menos que façam o que a China quer, não farão negócios na China”, observou. “É assim que a máfia se comporta e o resto do mundo não deve tolerar isso, porque se o fizermos, as democracias ficarão a perder”, alertou.

9 Jun 2020

Adriano Moreira, jurista e professor catedrático jubilado | Neste globo sem bússola

Ex-ministro do Ultramar no tempo do Estado Novo, Adriano Moreira foi professor catedrático na área da ciência política e relações internacionais e fundador do CDS-PP. Em 2014, foi distinguido pelo Instituto Politécnico de Macau como professor coordenador honorário. Neste “século sem bússola”, a pandemia da covid-19 “alterou o conceito de realidade internacional”, mas Adriano Moreira defende que o multilateralismo continua a ser a resposta. Sobre a situação em Hong Kong, o professor deposita algumas esperanças

 

 

[dropcap]D[/dropcap]epois da guerra comercial, surge agora uma guerra na saúde entre a China e os Estados Unidos. Acredita que podemos assistir à expansão de uma nova “Guerra Fria” entre estas duas potências?

O grave da ordem internacional é que a utopia da ONU, sobre uma legalidade mundial marcada pelos princípios do “mundo único”, isto é, sem guerras, e “a terra casa comum dos homens”, foi afectado pela concorrência de supremacia global entre EUA, China, e Rússia, com a multiplicação das “diplomacias de Clube” dos emergentes que se reservam defender o desenvolvimento em paz ou sem ela, e, podendo, sem participar ou sofrer as consequências. Tenho insistido em que “o imprevisto está à espera de uma oportunidade”.

A seu ver, a pandemia da covid-19 veio testar ou comprovar lideranças? Quais os maiores efeitos desta pandemia ao nível das relações internacionais?

A pandemia alterou seguramente a hierarquia e conceito da realidade internacional, porque é infelizmente visível que alguns antigos grandes Estados voltaram ao método político do “Estado Espectáculo”, que cria imagens quando não conhece, nem aprecia a realidade. Está a acontecer desde os EUA ao Brasil. Há uma nova sede do poder real que se traduz na intervenção autêntica, cívica, humana, das universidades, institutos de investigação, profissionais do saber médico, responsáveis pela segurança e protecção das pessoas. Espero que finalmente sejam os apoiantes das “vozes encantatórias” que encontrem resposta política para a reformulação da ordem, que compreendam que “o multilateralismo” é superior ao “unilateralismo” para conseguir que o globo continue a ser habitável.

Está satisfeito com a resposta da União Europeia a esta crise gerada pela covid-19?

Quanto à “crise” da saúde, encontrou a prova científica, e adesão cultural, das populações, que apoia, como disse, uma intervenção que é geralmente de qualidade indiscutível. Mas a “política” anterior à súbita explosão do ataque à saúde e vida, teve três dificuldades visíveis: a queda do Muro de Berlim, juntou à meia Europa democrática da União, a meia Europa que lutou pelo regresso à soberania histórica que perdera pela ocupação. São evidentes as preocupações com as diferenças herdadas do respectivo regime, a relação fatigada dos vários eleitorados, o péssimo exemplo do Brexit, o vazio da conjugação de pensamento do Norte e Sul do Continente Americano, e a crise do real mostra que a cultura e valores são diferentes na origem e na vigência. A crise do “globo” vai exigir reformulação das interdependências que serão inevitavelmente globais. Mas o tempo será exigente, na leitura do passado, na imaginação do presente, e na identificação de um futuro possível. A Europa possui certamente uma capacidade histórica, científica, ética, que, cremos, encontrará as vozes criativas.

Na última sessão da Assembleia Popular Nacional, pela primeira vez, não houve previsão de crescimento económico. Que expectativas tem em relação ao posicionamento da China nos próximos tempos, em termos económicos e políticos?

A China é uma das potências que se encontra na competição entre EUA-China-Rússia, frequentemente à margem da Utopia da ONU. A compreensão do globalismo, com sacrifícios históricos dos regimes, foi, dificultada neste século XXI, que muitos cientistas ocidentais consideram “sem bússola”. É de salientar o avanço do “soft power”, que também foi de Obama, e que a vencida senhora Clinton quis chamar “soft power”. Nesta data o ataque à China tem sobretudo que ver com o Estado Espectáculo, embora seja o interesse da Humanidade que exige o jogo com o saber dos factos, e por isso necessita que os responsáveis que assumem o dever da ciência, da sua aplicação, e da segurança, consigam o direito respeitado da autenticidade e solidariedade. A China, uma civilização de milénios, é neste dever que se espera que se empenhará, com paz em relação às críticas verbais, às quais responderá com verdade, tranquilidade, e sobretudo com participação ética reconhecida.

Na última sessão da APN, foi aprovado o projecto da lei de segurança nacional para Hong Kong. O Conselho Legislativo de Hong Kong já deveria ter avançado para a legislação do artigo 23 da Lei Básica?

O regime “Um País, Dois Sistemas” tinha prazo, e lembro-me desse tempo. O fim do período, que é esperado, e que agora só acompanho com leituras, porque não viajo, traz consigo uma estrutura cultural e política específica e diferente. Do ponto de vista sócio-político não pode deixar de estar presente uma especificidade de formação que exigiu criatividade. É preciso sempre reconhecer que os factos e os valores exigem ser reconhecidas as identidades dos indivíduos e das comunidades. Infelizmente há muitos anos que não vou nem à China nem a Hong Kong. Os anos passam, embora sem eliminar a meditação sobre o desafio do futuro. A posição internacional nova da China espera-se que corresponda à avaliação respeitada das comunidades diferenciadas. Não posso conhecer a totalidade dos factos, mas julgo que a China tem pluralismo suficiente para conseguir assumir a identidade específica de Hong Kong que governou desde a retirada do Reino Unido, considerando que a paz é correspondente ao respeito pelos direitos humanos. São observações que se multiplicaram nos noticiários nacionais, mas não tenho informação suficiente da relação do pensamento político que consiga a paz da relação entre as diferenças dos encontros atuais e do futuro reorganizado em paz por esta época de século sem bússola.

Como olha para a manutenção do Direito de Macau e o ensino do Direito em Macau?

A lei, pelo que com interesse vou ouvindo, tem sido respeitada, e assim julgo que continuará, um facto que justificará a importância e autenticidade do ensino multicultural. Compreendi que passaram anos suficientes, pelo que as saudades crescem, por vezes, mais do que a informação, mas nesta evolução espero que o bom futuro tenha maioria.

Falando agora dos primórdios da sua carreira, enquanto ministro do Ultramar. Que papel tinha Macau para o Estado Novo? E, como ministro, que visão tinha para o território?

O problema de Portugal nessa época, e segundo o que foi aprovado na ONU, não abrangia Macau, que a China não considerava uma colónia: não se trata de independência, mas de fim do acordo cumprido mutuamente por ambos os Estados, sem violar a paz da cooperação chinesa e portuguesa. A África era outra questão porque correspondia à decisão da ONU de colocar um ponto final no Império Euromundista, que abrangia, com dificuldades, a Holanda, a Bélgica, o Reino Unido, a França, Portugal. A questão de Portugal foi severa, mas a minha intervenção está longamente escrita, e não teve a menor dificuldade com Macau.

Havia a preocupação de que aquilo que se passava em Goa, Damão e Diu pudesse, de certa forma, afectar Macau e Timor? Como foi gerida essa tensão na Índia Portuguesa?

A questão de Timor, que o povo sofreu, mas com coragem, começa, julgo, no facto mais cruel, porque a entrada de Portugal no chamado regime de Neutralidade Cooperante, de resto imposto por ultimato, não incluía os territórios do Oriente. Daqui veio o drama que os heroicos timorenses sofreram da intervenção brutal dos japoneses, e mais tarde da invasão indonésia. Tive a intervenção que pude organizar, sobretudo nas Nações Unidas, mas a única coisa que tem valor destacar foi a coragem do povo. Passaram muitos anos, e tive, no ano 2015, a surpresa de o Presidente de Timor me convidar para visitar Timor, o que o meu médico proibiu. Enviaram então uma condecoração que me trouxeram a Lisboa, que me comoveu inesquecivelmente pelo sentimento expresso e que dei ao 14.º dos meus netos, um Adriano de 4 anos e afectado de má saúde, para se lembrar dela quando crescer, e sobretudo de um bom exemplo – que é Timor. A Índia não tem qualquer ligação com Timor, nem fadiga com a legalidade.

Considera que Macau poderia ter tido mais desenvolvimentos socioeconómicos no período do Estado Novo? Era um território “esquecido”?

Tão esquecido como a minha aldeia de Grijó do Vale Benfeito onde nasci numa família pobre de pais católicos. O esquecimento do desagradável é melhor compreendido com a relação vivida entre deveres e recursos. A ética exigente é inviolável e inesquecível. Conheci jovem, na família e na aldeia pobre e responsável, que sabiam e procediam com a relação assumida desses factores. Um grande escritor português, Miguel Torga, atribuiu isto ao “espírito santo do povo”. No meu tempo de vida com Macau nunca o vi ou reconheci como uma colónia. E que as boas relações continuaram quando o acordo findou, sem descurar as relações futuras, apreço respectivo, e população de ambas as origens, mas solidárias. É um bom exemplo, neste globo sem bússola.

5 Jun 2020

Ng Kuok Cheong, deputado e fundador da UDD: “Aos cinco anos fui vendido”

Foi comprado por uma família de Macau e chegou a deputado. Durante este percurso, Ng Kuok Cheong foi um dos fundadores da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia. Em entrevista ao HM, o deputado sublinhou que não ambiciona mudar a China Continental, mas mantém-se fiel ao fardo de recordar o que aconteceu em Pequim

 

[dropcap]A[/dropcap]ntes de o massacre acontecer já tinha consciência política. Quais eram as suas principais preocupações?

Naquela altura era estudante, formei-me e fui para o banco trabalhar. Depois, à noite, participava em algumas actividades sociais. De acordo com o meu conhecimento, Macau ia mudar, já que ia regressar à China. E sentia que a sociedade chinesa não se preocupava com o que ia acontecer e mudar. Não estava optimista nem triste: a China ia recuperar Macau, mas podia ter uma ideia mais aberta, ou não. E Portugal ia desistir de Macau, mas antes de ir embora queria fazer alguma coisa. Como residentes de Macau devemos preocupar-nos com o que acontece e [reflectir sobre] o que queremos apoiar e manter em mente. Na altura, era um jovem. Discutia com os meus amigos e a preocupação era com Macau. O que aconteceu em Macau e Pequim nesse ano foi muito importante, não só para mim, muitos cidadãos de Macau sentiram que era importante e tínhamos de prestar atenção. Na altura, os meios de comunicação locais e de Hong Kong todos os dias davam informação. Debatíamos quase todas as noites.

O que levou à criação da União de Macau para o Desenvolvimento da Democracia?

Em 1989, de Maio a Junho tentámos organizar actividades sociais. Quando isso acontecia aconselhávamos o Governo. Sentimos que devíamos tentar juntar-nos. Mas depois do 4 de Junho, subitamente, sentimos que em Macau a maioria da sociedade virou costas. Sentimo-nos surpreendidos, mas claro que não os condenamos, sabemos porque o quiseram fazer. Mas para mim temos o dever de insistir no que acreditamos serem os factos e depois organizámos a União. (…) Não para a China, mas para Macau. Macau é uma cidade muito pequena e não consegue mudar toda a China Continental. Mantemos os factos desse dia porque sentimos que temos de promover a democracia em Macau, não na China.

No dia a seguir ao massacre muita gente saiu à rua em protesto. Estava lá?

Claro. Tínhamos recomendado ao Governo a actividade. Claro que quando o fizemos não sabíamos o que ia acontecer, mas depois dessa noite muita gente saiu à rua (…). Na noite antes, chegou informação pela televisão. A maioria dos cidadãos saiu à rua. Não [só] os membros da nossa união, mas todos os residentes sentiram que era muito importante, a sociedade tradicional chinesa também pensava isso. Mas depois do início de Junho mudaram.

Quando olhamos para as vigílias dos últimos anos poucas centenas aparecem. Porquê?

Talvez a maioria das pessoas sinta que aquilo que fazemos não pode influenciar a China, por isso não têm esperança neste movimento e não saem. Mas ainda há pessoas que insistem em sair durante muitos anos. Isto não significa que sentem que podem mudar a China (…). É diferente de Hong Kong, acho que as pessoas de lá sentem que podem liderar todos os chineses do mundo para mudar a China. Para nós, desde o primeiro dia da União, sentimos que Macau é muito pequeno e não tem poder. A China pode mudar, mas não por Macau. Porém, temos o fardo de recordar.

Quando desenvolveu consciência política?

Quando acabei a educação secundária em Macau fui para a Universidade Chinesa de Hong Kong. Passei muito tempo a estudar o que aconteceu política e economicamente na China, não só a aprender do ponto de vista académico. Claro que estudei, a minha licenciatura é em economia, mas o mais importante é que quando tinha cinco anos de idade fui comprado por uma família em Macau. Nasci em Cantão, mas quando tinha cinco anos fui vendido. Queria saber porquê. (…) Sei que a China nessa altura estava a passar pelo chamado ‘Grande Salto em Frente’, houve muita pobreza e muita gente ficou sem meios de subsistência, então vendiam os filhos. Dormi várias noites na biblioteca para descobrir o que aconteceu. Pensei que a China ia mudar. Por isso, de acordo com o meu conhecimento de então, o que aconteceu em 1989 foi um ponto crítico para a China. A maioria dos jovens tornou-se adulta, a força laboral era muito forte, o modelo produtivo social podia adoptar estas forças laborais para desenvolver o país. Era um ponto crítico. Não podiam continuar com o modelo antigo, em que cada um devia distribuir riqueza. Portanto, a China estava a mudar, mas que estrada ia seguir? De acordo com o meu conhecimento, Deng Xiaoping abriu portas à experiência de adoptar o capitalismo, mas naquele tempo não havia sistema democrático para supervisionar o Governo, por isso muitas pessoas ricas, e recursos saíram. Os estudantes universitários sentiram que o país estava a ficar rico, mas eles eram pobres e não conseguiam encontrar trabalho e queriam perguntar aos seus líderes: porquê? E tiveram um movimento de 1987 a 1989. Queriam alguma mudança. Talvez não fossem tão maduros, mas descobriram a pergunta. A resposta do Governo Central foi um ponto crítico. Na altura, não prestava atenção ao mundo, só a Macau e à China. Agora olho para as coisas de outra forma. Aconteceram muitos movimentos sociais na Ásia, o capitalismo e o comunismo enfrentaram desafios muito importantes incluindo na Coreia, Filipinas, Indonésia. Depois de 1989 decidiram desistir do comunismo completamente. Seguiram a via do capitalismo do Estado usando a força laboral e absorvendo técnicas do mundo capitalista para desenvolver a economia depois dos anos 90. Mas [não responderam] sobre o porquê de terem matado as pessoas. Na Polónia, na Alemanha Oriental, foi-se desistindo do comunismo depois de 4 de Junho e mudaram totalmente. Mas o Partido Comunista Chinês não mudou, não enfrentou esse fardo. Quer controlar o país para sempre.

O Governo de Macau diz que são precisos mais regulamentos de segurança nacional. O que sente em relação a isto?

É uma ideia política do Governo Central. Não estou muito surpreendido. Na universidade calculei que a força laboral da China se ia tornar forte depois de 1963, aumentar anualmente durante 50 anos, até 2013. Assim sendo, significa que nos últimos 25 anos construímos um país muito forte. Nenhum país consegue providenciar em 20 anos tanta força laboral. Depois de 2013, a situação mudou. A China tentou reduzir a natalidade e depois desse ano a mão-de-obra começa a descer. As pessoas idosas dependiam dos jovens. Isto vai continuar por cerca de 25 anos. Com a força laboral a descer na China, muitas pessoas dependem de outras para comer. O crescimento forte do país ia parar, precisávamos mudar a estrutura. (…). Agora podemos ver o que aconteceu. Desde cerca de 2013, o Governo Central, especialmente o Partido Comunista Chinês adoptou uma nova decisão. Antes o caminho era seguir Deng Xiaoping, que dizia que passo a passo tudo se podia abrir. O novo caminho é fortalecer a liderança do Partido Comunista Chinês e lidar com o mercado livre. De acordo com o meu conhecimento, a nova decisão não é assim tão boa. Dizem às pessoas que somos muito fortes, mas a força não foi de Xi Jinping, resultou dos líderes anteriores e dos anos que já passaram. Só se pode desafiar o mundo por causa da riqueza do passado. Por isso, a China e o Governo Central vão enfrentar alguns perigos no futuro. Claro que Macau é muito pequeno, não podemos mudar a mente do Governo Central nisto, mas podemos continuar para ver o que acontece.

Qual é o futuro da democracia em Macau?

Em Macau, daqui a cinco ou mais anos vamos enfrentar diferentes dificuldades. A primeira é a nova decisão do Governo (Central). Vão parar todos os democratas, se sentirem que não apoiam a sua governação. É uma matéria pessoal, mas não acho que seja uma boa decisão. Talvez no futuro enfrentem perigos ou mudanças. Por outro lado, em Macau agora temos 15 anos de educação gratuita e 90 por cento dos jovens vão para a universidade. O nível académico é muito bom e o crescimento económico também melhorou. O PIB per capita é muito bom. Comparando, o salário dos jovens de Hong Kong é baixo, quase não tiveram aumentos face a 1997, mas em Macau já subiu 300 por cento em comparação a 1999. Por isso, a situação é completamente diferente. Digo aos jovens de Macau que devem sair e falar porque têm um nível académico alto e sabem muitas coisas, podem apontar o que está errado na sociedade. Mas quando saem só posso sugerir para se juntarem a uma luta feliz. Não por serem pobres, mas porque sabem o que está errado. Actualmente, o ambiente económico das pessoas não é tão mau em Macau, e o papel que a família desempenha na sociedade é muito positivo.

Como é que a sociedade tradicional chinesa olha para as suas ideias políticas?

Os meios de comunicação chineses ainda têm algumas reportagens anteriores à nova decisão do Governo Central. Acho que os líderes da sociedade tradicional têm conhecimento sobre o 4 de Junho. Não prestam atenção porque acham que não lhes é adequado. Assim sendo, não falam, não prestam atenção e não recebem informação da internet. Sabem o que aconteceu nesses anos, mas sentem que a realidade mudou. Macau nessa altura ainda era muito pobre, agora é muito rico. Por isso, a maioria dos líderes da sociedade tradicional acha que o seu maior fardo é manter a riqueza actual.

Nasceu na China, mas cresceu em Macau. É imigrante. Porque é que na Assembleia Legislativa defende tantas diferenças de tratamento entre residentes de Macau e trabalhadores não residentes?

Não devemos enfatizar as diferenças. Prestamos atenção apenas à política de emprego, a protecção de direitos humanos devia ser igual. Em Hong Kong podem contratar-se empregadas domésticas de outros lados, mas a maioria dos outros trabalhadores são de Hong Kong, por isso entendem que podem manter bons salários. Mas em Macau há uma ideia diferente, temos muitos trabalhadores do exterior para apoiar a escala económica. Para as pessoas locais devemos aceitar estrangeiros, incluindo da China Continental, mas a quantidade é muito importante. Qual é a diferença? Em demasia vai destruir completamente o mercado laboral em Macau. Por isso, temos de prestar atenção. Se continuarmos com esta escala económica devemos aceitar uma certa proporção de trabalhadores que vêm não só da China Continental como de outros países. Mas devemos manter uma quantidade adequada. No entanto, os direitos laborais devem proteger todos.

4 Jun 2020

Peter Stilwell, ex-reitor da Universidade de São José: “Somos procurados por alunos de Hong Kong”

Peter Stilwell deixa a reitoria da Universidade de São José com a sensação de dever cumprido, esperando novos desenvolvimentos para o departamento de português. O ex-reitor, substituído por Stephen Morgan, defende que a pandemia da covid-19 pode levar os alunos de Macau a olhar mais para as instituições de ensino superior locais. Por outro lado, a instabilidade social e política em Hong Kong obriga estudantes a ver Macau como opção

 

[dropcap]Q[/dropcap]uando assumiu o cargo de reitor encontrou uma universidade a precisar de reestruturação. Quais eram os principais problemas de gestão da Universidade de São José (USJ)?

Havia três ou quatro pontos prioritários. O primeiro tinha a ver com as finanças, pois o dinheiro que havia na altura esgotava-se no final do mês de Maio e já havia problemas com o pagamento de salários de Junho. Depois, era necessária organização académica. Havia uma multiplicidade de cursos, muitos deles criados para viver à base de sinergias com outros cursos. Isso significou um trabalho de análise aos cursos que existiam, reduzi-los a uma dúzia, eliminando cursos de ultra especialização. Penso que fechei 30 cursos na altura. Ao mesmo tempo era preciso olhar para o quadro docente. Havia professores que estavam subaproveitados, porque não havia trabalho suficiente para todos. Um terço dos professores que estavam no quadro foram despedidos. Isso teve de ser feito em três meses antes de começar um novo ano lectivo. Depois, a entidade titular da universidade, a Fundação Católica para o Ensino Superior, não era convocada há bastante tempo e isso criou uma situação delicada ao nível das relações com a Fundação Macau. Isto porque o financiamento para o campus e projectos submetidos deveriam passar pela entidade titular, e com uma entidade dispersa isso não funcionaria. Convocou-se uma reunião dois dias depois de ter chegado e tudo começou a funcionar regularmente.

Não havia então comunicação entre a Fundação Católica e a reitoria da universidade.

Essa foi uma das razões pelas quais fui chamado a reorganizar a universidade. A reitoria achou que poderia funcionar de forma autónoma sem passar pela entidade titular, e criou-se um problema juridicamente complicado. Havia a questão do campus, tinha-se feito a colocação das estacas no terreno e o concurso, mas ficou tudo em suspenso, sem decisão. O concurso terminava em Junho e era necessário decidir que empresa iria construir o campus. Foi a Fundação Católica que tomou a decisão.

A USJ apostou no ensino da língua portuguesa. Com essa aposta, a USJ chegou a outro patamar?

Já se ensinava português na USJ, mas era apenas um ano lectivo para todos os alunos da licenciatura. Quando organizámos a minha segunda equipa de vice-reitores convidei a professora Maria António Espadinha, conhecida aqui em Macau por ter experiência na área. Ela ajudou-nos a montar um mestrado na área do português. Queríamos oferecer algo de mais avançado em relação ao que já existia. A primeira edição do mestrado funcionou de forma interessante, mas rapidamente percebemos que havia espaço para tentarmos outra coisa. O Governo aproximou-se de nós e pediu-nos para fazermos o teste dos diplomas de associado, de dois anos, e tentámos abrir um diploma de associado na área da tradução do português-chinês. Foi um sucesso. Isso levou ao pedido para uma licenciatura. E é o que existe neste momento, com algum sucesso, pois todos os anos temos alunos candidatos. Gostaríamos que o departamento de português se fortalecesse. Numa instituição privada como somos, sem grandes recursos financeiros, as coisas são sempre muito lentas, temos sempre de construir à medida daquilo que os alunos procuram. Espero que com a nova direcção o departamento de português ganhe ainda mais fôlego do que tem actualmente.

Relativamente ao pedido para alunos da China frequentem a USJ. Deixa o cargo de reitor sem essa autorização.

É uma pergunta que também faço e não sei responder. A questão não está do nosso lado. Tudo fizemos, batemos em quase todas as portas, pode ser alguma em que não tenhamos batido. Talvez o meu sucessor consiga descobrir a chave para a questão. O problema não está do lado da Direcção dos Serviços do Ensino Superior, que nos tem apoiado sempre em relação a esta proposta. Em Pequim, fomos aos serviços da tutela do sector religioso, disseram que o problema não era deles. No Ministério da Educação disseram-nos que não havia problema nenhum em a USJ recrutar alunos, e está assim a questão. Não há nenhuma resposta concreta, não há um sim ou um não concreto. Aguarda-se que o tempo apropriado chegue. No entanto, houve um benefício disso.

Qual?

Quando chegou o novo coronavírus, enquanto outras universidades e institutos tiveram um problema de terem os seus alunos na China, nós pudemos fazer a transformação da nossa universidade numa universidade online no espaço de 10 dias. Ao contrário do que aconteceu com outras instituições, na USJ não houve uma única queixa de alunos, e confirmámos isso com uma sondagem que acabámos de fazer. Temos 800 alunos com aulas regulares, 70 por cento responderam de forma positiva. Para mim, é uma satisfação ver a universidade trabalhar como equipa.

Quem procura a USJ nos dias de hoje? Alunos de Hong Kong, de Macau, de outros países?

De Hong Kong começamos a ter procura, o que é curioso. Deve ter a ver com a instabilidade que se vive em Hong Kong, porque normalmente Hong Kong não olhava para Macau neste campo, havia essa questão cultural, de Hong Kong olhar para Macau de cima para baixo. Macau vem-se afirmando gradualmente na área do ensino superior, com grande investimento do Governo, com muito trabalho do GAES e agora da DSES, e as instituições melhoraram em termos de qualidade. Temos recebido alunos estrangeiros, uma parte deles são funcionários locais de empresas que procuram ensino em inglês. E aqui penso nos mestrados que cresceram nos últimos anos. De ano para ano mantemos a proporção de 70 por cento de alunos locais e 30 por cento de alunos internacionais, de nacionalidades diferentes. É uma coisa a desenvolver, mas a reflexão que faço com os meus colegas nesta altura é que o panorama é capaz de mudar nos próximos dois anos.

Em que sentido?

As dificuldades nas viagens vão levar a que famílias e alunos de Macau, que antes procuravam ensino superior fora de Macau, comecem a achar que o território é um local mais seguro para estudar. Enquanto o coronavírus não passar, se calhar vêm bater à porta das instituições locais e talvez a beneficiemos disso.

Outra grande área do ensino em Macau é o Direito. A USJ parece nunca ter apostado muito nessa área. Deixou bases para esse projecto?

Criámos um centro de estudos e lançámos este ano um mestrado na área do Direito. Decidimos que a melhor aposta seria nos mestrados, pois as licenciaturas são sempre uma coisa pesada. Coloca-nos em concorrência com o ensino do Direito na Universidade de Macau, onde tem estado tradicionalmente colocado. Depois para montar a licenciatura é preciso garantir que funciona quatro anos e ter um corpo docente especializado. Não é fácil encontrar doutorados em Direito dispostos a vir para uma pequena universidade para algo que pode não vingar. É uma possibilidade trabalharmos com a Universidade Católica Portuguesa (UCP) pois tem uma faculdade de Direito de grande prestígio.

Sai da reitoria da USJ com uma questão judicial pendente, o processo colocado por Eric Sautedé. Qual o seu comentário relativamente ao caso?

Não há nada a dizer neste momento, porque o processo está na justiça.

Mas lamenta deixar o cargo de reitor com estas suspeitas de censura, com acusações de pôr em causa a liberdade académica na USJ?

Não me pronuncio.

O que espera para a USJ com Stephen Morgan?

Compete-lhe dizer aquilo que pretende fazer na universidade, não me antecipo ao que o meu sucessor fará. A universidade encontra-se num bom momento de desenvolvimento interno, de contexto da relação com Macau em geral. O que acho que não consegui fazer, e que é importante a universidade conseguir, é estabelecer uma melhor ponte com a comunidade de língua chinesa em Macau. Conseguiu fazer uma ligação às comunidades de língua portuguesa, sentirem que a universidade espelha os interesses e valores que a comunidade macaense tem encarnado ao longo dos séculos, de encontro de culturas e ao nível da espiritualidade. Macau, além do jogo, é um lugar de formação de missionários para todo o sudeste asiático e, neste momento, formamos anualmente 60 alunos que são de todo o sudeste asiático. É algo que remonta aos tempos do Colégio de São Paulo.

A área da Teologia tem, portanto, espaço para crescer. Prevêem-se mudanças nessa área?

Os cursos vivem da estabilidade. As congregações religiosas apostam em cursos que mostraram ser válidos. O curso tem articulação com a UCP e isso dá alguma estabilidade e segurança a quem queira vir aqui estudar. Mesmo em termos eclesiásticos, a possibilidade de circular depois por outras entidades católicas e faculdades de teologia está garantido. A Santa Sé estabeleceu regras novas para o ensino da teologia e filosofia. Na UCP essas regras estão a ser implementadas, a USJ irá funcionar em articulação com isso.

A USJ apostou no ensino do patuá. Como está a procura pelo curso?

Não temos uma licenciatura, mas temos alguma especialização nessa área que gostaríamos de ver crescer. Falo do desenvolvimento de pós-graduações ou doutoramentos, pessoas que queiram estudar os crioulos portugueses do Oriente. Temos quem tenha capacidade para acompanhar esse tipo de estudo.

Depois desta experiência, quais são os seus planos?

Vou voltar para Portugal quando os voos regressarem ao normal. Estou em contacto com o bispo, que é o patriarca de Lisboa, e disse que estou disponível para qualquer coisa que ele necessite no próximo ano. Mas pedi-lhe algo mais leve, pois estou com funções administrativas há 18 anos e é bastante esgotante. Tenho gosto pela parte da escrita, leitura, investigação. Há coisas que gostaria de pôr por escrito. Queria ter um ano sabático.

3 Jun 2020

Sara F. Costa, tradutora de “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea”: “Há um trauma colectivo nestes poemas”

Depois de “Transfiguração da Fome”, Sara F. Costa decidiu embrenhar-se no mundo da tradução de poemas chineses escritos após um dos períodos mais conturbados da história da China. “Poética Não Oficial – Poesia Chinesa Contemporânea” traz uma selecção e tradução para português de 33 poemas escritos após a Revolução Cultural

 

[dropcap]P[/dropcap]orquê a escolha de autores do período pós-Revolução Cultural?

Apesar de eu me ter guiado por um certo enquadramento tanto a nível temporal como conceptual, realço que se trata de uma selecção que tem muito de pessoal. Vão encontrar nomes sonantes como Bei Dao, Hai Zi, Gu Cheng, mas vão encontrar nomes que só se encontram deambulando de leitura em leitura pela cena literária dos hutongs em Pequim ou no bar da poeta Zhai Yongming em Chengdu, sem terem necessariamente publicado fora de revistas literárias independentes. O período da Revolução Cultural e o Pós-Revolução Cultural fascina-me particularmente quando falamos da poesia moderna porque é quando surgem movimentos como os “poetas obscuros” (朦胧诗⼈). É quando surgem as revistas não oficiais e os salões literários (沙⻰) que, no fundo, nunca deixaram de existir nos meandros citadinos da China. Acho que é, no seu conjunto, um trabalho que pode fornecer pistas para quem quiser aprofundar o seu conhecimento sobre poesia moderna chinesa.

Que China que existe nestes poemas?

Diria que há, sem dúvida, sintomas de um trauma colectivo nestes poemas. Há uma certa China desmistificada, um desalento face à privação de uma primordial mudança. De salientar que nem todos os poetas deste livro têm uma postura abertamente política. Alguns apenas quebram com determinadas barreiras estéticas e optam pelo recurso a uma linguagem mais vernacular. Na sequência dessas opções estéticas, acabamos por ter acesso a uma China moderna, simultaneamente intercultural e aculturada. Uma visão crítica face à sociedade de consumo e uma pertinente revisão do conceito de “sofisticação” que a sociedade chinesa adoptou (sobretudo em relação aos produtos estrangeiros).

Qual o impacto que a Revolução Cultural terá tido nestes autores? É possível estabelecer alguma comparação com a poesia que se fazia antes desse período da história chinesa?

Após o fim da era imperial e o surgimento da República em 1911, Hu Shi e Cen Duxiu, proclamam a utilização de uma linguagem vernacular em detrimento do chinês clássico na produção literária, naquela que ficou conhecida como a Revolução Literária. É também nesta altura que surge o verso livre. Depois da institucionalização da poesia, a poética não oficial (⾮官⽅诗坛) opõe-se à poesia oficial ortodoxa e institucional e quebra com imposições estéticas e de conteúdo, libertando-se dos espartilhos ideológicos que a poesia oficial impunha. É por isso uma poesia com maior liberdade. Contudo, esta poesia não rompe completamente com a longa linhagem histórica que continua a influenciar muitos valores estilísticos e mesmo de conteúdo na produção poética actual. Há caractectísticas que já se encontravam até antes da época de ouro da poesia chinesa, (dinastias song e tang) como a importância do ritmo, a imagética sofisticada, muitos conceitos taoistas (nas metáforas sobre silêncio, vazio, contemplação estóica, a não-acção enquanto acção, etc), a relação alegórica entre o natural e o humano e as reflexões sobre destino e poder. É interessante verificar que a relação entre política e poesia na China é também uma conexão ancestral. Desde Qu Yuan passando pelo poeta imperador Li Yu e os inúmeros estadistas que eram poetas durante a Dinastia Tang como Yuan Zhen, quando o acesso ao poder era feito através dos conhecidos exames confucianos que avaliavam, entre outras coisas, a capacidade de escrever poesia.

O que é que a surpreendeu mais nestes poemas, no que diz respeito à mensagem que transmitem, à forma da escrita? Rompem com o que se vinha fazendo desde então na poesia chinesa?

Surpreendeu-me essa lealdade à tradição ancestral que referi na questão anterior, mas ainda me surpreendeu mais a forma como o melhor dessa tradição se combina com uma certa dose de ousadia. Há uma harmonia entre classe, subtileza e a função disruptiva do poema moderno. É uma poesia de pormenores, com muitos traços experimentais. É um bom exemplo da criatividade que se encontra nos artistas chineses contemporâneos em geral. Um facto curioso: apercebi-me que vários dos autores dos poemas que traduzi se suicidaram. É uma coincidência interessante. No caso de Gu Cheng, enforcou-se depois de ter assassinado a esposa. Apesar de saber perfeitamente disso, fico na mesma perplexa perante esta confirmação sobre a natureza da poesia: é um assunto sério, intenso e muitas vezes violento.

Que expectativas coloca em relação à resposta por parte do público português a este livro?

Quem já se interessa por poesia, terá certamente curiosidade em dar uma vista de olhos naquilo que se anda a fazer naquela parte do mundo nesta matéria. Digo “anda a fazer” porque este trabalho é sobre contemporaneidade. Há outras formas de se aceder aos clássicos – dinastias song e tang – mesmo em português, com boas traduções. Mas há muito pouco em português sobre poesia chinesa actual. Este livro pretende ser precisamente um ponto de partida, facultando pistas e deixando referências. Grande parte dos poemas seleccionados neste trabalho não se encontram traduzidos noutras línguas mais amplamente estudadas por cá como o inglês ou o francês e a única forma de aceder a esses poemas é indo directamente à fonte em mandarim. Nesse sentido, encontro assim duas vantagens para quem quer complementar e aprofundar o seu conhecimento da literatura chinesa: uma visão – na organização e selecção que fiz daquilo que considero representar o avant-garde e a poesia “não oficial” e, por outro, o acesso exclusivo a um trabalho que incorpora alguns incontornáveis poemas traduzidos para outras línguas mas que é composto, maioritariamente, por poemas que até agora só estariam acessíveis a quem lesse mandarim.

Quando se deu o seu primeiro contacto com esta literatura “underground” e porque lhe interessou esta cena literária?

Quando fui para Pequim no início de 2018, o editor João Artur Pinto, da Labirinto, já me tinha lançado o repto para traduzir poesia chinesa para português, mas eu estava ainda a tentar encontrar exactamente o que gostaria de traduzir. Depois de conhecer a organização com a qual vim a trabalhar, o colectivo artístico Spittoon, foi quando tive um contacto próximo com a vida dos artistas boémios dos hutongs de Pequim e quando veio o ímpeto de me desafiar mim própria para este projecto.

Depois de publicar “A Transfiguração da Fome”, como foi a transição para um trabalho de tradução deste nível?

Um escritor tem necessariamente que ler. Ler o máximo que puder. Muitas vezes, ler coisas que são muito diferentes daquilo que escreve. Traduzir é uma forma de leitura contemplativa. É uma forma de interpretar um poema e dar-lhe uma nova casa. Uma casa linguística. Sem dúvida que traduzir faz parte de um processo criativo que complementa a escrita. Este foi um projecto muito pessoal e fi-lo sobretudo para aprender com ele. Desde ler bastante, seleccionar, aprender a traduzir, aprofundar conhecimento linguístico, etc. Foi um acto de imensa aprendizagem e de auto-formação.

Esta obra estará disponível em Macau?

Sim! O editor já está a tratar de fazer com que alguns exemplares se encontrem à venda fisicamente em Macau. O livro pode sempre ser encomendado à editora que enviará para qualquer destino.

21 Mai 2020

Telecomunicações | Grupo do sector cria associação para pensar o futuro

Com Macau a entrar na fase da 5.ª Geração das telecomunicações e com os desafios do triple-play, a Associação de Desenvolvimento de Comunicações de Macau espera afirmar-se como um think tank local do sector

 

[dropcap]C[/dropcap]riada no ano passado por um grupo de ex-trabalhadores das telecomunicações, a Associação de Desenvolvimento de Comunicações de Macau é o primeiro movimento associativo formado no território para pensar o sector. Numa altura em que o Governo insiste na transformação de Macau numa “Cidade Inteligente”, a associação espera lançar o debate sobre o caminho do sector para o futuro.

Os objectivos foram explicados pelos fundadores, entre eles Roger Kuong Kuok Fu, presidente da assembleia-geral, em declarações ao HM. “Nos próximos anos, o sector vai enfrentar questões muito importantes, que vão implicar escolhas. Vai haver o lançamento dos serviços de 5.ª Geração (5G) e convergência das telecomunicações, conhecida como triple-play. Por isso, esta é uma boa altura para nos juntarmos e debatermos de forma mais activa o futuro da indústria”, explicou Kuong.

“Somos um grupo de pessoas com um conhecimento especializado no sector, todos com 30 a 40 anos de experiência, e sentimos que podemos contribuir para que o desenvolvimento das telecomunicações possa ser feito a pensar no longo prazo”, acrescentou.

Por sua vez, Windus Lam, presidente da direcção, sublinha a importância do sector, principalmente quando o Governo está comprometido com o objectivo de transformar Macau numa “Cidade Inteligente”, ou seja, de uma cidade que recorre a uma rede de sensores e colecção de dados para gerir os assuntos do dia-a-dia de forma mais eficaz.

“Para nós foi muito positivo ver o Chefe do Executivo nas Linhas de Acção Governativa apontar que Macau tem de fechar a distância em termos da Cidade Inteligente face às regiões vizinhas”, começou por apontar Windus. “Se olharmos para a Grande Baía, espera-se que Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau formem um corredor tecnológico, por isso é importante que o Governo esteja ciente das suas responsabilidades. Nós queremos contribuir para esse objectivo com uma maior aposta no desenvolvimento”, apontou.

Seminários e talentos

Os fundadores da associação têm em comum o facto de terem trabalhado na Companhia de Telecomunicações de Macau. Após essa experiência, os caminhos profissionais passaram por outras empresas. No entanto, e embora os fundadores queiram que a associação conte com o apoio de todas as empresas do sector, o objectivo passa mesmo por conseguir reunir o máximo de profissionais da indústria, em nome individual.

“Claro que para nós é importante que as empresas do sector se envolvam na associação. Mas, queremos que as pessoas participem em nome individual e que todos se sintam bem-vindos”, explicou Xeque Hamja, vice-presidente.

Na mesma linha, Carlos Rui Marcelo, também vice-presidente, frisa a independência dos órgãos sociais. “A nossa visão não está ligada a qualquer empresa, o nosso objectivo é apoiar com conhecimento especializado o desenvolvimento tecnológico de Macau e beneficiar o território”, apontou.

Em termos de actividades, e apesar da pandemia da covid-19, a Associação de Desenvolvimento de Comunicações de Macau espera realizar seminários dedicados ao sector e promover uma plataforma para transmitir conhecimentos aos mais novos, de forma a aumentar o interesse pelas telecomunicações.

“Estamos a falar de um sector que exige conhecimento muito especializado e os recursos humanos são um verdadeiro problema. Há um certo ciclo vicioso em que as pessoas seguem outras áreas e isso faz com que haja cada vez menos interesse”, sustentou Rui Carlos Marcelo. “Só que sabemos que uma Cidade Inteligente não se faz sem talento e uma massa conhecedora. Ao fazermos seminários e debates esperamos que seja possível aumentar o interesse nesta área”, acrescentou.

Windus Lam defendeu que Macau pode constituir uma massa crítica local, apesar de haver tendência para os empregos serem concentrados na indústria do jogo. “Os residentes que estudam fora de Macau muitas vezes não querem regressar porque não estão interessados no jogo. Mas, se houver um ambiente nas telecomunicações com incentivos permanentes ao desenvolvimento, os alunos vão encarar a área de outra forma e vão querer voltar, porque sentem que podem crescer profissionalmente”, apontou. “É possível criar essas condições e contribuir para que se crie uma massa crítica para concretizar a Cidade Inteligente e fazê-la crescer e avançar”, apontou.

20 Mai 2020

Ana Correia, directora da Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da USJ: “A educação não precisa da sala de aula”

O ensino pode nunca mais voltar a ser como era. Depois da paragem de meses devido à pandemia, as aulas regressaram a Macau para um período escolar atípico. Ao HM, Ana Correia diz acreditar que a pressão está agora mais do lado dos professores e que o ensino online veio para ficar. Quanto à matéria que ficou por dar, a académica acha que “não haverá prejuízos”

 

[dropcap]Q[/dropcap]uais os principais desafios pedagógicos, que se colocam neste período escolar tão atípico?

São muitos os desafios e dizem respeito a professores, alunos, pais e às próprias instituições. Há muitos aspectos que estão aqui envolvidos e as pessoas não tiveram tempo para se preparar. Por isso, muitas das soluções encontradas acabam por ser apressadas ou encontradas por intuição para responder a problemas imediatos. Ou seja, devíamos ter sido preparados com muito mais tempo para entrarmos nesta viagem, que tem muitas surpresas e que não podemos evitar porque estamos todos nela. Falando dos alunos mais pequenos, é uma situação difícil porque não é possível mantê-los distanciados uns dos outros. Depois, os mais crescidos têm já uns meses de atraso porque houve indicações para não se introduzirem conteúdos novos. Portanto, os alunos estiveram ocupados a aprender, mas há espaços do programa curricular que não foram ensinados e isso vai ter consequências. Não digo que sejam insuperáveis, mas com certeza que no próximo ano, e nos anos seguintes, o currículo vai ter que ser repensado para colmatar este período em que andámos todos a marcar passo.

Quanto aos alunos que vão ser avaliados, existe pressão acrescida?

Isso está a ser discutido pelos responsáveis e aqui o princípio mais importante é não prejudicar os alunos, porque o que aconteceu não lhes é imputável, como também não é imputável às escolas. É necessário encontrar soluções que assegurem que os alunos não são de modo nenhum penalizados em termos de avaliação devido ao que está a acontecer. Não há soluções milagrosas. Penso que os professores, por exemplo, sentem essa pressão porque querem cumprir o programa o mais possível, mas não vai dar e, por isso, tem de haver compreensão de todas as partes e encontrar soluções que sejam o meio caminho entre o que é a perfeição e aquilo que é possível.

De que forma esta paragem forçada, onde deixou de haver rotina escolar, afectou os alunos, tanto a nível curricular como psicológico? 

Penso que os alunos devem estar muito contentes por regressar porque eles costumam gostar das férias, mas quando têm tempo limitado. Quando as férias são forçadas, os alunos costumam sentir saudades do convívio, da escola e daquela energia toda que anda ali à solta e, por isso, do ponto de vista da rotina, não haverá problema. Agora, não sei se do lado dos professores e dos pais será uma retoma total porque continua a haver receio de uma nova contaminação. Ou seja, há aqui um clima que é, por um lado, de alegria das crianças, mas por outro, um retorno à normalidade que, na verdade, é uma “nova normalidade”. Estamos todos mais ou menos em suspenso.

De que forma este período escolar atípico pode afectar os professores?

Para algumas escolas, as aulas vão terminar mais tarde e isso vai ter um preço. Não é por acaso que os anos lectivos têm paragens periódicas, a profissão docente é muito desgastante e intensiva. Por isso, os professores precisam de interrupções, precisam muitíssimo daquele período de Verão e agora, embora não tenham estado a trabalhar tão intensamente durante estes meses, não existiu uma paragem da actividade. Portanto, a sensação de recuperação de energias não existe. Acho que os professores vão chegar mais tarde desgastados ao Verão, porque há escolas que vão terminar no final de Junho e algumas até meio de Julho e receio que os professores não tenham tempo para recuperar, porque depois disso ainda há exames nacionais e a preparação do ano lectivo seguinte. Se não se decidir começar o próximo ano lectivo mais tarde, os professores vão ter um período muito pequeno de férias.

Que consequências antevê para o próximo ano lectivo?

As consequências vão existir para próximo ano lectivo, mas não só. Isto vai ter consequências para toda a educação, que não vai ser a mesma depois deste período. Há muita coisa que vai mudar. Estou convencida que o que nos está a acontecer é tão grave e tão profundo que vai ter implicações a todos os níveis. Até a própria arquitectura, as casas das pessoas vão ter que encontrar um modelo diferente porque a educação, percebeu-se agora, não precisa de acontecer numa sala de aula, numa escola. Há modelos de educação que já existiam e dos quais já se falava, mas que não eram levados a sério. Tenho a certeza que agora vão entrar no sistema com reconhecimento formal. Ou seja, vão deixar de ser só o trabalho de um grupo de professores carolas que gostam de ir ao encontro do que motiva os alunos, para fazer parte do sistema formal de educação. O uso das tecnologias digitais vai ganhar um peso muito maior na próxima reforma curricular.

Na sua opinião como tem corrido a aposta forçada no ensino online?

Temos aqui o exemplo da USJ, os alunos aprendem mais, estão mais motivados, estão mais presentes quando o ensino é online do que quando estavam nas salas de aula tradicionais. A diferença é incrível. Acredito completamente na integração entre diferentes tipos de aprendizagem, a todos os níveis. Desde a escola primária até à universidade penso que é possível. Não falo tanto do ensino infantil, mas acredito que a integração das tecnologias digitais vai acontecer muito mais rapidamente por causa da covid-19.

Na sua opinião que consequências podem resultar do ensino online? Os professores estavam preparados para esse desafio?   

O ensino online é complexo, interessante e variado. Temos aulas síncronas e aprendizagem assíncrona. Nas aulas síncronas, o professor está online directamente com os alunos. Temos softwares que nos permitem construir aulas interessantíssimas, como por exemplo o “Mentimeter” que permite fazer slides interactivos e outros que, entretanto, foram desenvolvidos e que vêm a enriquecer muito este novo tipo de ensino baseado na tecnologia. Depois temos a aprendizagem assíncrona, em que há tempo para a realização de tarefas autónomas que são carregadas através de uma plataforma digital. O factor tempo entra aqui como um elemento de controlo fundamental. Nas aulas tradicionais, muitos professores tendem a falar demais e a ocupar grande parte do tempo da aula e agora isso torna-se mais difícil, porque não há quórum. Como os alunos não estão lá fisicamente, o professor já sabe que na sua planificação tem que reservar um tempo para a aprendizagem centrada no professor e um segundo período da aula em que os alunos aprendem autonomamente. O factor tempo permite maior participação dos alunos, porque no ensino tradicional, outra tentação que por vezes existe é dar mais tempo aos alunos que aprendem mais rapidamente. Ou seja, são eles que falam, participam e os outros vão ficando na sombra.

De que forma a tecnologia pode estar mais presente no ensino?

As tecnologias digitais estão connosco há décadas, mas em segundo plano do sistema educativo, não estão integradas no currículo de forma transversal. Nós temos, por exemplo, a língua portuguesa que é transversal a todas as disciplinas do currículo, mas as tecnologias digitais, as chamadas TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação), não. Os alunos aprendem tecnologia na aula de tecnologia. Ora, isto é errado. As tecnologias deviam ser transversais, até porque é possível introduzi-las em todas as disciplinas. Para isso, é preciso formar professores. Penso que a situação vai mudar em relação a isso e mesmo as universidades e todas as instituições que têm a seu cargo a formação de professores, neste momento, estão com certeza a pensar em fazer uma reforma curricular e dar mais valor e reconhecimento às tecnologias digitais.

Que competências devem passar a ser privilegiadas pelos professores?

A primeira é a literacia digital. Os professores têm de saber trabalhar com os softwares que existem e têm de saber, pelo menos, tanto quanto os alunos. Depois os professores têm de ter consciência dos perigos que podem vir associados, por exemplo, à produção de vídeos, ou seja a questão da integridade académica. Sabemos que um vídeo pode facilmente ser carregado online e circular quase sem limite e num curtíssimo espaço de tempo. A usurpação de autoria de materiais e a circulação de materiais sem autorização é algo a que se deve prestar também atenção. Além da literacia digital e da questão deontológica da integridade académica diria que a terceira competência que um professor necessita é criatividade. Mais do que nunca os professores têm de ser criativos, têm de ir à procura e fazer auto-aprendizagem porque há milhares de ideias fantásticas online que podem ser adaptadas e, portanto, há uma parte que cabe a cada um. Deve haver desenvolvimento profissional organizado pelas escolas, pelas universidades e pela DSEJ, mas depois os professores também têm de fazer a sua parte.

Com tantas mudanças que pressão é colocada nos pais?

Os pais que têm crianças em casa vivem uma situação muito difícil por muitas razões. Porque as crianças não gostam de estar em casa, gostam de correr, têm uma necessidade enorme de gastar energia e em casa não o podem fazer. Por vezes, não existe um computador para cada membro da família, só existe um e isso pode gerar conflitos e porque os pais de facto não têm disponibilidade de assistir as crianças na realização dos trabalhos que os professores lhes pedem para eles fazerem. Felizmente, parece que estamos a chegar ao fim desse período, excepto nos casos do ensino especial e do ensino infantil. Em Macau, contudo, ao contrário de outros países, quase todas as famílias com crianças têm a ajuda de uma empregada doméstica.

Durante quanto tempo vamos correr contra o prejuízo curricular destes meses? O próximo ano lectivo será suficiente?

Tenho uma visão da educação que é por princípios e não por conteúdos. Penso que muito do que as crianças e os jovens aprendem nas escolas são pretextos para aprenderem a aprender e durante este período ficaram sem esses pretextos. Por isso, vão continuar o seu percurso e penso que não será um grande prejuízo. O que importa é que aprendam a aprender. Se não deram o conteúdo A ou o conteúdo B, terão as ferramentas que os habilitarão a ir à procura desses conteúdos e vão recuperá-los. Não estou convencida que seja um grande problema. Eu andava na escola secundária quando se deu o 25 de Abril em Portugal e também perdi muitos conteúdos e não penso que me tenham feito falta. Isso aconteceu desde Abril até Junho, por isso foi mais ou menos o mesmo período de tempo. Hoje em dia, se me perguntar se me prejudicou, respondo que não creio, porque a educação é algo maior que os conteúdos disciplinares cobertos num semestre, é um processo que começa quando entramos no jardim escola e que não termina enquanto estamos vivos. Porque o que nós queremos é que eles aprendam para a vida e o nosso modelo de ensino deve ser esse. A educação passa por criar-lhes a motivação. Se sabem os rios ou as montanhas, isso não interessa. Eles depois vão lá se quiserem.

15 Mai 2020

Paula Machado, sobre covid-19: “Macau tem a vantagem de rapidamente ganhar a confiança dos visitantes”

Não fossem os protestos em Hong Kong, Macau teria recebido mais de 16 mil visitantes portugueses o ano passado. O aparecimento do surto de covid-19 obrigou o Centro de Promoção e Informação Turística de Macau a repensar estratégias e, para voltar a esses números, Paula Machado acredita ter de trabalhar na promoção de Macau por mais dois anos. A mudança do Turismo para a pasta da Economia e Finanças é positiva e implica a aposta no turismo de negócios, defende

 

[dropcap]E[/dropcap]m plena crise pandémica, como tem sido o trabalho do Turismo de Macau em Portugal? Mantêm os objectivos anteriormente traçados?

Este ano começou com boas perspectivas e tinha tudo para ser de sucesso, na medida em que 2019 foi um ano muito especial para o nosso mercado. Tínhamos traçado um plano de marketing para 2020 muito activo por forma a dar seguimento à posição que tínhamos alcançado no mercado, com a implementação de várias acções de promoção turística e que tinham como objectivo conseguirmos aumentar o número de visitantes portugueses para Macau para perto dos 17.000. Contudo, no fim de Janeiro, com o aparecimento dos primeiros casos em Macau da covid-19 e com o fecho dos casinos, suspendemos algumas acções promocionais, mas não desistimos dos projectos em curso, que acabariam também por ser cancelados ou adiados para 2021.

Vão fazer algumas alterações?

Começamos a estudar campanhas de captação de turismo e a rever estratégias de promoção para o pós epidemia. Procuramos agora, à semelhança dos demais países, reinventarmo-nos, por forma a manter a nossa presença nos mercados português e espanhol.

De que forma isso será feito?

A nossa aposta passa por mantermos os conteúdos publicitários quer em papel, quer online, e usarmos as redes sociais para continuarmos a comunicar, uma vez que dificilmente vamos marcar presença em eventos durante os próximos meses. Estamos a estudar outras soluções como webseminars com as agências de viagens. As atenções estão agora concentradas na retoma da actividade e as questões que mais preocupam o sector são de como será o comportamento do consumidor quando a normalidade regressar e o que farão, em particular, os turistas e os viajantes.

Perante esse facto, que respostas existem?

A aposta nos mercados internos é agora a solução possível, pelo menos neste cenário de abertura condicionada e até surgir uma vacina, e penso que Macau não é excepção. A retoma dos voos está também muito dependente das medidas restritivas de entrada em cada destino, para que haja confiança por parte do consumidor em viajar e, ainda da própria operacionalidade dos voos que vão ver a sua ocupação reduzida. Como Macau foi dado como um exemplo de sucesso no combate ao vírus pela prontidão e eficiência com que actuou, obviamente que o território tem a grande vantagem de mais rapidamente ganhar a confiança dos visitantes. Mas, e até lá chegar?

Como explica que em Portugal ainda se olhe para Macau com algum distanciamento?

Quando se pensa em Macau é inevitável não lembrar o legado deixado e mantido entre as culturas chinesa e portuguesa, entre o tradicional e o moderno. Além dos habituais atractivos temos dado a conhecer os novos produtos turísticos aos portugueses, como por exemplo a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. Temos estado atentos às preferências das gerações mais novas por forma a conseguirmos chegar da melhor forma a esse segmento, que privilegia viagens “multidestinos”, para que Macau possa assim fazer parte desses itinerários.

O Governo de Macau deseja que os visitantes fiquem mais dias no território. É possível concretizar isto a curto prazo?

O segmento dos congressos e incentivos tem um enorme potencial para aumentar a estada média em Macau. O território tem, nesta área, todas as valências necessárias para a organização deste tipo de viagem e tem incentivos, nomeadamente do mercado português. Existe um fundo de captação de congressos em Macau, e se for mais conhecido, sobretudo ao nível das normas da sua utilização, por parte das agências, provavelmente teremos mais negócio com Macau neste vector. Mas, sem querer ser pessimista, para voltarmos aos números de 2019 vamos ter de trabalhar muito na promoção de Macau nos próximos dois anos.

Quantos portugueses visitaram Macau o ano passado?

O ano passado 15.967 turistas portugueses visitaram Macau, mais 2,4 por cento face a 2018. Os números de chegadas de portugueses oscilam entre os 15.000 e os 16.000 visitantes desde 2013, excepto quando grandes reuniões ou encontros decorrem em Macau. No entanto, o nosso mercado foi o que apresentou o tempo médio de permanência no território mais elevado dos mercados europeus. Em 2019, o nosso mercado apresentou uma média de estadia de 5,6 dias. Em 2019 teríamos, muito provavelmente, superado os 16.000 visitantes, mas a crescente instabilidade política em Hong Kong teve um impacto muito negativo. Em números absolutos, Outubro foi o segundo mês mais forte, sendo que em Abril se registou o pico de chegada de visitantes portugueses.

Quais os factores que mais dificultam a promoção de Macau em Portugal?

A grande distância entre os dois territórios e o custo elevado dos voos. Além disso, existe a condicionante dos baixos salários de uma grande percentagem da população activa portuguesa. Devido às restrições financeiras muitos portugueses planeiam passar as suas férias em Portugal, na vizinha Espanha, ou num destino de praia, se conseguirem um bom pacote.

Falou-me dos planos de expansão da livraria para um projecto online. Em que fase está?

Esta livraria visa promover o legado cultural de Macau e o espólio é constituído essencialmente por livros escritos por autores de Macau ou relacionados com Macau. Acaba por ser um importante complemento às nossas actividades promocionais, pois participamos na Feira do Livro de Lisboa e na Festa do Livro de Belém. Nestas feiras acabamos por vender mais livros do que em nos outros meses do ano. Ainda assim, penso que ainda há muito a fazer para atrair mais pessoas às nossas instalações.

Como por exemplo?

Uma das primeiras medidas que tomei quando assumi este novo cargo foi precisamente a reestruturação da livraria, pois não me identifiquei com a forma como a mesma estava organizada. Foi contratada uma empresa para elaborar um novo inventário, o que implicou a implementação também de um novo sistema informático e o abate de livros antigos e desactualizados, que tínhamos em demasia e nunca conseguiríamos escoar. Paralelamente, foram feitas obras no armazém para podermos organizar os livros por ordem alfabética e por autor. Vamos ainda criar um novo sistema de gestão das consignações em conformidade com o que se faz nas outras livrarias em Portugal e sim, o passo seguinte é termos o nosso site reestruturado no segundo semestre.

Qual o impacto para o vosso trabalho da mudança da área do turismo da tutela dos Assuntos Sociais e Cultura para a pasta da Economia e Finanças?

Em termos práticos não vai constituir uma grande mudança, uma vez que o nosso trabalho é coordenado pela Direcção dos Serviços de Turismo (DST). Mas a aposta na área do turismo de negócios poderá representar um acréscimo do nosso trabalho, mas será ao mesmo tempo muito gratificante podermos propor a realização de congressos de diferentes áreas em Macau, atraindo assim mais visitantes. É um segmento com um enorme potencial. Mas esta mudança não é surpresa e penso que nunca foi feito porque não se queria dissociar o turismo da cultura.

Então, porquê agora?

O turismo constitui o principal pilar da economia e emprega uma grande percentagem da população activa de Macau e não deixa de estar relacionado com o sector do jogo. Encaro com optimismo esta mudança, principalmente porque o turismo e a cultura já têm uma relação muito consolidada, o que vai permitir que continuem a trabalhar em parceria. Por outro lado, o acelerado desenvolvimento de Macau tem permitido dotar a cidade de relevantes infra-estruturas públicas e privadas, de condições excepcionais para a programação e organização de eventos de grande envergadura em outras áreas, no sentido de tornar este sector emergente. Neste sentido poderão existir muitas vantagens nas sinergias que podem ser criadas com os outros serviços sob a tutela do Secretário para a Economia e Finanças.

Receberam novas directrizes para o segmento do turismo de negócios?

Em Janeiro foi dado a conhecer aos representantes de todos os escritórios de representação da DST no exterior a zona de Hengqin. Confesso que fiquei impressionada com o desenvolvimento operado nos últimos anos e com o potencial que pode vir a ter para a realização de eventos de grande envergadura. Desde logo porque dispõe de infra-estruturas adequadas como por exemplo o parque Industrial de Ciência, Tecnologia e de Medicina Tradicional Chinesa. Quando estiver concluído permitirá aos visitantes terem experiências únicas na área da saúde e bem-estar, além de ser um local apropriado para, por exemplo, acolher congressos na área da medicina, mas não só.

Com a covid-19 a obrigar ao cancelamento de muitos eventos, como será feita este ano a promoção de Macau?

Este ano não vamos ter participação em eventos presenciais. A Feira do Livro foi adiada para Setembro, mas ainda antes desta decisão ter sido tomada manifestamos logo a nossa posição de não participarmos este ano. Acho que foi uma medida prudente, pois não creio que vá acontecer. Quanto à BTL, foi cancelada este ano, pelo que terá lugar como habitualmente em Março de 2021.

14 Mai 2020

Y Ping Chow, promotor da Câmara de Comércio Portugal-China PME: “As pessoas queriam que eu fizesse algo”

Criada oficialmente na última semana, a nova Câmara de Comércio Portugal-China PME destina-se a dar apoio a empresas de pequena e média dimensão esquecidas pela existente câmara de comércio luso-chinesa. Y Ping Chow, presidente do conselho executivo e dirigente da Liga dos Chineses em Portugal, acredita que a criação de uma plataforma online de venda pode fazer baixar os preços de máscaras e outros materiais de protecção

 

[dropcap]Q[/dropcap]uais são, para já, os principais objectivos desta câmara de comércio?

Embora Portugal tenha um desenvolvimento positivo na relação comercial com a China, acho que as pequenas e médias empresas (PME) necessitam ainda de muito apoio e foi nesse sentido que decidi criar esta câmara de comércio, depois de receber sugestões e de analisar se tinha espaço para isto. De certeza que vamos conseguir fazer algum trabalho.

Já existe a Câmara de Comércio Luso-chinesa. Quais as principais diferenças entre ambas?

A principal diferença entre estas duas câmaras de comércio prende-se com o facto de os representantes das PME sentirem pouco apoio por parte da Câmara de Comércio Luso-Chinesa. Não só percebi que as pessoas queriam que eu fizesse alguma coisa, como também entendo que as relações entre os países não deviam ser responsabilidade de uma determinada câmara de comércio. Vamos tentar criar melhores relações com a Câmara de Comércio Luso-Chinesa e com outras porque podemos, realmente, ser o interlocutor entre a China e outros países.

As PME dizem não ter apoio suficiente. Quais os principais problemas que enfrentam?

O que me foi dito é que as PME sempre tiveram pouco apoio por parte da Câmara de Comércio Luso-Chinesa, porque esta não tem praticamente relação com a China do ponto de vista empresarial e em termos de diversidade sectorial, como nós temos.

As dificuldades sentidas pelas PME foram agravadas com a crise causada pelo surto de covid-19. A nova câmara de comércio vai trabalhar de forma mais específica sobre estas dificuldades?

Tenho a certeza de que as PME, sobretudo as portuguesas, vão ter muitas dificuldades ao nível da importação e exportação. Vamos trabalhar mais nesse sentido e tentar criar um centro de negócios com os maiores portais de venda online na China. Já temos empresas disponíveis para participar e apoiar.

Pretendem ajudar a agilizar a importação e exportação de máscaras e outros material de protecção ou equipamentos?

Neste momento, tanto Portugal como a Europa necessitam muito destes produtos e há muitos empresários chineses que estão a apostar neste sector. Tenho a certeza de que com a entrada dos empresários chineses [na plataforma de comércio online criada pela câmara de comércio] estes produtos vão ter preços mais baixos.

Do lado da China, há dificuldades na aproximação de PME chinesas a Portugal?

As PME procuram menos as empresas portuguesas porque, para os empresários, Portugal é um país muito pequeno. Mas também há falta de apoio para uma política de internacionalização das PME e gostaríamos de ser um parceiro das PME para ajudar neste aspecto, para que haja maior aproximação a Portugal e aos países de língua portuguesa.

Macau pode ter um papel importante nesta nova câmara de comércio?

Pode. Já temos uma delegação e uma empresa [a trabalhar connosco], que está interessada em ser nossa delegada em Macau. Vamos fazer protocolos com algumas associações empresariais de Macau e estamos ligados à Associação Comercial Internacional para os Mercados Lusófonos [liderada por Eduardo Ambrósio].

Para já, propõem-se criar fundos de investimento para os sectores agroalimentar e do turismo. São os que encara como mais importantes ou prioritários em termos de apoio?

Não concordo que estes sectores sejam mais importantes do que outros, mas segundo a minha análise são aqueles com que é mais fácil trabalhar, através da plataforma de vendas online que estamos a criar [que tem o nome provisório de Casa de Portugal]. É muito mais fácil colocar este tipo de produtos [no mercado]. No que diz respeito ao turismo, existe também maior facilidade em trabalhar com os interessados do Interior da China que queiram investir nos vistos gold em Portugal. Temos mais fé no desenvolvimento destes dois sectores.

O sector dos vistos gold também foi afectado pela covid-19…

A covid-19 afecta tudo, mas temos de trabalhar a dobrar.

Para este projecto escolheu trabalhar ao lado de nomes como Jorge Costa Oliveira [ex-secretário de Estado da Internacionalização], o deputado José Cesário, entre outros. Como foi o processo de escolha de parceiros para esta iniciativa?

São pessoas conhecidas e que têm relações comigo. São pessoas que gostam da China e que compreendem como se deve desenvolver uma estrutura e trabalhar para o bem dos dois países.

Diplomacia | Y Ping Chow espera que Ho fale de economia na visita a Portugal

A Câmara de Comércio Portugal-China PME tem laços com o sector empresarial de Macau e Y Ping Chow não tem dúvidas de que o projecto será bem-recebido por parte das autoridades locais. “Não dei conhecimento deste projecto ao Governo de Macau, mas tenho a certeza de que será bem acolhido”, refere o também empresário.

É conhecido o apoio, não só de Y Ping Chow, mas de grande parte da comunidade chinesa em Portugal a Ho Iat Seng, Chefe do Executivo, desde o primeiro dia em que o ex-presidente da Assembleia Legislativa anunciou a candidatura ao cargo. O que os une é a sua origem, Zhejiang. “A comunidade chinesa fica satisfeita com a eleição de Ho Iat Seng e gostaria que Portugal se relacionasse mais com Macau. Tenho a certeza de que Ho Iat Seng está disposto a melhorar o relacionamento com Portugal e com a comunidade chinesa aqui residente”, frisou o presidente da Liga dos Chineses em Portugal.

Em Março, foi confirmada a visita de Ho Iat Seng a Portugal assim que passar o surto da covid-19. Trata-se da primeira viagem que Ho Iat Seng faz na qualidade de Chefe do Executivo e Y Ping Chow apresenta algumas expectativas sobre a agenda do governante em terras lusas. “Gostaria de o ouvir falar sobre o desenvolvimento económico. Portugal poderá relacionar-se mais com Macau e ser uma porta de entrada para os países lusófonos e Europa”, rematou.

12 Mai 2020

Diah Satyani Saminarsih, conselheira da OMS: “Agora é impossível escapar à violência”

São vários os relatos de violência contra as mulheres no contexto do novo tipo de coronavírus, na Ásia e no resto do mundo. Diah Satyani Saminarsih, conselheira sobre género e juventude da Organização Mundial de Saúde, falou ao HM sobre a vulnerabilidade de mulheres em sociedades patriarcais e o papel da sociedade no preenchimento de lacunas deixadas pelos governos em assuntos que consideram não ser prioritários

 

 

[dropcap]O[/dropcap] que explica o aumento da violência contra as mulheres durante uma crise destas?

Acho que se deve à natureza e à rapidez com que a doença se espalha e como leva os Governos a determinar o isolamento ou restrições de movimentos dos indivíduos. Num contexto mais moderado, fechar escolas afecta mulheres mais do que os homens, porque são as cuidadoras naturais de uma família. Por exemplo, tenho uma pessoa que me ajuda a limpar o apartamento, mas não pode trabalhar porque o filho agora está em casa. Acho que esses casos se amplificam pelo número de empregadas domésticas que temos pelo mundo. Isso exacerba directamente o impacto da covid-19 nas mulheres, a natureza da velocidade de propagação. Se a pessoa estiver num relacionamento violento ou problemático, normalmente consegue escapar ao ambiente de casa ao sair, mas agora isso não é possível. Por outro lado, se dentro de casa há um parceiro que depende de si financeiramente, estar em lay-off, sem trabalho e em casa – porque as mulheres têm trabalhos mais informais, também aumenta pressão sobre as mulheres, além da realidade da violência doméstica. Mas afecta ainda mulheres que estão directamente a combater este vírus dentro dos sistemas de saúde. A nível global 70 por cento da força de trabalho são mulheres. Isso também é um problema, porque as mulheres que trabalham são obrigadas a ficar afastadas e isoladas das suas famílias para poderem continuar a fazer o seu trabalho sem as infectar. E isto apresenta uma pressão adicional sobre as mulheres, especialmente para as que são cuidadoras principais da sua família, ou estão grávidas ou a amamentar. Põe as mulheres numa posição muito precária porque fá-las ter de escolher entre o seu percurso profissional, enquanto profissionais de saúde, e a vida doméstica. O que não devia sequer ser uma escolha. Nalguns países, já havia problemas com políticas que não são sensíveis ao género, a sociedade patriarcal já existia antes da covid-19. Mas a covid-19 tornou-a mais pronunciada e faz com que mulheres já vulneráveis se tornem ainda mais vulneráveis e vítimas. Quer seja um profissional de saúde ou parte da sociedade em geral a experienciar o impacto da pandemia.

As mulheres que são vítimas de violência deviam ser isentas de restrições de mobilidade?

De uma perspectiva política, antes da covid-19, as medidas que determinavam a vidas das mulheres eram decididas por homens. Era a situação se estava a tentar mudar. Agora acho que é ainda mais importante mudar isso, para que, da perspectiva das mulheres, sejamos capazes de exercer os nossos direitos como indivíduos, de fazer ouvir a nossa voz. Mas ao nível nacional compreendemos que esses elementos não são uniformes entre todos os países. Alguns já são sensíveis às questões de género, são atentos às necessidades das mulheres, têm igualdade de género e são igualmente representadas no seu Governo e na tomada de decisões políticas. No entanto, há países que ainda são muito patriarcais. Esta sociedade patriarcal decide para as mulheres, mas as decisões são tomadas por homens. E não dão resposta às necessidades das mulheres. A sua pergunta, de momento, talvez ainda não possa ser respondida porque precisamos de ir mais além para ver como é que o processo de decisão política em relação ao género está a ser abraçada pelos governos.

Acha que os Governos estão a tomar acções suficientes para proteger as mulheres?

Ainda podemos fazer melhor. Se os governos estivessem a fazer o suficiente não estaríamos a ter esta conversa agora. E não haveria necessidade de ser a OMS a pedir aos Estados-Membro dados desagregados por género. Esse simples passo é muito importante para perceber se os países já são sensíveis ao género ou não. Mas ainda é algo que temos de recordar constantemente a países e parceiros para incluir como uma variável no seu processo de decisão política.

Que medidas práticas podem ser tomadas para ajudar a situação actual?

A sociedade civil nesta situação de pandemia desempenha um papel muito importante e estratégico. Por um lado, ao ajudar e amplificar a voz do público. Por outro, ao suplementar e preencher as lacunas deixadas por preencher pelos governos porque não têm tempo ou ainda não veem como prioridade. Acho que esta é a função estratégica principal de momento. É por isso que a OMS, de uma perspectiva global, tenta cobrir todos os espectros e pôr o género dentro da estratégia da resposta à covid-19. É para alertar os governos para não se esquecerem de incluir um olhar sobre o género nestas respostas. Mas acho que a acção mais prática voltada para a epidemia agora é fazer exactamente o mesmo que a sociedade civil está a fazer: ser mais activa, envolver as comunidades e o público, recolher evidências e sensibilizar para isso ao nível nacional de forma a influenciar mudança na tomada de decisões políticas.

O apoio financeiro a linhas de apoio ou abrigos para situações de crises podem ser benéficas?

Sim. Essas coisas devem ser pedidas junto dos nossos governos nacionais e depois a sociedade civil pode entrar em acção. Não só criar centros de isolamento ou vigilância comunitária, mas também educação pública ao nível da comunidade. Todos os pequenos gestos contam.


De que forma é que tradições ou a cultura local dos países na Ásia pode afectar este fenómeno, por exemplo a nível religioso?

Acho que todos os elementos que se podem encontrar na construção social de uma sociedade devem estar a colaborar entre si. E organizações com base na fé são igualmente importantes nos movimentos de direitos das mulheres, na resposta a questões de género e juventude. Em muitos governos, uma resposta com base na fé é muito necessária.

O que podemos esperar a longo prazo? O que acha que podemos aprender desta situação para gerir novas crises?

Em primeiro lugar, quão importante é a preparação dos países para emergências de saúde. Os países que se saem melhor são os que se têm preparado, de forma consistente, para a eventualidade de um surto. Os outros não têm preparado os seus sistemas de saúde o suficiente para lidar com emergências de saúde. O principal objectivo que temos de ter em mente é que sim, é necessário salvar vidas, mas também a integridade do sistema de saúde em si. Porque se as pessoas estão doentes vão tentar aceder ao sistema de saúde e se este não for suficientemente forte vai colapsar. Claro que a OMS não vai dizer que um país é muito melhor do que outro, mas podemos lembrar todos para fazerem tudo ao seu dispor para manter a integridade do seu sistema de saúde. E se perguntarmos como, a resposta é que quando tudo isto tiver terminado e nos estivermos a ajustar ao novo normal de vida depois da covid-19, teremos de levar a preparação nacional mais a sério do que sempre. E considerar as emergências de saúde como algo integrado no contexto de cuidados de saúde primários, no trabalho da sociedade civil. Para se ter isto em conta são precisos todos: países dadores e parceiros de desenvolvimento. Porque a sociedade civil e os países, quer queiram quer não, precisam da ajuda de parceiros de desenvolvimento para serem capazes de pôr as emergências de saúde nas suas prioridades. É uma situação em desenvolvimento, mas a partir de agora precisamos saber que a preparação nacional tem de ser dos países em si, com todos os elementos que isso abrange. Uma resposta com base no género deve estar lá e ser reconhecida pelos países.

8 Mai 2020

Wonderland | MJ Lee e Maing Hee Won, artistas: No país das bizarrias

Aberta aos olhos dos visitantes até ao próximo dia 24 de Maio no Armazém do Boi, Wonderland é uma exposição que parte em busca do lado oculto e menos óbvio de Macau. Nas mesmas ruas, religião e superstição convivem cordialmente com prostituição disfarçada. O enquadramento é oferecido pela obra das sul-coreanas MJ Lee e Maing Hee Won, onde a lama, os néons e a mitologia grega albergam os paradoxos de uma cidade próspera, mas rebuscada. Boa sorte

 

 

[dropcap]D[/dropcap]e que forma Macau e as suas camadas serviram de base para materializar as obras que podemos ver em Wonderland?

MJ Lee: Como residente de Macau e esposa de um macaense é interessante observar o estilo de vida do meu marido, metade português e metade chinês. Vamos à missa no dia de Natal e aos templos para rezar durante o ano novo chinês e isso acaba por ser, de certa forma, bizarro. Eu cresci como cristã, onde rezar a outro Deus é quase insultuoso. Mas em Macau, no geral, não sinto esse peso e o culto acaba quase por assumir uma perspectiva mais cultural do que religiosa e por isso, as pessoas têm prazer em ir rezar em família aos templos ou numa missa. É complicado e bizarro e é o que sinto em relação a esta cidade. Por exemplo, junto às ruínas de São Paulo existe um templo, algo que seria impossível na Coreia do Sul, porque aqui as religiões e as culturas têm coexistido de forma pacífica há mais de 500 anos e é bonito que assim seja.

Maing Hee Won: Acho que me foquei num ponto muito mais específico dessas camadas que todos sabemos que existem em Macau. A mistura de culturas é muito interessante, mas sempre me atraiu mais o negócio dos casinos. Fico sempre à espera de encontrar algo mais parecido com Las Vegas. Quando vi pela primeira vez os grandes hotéis, deu-me a sensação de estar num enorme parque de diversões e fiquei com muita vontade de entrar. Mas quando entrei senti que era muito pouco interessante. É tudo igual, o Venetian, o Parisian… todos os hotéis parecem ser o mesmo lugar por dentro e não há muito para ver. Por isso, continuei a pensar o que faz de Macau um lugar único, ou seja, que tipo de cenários resultam do negócio gerado em torno dos casinos. Continuei a questionar-me sobre isto e deparei-me finalmente com as saunas que têm aqui características únicas.

Como decidem por onde começar a trabalhar um determinado tema e como surgiu a ideia da exposição?

ML: Por estar há muito tempo fascinada com o estilo de vida das pessoas de Macau, tentei imaginar de que forma poderia mostrar a minha perspectiva, ou seja, as emoções que sinto quando testemunho a ligação que as pessoas têm com os rituais religiosos. Por isso, dei por mim a pensar qual seria a melhor forma de criar algo que transmitisse, simultaneamente, este tipo de sentimento bizarro e a minha crença de que nada é permanente. Quando pensámos numa exposição chamada Wonderland [País das Maravilhas], decidimos que íamos fazer algo, lá está, bizarro, mas próspero e ao mesmo tempo instável, quase como que uma ilusão. Esta exposição foca-se nas contradições e no carácter irónico de Macau. No entanto, acho que as pessoas de Macau não sentem esta cidade tão bizarra como eu, talvez porque cresceram aqui. Mas agora, mesmo esse lado mais oculto faz parte do ar que respiram.

MHW: Normalmente começo por algo que me faz ficar zangada. Acho que o principal sentimento que associo ao meu trabalho é a raiva. Sinto que perante a sociedade, e porque persigo a feminilidade, tenho de agir de determinada forma. Isso faz-me continuar a questionar a sociedade e a mim própria. Gosto de coisas bonitas, mas não sei se é um gosto pessoal ou um outro que fui forçada a adquirir. Na verdade, acho que é algo que vem de fora e por isso pergunto-me sempre quem é e de onde vem essa força que decide sobre o que é o sentido estético. Quando me deparei com as saunas de Macau, não posso dizer que senti raiva, mas fez-me lembrar que a sociedade continua a ser dominada por uma perspectiva masculina sob vários aspectos, apesar de considerar que actualmente existe bastante igualdade entre géneros.

O que pode simbolizar um santuário que mistura elementos tão diferentes como a argila, ouro e uma televisão?

MJ Lee: Gosto das emoções que resultam da colisão entre materiais heterogéneos e essa combinação transforma-se em algo estranho. Quando vejo figuras religiosas ou estátuas de porcelana nas ruas de uma cidade cosmopolita como Macau, fico sempre com a sensação de serem apenas decorativas e desprovidas de significado. Gosto das emoções que resultam da mistura de materiais diferentes e até lhes poderia atribuir algum significado, mas acho que assim estaria a limitar a imaginação de quem vê as obras. O meu objectivo era fazer combinações bizarras e focar-me na materialidade e não tanto no significado. A fragilidade é outros dos pontos principais do meu trabalho. Na obra que fiz podemos ver um objecto de barro que aos poucos se vai desfazendo na água. Eu própria quando fiz a instalação tive medo que a televisão fosse cair devido ao seu peso e à instabilidade do material que a suporta. Queria criar algo capaz de provocar ansiedade às pessoas quando vissem estes materiais, que não são propriamente estáveis ou sólidos.

Nos dias que correm, marcados pela pandemia, que papel podem ter as superstições e as crenças religiosas?

MJ Lee: Acho que a crise da covid-19 tornou mais clara a forma como vejo o mundo, ou seja, nada é para sempre. Estamos a testemunhar a destruição da civilização tal como a conhecemos e a forma como de um momento para o outro se instalou o caos, com enormes perdas económicas e humanas. Isto tudo faz-me pensar que, na vida, não existe nada que valha a pena adorar ou que nos faça ficar obcecados. As superstições não podem ajudar a acabar com este incidente, certo? Acho que, neste momento, há cada vez mais pessoas a deixar de acreditar na religião e não nos podemos esquecer que ela também faz parte da civilização e que foi criada por pessoas. Uma vez perguntaram ao Dalai Lama se seria possível travar o aquecimento global e os problemas inerentes a essa questão. Ele respondeu que o planeta também reencarna e que tal como todos nós nasceu e um dia vai morrer. Ou seja, é impossível impedir a destruição do mundo. Temos de aceitar este tipo de mudanças e desastres. No final, vamos acabar todos por ser apenas uma porção de poeira sem importância. É isto que quero transmitir com a minha obra. É obscuro e triste, mas acho que é precisamente isso que fundamenta a existência humana.

Se tudo é assim tão ténue, o que devemos procurar ao longo da vida?

ML: Não sei a resposta. Como artista, penso que é importante colocar as questões às pessoas, mas não lhes dar as respostas. Temos de continuar a questionarmo-nos e tentar perceber o que realmente importa na vida. Pode ser diferente de pessoa para pessoa, mas para mim o que é importante é o sentimento que tiramos de cada momento. Não é uma coisa física, é algo que pode ser desmaterializado. Por exemplo, quando as pessoas têm experiências de quase morte elas vêem apenas momentos importantes das suas vidas. O meu pai experienciou este tipo de sensação e contou-me que foi quase como um filme, em que viu momentos da sua vida em catadupa. Por isso, o que ele viu talvez seja o que realmente importa para ele. Para mim, cada momento é muito importante.

Que equação é esta capaz de ligar a mitologia grega e o Renascimento ao submundo das saunas de Macau?

MHW: Os mitos gregos e os clássicos são uma ferramenta que uso para dar mais força às minhas imagens, inspiradas nas personagens do Manga japonês. Normalmente a principal estética das mulheres do Manga japonês fixa-se na imagem da juventude. São raparigas com cara de bebé, olhos enormes, bochechas gigantes, narizes pequenos, mas de corpo amadurecido, seios enormes e tudo aquilo que possamos desejar. É possível encontrar uma ligação entre essa estética, o ideal de beleza do Renascimento e as deusas dos mitos gregos. Todos os estes elementos transportam-nos para a existência de um desejo comum. A partir daí, transformar estes objectos de desejo em formas de arte clássicas, de certa forma recatadas e alinhadas em série numa linha sem fim à vista, foi a forma que arranjei para pôr a nu esse paradoxo. No final da linha onde estão expostas todas as mulheres, tal como acontece nas saunas de Macau, surge a figura de Vénus inspirada na obra de Botticelli [Nascimento de Vénus], como símbolo de algo precioso e elevado. Desenhei-a ao estilo do Manga japonês, mas na sua vertente pornográfica. Na minha obra, Vénus não tem nada a esconder e apresenta-se de forma erótica. Perante isto, questiono-me sobre se uma deusa como Vénus pode, ao mesmo tempo, ser reduzida a um objecto de desejo e ser contemplada, sem qualquer tipo de perversão.

O que pensa do negócio da prostituição em Macau?

MHW: Às vezes sinto raiva, mas não fico particularmente zangada em relação a este negócio. Há mulheres que lucram com a prostituição e querem fazê-lo porque conseguem ganhar muito dinheiro e esse dinheiro faz com que muitas mulheres de diferentes países venham parar a Macau. No entanto, é um negócio feito às escondidas. Actualmente o poder que as mulheres detêm na sociedade está a crescer e por isso acho que é natural que ainda haja algum sigilo, mas também significa que vivemos numa sociedade dominada por homens. Os homens querem que este negócio exista para que possam continuar a sentir-se como os imperadores que existiam noutros tempos.

Então qual é a solução?

MHW: Acho que não há solução. Porque tal como referi na minha obra, esta é uma questão que vai continuar a existir para sempre. Por outro lado, se a prostituição fosse legalizada talvez pudessem existir ambientes seguros e justos.

Quando pensam em executar uma obra, existe a preocupação de mudar mentalidades?

ML: Acho que a arte é uma boa plataforma para servir de escape para as pessoas contactarem com diferentes perspectivas, por isso, através dela podemos colocar essas questões às pessoas. Quando as pessoas têm uma vida ocupada não têm tempo para se questionarem, mas a arte é uma boa plataforma para trazer à ribalta algumas dúvidas sobre a vida. Acho que é por isso que a arte existe, porque nós artistas somos em menor número e estamos sempre a duvidar de alguma coisa e não estamos inseridos no funcionamento normal da sociedade.

MHW: Sou uma pessoa muito sarcástica. Acho que a arte não tem a capacidade para mudar o mundo, mas pode ser quase como uma guloseima. Às vezes podemos dar uma trincadela num rebuçado estranho e picante. Acho que a arte pode acordar as pessoas e fazer barulho, mas acho que não pode mudar o mundo e a sociedade.

5 Mai 2020

Vasco Lourenço, Capitão de Abril: “Prefiro uma má democracia a uma ‘boa’ ditadura”

O presidente da Associação 25 de Abril continua a dizer, 46 anos depois, que ter sido forçado a assistir à revolução à distância é a “maior frustração” da sua vida. Em tempos marcados pela pandemia da covid-19, Vasco Lourenço acredita que os valores de Abril estão vivos e que podem ajudar a construir um mundo melhor, sem populismos e com uma nova relação com a natureza

 

[dropcap]C[/dropcap]om que tónica e de que forma devem ser celebrados os 46 anos do 25 de Abril?

Respeitando as condicionantes. Não pode ser na rua. Não pode ser em convívios. Terá de ser no isolamento social que teremos de tentar romper através dos meios de comunicação. Consideramos essencial reafirmar os valores de Abril, para além de os praticarmos com a fraternidade, tão bem glorificada pelo Zeca, devemos também materializá-los na maneira como estamos a lidar com a crise. Vamos mostrar o apego ao 25 de Abril, cantando a Grândola, seguida do Hino Nacional, às 15h do dia 25. Confio que, em todo o país se sinta esse apego e vontade de defender os valores da liberdade, da democracia, da paz, da igualdade, da justiça social e da solidariedade.

Se tivesse de escolher apenas uma, qual a memória mais vívida que tem do dia 25 de Abril de 1974?

O ouvir, às duas e vinte da manhã, 4h20, no Continente, no gabinete do “oficial de dia” do Quartel General em Ponta Delgada, o primeiro comunicado do MFA. Ao ouvir “aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas…”, saltei como um louco, sozinho no gabinete, a gritar “Ganhámos! Ganhámos!”, louco de alegria com a convicção, com a certeza de que, chegados ali, íamos vencer!

Quando nasceu a sua vontade de agir e como começou o seu percurso revolucionário?

A minha vontade de agir, nasceu em plena guerra colonial, na Guiné. Ao regressar, em Junho de 1971, acompanharam-me três sentimentos, distintos e até contraditórios: satisfeito! Considerei-me realizado o meu comportamento na guerra, quer como homem, quer como militar. Angustiado! Descobrira que, como militar, estava a ser explorado, pelo poder, para fazer uma guerra injusta, que servia para suportar um regime iníquo e ilegítimo. Decidido! “Abertos os olhos”, optara por não voltar à guerra e tudo fazer para ajudar a modificar esse estado de coisas. É o “Estado a que isto chegou”, como diria o Salgueiro Maia, ao falar aos militares que comandou, a caminho de Lisboa. É este último sentimento que me cria a vontade de agir. Como começo o meu percurso de revolucionário? O Congresso dos Combatentes provoca uma reacção de contestação no seio dos oficiais do quadro permanente das Forças Armadas. Essa contestação vai até mim, encontra-me com aquele sentimento que referi.

Antes de haver qualquer plano traçado, como começou a ser delineada a revolução?

Como se sabe, após a realização do Congresso dos Combatentes e do seu esvaziamento, andavam os contestatários a discutir como aproveitar a embalagem dessa contestação, quando lhes cai, “como sopa no mel”, um decreto que cria graves problemas de natureza socioprofissional no seio dos oficiais do Exército. Pessoalmente, senti que era chegada a hora, tinha que aproveitar a oportunidade. Naturalmente, de início não se podia avançar imediatamente para uma contestação de natureza política e para a revolução. Quando, depois de alguma preparação, realizámos a primeira grande reunião, em 9 de Setembro de 1973, num Monte alentejano em Alcáçovas, que marcou o nascimento “oficial” do Movimento dos Capitães, o posicionamento dos 136 oficiais que participaram, podia ser dividido em três grupos: Os contestatários aos decretos, por razões sócio-profissionais. Camaradagem, eram jovens do tipo “vamos para a farra” e “o meu amigo vai, eu também vou”. E os determinados a aproveitar a oportunidade. Se o primeiro era maioritário e o segundo estava em clara minoria, o terceiro era difuso, com ideias e opiniões escondidas. Não sei dizer-lhe se eram muitos ou poucos. Sei que eu era um deles, sei que consegui “impor” a palavra de ordem que dali saiu e que viria a constituir a principal arma dos conspiradores: “recuperar o prestígio das Forças Armadas, junto da população portuguesa”. Foi assim que dali saímos, conquistando adeptos, até chegarmos ao 25 de Abril.

Como foi levada a ideia a partir daí?

Direi que, tendo permanentemente presente o objectivo, em quatro etapas. A demonstração de que o prestígio das Forças Armadas estava muito por baixo. Isto foi extraordinariamente fácil, bastava constatar a situação, visível a olho nu. Responder à pergunta “porquê?”, de fácil resposta, pois as forças armadas eram vistas como suporte do regime repressivo que impunha a guerra. Responder à pergunta “que fazer?”, também de fácil resposta, pois o objectivo era deixar de ser esse suporte. Depois, responder à última pergunta, “como?”. Fácil! Fazer um golpe de Estado, derrubar a ditadura, libertar a liberdade e resolver o problema colonial. Foi certamente a primeira acção deste tipo que durou tão pouco tempo a consumar-se: o tempo da gestação de uma criança, prematura, porque não chegou aos nove meses. Foi um percurso complicado, feito na clandestinidade, não podendo dizer quais os objectivos, tacteando, arregimentando conspiradores, discutindo a necessidade da elaboração de um programa político na altura devida. Enfim, uma tarefa que só foi possível pela experiência ganha na guerra colonial, pela capacidade dos “dirigentes” e pela coragem e determinação de todos!

À distância, o que teria feito diferente durante a preparação e execução do golpe militar?

Falar depois é fácil, como é fácil acertar no resultado de um jogo depois da sua realização. Fui o principal responsável pela conspiração e nem sempre impus o meu pensamento. É, aliás, uma das minhas características. Gosto de ouvir os meus companheiros, os meus colaboradores. Muitas vezes aceito optar por soluções diferentes das que defendo à partida. Também aqui, nem sempre as minhas opiniões foram seguidas. A principal talvez tenha sido a da constituição da Junta de Salvação Nacional, em que eu defendia que, não tendo generais, teríamos, em último caso, Capitães. Hoje, faria alguma coisa de forma diferente? Nas mesmas condições, ou sabendo então o que sei hoje? Não vejo como teria feito diferente! Até porque “tudo correu bem”.

Como foi assistir ao golpe militar à distância?

Isso constitui, ainda hoje, a maior frustração da minha vida! Eu, como já afirmei, fora o principal responsável pela conspiração. Numa Direcção do Movimento, constituída por três oficiais, os majores Vítor Alves e Otelo Saraiva de Carvalho, e o capitão Vasco Lourenço, eu era o responsável operacional. Se não tivesse sido transferido compulsivamente para os Açores a 9 de Março, preso e enviado por via aérea, no dia 15 de Março, teria sido eu a comandar as operações do 25 de Abril. Calcula, portanto, como me sentia, ainda por cima depois do fracasso do 16 de Março. Tenho a opinião de que, se tivesse sido “despachado” daqui em Dezembro ou Janeiro, não teria havido um 25 de Abril! Teria havido um outro 25 qualquer, em Outubro, Novembro, Dezembro…, mas Abril, não! Porquê? Porque a nossa organização teria levado um enorme rombo e levaria algum tempo a recuperar. Nessa altura, em Março, já estávamos de tal maneira avançados que a minha saída pôde ser perfeitamente colmatada com a transferência do Otelo para o meu lugar. E, como costumo dizer, “com o Otelo, correu bem! Comigo, não se sabe, falta fazer a prova!”.

Acompanhou as operações a partir de Ponta Delgada?

As ligações eram muito difíceis. Por razões de segurança, não voltei a comunicar pessoalmente com ninguém. Mesmo as cartas da minha mulher não levavam informações directas, mas sim num código que eu, especialista, pois era criptólogo, inventara e lhe dera. Aproveitando a ida de um capitão da Força Aérea, Ernesto Estevinho, a Ponta Delgada, entreguei-lhe um código, a que juntei as normas de utilização, e pedi que o transmitisse ao Otelo. Como pedido, no dia 24 de Abril, o Melo Antunes, ao chegar a casa depois do serviço, encontrou o telegrama que chegara dirigido à sogra: “Tia Aurora segue EUA 25.03.00”. Voltou ao Quartel General, entregou-me o telegrama e foi assim que os dois ficámos a saber que a acção militar seria desencadeada nessa mesma noite às três da manhã! Aconteceu que estava de “oficial de serviço” nesse dia. Enquanto o Melo Antunes regressava a casa, fiz o serviço mais rigoroso que alguma vez fiz na vida. Havia duas horas de diferença entre Lisboa e Ponta Delgada. Por isso, depois de encerrar o portão pela última vez, à uma da manhã, fui para o gabinete do oficial de serviço e sintonizei o rádio. Pensei, “se fosse eu, tentaria ocupar um posto de radiodifusão para duas finalidades. Para comunicar com a população e, em caso de emergência, para comunicar com as minhas forças no terreno. Será que o Otelo pensou o mesmo? E, se pensou, que emissora vai ocupar?”. Fui ouvindo o rádio, de posto em posto, eram duas horas e vinte minutos. Termina a transmissão de uma música, verifico que o posto que estava sintonizado não é português, vou rápido à procura de um outro posto, caio na parte final de um comunicado “pede-se aos médicos que acorram aos hospitais, pede-se às pessoas que não saiam de casa”! E, começa uma marcha militar que desconhecia. Foram os dois ou três minutos mais longos da minha vida. Ansioso, percorro os três ou quatro metros do gabinete, para um e outro lado, vezes sem conta, murmurando “é nosso? É deles? É nosso? É deles?” De repente, para a música e ouço: “Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas…”

O que aconteceu depois disso?

Nomeei um aspirante miliciano, meu auxiliar na ligação aos milicianos, e a quem perguntara depois do jantar, no dia 24 se sabia rezar. Ainda me recordo bem das suas reacções – “porque me pergunta isso, capitão”? “Porque, se souber, mando-o rezar”! “Não me diga, não me diga que é hoje”! “Sim, é hoje! Vamos preparar tudo”! – para ouvir as rádios e me ir dando informações sobre a evolução das operações, enquanto eu e o Melo Antunes tratávamos de controlar tudo em Ponta Delgada, nomeadamente as atitudes do Almirante Comandante Chefe. E foi fundamentalmente através das notícias da BBC que fomos sabendo da evolução do que se passava no Continente. De realçar que não tivemos que executar os planos previstos, pois o Almirante acatou as nossas “ordens” e o Marcelo Caetano não conseguiu fugir para Ponta Delgada, como constava dos planos do poder, desde os tempos de Salazar. Regressei a Lisboa, no primeiro voo da TAP, cheguei às duas da manhã do dia 29, integrei-me no Comando da Direcção do MFA. Acabei por ser o único dos Capitães de Abril que pertenceu a todos os órgãos de direcção superior do Movimento, desde a primeira comissão coordenadora, escolhida a 9 de Setembro de 1973 em Alcáçovas, até ao Conselho da Revolução, extinto em Outubro de 1982. É um orgulho, mas, acima de tudo, uma honra que tenho!

Como encarou os tempos depois da revolução? O que o preocupava mais?

Aguentar, não deixar que os derrotados recuperassem, não permitir que os oportunistas se aproveitassem e inviabilizassem o cumprimento dos principais objectivos: resolver o problema da guerra colonial, alcançando a paz. Estabelecer a democracia, garantindo eleições livres para uma Assembleia Constituinte, no prazo de um ano. Lançar as bases de um desenvolvimento que permitisse a construção de uma sociedade mais justa! Os três DDD, como ficou conhecido o Programa do MFA: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver!

Como vê a polémica gerada em torno das comemorações deste ano?

De uma forma simples: a extrema-direita, e mesmo alguma direita democrática, não gostam do 25 de Abril! É natural, nunca gostaram, foram afastados do poder! Mas, como o 25 de Abril, até por continuar a ser um acto único na História Universal, nunca acontecera, nem voltou a acontecer, algo semelhante, está no coração da grande maioria dos portugueses. Não é popular manifestarem-se contra! Daí que, salvo vozes muito isoladas, insignificantes, não têm coragem para assumir a sua oposição ao 25 de Abril, enquanto acto libertador! Por isso, aproveitam as emoções criadas com a crise viral, que obriga a enormes sacrifícios, o menor dos quais não é o de ter de estar confinado em casa, para, de forma populista, hipócrita, covarde e oportunista, virem esgrimir contra a evocação do 25 de Abril numa sessão solene da Assembleia da República. Escamoteando que a Assembleia não vai abrir, para essa sessão solene, pois o que acontece é que a Assembleia decidiu não encerrar no dia da Liberdade e decidiu comemorar solenemente esse dia “inteiro e limpo…”. Isto é uma falácia, mas, nos dias de hoje, onde, face ao desmascaramento de uma mentira, se tem a lata de dizer “está bem, não aconteceu! Mas, podia ter acontecido”! O que lamento é ver democratas, amantes da Liberdade e da Democracia, amantes do 25 de Abril, deixarem-se arrastar nesta miserável jogada dos neofascistas que, apesar de não conseguirem impor-se na sociedade portuguesa, andam por aí.

No seu texto “25 de Abril e a covid-19″ faz referência ao Governo de Bolsonaro como desprestigiante para as forças armadas do Brasil. Como vê actualmente, não só a liderança do Brasil, mas também outras que têm vindo a assumir posições controversas na gestão da pandemia?

O que se está a passar nalguns países, não é mais que o desmascaramento da mediocridade dos líderes, a incapacidade e incompetência, o enorme erro cometido pelos povos que os colocaram no poder! Sinal dos tempos, onde os populistas, os traficantes de mentiras, das fake news, os imorais sem escrúpulos, têm conseguido enganar os respectivos povos. Pode parecer inconcebível, mas é um facto que pessoas como Trump, Bolsonaro, Jonhson e outros da mesma espécie foram eleitos para líderes dos seus países! A História dá-nos exemplos trágicos de situações semelhantes, o maior dos quais é Hitler! Confiemos que a história se não repita! No Brasil, em especial, porquê a minha atitude? Em primeiro lugar, porque o Brasil tem uma ligação muito especial com Portugal. Em segundo lugar, o facto de Bolsonaro ser um militar e de as Forças Armadas brasileiras terem uma história bem triste, no que se refere a ditaduras. Por isso, eu manifestei a minha esperança para que os militares brasileiros percebessem que é hora de recuperar o prestígio das suas Forças Armadas, junto da sua população! Só assim, ficariam na História do Brasil em letras douradas. Se assim não for, agravarão a péssima imagem que já lá consta, devido à sua actuação na última ditadura militar que o Brasil conheceu e de que sofreu terríveis consequências. Tive o cuidado de apelar a uma solução política e democrática – estava a pensar no “Impeachment”, até porque, se assim não for, virá uma nova ditadura militar. E eu continuo a preferir uma má democracia a uma “boa” ditadura! A minha esperança é que, depois de passar esta terrível “guerra” viral e global, as populações aprendam e encontrem soluções governativas em que os seus agentes sirvam e não se sirvam. E, aí, estes trastes populistas “irão à vida deles”.

O que é que uma crise desta natureza põe a nu, a nível social e político?

Confio que esta crise ponha ao léu as asneiras que os homens vêm cometendo, quer no tipo de vida, quer no tipo de organização das sociedades. É inconcebível que hoje já existam mais ditaduras no mundo do que democracias. Hoje, parece-me pacífico que as pessoas irão meditar e reconhecer que não podem continuar a destruir a natureza, que não podem continuar a consumir como até aqui, que têm de se organizar privilegiando o colectivo em detrimento do individual. Por isso, embora céptico, faço força para acreditar que muito irá mudar e que o mundo será melhor.

À distância, como vê o impacto que o 25 de Abril teve em Macau naquele tempo e no percurso feito depois rumo à transição?

Pessoalmente, nunca tive muitas ligações a Macau. Fiz duas visitas, uma em 1982, no âmbito de um curso de defesa nacional, outra em 1999, visita turística com a minha mulher e dois casais amigos. Tenho presente que as diferenças que encontrei, entre as duas visitas, foram de tal modo impressionantes que me deram uma ideia de como a vida avança nessas paragens. Durante a conspiração, tivemos contactos com oficiais que prestavam serviço em Macau, mais por motivos de relações pessoais do que por razões de conspiração. Macau não era problema, Macau não estava em causa, na mudança que se exigia.

Após o 25 de Abril de 1974, recorda-se em que termos foram iniciadas as conversações com a China de forma a preparar a transição?

Depois do 25 de Abril, Macau continuou a não ser um problema. Portugal tinha a noção de que, quando a China quisesse, o estatuto de Macau seria alterado, a China não pressionou. Ao contrário das colónias africanas e de Timor, tudo pôde ser feito com calma e com planeamento. Em Macau não havia guerra de libertação, não havia a premência de se ter de obter a paz. Nas colónias de África houve que acelerar o processo de independência e descolonização. E em Timor, apareceram os interesses imperialistas da Indonésia, apoiada pelos EUA e pela Austrália, formou-se um movimento independentista com timorenses regressados da Europa, nomeadamente de Portugal, foi uma tragédia com a ocupação e os massacres perpetrados pela Indonésia. Mas, o 25 de Abril tinha de ter influência no Estatuto de Macau. O Portugal imperial terminara, não fazia sentido manter o tipo de ligação que havia com Portugal e o 25 de Abril teve, de facto, influência, ajudando a encontrar uma solução que, pelo menos aparentemente, agradou a todas as partes: a Portugal, à China e aos portugueses e chineses que viviam e continuaram a viver em Macau. Foi essa a minha percepção de então, continua a ser a minha actual visão. E, não duvido, se agora, passados mais vinte anos, voltasse a Macau, voltaria a ter dificuldades em reconhecer a Macau de 1999.

Como vê a relação que Portugal tem com a China através de Macau?

Neste contexto, e admitindo uma evolução negativa nas relações entre o Ocidente e o Oriente, Portugal poderá, através de Macau ser um bom interlocutor, um bom intermediário, entre as duas partes. Pessoalmente, prefiro ver um futuro mais pacífico, mas, se ele se agravar, prefiro ver-nos no papel de amortizador do que num papel de porta de entrada para um qualquer “cavalo de Tróia”! Um último desejo, como Capitão de Abril: os valores que nos levaram, há 46 anos, a tudo arriscar e a escrever uma das mais belas páginas da História Universal, estão vivos, estão a demonstrar que podem servir, podem ser essenciais para a criação de um Mundo melhor. É essa a minha convicção, é essa a minha esperança.

24 Abr 2020

Óscar Madureira, advogado: “Governo devia considerar redução do imposto sobre o jogo”

Óscar Madureira foi um dos participantes de uma palestra online promovida ontem pela Fundação Rui Cunha sobre o futuro da indústria do jogo após a crise causada pela pandemia da covid-19. Ao HM, o advogado defende que o Governo deveria avançar com o concurso público para as novas licenças de jogo quanto antes, além de pensar em medidas de apoio para as concessionárias, como a redução do imposto especial sobre o jogo ou subsidiar salários de residentes e não residentes

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue perspectivas coloca para o sector do jogo a curto prazo?

Ninguém sabe ao certo o que pode vir a acontecer. Mas acho que a recuperação se prevê lenta, porque o que está em causa é a saúde pública. Todos sabemos que as medidas na República Popular da China têm sido muito restritivas quanto à circulação de pessoas, e sem pessoas as indústrias do jogo e do turismo não conseguem funcionar. Antevejo que até que exista conforto suficiente por parte dos turistas para regressarem a Macau haja uma retracção muito grande e uma falta de consumo significativa.

Tendo em conta a renovação das licenças de jogo, acredita que esta pandemia vai alterar o que estava a ser pensado até aqui? Vai mudar objectivos e contrapartidas?

Estou um bocado dividido quanto a isso. Admito que o Governo pode considerar estender as concessões de jogo pelo período que a lei permite, mas isso pode não estar relacionado com a pandemia. A partir do momento em que o Governo decide não estender as actuais concessões e partir o mais rapidamente possível para novas concessões, em 2022, essas sim por um período alargado de 20 anos, até está a demonstrar às concessionárias que as quer a operar o mais depressa possível pelo maior período de tempo, para assim poderem desenvolver os projectos que acham necessários do ponto de vista comercial e do interesse público. A extensão [das concessões] seria para tapar eventuais problemas financeiros que pudessem ocorrer às concessionárias, mais do que lhes permitir desenvolver um plano estratégico para um período de operação que durará 20 anos.

Em que sentido?

Percebo que o Governo possa conceber a hipótese de estender o prazo das concessões para, no fundo, conceder uma espécie de prémio às concessionárias que tiverem uma capacidade de desenvolver uma actuação positiva durante este período. Mas em bom rigor, as concessionárias estão a operar há 18 anos, ganharam o que tinham a ganhar, distribuíram os lucros pelos accionistas, quase todas elas fizeram os seus planos de investimento e cumpriram. Independentemente de o Governo poder vir a reconhecer o esforço que as concessionárias vão ter de fazer neste período, acho que uma coisa não está relacionada com a outra. Até acho que seria mais lógico que o Governo preparasse rapidamente um novo concurso para, aí sim, termos novos concessionários capazes de desenhar um projecto e uma estratégia de um investimento para os próximos 20 anos. Essa estratégia iria considerar as novas alterações ao mercado do jogo que poderão surgir por conta desta crise.

O concurso público para a renovação das licenças deveria, assim, fazer-se a muito curto prazo?

Era importante que ficasse definido o mais rapidamente possível aquilo que o Governo de Macau pretende para o próximo concurso público. Provavelmente vão existir alterações legislativas, e aí era bom que se soubesse o quanto antes o que isso vai implicar. Será um concurso complexo, que vai necessitar de muito tempo para ser avaliado pelas autoridades de Macau e seria bom que fossem conhecidos [o mais cedo possível] os termos do concurso para que as entidades que queiram concorrer possam capacitar-se e ter tempo para preparar uma proposta.

Mas pode haver o risco de o Governo estar atrasado nessa matéria e de Ho Iat Sen ter herdado problemas do pouco trabalho feito pelo anterior Executivo.

O termo das concessões está definido há muito tempo, e se o Governo vier dizer que neste momento não tem capacidade de lançar um concurso com brevidade acho que é um não argumento. É um trabalho de casa que deveria estar feito. O Governo teve muito tempo para desenhar um concurso e as alterações legislativas necessárias de forma plena e calma, e se não o fez acredito que tenha problemas e aí, nessa circunstância, pode ser necessário estender-se as concessões. Mas não acredito que um concurso com uma importância destas tenha sido deixado para a última da hora.

As concessionárias têm de repensar o modelo de negócio?

A indústria do jogo de Macau está a sofrer como nunca e não se sabe muito bem quando é que a situação pode recuperar, e até que ponto vai recuperar. É importante também recordar que a indústria do jogo não está no seu auge, já conheceu dias melhores. O boom das receitas aconteceu há alguns anos, houve uma recuperação, mas não vamos chegar aos níveis de 2013. O que se pede aos players da indústria? Do ponto de vista governamental pedir-se-ia um pacote de medidas que fosse de incentivo às concessionárias.

Que tipo de medidas defende?

Podem passar por se considerar reduzir o imposto especial sobre o jogo. Sabemos que o imposto especial, mais as contribuições adicionais, rondam cerca de 39 por cento das receitas brutas, e a questão é saber se, neste momento, as concessionárias têm capacidade para pagar esses valores. Podem depois existir incentivos financeiros por parte do Governo, que pode subsidiar parte dos ordenados dos trabalhadores, mas não deveria fazer distinção entre residentes e não residentes. Foi feito um pedido às concessionárias para que não despeçam pessoas, sobretudo residentes, mas este não pode ser apenas e só um ónus das concessionárias. O Governo pode ter aqui um papel importante à semelhança do que outros países fizeram.

Voltando às concessionárias, o que pode ser feito?

À partida exige-se que estas se reinventem do ponto de vista da oferta de produtos aos seus clientes. Talvez o decréscimo das receitas que se registou nos últimos anos seja resultado do que o mercado tem estado a oferecer aos clientes, uma vez que se conheceram poucas alterações. As pessoas só virão a Macau, ou só se sentem atraídas a regressar a Macau, se sentirem que têm um produto novo. E aí vai ter de existir um esforço bastante grande. Há concessionárias que têm vindo a fazer isso: a Sands China, por exemplo, decidiu reconverter o Sands Cotai Central no The Londoner. Esta fórmula já é assumir de que o produto que existia não era atractivo. Quase todas as concessionárias já estavam a pensar nisso no passado agora têm de pensar de uma forma efectiva ou acelerar o processo da reconversão.

Podemos assistir a algum jogo de cintura na renovação das licenças? Isto no sentido em que o Governo poderia estar a pensar em exigir mais contrapartidas em termos de responsabilidade social, mas as concessionárias podem alegar que não podem dar mais, uma vez que estão a passar por esta crise.

As concessionárias contribuem significativamente com acções no âmbito da responsabilidade social. Não quer dizer que não possam fazer mais e de forma diferente, mas é verdade que as concessionárias dedicam uma parte considerável dos seus recursos a actividades desse género. Se as condições de operação não melhorarem e se os custos não baixarem não sei até que ponto se pode pedir mais às concessionárias para fazer mais acções desse género. Antecipo que haja uma falta de meios para isso. Se o Governo quiser reduzir o valor das comparticipações para a Fundação Macau (FM) e obrigar as concessionárias a fazerem essas actividades de responsabilidade social não me oponho e acho que isso deveria ser mais promovido. Mas as concessionárias têm de ter recursos financeiros para isso. Se o Governo quer que os postos de trabalho e as operações se mantenham, não pode exigir em cima disso contribuições efectivas para a responsabilidade social sem dar o outro lado, que pode ser a redução do imposto ou contribuições adicionais para a FM.

Na segunda-feira Ho Iat Seng apresenta o relatório das Linhas de Acção Governativa. Poderemos esperar algumas medidas especiais para o sector do jogo?

Este Chefe do Executivo tem demonstrado pró-actividade e capacidade em lidar com esta situação. É um homem de negócios e tem sensibilidade suficiente para se aperceber da particularidade do momento em que vivemos. Têm sido anunciadas medidas de apoio aos cidadãos e empresas e acho que o sector do jogo não deveria ser posto de parte. Pode ser feito o que já disse, mas até que ponto é que o Governo está preparado para baixar o imposto de jogo e comparticipar salários, e gerir toda esta situação?

16 Abr 2020

Miguel Poiares Maduro: “Pode ser cedo para dizer que a posição da China sairá reforçada”

Deixou Florença há cerca de três semanas devido ao surto da covid-19. Miguel Poiares Maduro defende que Portugal acabou por beneficiar do facto de a pandemia ter chegado primeiro a Itália e Espanha, o que permitiu reagir mais rapidamente. Para resolver a crise económica da União Europeia, o académico defende uma solução entre a emissão de coronabonds e o mecanismo de estabilidade. Quanto à China, pode sair com a imagem internacional reforçada pela eficácia a lidar com a pandemia

 

[dropcap]Q[/dropcap]ue comparação faz entre a resposta das autoridades portuguesas e italianas à pandemia da covid-19?

Portugal beneficiou do conhecimento do que se ia passando em Itália e depois em Espanha. Tivemos, num certo sentido, a sorte de o vírus ter entrado em Portugal mais tarde e o ponto de entrada ser a Itália. Como vivo entre Itália e Portugal pude verificar que Itália introduziu medidas de controlo ainda antes de ter casos de infecção, mais fortes do que Portugal. Itália foi um dos poucos países europeus que controlou a temperatura das pessoas nos aeroportos, como acontece na Ásia. Mas isso não evitou que fosse um dos primeiros países a ter contágios e onde o contágio se propagou. Neste momento, Portugal não tem necessitado sequer de impor medidas tão restritas como as que se implementaram em Itália. Também acho que os portugueses, pelo alerta causado em Itália e Espanha, perceberam mais rapidamente a gravidade do risco que o vírus comporta do que os italianos perceberam, porque eles foram os primeiros na Europa a enfrentar a situação. É difícil ter a percepção exacta da gravidade da situação porque há uma limitação nos dados a que temos acesso e na sua comparação. O número de testes realizados varia muito consoante os Estados, e, portanto, estamos a perceber que quantos mais testes se realizam mais diagnósticos há. O mesmo relativamente às taxas de mortalidade que são muito variáveis e que têm a ver com o volume de testes e com o critério para a atribuição de uma morte ao covid-19, que também parece diferente entre os vários estados.

Falta unidade, em termos de medidas de saúde, na União Europeia (UE) para responder a esta crise?

Primeiro ponto: a política de saúde é dos Estados-membros, não é da UE. Se houve alguém que não se preparou foram os Estados, embora esse problema pareça comum a praticamente todo o mundo. O mais interessante e preocupante é que, mesmo já depois da situação [de infecções acontecer] na China, os países europeus e os EUA parecem não se ter dado conta de quão grande este risco poderia ser. Isso explica porque não estavam feitas reservas de equipamento e material. Mas é um problema global. Quanto à UE, não é uma questão de saúde, mas do grau de liberdade que a UE confere às suas políticas tradicionais para as respostas que os Estados-membros têm de dar, e que podem interferir com a livre circulação de pessoas, as regras da concorrência e do pacto de estabilidade ou de disciplina orçamental. E aí a UE já abriu as cláusulas de excepção e os Estados têm a liberdade para tomar as decisões que entenderem para combater o vírus. Mas a crise económica vai ser consequência deste problema de saúde pública.

Que respostas são necessárias?

Há uma segunda dimensão [quanto à união no seio da UE] que é a solidariedade necessária para a resposta económica que os Estados europeus têm de dar. Alguns países não têm uma situação financeira e orçamental que lhes permita usar todos os recursos financeiros necessários para dar uma resposta eficaz. Vão depender da solidariedade dos outros Estados-membros. Aí, infelizmente, estamos a ver uma repetição das velhas divisões europeias e a entrar num ciclo vicioso, que é a falta de confiança entre os Estados-membros que leva à pouca solidariedade, e que agrava a desconfiança mútua entre os Estados. Isso pode ser destrutivo para a UE. Tudo depende de uma solução que reponha essa confiança e com base nisso permita a solidariedade entre os países, que vai ser fundamental.

A resposta fragmentada e as acusações entre Estados podem levar a uma crise política que afecte ainda mais a identidade europeia?

Esse risco existe. Mas também existe uma oportunidade se a UE conseguir dar uma resposta suficientemente eficaz, mas nunca vai ser a resposta eficaz para nenhum dos Estados. Tem de ser uma resposta suficientemente forte para satisfazer todos. Se a UE conseguir isso, ao contrário de isto poder agravar a crise de legitimidade e de suporte público, pode, pelo contrário, ser um momento de reafirmação do processo de integração europeia e de revalorização aos olhos dos cidadãos desse processo, porque ele vai ser visto como contribuinte para solucionar este problema. Tudo depende se a UE conseguir uma forma de solidariedade aceitável para todos ao nível da resposta económica e depende também do papel da UE na promoção da cooperação na resposta científica.

Relativamente à emissão de coronabonds, espera um consenso em breve?

Penso que não iremos ter coronabonds nos moldes que alguns Estados gostariam de ter. Mas também não iremos ter simplesmente o modelo do mecanismo de estabilidade e crescimento que a Alemanha ou a Holanda defenderiam. Provavelmente, não vamos ter nem a condicionalidade do mecanismo de estabilidade europeu nem um simples mecanismo de emissão de dívida entre os Estados-membros. Será algo que ficará a meio caminho. Depois há um segundo aspecto relevante, que nem os próprios coronabonds prevêem, que é se este mecanismo vai funcionar através de financiamento que se transforma em dívida dos Estados membros. Seja coronabonds ou o mecanismo de estabilidade europeu, será dívida que entra para a dívida de cada um dos Estados. A ser assim, isso tem sempre um peso muito grande para países já muito endividados, como é o caso de Portugal, por exemplo, mesmo que essa dívida tenha condições muito favoráveis. Por isso, é que há pessoas, como eu, que defendem que tão ou mais importante [discutir] como é que essa emissão de dívida vai ocorrer é [analisar a possibilidade] de isso ser feito através de apoios directos de um instrumento europeu nos Estados, ao invés do endividamento. No fundo, se fosse através de um mecanismo de subsídios, isso seria muito mais positivo porque não entrava no endividamento dos Estados.

Espera respostas com a revisão orçamental anunciada pela comissária europeia?

Aquilo de que se fala nesta altura é que algumas das verbas do fundo de coesão vão ser agora alocadas a finalidades distintas que dizem respeito às consequências deste vírus. Mas isso não são verbas novas, deixam é de ser utilizadas para outras finalidades dos Estados. E são sempre verbas limitadas. O que pode ajudar é um novo acordo em matéria de plano financeiro multianual para a UE, que é o que determina o orçamento anual para os próximos sete anos na UE. Não tem havido um acordo entre os Estados-membros, e pode ser que isto [a crise do coronavírus] crie a energia e os incentivos necessários para existir um acordo, e que este vá no sentido de haver um orçamento mais ambicioso, ou associado a novos discursos próprios da UE. Eu tenho defendido que parte da resposta pode estar aí. Às vezes, alargar um problema pode ser a forma de chegar a acordo, porque cria mais condições para fazer um trade-off e haver um compromisso entre as diferentes posições. Parte do compromisso no futuro pode não ter os coronabonds mas sim um orçamento europeu maior do que aquele que se estava a pensar. E associado a novos discursos próprios da UE.

Qual o efeito geopolítico desta crise económica e de saúde pública nas relações entre a China e UE?

É interessante notar que esta crise começou por ser vista como problemática para a China e até para o Presidente Xi Jinping, mas rapidamente se converteu, através da eficácia da resposta chinesa ou da percepção pública internacional dessa eficácia, [em algo positivo]. Há quem conteste que seja tão eficaz como se diz, mas pelo menos é essa a percepção pública. Isso reforçou a legitimidade e a imagem internacional da China. O facto de o país ter feito isso mais rapidamente que os outros Estados coloca a China economicamente numa melhor posição do que os outros países e isso reforça o papel internacional da China e o seu peso geopolítico. A China parece estar a fazer uso disso através de gestos simbólicos de apoio e solidariedade para com os Estados com maiores dificuldades nesta matéria. Mas esta é uma crise nova, totalmente diferente, e o impacto na economia e política é muito difícil de prever, estando constantemente em mutação. É cedo para fazer qualquer juízo definitivo sobre a orientação geopolítica a nível global resultante desta crise.

Xi Jinping tem usado esta crise como uma ferramenta de soft power?

Claramente. A China partiu de uma posição que parecia de fragilidade e conseguiu dar a volta, e hoje o país está a usar a crise da covid-19 de um ponto de vista favorável. Mas pode ser cedo para dizer que a posição da China sairá reforçada. À medida que a crise evoluir o que se vai passar é a comparação entre uma maior transparência em alguns países e menor transparência noutros. E isso pode vir a afectar a posição internacional da China dependendo de como o país se comportar nessa matéria.

A pandemia da covid-19 pode vir a contribuir para o descrédito do populismo, tendo em conta as posições assumidas por Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos EUA?

Pode funcionar das duas formas. Os populistas, por definição, são pessoas que defendem um poder forte e um reforço da autoridade. Nessa medida, até por contraposição aos instrumentos da democracia liberal, uma crise como esta apela e tende a reforçar a adesão dos cidadãos ao poder forte. Estamos a ver populistas que têm usado o estado de emergência para consolidar a sua posição no poder, veja-se Viktor Orbán na Hungria. Por outro lado, a lógica contrária à ciência e ao conhecimento a que alguns populistas deram imagem de marca, como o Presidente norte-americano e do Brasil, parece estar a causar problemas na gestão da crise. Esses problemas passam pelo facto de as opiniões públicas desses países associarem uma má gestão da crise a uma desvalorização da ciência e do conhecimento e uma arrogância dos líderes. Tudo vai depender da evolução dessa gestão e das consequências a nível de saúde e económico. Trump tem sofrido uma penalização forte porque foi visto como alguém que desvalorizou os alertas científicos, gerindo mal a crise e antecipando mal os riscos por causa disso. No Brasil, a desvalorização do risco feita inicialmente por Bolsonaro pode causar um custo político forte.

 

Coronavírus | UE aprova apoios

A Comissão Europeia aprovou ontem um pacote de medidas de apoio financeiro para países da União Europeia (UE), como é o caso de Portugal, Grécia e Polónia. De acordo com a agência Reuters, as medidas passam pela concessão de empréstimos com garantias e subsídios. Através de comunicados oficiais difundidos na sexta-feira e sábado, foi referido que o apoio financeiro será de 13 mil milhões de euros para Portugal, enquanto que a Polónia receberá um apoio totalizado em 22 mil milhões de euros. Já a Grécia recebe apenas dois mil milhões de euros. Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia, disse que a garantia financeira concedida à Polónia “vai ajudar os negócios no país afectados pela actual crise gerada pelo novo coronavírus, cobrindo no imediato o capital de trabalho e as necessidades de investimento”.

7 Abr 2020

Rui Severino, português a residir em Wuhan: “Isto uniu ainda mais o povo chinês”

Na próxima quarta-feira, dia 8, é levantada a quarentena obrigatória na cidade de Wuhan, o epicentro inicial da pandemia da covid-19. Rui Severino, um dos dois portugueses que decidiu ficar na cidade e que recusou ser evacuado pelas autoridades lusas, relata a forma como a população de Wuhan está a retomar o quotidiano

[dropcap]C[/dropcap]omo está a situação em Wuhan neste momento? 
Nunca estive em casa. Fiquei em lockdown no centro de treinos, porque sou treinador de cavalos de corrida. Não podemos ir para lado nenhum e, neste momento, Wuhan ainda está fechada, ainda não foi levantada a quarentena. Só com autorização especial se pode sair à rua para certos fins. Mas 90 por cento das pessoas ainda estão em casa, em isolamento. A cidade começou a retomar alguma normalidade no dia 25 de Março, mas muito pouca. Algumas lojas estão abertas, mas há mais supermercados abertos ou estabelecimentos de fornecimento de outros produtos. A maioria dos espaços estão fechados porque as pessoas ainda estão em casa.

Como tem sido o dia-a-dia no centro de treinos? Estando com a equipa, têm existido momentos delicados, de tensão psicológica?
Nunca é uma situação fácil, mas não me posso queixar, porque estamos distraídos com o trabalho. No fundo, o nosso dia-a-dia não mudou em termos de trabalho pois continuamos a treinar os cavalos, comemos e dormimos aqui. Somos 67 pessoas aqui no centro e todos cumprimos medidas rigorosas, pois fazemos check-ups diários, duas vezes por dia, com verificação de temperatura. Só algumas pessoas podem sair para comprar comida e apenas uma vez por semana, com autorização especial. Quando voltamos a entrar estamos completamente desinfectados. Em termos psicológicos foi complicado, porque nunca tinha estado numa situação destas. Durante o dia estamos ocupados, mas à noite é um pouco mais complicado. Temos famílias lá fora e a ansiedade é muito grande.

Numa cidade que foi forçada a encerrar, como se viviam as poucas saídas? 
Houve sempre um grande cuidado. Ao início, quando saímos para comprar coisas, levávamos um fato de protecção especial, luvas, óculos e máscara. Há três dias saí para ir ao meu apartamento buscar roupa e tive novamente uma atenção especial. A máscara continua a ser obrigatória, aliás, quem não usar máscara é preso.

Acredita que a cidade poderá voltar ao normal dentro de pouco tempo?
A quarentena vai ser levantada a 8 de Abril, na próxima semana. Claro que vão continuar muitos estabelecimentos fechados, como cinemas, bares ou discotecas, mas todas as lojas, centros comerciais [vão abrir]. Não há ainda uma data para o início das aulas, que costuma ser em Fevereiro e que tem sido adiado.

Sente que este vírus mudou os residentes de Wuhan para sempre?
A China, infelizmente, tem experiência com estes vírus, e talvez por isso a resposta foi rápida por parte da população, em relação às medidas que o Governo impôs, o que não se tem visto no resto do mundo. Mas isso também tem a ver com o facto de, na cultura chinesa, ser hábito usar máscara sempre que se está doente, mesmo que seja uma constipação. Penso que mudou a população. Este surto que é completamente diferente dos outros, as pessoas estão mais cautelosas e têm mais cuidados do que tinham antes. O povo chinês é muito patriótico e solidário e isso ainda os uniu mais. Gostaria de ver isso em todo o mundo, gostava de ver todo o mundo a unir-se.

Decidiu nunca sair de Wuhan, quebrando a tendência de fuga de muitos portugueses. Não se arrepende de ter ficado aí?
Nunca julgo as atitudes dos outros, mas talvez se tenham precipitado um pouco. Não os culpo, porque alguns estavam cá sozinhos e a opção era ficar em casa e se calhar não tiveram a percepção de que isto se iria espalhar pelo mundo fora. Eu decidi ficar por causa das minhas responsabilidades profissionais, por causa da minha equipa e dos meus cavalos. Eles depositam confiança em mim e eu não os podia abandonar. Mas também vi a óptima resposta da população às medidas impostas pelo Governo, deu-me garantias de que iria estar seguro em Wuhan. Teria tomado a mesma decisão outra vez.

Como fica agora a sua situação profissional?
Depois de levantada a quarentena vamos tentar obter as autorizações devidas para podermos mudar de província, de Hubei para Shanxi, onde fica o nosso Jockey Club. Tudo indica que lá para Maio ou finais de Junho podemos reiniciar as corridas de cavalos em Shanxi.

Como avalia a resposta das autoridades portuguesas na retirada dos portugueses de Wuhan?
Só tenho de louvar as autoridades portuguesas, sobretudo a embaixada, que esteve em constante contacto connosco. Criou-se um grupo de conversação na plataforma WeChat, onde eram feitas centenas de perguntas todos os dias, e eles estiveram presentes 24 horas por dia, respondendo e dando informações. Nunca nos esconderam nenhuma informação. Quanto a mim, que decidi ficar, e outro português, foi-nos dado muito apoio. Enviaram-nos máscaras, óculos especiais de protecção, luvas. Para mim, foi emocionante, porque sou luso-australiano e a Austrália não me deu apoio nenhum.

O número de mortes em Wuhan tem levantado algumas dúvidas, tendo em conta, por exemplo, as filas que se formam junto a agências funerárias. Não sei se tem acompanhado esta questão, qual o seu comentário?
Não tenho conhecimento disso. Juntamente com os meus colegas chineses, não temos ouvido falar disso. Em relação aos números, se não acreditarmos nas entidades oficiais, vamos acreditar em quem? É possível que essas notícias sejam verdadeiras, não nos podemos esquecer que morreram quase quatro mil pessoas. Tenho amigos jornalistas aqui na China e não tenho essa informação.

Há uma confiança generalizada da população em relação às autoridades chinesas?
Com certeza. A grande maioria não conhece a realidade chinesa, nunca esteve na China, não conhece a cultura e é muito fácil fazer juízos de valor. As autoridades de Wuhan esconderam o vírus durante algum tempo, mas quando o Governo Central soube, tomaram as devidas acções. Essa acção foi de louvar para todo o povo chinês e para os estrangeiros que cá decidiram ficar, como eu. Não sinto que a China esteja a mentir neste momento, até porque a China de hoje não é a China de 2003 [ano em que surgiu a SARS]. As pessoas estão mais abertas, têm mais acesso à informação, há mais pessoas a estudar no ensino superior. E penso que o Governo também tem isso em atenção. Sinto que há um grande nervosismo, e com todo o direito, mas é preciso salientar que é preciso manter a calma. Se cumprirem as regras de higiene e distanciamento social… se a China conseguiu [controlar o surto] Portugal e o resto do mundo também vai conseguir de certeza. Mas vai ser um processo longo. Isto vai mudar a forma como socializamos uns com os outros.

Como olha para a actuação das autoridades portuguesas no combate à pandemia?
Pelo que li nas notícias lamento a resposta um pouco tardia. Penso que houve uma atitude branda e senti-me triste com isso. A própria população não quis saber, no início. Mas estou convencido que as pessoas estão agora mais cientes do problema, até porque a vizinha Espanha está a sofrer imenso. Um lockdown é um lockdown, é para cumprir a sério. O exemplo tem de vir de cima.

Há ainda um grande debate na Europa relativamente ao uso da máscara. 
Só na Europa é que há esse debate. É uma pena. Os chineses, os médicos e especialistas, todos dizem na televisão metem as mãos à cabeça, questionando-se como é possível. Se não há máscara, não se sai de casa.

3 Abr 2020