Pedro Arede EntrevistaManuel Lopes Porto, académico: “Democracia, o sistema menos mau de todos” O especialista em assuntos europeus e antigo eurodeputado Manuel Lopes Porto condena o proteccionismo de Trump e acredita que é possível competir a nível mundial com o modelo europeu. Ao HM, contou que a democracia continua a ser para si o melhor sistema político e que Portugal tem ainda um papel a desempenhar na China [dropcap]M[/dropcap]acau celebrou recentemente o 20º aniversário da RAEM. Como vê Macau nos dias de hoje? É, claramente, e sem exagero, uma história de sucesso. Por circunstâncias da vida e por já ter uns anos, acontece ter acompanhado este processo desde há bastante tempo. Estive no Parlamento Europeu 10 anos (1989-1999), era membro de diferentes comissões e delegações com países fora da Europa e, por coincidência, fui sempre membro da delegação oficial para a China. Fui a Pequim três vezes oficialmente e cheguei a estar no gabinete do senhor Lu Ping, que foi negociador da integração de Hong Kong e Macau na China. Portanto, foi um processo que foi feito com calma e bem. Houve, desde logo, uma coisa curiosa no começo: quando foi o 25 de Abril a ideia era que todos os territórios portugueses do Ultramar tivessem independência ou fossem integrados. É também interessante recordar que, na altura, ainda era Chefe de Estado aqui na China, o Sr. Mao Zedong. Não era o Deng Xiaoping nem nada desses “liberalões”. Era ele. E ele fez saber que Macau só passava para China quando houvesse, calmamente, um bom acordo. E a pergunta que eu ponho sempre é, “teria sido melhor para a China, logo em 1975, Macau ser integrado na China?” A resposta é que isso não adiantava nada. Era mais um bocado de terreno em que se teria perdido, talvez, possibilidades relacionadas, não só com o jogo, mas também de negócio. Portanto, foi um processo feito com vagar, durante 25 anos (74-99), em que a integração foi feita de forma bem ponderada e os resultados estão à vista. Macau tem dos maiores PIBs per capita do mundo, é uma terra onde se vive com calma e em segurança. Claramente, Macau é um caso de sucesso. Portugal continua a ser importante para a China? Temos de ter a noção da nossa dimensão e da nossa economia. Portugal tem 10 milhões e a Europa 500 milhões de habitantes e depois há a Alemanha, Itália, França e tudo isso. Não digo a principal, mas Portugal é uma porta de entrada na Europa e é importante haver esta ligação que tem circunstâncias curiosas. Uma delas, estou à vontade para dizê-lo, é a questão do Direito. O Direito praticamente é o mesmo que é aqui aplicado desde o tempo do Código Civil, de modo que é curioso que haja aqui um Direito Continental que tem vantagens sobre o direito do Case law dos países anglo-saxónicos, que não sei se são melhores. Portanto, aqui, num país como a China, ou num território da China como é Macau, o Direito Continental com influência alemã, italiana, francesa, etc, é um Direito codificado que dá outra segurança aos negócios. Às vezes perguntam-me aqui se não é melhor irmos para o sistema anglo-saxónico e eu não sei. Para mim, basta comparar o superavit da Alemanha com o deficit do Reino Unido ou dos Estados Unidos. São casos delicados de referir, mas é verdade, é o que está na estatística. Portanto, é um Direito que dá grande segurança e é também uma ligação muito estreita. Eu tenho grandes ligações à Índia e este é outro caso onde há ligações do Direito muito curiosas. O Código Civil ainda hoje aplicado em Goa, Damão e Diu é o Código Civil do Seabra de 1867. Por isso, o Direito é uma via de comunicação curiosa. Já para não falar no Brasil, porque eles querem ter uma ligação enorme connosco como é sabido. Só em Coimbra há mais de dois mil estudantes brasileiros e, portanto, há uma enorme ligação entre os dois países ao nível do Direito. Portanto, em Macau o Direito é um elo de ligação que, de facto, se mantém e penso ser frutuoso e útil para ambas as partes. E quanto à língua portuguesa? Esse é que é o problema. É muito curioso, pois é difícil manter a língua portuguesa em regiões que não sejam o Brasil e os países africanos de língua portuguesa. Não nos consola, mas a questão é que nenhuma língua europeia se manteve, fora o inglês. No Vietnam, onde estive na minha última missão do Parlamento Europeu há 20 anos, quase ninguém fala francês, nas Filipinas quase ninguém fala espanhol, na Malásia e Indonésia, quase ninguém fala holandês. De facto, as línguas europeias não conseguiram manter-se nos territórios da Ásia com a mesma prevalência do inglês. É claro que eu preferia que fosse o português, mas ser o inglês não é mau de todo porque é uma língua que todos temos e que nos dá vantagem. Mas na China há 33 locais onde se aprende português. O português é a língua mais falada do hemisfério sul e a quarta ou quinta mais falada do mundo. Com uma vantagem, que já me tem ajudado a convencer pessoas a ir para Portugal estudar, pois quem sabe português percebe espanhol, sem aprender, e até o próprio italiano. Já o contrário não é verdadeiro. Os espanhóis não percebem português e os italianos nem pouco mais ou menos percebem o português. Portanto, a língua portuguesa dá-nos também acesso aos países de língua espanhola e língua italiana. Uma vez mais, o relatório do congresso norte-americano lamenta a ausência de sufrágio universal em Macau e o Governo de Macau acusou em resposta os EUA de “cegueira selectiva” e de interferência externa. Que comentário merece esta situação que vem sendo habitual? Não tenho dúvida que qualquer democracia, como dizia Churchill, é um sistema mau, mas é o menos mau de todos. É, claramente, o melhor e vê-se em termos de dados internacionais. Um exemplo que eu cito muito é o caso da Alemanha, que tem salários altos, uma democracia política, alternância no poder, direito à greve, modelo social europeu e tem, de longe, o melhor superavit do mundo. Portanto, é possível. A grande questão que se pode colocar, e que é importante para alguns países da Ásia e da América do Sul, é saber se é possível competir no mundo global do século XXI com democracia. Na minha opinião sim, porque a Alemanha dá esse exemplo e compete a nível mundial. É um caso fantástico, comparando até com o Reino Unido que não tem razões de queixa. Tem a sua língua falada em todo o mundo, tem moeda própria e não o horrível Euro e, todavia, tem o segundo maior deficit do mundo. Portanto, é possível, com modelo europeu, competir a nível mundial e a Europa tem uma grande responsabilidade perante o mundo e presta um grande serviço, pois mostra que com fronteiras abertas, normas aproximadas e uma moeda única é possível competir. Como vê a actual ordem mundial onde novas forças, como a China ou Índia se mostram determinadas a ocupar um papel preponderante a nível mundial? É interessantíssimo ver a evolução do mundo. Em 1500 a maior economia do mundo era a indiana e depois a chinesa. Em 1820, há 200 anos atrás, portanto, a China e a Índia tinham 42,7 por cento do PIB mundial e o conjunto da França e da União Soviética, 5,5 por cento, Alemanha 2,3 por cento e os EUA 1,8 por cento. Sim, custa a acreditar. Em 2004, a China e a Índia tinham 6 por cento do PIB mundial. Actualmente, estes são os países mais populosos do mundo e estão a crescer como nunca se viu Como vê a actual conflito económico entre os EUA e a China? É extraordinário como é que o Sr. Trump me presta a mim um bom serviço porque dá actualidade às minhas teses desde há quarenta e tal anos. A minha tese em Oxford em 1976 já falava a favor do livre cambismo, depois trabalhei para o Banco Mundial num grande projecto que comparava a liberalização do comércio com o proteccionismo e claramente também aí saiu melhor o livre-cambismo. Aliás, sempre que houve livre-cambismo o mundo assistiu a tempos de crescimento e menos desemprego comparando com as fases onde existiu proteccionismo. E o Sr. Trump vem agora com esta história das tarifas defender-se, o que é sinal de fraqueza de um país que não consegue ter um superavit na balança de pagamentos, mas que não leva a nada. Quando colocam uma taxa de 20 por cento sobre o México há quem fique prejudicado, e essa gente são os consumidores. O proteccionismo protege, mas à custa de quem? Ou é com impostos alfandegários ou taxações de importações, o que em qualquer caso diminui a oferta. E quem são principais prejudicados, são os milionários ou os pobres? São os pobres. Acho que os EUA têm de se responsabilizar e competir. Devem assumir-se responsabilidades para competir por esforço próprio, como é o caso da Alemanha e da Holanda, que trabalham muito e trabalham bem. Como tem visto a actuação da administração Trump nesse sentido? Os EUA deviam fazer o que faz a Europa, ou seja, ser competitivos. No seu todo, a zona Euro tem um superavit brutal de mais de 400 mil milhões. Já um país como os EUA tem um deficit enorme e isso é que é o problema. Outra coisa que me choca é que as melhores universidades do mundo são todas americanas e inglesas, não há uma única alemã. Os prémios nobel são todos, se não nacionais, radicados nos EUA ou em Inglaterra. Não existe correspondência entre os rankings das universidades e os prémios Nobel com a eficácia dos países. Ou seja, os alemães são assim os laparotos para produzir carros e companhia. Mas não é bem assim, a indústria faz falta. Aquela ideia de que a indústria é para os laparotos, os labregos, que fazem produtos, e que o que dá são as tecnologias e a praça financeira de Londres, não sei se chega. O Reino Unido agora só exporta 10 por cento. Quando foi o referendo de 1975 eu vivia numa casa ao lado da British Legend que fazia carros. Hoje em dia, vamos a uma rua e não vemos um carro inglês. É impressionante como estes países não se adaptam aos tempos modernos. E se vimos bem, apesar de dizermos mal da Europa, onde é que a China e companhia estão a investir? Na Europa. E os chineses não estão mal informados nem são incautos. E no meio de tudo isto temos uma Europa confrontada com a realidade do brexit e atentar manter-se firme na era do populismo… Eu sou comunista, como já terá percebido, e choca-me como é possível que países que fizeram o “homem novo” como a Húngria, a Polónia e companhia, hoje em dia são os mais xenófobos. Portugal é um país com uma sorte fantástica ou mérito. Não tem populismos, nada, nada, tirando o Chega agora, mas trata-se apenas de um caso isolado. Nesse aspecto, nem sabemos a sorte que temos. Mas também eu sou um bocado optimista, dorme-se melhor à noite. A Europa tem de ser complacente. Não pode um país sair e ter a vantagem de ter desvantagens. Um dos argumentos invocados é não pagar por orçamento 9 mil milhões e euros. Com o Brexit vão deixar de pagar, mas deixam também de ter ajuda da agricultura e o que interessa, por exemplo, à Alemanha não é o dinheiro que tem do orçamento, mas sim as oportunidades de mercado que tem com o mercado único europeu. Um país com visão como o Reino Unido devia ter essas oportunidades em vista e não a questão do que paga pelo orçamento e do seu retorno.
Andreia Sofia Silva EntrevistaJorge Arrimar, escritor: “A poesia continua com Macau” É de uma enorme janela virada para o rio Tejo que o autor Jorge Arrimar escreve os seus versos, contos e romances. Poeta de Macau, escritor angolano, são muitas as facetas literárias que assume no triângulo geográfico da sua vida. Actualmente, trabalha num romance histórico sobre Angola e publicou muito recentemente um livro de poesia, “Insomne”, onde Macau surge de forma ténue [dropcap]E[/dropcap]m Setembro esteve numa conferência na Universidade de Macau e falou do I Encontro de Poetas de Macau, nos anos 90, que não voltou a ter mais edições. Que razões aponta para a falta de iniciativa? Nessa conferência tive a oportunidade de falar de um encontro que foi tão importante e único e que depois caiu num véu de silêncio sem se perceber porquê. Do que eu li não há qualquer referência a esse encontro, nunca há. As grandes referências que se fazem, com a Mónica Simas, Fernanda Gil Costa ou Ana Paula Laborinho, entre outros estudiosos, o próprio Seabra Pereira, todos esses fazem uma referência simpática sobre o resultado desse encontro que foi a edição da “Antologia dos Poetas de Macau”. Não se podem imputar culpas. Posteriormente, foram feitas algumas publicações, como a “Antologia dos Poetas de Macau”, que é um reflexo desse ambiente e desse espírito novo que aparece com o encontro. Entretanto dá-se a transição e creio que muitas pessoas do meio da língua portuguesa saíram de Macau, e creio que se criou alguma instabilidade com a transição. Houve muita gente que se sentiu intimidada pela grande mudança que se avizinhava, e outros tinham de sair porque iria haver uma mudança de Administração. Houve muitos motivos para que não se tenha criado de novo esse espírito de forma a haver um encontro similar. Mas criaram-se outros de acordo com as novas realidades. Publicou recentemente “Insomne – Poema em Dez Actos”. Macau surge neste livro? É um livro de carácter geral, mais de emoções com uma carga emocional muito forte. O próprio título acho que o diz, tem a ver com muitas situações da vida que nos marcam, muitas vezes de forma negativa, como a doença, a morte ou o envelhecimento, tem muito essa carga. Isso extravasa qualquer lugar. De qualquer forma, e como não podia deixar de ser, a minha vida…e a minha terra Angola e tem relação com outras terras por onde passei, como os Açores. Macau aparece de uma forma um bocado espumada, de uma forma metafórica, mas não é um livro tão centrado num destes territórios da minha escrita como é o “Rotas Circulares” [editado pela Gradiva em 2017], que é completamente dedicado a Macau. Uma pessoa olha logo para o livro e vê que é dedicado a Macau, este não tem esse cunho. A sua carreira literária é marcada por um triângulo de lugares – Angola, Açores e Macau. Qual deles é o mais importante para si? Sou um escritor angolano e ninguém tem dúvidas disso, e apresento-me e sou recebido como tal, porque nasci em Angola e há mais de 100 anos que lá vivia com os meus antepassados. Portanto, não é apenas 10 anos aqui e 13 anos acolá. Angola é a matriz, tem lugar primordial porque é lá que nasço e cresço. Em Macau e nos Açores só posso ser um escritor de Macau e dos Açores, não sou escritor macaense nem açoriano, há aqui uma diferença pelo menos de grau. Está a escrever um novo romance histórico sobre Angola, mas nunca escreveu Macau em prosa. Porque é que Macau lhe desperta mais a vertente poética? Não é bem assim. A poesia nasce em Angola e continuei sempre a escrever poesia que tem Angola como grande motivo. Macau aparece também nessa expressão, mas não quer dizer que só escreva poesia sobre Macau ou prosa sobre Angola. O que acontece é que acabei por não escrever nenhum conto ou romance sobre Macau nem sei porquê, talvez porque me toque mais a sensibilidade de poeta, mas não lhe sei dar uma explicação clara, calhou assim. Para quando um romance sobre Macau? Macau, para mim, aparece mais na minha escrita no género de poesia. Escrevo alguns artigos e ensaios, e depois a história de Macau que é uma das minhas áreas. Romance… ainda não tentei, nem contos. Tenho estado mais com o romance de Angola, que me ocupa imenso. O romance tem uma linha de trabalho completamente diferente. Mas a poesia também pode ser trabalhosa e pode demorar muito. Cada poema pode ter uma individualidade…enquanto que o romance é todo um trama que tem princípio, meio e fim, e se alonga, e é vasto, um poema pode ser muito curto e pronto, começou e acabou. E como o meu romance é histórico ainda tem a componente de pesquisa, que me exija mais tempo. Quando estou a trabalhar num romance não me sobra mais tempo para outro romance. A poesia continua com Macau e o romance continua com Angola, tenho estado meio dividido. Quando é que o romance de Angola é publicado? Ele está bastante avançado e queria tê-lo terminado no final do ano passado, mas estou com muita vontade de o terminar para do fim de 2020. Ainda falta algum trabalho. Vive em Almada e escreve em casa. Como é que escrever sobre lugares que lhe dizem tanto e que estão distantes geograficamente? Essa é, um bocado, a minha condição. Acabei por me integrar no quotidiano destas terras de que temos vindo a falar. Uma porque nasci e cresci, e outras porque houve uma integração na minha escrita. Passado algum tempo acabo por me irritar e acabo por escrever quase sempre de longe. Não sei se isso se reflecte na escrita, isso cabe às pessoas que me lêem e que me escutam dizer alguma coisa. Da minha parte, penso que a capacidade do cérebro de reter imagens e situações faz com que a falta desses lugares não anule qualquer manifestação artística. Há sempre o peso da distância, saudade e memórias, e isso acaba por se reflectir de forma positiva na escrita. Comigo acontece isso, volto com alguma frequência a esses meus lugares da escrita, não são lugares que ficaram lá aos quais eu nunca mais voltei. Este ano, em três meses, estive em Angola, Açores e Macau. Foi para Macau em 1985 e foi director da Biblioteca Nacional/Central de Macau. Quando saiu, em 1998, sentiu que o trabalho estava feito? Fiz parte do grupo que teve como missão reestruturar o IC, as bibliotecas e os arquivos do território. Nessa altura, houve muitas coisas que foram reestruturadas, como as leis, criou-se o depósito legal, nova legislação e regulamentos. A biblioteca passou a ter novas chefias intermédias, criou-se uma rede de bibliotecas, passou a chamar-se biblioteca central e deixou de ser nacional. Houve um grande trabalho de reestruturação de tudo o que eram leis e regras. Depois as coisas iam acontecendo. A biblioteca e o arquivo tinham direcções separadas. Por isso é que eu digo que nunca pagarei a Macau aquilo que Macau me deu, porque em termos profissionais nunca teria tido a possibilidade que tive ali de ter tudo, biblioteca escolar, pública, tudo. Foi também consultado aquando do primeiro projecto para a Biblioteca Central. Sim, em 2008, para uma das candidaturas. E agora voltaram a perguntar a minha opinião. De uma forma geral, concordei com o projecto. Achei que era uma boa possibilidade, seria central de nome e fisicamente. Penso que é um sítio bonito e quase equidistante em relação a tudo o que há em Macau. À partida, aquele edifício tem uma fachada interessante que é de preservar, é uma forma de o manter. Mas tudo o que for feito lá dentro essa é outra história. Falemos agora do mercado livreiro em Macau. Publica-se muito sobre o território, mas falta um mercado na verdadeira acepção da palavra? Dou exemplos meus. Publiquei a minha tese de doutoramento em Macau, uma edição do IC, e o livro na Livraria Portuguesa (LP) nunca se encontrou à venda. Se não está à venda na LP, sendo um livro escrito em português, não sei onde poderá estar à venda. Haverá alguma falha, mas não estou a dizer que é da LP ou que é da editora. Que é uma falha grande, é. Nem sequer consigo perceber porque é que isso acontece. Isso também acontece com um dos meus últimos livros, “Rotas Circulares”, que foi escrito logo à partida em português e chinês, que faz parte de uma colecção de poetas de Macau, o livro ficou mais caro por causa da versão numa segunda língua, e continua a não ser vendido em Macau e sei que se fizeram esforços nesse sentido. Pelos vistos, não acontece só comigo. Falei com várias pessoas que publicam e me dizem que há essa dificuldade na promoção, venda e distribuição. Em Portugal, tirando a altura da Feira do Livro, não há mais oportunidades, é difícil encontrar livros sobre Macau.
Andreia Sofia Silva EntrevistaIsabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas [dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo? Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa. Como era a relação de Macau com a China nessa altura? Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês. FOTO: Hoje Macau Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão? No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo. Porquê? A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso. Até aos dias de hoje. Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês. Cria-se outro cristianismo. Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal. Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema? Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês. O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores. Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça. Falamos de que ano? O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo. Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua? Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes. Em que sentido? Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching. Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira. No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte. A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica? Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX. Como era Macau nesse tempo? Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda. Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos? Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.
admin EntrevistaIsabel Pina, investigadora do Centro Cultural e Científico de Macau | Álvaro Semedo, o homem e o mito Historiadora, com trabalho focado na missão dos jesuítas em Macau e China, Isabel Pina dedica-se actualmente a estudar Álvaro Semedo, o primeiro a registar por escrito, em 1642, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses devido ao combate aos piratas [dropcap]E[/dropcap]m Dezembro deu uma palestra, promovida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, com o título “A China Ming ao tempo de Xavier”. E como era a China neste tempo? Estávamos perante uma China de uma dimensão completamente diferente daquilo que era conhecido pelos missionários e pelos europeus, ao nível da escala demográfica e económica, não tinha qualquer comparação possível. Havia uma capacidade de adaptação do produtor chinês ao mercado consumidor, e dei o exemplo da porcelana azul e branca, um produto chinês que foi adaptado às exigências do mercado persa, e depois passou também a ser vendido para a Europa. Outro aspecto que referi em relação à China Ming, que deixou também os europeus atónitos e os missionários, europeus muito cultos à época, foi a indústria livreira. No século XVI quando chegam os primeiros missionários, deparam-se com bibliotecas que tinham uma escala absolutamente diferente do que existia na Europa. Como era a relação de Macau com a China nessa altura? Macau era um lugar central, desde logo para os missionários. Eles faziam um caminho obrigatório [por lá]. Os jesuítas pertenciam ao padroado português e tinham de embarcar obrigatoriamente em Lisboa, paravam em Goa e muitas vezes ficavam lá um tempo, e depois iam para Macau. A partir de Macau iam para as missões da Ásia Oriental, incluindo Japão, que até ao início do século XVII é missão de grande sucesso, e depois para a China. Quando são expulsos do Japão vão para outras missões. Macau era central em termos de viagem e muitas vezes em termos de estudo, pois muitos vão acabar o percurso académico em Macau no Colégio de São Paulo. Alguns começam a aprender mandarim em Macau, que é também central no envio de verbas para a missão da China, na questão de preparação de chineses, que os jesuítas diziam ser as suas mãos e pés. Alguns deles eram integrados na Companhia de Jesus, no que diz respeito a essa capacidade de recursos humanos para apoiarem a missão. Dá para imaginar as dificuldades com que se deparavam, pois muitos [missionários] não falavam ainda o chinês. FOTO: Hoje Macau Quais as principais diferenças entre a missão jesuíta na China e no Japão? No Japão há uma penetração muito rápida e desde logo torna-se uma missão que é definida à época como um grande sucesso. Muitas das cartas de candidatura dos jesuítas, em que eles pediam para ir para as índias, apresentavam pedidos para o Japão. A China não exercia o mesmo fascínio durante muito tempo. Porquê? A China provavelmente não teria o mesmo no comércio que tinha o Japão, além de que a própria sociedade era diferente. Era uma sociedade mais centralizada, quando os jesuítas chegam ao Japão o país estava em guerra civil. Havia ali uma possibilidade que não havia na China. Para a China iam sempre poucos missionários face à dimensão demográfica, e só passados os primeiros, por volta da década de 1630, ou seja, ao fim de cerca de 50 anos é que os números de baptismo começam a aumentar mais. De qualquer forma o cristianismo é sempre uma religião marginal, com muito pouco peso. Até aos dias de hoje. Sim, se bem que há o édito de prescrição do cristianismo, em 1684, assinado por um imperador chinês, mas os estudos mais recentes apontam que não foi uma oportunidade perdida, não se perdeu tudo. Houve sim uma transformação e houve estudos para a província de Fujian e de Guangdong que mostram que há uma apropriação do cristianismo, em que este se torna mais local. Há clãs e famílias que continuam cristãs, dão um tom mais local ao cristianismo, que se torna mais chinês. Cria-se outro cristianismo. Sim, adapta-se mais ainda, mas continuam com o culto. A partir daí, o clero local cresce exponencialmente e atinge números que nunca tinha tido. O meu doutoramento foi precisamente sobre os jesuítas chineses, e o que constatei é que durante 100 anos foram 28 e a partir do século XVIII há muitos mais religiosos chineses. Mas também já não são só os jesuítas, há mais ordens no terreno, mais missionários de diferentes congregações. Mas as diferenças entre o Japão e a China iria no sentido em que foi mais difícil o percurso de entrada e de aumento de baptismos na China do que foi no Japão. Mas depois na China perdurou com todas as metamorfoses, e sempre como uma religião marginal. Fez o seu doutoramento sobre “Jesuítas Asiáticos e Mestiços na Missão/Vice-Província da China (1589-1689)” em 2009. Porquê este tema? Na minha abordagem aos missionários e ao catolicismo na China tenho trabalhado mais na perspectiva dos mediadores culturais e não tanto em termos da religião em si. Para mim é mais fascinante a parte cultural porque são efectivamente os primeiros europeus que vão estudar a língua de forma regular e que vão viver na China. São eles que dão a conhecer a China Ming e Ching aos europeus pela primeira vez. Quando os jesuítas chegam, em 1582, o livro do Marco Polo ainda era muito importante. Dá para perceber o desfasamento, pois já se tinham passados uns séculos e estávamos numa dinastia diferente, e é uma China diferente que vão conhecer. Tenho trabalhado a constituição do conhecimento europeu sobre a China e o livro do Marco Polo continua a ser muito usado enquanto fonte de autoridade pelos jesuítas. Mas são esses europeus que criam os primeiros programas sobre a língua e de como se deve estudar o chinês. O mandarim era uma língua completamente desconhecida, daí a importância desses mediadores. Completamente. Logo o São Francisco Xavier fala em aprender o chinês, ainda no geral, sem definir qual a língua chinesa que ia estudar. O seu sucessor, Melchior Nunes Barreto, decidiu (isto tudo ainda antes da missão ter começado) deixar um irmão jesuíta em Cantão para aprender a língua com mestres locais enquanto faz a viagem para o Japão. Quando regressa, este irmão tinha enlouquecido (risos). Ele diz que teve uma fraqueza de cabeça. Falamos de que ano? O primeiro plano é um português que estabelece, depois de discutir com outros missionários, em 1684. E os jesuítas tiveram, a partir de 1578 ou 1579, quando se decide estudar o mandarim. Portanto desde 1579 até 1624 eles estão a ganhar experiência. O estudo começa em Macau e depois o estudo continua na China. Mas só ao fim desse tempo é que criam um primeiro plano de estudo. Como era a relação com a corte imperial chinesa? Quando chegavam, tinham alguns contactos prévios feitos, tinham algum domínio da língua? Estes homens eram muito bem preparados. Era um investimento enorme que começava logo na viagem, ou ainda antes. Eram homens com anos de estudos, que custavam dinheiro, e depois a viagem até Macau. Depois outro investimento era colocá-los na China. Essa relação com a corte é muito diferente entre as dinastias Ming e Ching. Na dinastia Ming estabeleciam uma rede de relações com missionários, com três mandarins e oficiais de alto nível, e é através dos conhecimentos científicos que começavam a desenvolver todo este relacionamento, o Guanxi, criando relações com os oficiais importantes. Na dinastia Ching era completamente diferente, pois tinham acesso à corte imperial com a realização do calendário. Entraram na corte os missionários que tinham alguma especialização, em termos de astronomia, matemática, relógios ou conhecimento de instrumentos musicais, e pintura também. Tinham de ter algum tipo de especialização para ter acesso ao imperador e começavam a preparar o calendário logo no início da dinastia. Entre 1644 e 1683 os jesuítas jogavam nas duas frentes. Em que sentido? Faziam-no enquanto ainda não estava bem definida a situação política na China. Vemos alguns jesuítas a actuarem e a estabelecerem relações com os Ming do sul, e vemos os outros em Pequim. Joga-se em todas as frentes do tabuleiro político. Um dos missionários que estou a estudar actualmente, o Álvaro Semedo, estava junto dos Ming do sul, com estes Ming a tentarem arranjar apoio militar por parte da Europa. O Adam Shau já estava em Pequim a entrar no departamento astronómico e a preparar o calendário para os Ching. Participou também num estudo sobre o jesuíta Tomás Pereira. No Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM) fizemos um projecto central sobre o Tomás Pereira, que foi um missionário absolutamente interessante e que tinha sido completamente apagado, mesmo à época, pelos jesuítas franceses por questões relacionadas com o padroado português, com o rei de França. O Tomás Pereira era uma figura próxima do imperador Kang Shi, dentro daquilo que um europeu pode ter de proximidade. Muitas das ideias que passaram para a Europa foram passadas pelos próprios missionários, que exageram sempre o papel deles perante a corte. A propósito de Álvaro Semedo, o que destaca nesta figura histórica? Era um missionário que pertenceu à vice-província da China, fez parte dos quadros, mas passou muito tempo em Macau. Em 1617, quando há a primeira perseguição, a primeira crise em que o poder imperial está envolvido, é um dos missionários que é expulso por decreto imperial. Tem mesmo de ir para Macau e fica cerca de três anos. Quando regressa à China, já tem outro nome, pois não podia ter o mesmo. Ao longo da sua vida Álvaro Semedo vive cerca de 45 anos na China, sendo que cerca de 10 anos são em Macau. O que é particularmente interessante é que o Álvaro Semedo é o primeiro a pôr em registo escrito o mito nacional de Macau, a questão de Macau ter sido doada aos portugueses por causa do combate aos piratas. Não é ele que vai formular este mito pela primeira vez, porque aparece em manuscrito antes disso, na década de 1620, mas em 1642 fica impresso pela primeira vez. Só isso torna o Álvaro Semedo [importante] face a Macau porque está em causa o mito das origens [de Macau], que tem um peso enorme até pelo menos ao século XX. Como era Macau nesse tempo? Ele próprio diz isso, ele chega ainda num período em que Macau ainda tem comércio com o Japão, e depois ele vem para a Europa em 1637 e quando regressa a Macau diz que o território já está numa crise profunda. Descreve, já com uma certa nostalgia, aquilo que tinha encontrado quando chegara lá, pois tinha chegado em 1611 ou 1612, ainda o comércio com o Japão decorria, apesar de estar no final. O comércio tinha sido cortado e Macau vivia uma crise profunda. Fez um estudo sobre a linguagem dos jesuítas macaenses nos séculos XVI e XVII. Eram apenas intérpretes, tiveram um papel como sempre teve a comunidade macaense ao longo dos séculos? Sim, mas durante muito tempo eram mesmo chineses da região envolvente ou de Fujian, ou Zhejiang. Os intérpretes podiam ser chineses ou africanos, chineses que estavam em Macau durante um ano e que regressavam à China, sabendo uma ou duas palavras, e que eram então referidos como intérpretes. Os missionários aprendiam o mandarim, mas estávamos numa China onde havia vários dialectos. Havia a língua da Administração que lhes permitia pôr em prática uma estratégia, garantir o acesso à corte imperial, mas no dia-a-dia tinham de lidar com os dialectos.
Pedro Arede EntrevistaRAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios” Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro [dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição? Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto. Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou? A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo. Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos? Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim. Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM? Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir. O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade? O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação. Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente? Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos. Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía? Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir. Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro? Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil. Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar? O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.
admin EntrevistaRAEM 20 anos | Jorge Neto Valente: “Aponto o dedo a nós próprios” Jorge Neto Valente, empresário e filho do presidente da Associação dos Advogados de Macau com o mesmo nome, acredita, vinte anos depois, que a comunidade macaense continua a correr contra o prejuízo da sua própria inacção durante o período de transição para a administração chinesa. Em entrevista, olha ainda para futuro com os olhos postos na Grande Baía e considera impossível que Macau venha a substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro [dropcap]N[/dropcap]uma altura de balanços, comecemos por aí. O que sentiu há 20 anos atrás durante o período da transição? Havia muita incerteza e, para além disso, algum medo, tanto do que estava para vir da parte do nova administração, como pela instabilidade e pela criminalidade que havia antes da transição. Existiram períodos muito maus, o crime disparou, havia assassinatos e raptos, o que já não se vê agora. Infelizmente penso que isso definiu o ambiente na altura da transição. Olhando para trás, quando vemos as imagens do dia da passagem parece muito mais giro do que realmente foi na altura, que era muito mais sombrio e incerto. Que acontecimento destes 20 anos mais o marcou? A liberalização do jogo que é, sem dúvida, um marco histórico e permitiu um desenvolvimento muito grande em todos os aspectos em Macau. A parte económica teve um empurrão da China, que também ajudou ao deixar vir muitos turistas do continente, mas a liberalização do jogo foi o que mudou a sociedade. Antes apenas uma família controlava o jogo e não havia transparência, nem competição entre os casinos. Quando há competição, ou quando uma empresa enfraquece, há outra que toma o seu lugar e logo aí existiu uma mudança muito grande, pois a verdade é que, na altura, nem sequer sabíamos que o jogo envolvia tantos aspectos, porque era tão pouco transparente que as pessoas nem sequer se apercebiam. Os casinos passaram directamente, digamos, da década de 70, para casinos de ponta e de referência para outros locais que passaram a vir cá copiar como se faz. A competição traduziu-se no aumento salarial dos trabalhadores do jogo e passou a pagar-se mais aos melhores. Portanto houve um aumento qualitativo e um aumento quantitativo e isso acabou por arrastar o desenvolvimento de tudo o resto. Para mim foi isso que também marcou os primeiros dois termos do primeiro chefe do Executivo. Até pelo que o Jorge representa, como vê comunidade macaense e o caminho por ela trilhado desde há 20 anos? Ficámos todos a ver o que ia acontecer e o tempo foi passando. A parte social foi deixada de lado e talvez seja um dos aspectos mais negativos. Aponto o dedo a nós próprios, mais do que a outras pessoas porque antes de 1999, e depois também, não houve uma preparação na comunidade macaense. Passaram 10 e 20 anos e a verdade é que não fizemos muito. Os jovens não se interessaram nem quiseram entrar na vida cívica ou política, porque estavam também a ver o que ia acontecer, alguns deles com um pé cá e outro em Portugal, onde muito acabaram por ir. Mas os mais experientes, que deviam ter ajudado a traçar o caminho, também ficaram a ver, tiveram medo de seguir um rumo que podia correr mal e ser culpados por isso. As coisas iam melhorando na sociedade de Macau, na política e na economia, e nós ficámos a hibernar, sem fazer muito mais do que aquilo que já se estava a fazer. Daí que, ao fim de 10 anos, mais ou menos quando regressei a Macau, notei que as associações de matriz chinesa tinham organizações para todas as idades e as associações de matriz macaense não tinham jovens. Como havia muitas oportunidades nos casinos e em empresas privadas, concentraram-se muito na vida profissional e na família. Outro aspecto negativo e que aconteceu até 2015, é o desaparecimento do português e do ensino do português na escola. Penso que aqui houve também, digamos, um bocadinho de maldade, por parte de um certo pensamento dos dirigentes do novo Governo, que acharam que o português já não interessava em contrário do ensino do chinês. Foi só depois quando lançaram a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa (PLP) e quando em 2015 o primeiro-ministro chinês [Li Keqiang] veio a Macau é que as se pessoas se lembraram que realmente o português ainda era importante. Mas como o português não foi ensinado durante 15 anos, perdeu-se uma geração e para recomeçar foi mais difícil. O problema é que agora existe mesmo um interesse, não só de Macau, mas da China, que quer pessoas que falem as duas línguas, para fazerem a ponte de ligação para os PLP e apontar Macau como a plataforma para esse fim. Qual é a principal diferença que encontra em termos de perspectiva, entre os portugueses que chegaram durante a administração portuguesa e os que vêm agora trabalhar na RAEM? Penso que a distinção não será tanto, entre os que estão cá antes de 1999 e os que vieram depois. Penso que a distinção é entre aqueles que querem saber mais e estão abertos a aprender e absorver o que vem de fora, e aqueles que são muito mais fechados. Noto, desde pequeno, que havia aqueles portugueses colonialistas que vinham cá, até vestidos a rigor, e nunca se misturavam com os chineses, ou seja, comiam em português, viviam nas concentrações portuguesas e tudo o resto passava-lhes ao lado. Mas esse é o extremo. Depois há aqueles muito mais liberais, normalmente os jovens que cresceram já no Portugal da Europa, que vêm e gostam de ir sítios diferentes, onde há só chineses e não se fecham. Para esses a integração é muito mais fácil. Para os outros não há integração mas a vida também é fácil porque há sempre concentrações portuguesas em Macau a uma esquina de distância. Macau está sempre a evoluir e é hoje uma cidade muito mais internacional. Existem pessoas de todo o tipo e provenientes de todo o lado e penso que daqui a 10 anos vamos olhar para trás e Macau vai continuar a evoluir. O Jorge é um empresário em nome próprio, que tem um papel activo na sociedade. De que forma pode ser um exemplo para a comunidade? O exemplo começa pela Associação de Jovens Macaenses. Criámos a associação precisamente com esse fim: iniciação de jovens. Por isso é que fazemos muitas actividades e damos uma oportunidade de experimentar para ver o que é que gostam, entre desporto, arte, caridade, etc. Depois de participar, acabam sempre por arranjar uma coisa que gostam de fazer e complementam dessa forma a sua actividade profissional. O que nós queremos é passar a mensagem de que “não fiquem só a ver os navios a passar”.Em vez de nos perguntarmos porque é que não há mais participação, devemos participar nós próprios na sociedade e fazer o trabalho, porque as associações chinesas nesse aspecto têm feito um trabalho muito melhor de preparação. Que análise faz ao trabalho da tutela da Economia e Finanças nos últimos anos? Na sua opinião, em que sentido está Macau a caminhar nesta matéria e o que pode o Governo fazer diferente? Agora vamos ter um novo Governo e temos grandes expectativas. Passados 10 anos, e depois de dois mandatos completos, o primeiro Governo fez muita coisa. Houve escândalos, claro, mas fez muito. Houve a parte da corrupção, mas foi também uma altura em que havia também muita corrupção na própria China. E a verdade é que as coisas se endireitaram tanto em Macau, como no interior da China e hoje em dia não existe aquilo que se via. Penso que o “elástico” estava muito solto no primeiro Governo e no segundo Governo puxaram muito por esse “elástico”, fazendo com que a segunda parte destes últimos 20 anos tenha existido muita inacção. Se virmos bem, o metro define mais ou menos o segundo Governo. Como se viu, o metro foi definido por um preço, tinha um traçado que previa passar em certas partes e houve tanto medo de o fazer, e ao mesmo tempo tanta vontade, que acabaram por arranjar uma solução que, para não desagradar a alguns, desagrada a todos. O metro da Taipa podia ser um metro subterrâneo e isso evitaria problemas. Além disso, a própria inauguração do metro também definiu essa incapacidade porque parou meia-hora depois de abrir e após terem gasto cinco vezes mais do que tinha sido planeado. Mas é preciso ver também que o Governo de Macau é muito dependente de factores externos. Muito se fala na diversificação económica de Macau. Qual a sua importância, tendo em conta a ambição de integração cada vez maior nos projecto da Grande Baía? Todos os países têm uma indústria que os definem. No Médio Oriente é o petróleo, por exemplo, e aqui é o jogo. A diversificação em termos absolutos diz-nos que Macau agora, em vez de depender 90 por cento da indústria do jogo, depende 89 por cento do jogo, e isto faz com que todas as políticas e o próprio investimento privado tendam sempre a apontar para o jogo. Mas a verdade é que os casinos não podem englobar toda a gente, nem toda a gente está apta ou quer trabalhar neles. E nesse sentido, tanto a Grande Baía como a plataforma [com os PLP] trouxeram essas oportunidades. Penso que nos próximos 30 anos, para os jovens, é na Grande Baía que estão as oportunidades praticamente todas. Quem quiser apostar e trabalhar na China e em Macau, sem ser nos casinos, tem de olhar para a Grande Baía, porque tem aquilo que nos falta: um mercado de cerca de 100 milhões de pessoas, espaço e pessoas para trabalhar. A Grande Baía ajuda a direccionar os investimentos, porque são 11 cidades muito próximas que estão agora a definir quais as suas vantagens. Se Macau, para além do jogo, se conseguir definir como plataforma dos países de língua portuguesa, então as outras cidades têm de vir a Macau para esses negócios específicos. Se Hong Kong, que está agora a passar por mau bocado, não se definir e perder as suas vantagens, vai ficar para trás e alguma outra cidade irá tentar tomar-lhe o lugar. Isto é a competição, ou seja, o Governo central traçou a Grande Baía mas depois também dá liberdade a cada cidade de melhorar e de se tornar “campeã” nas áreas que conseguir. Então considera que Macau poder vir a assumir uma posição importante como centro financeiro? Em algumas áreas acho que é possível e é fácil tornar-se num centro económico para os PLP, até porque as leis são muito parecidas mas, fazendo de advogado do Diabo e sendo franco, substituir as valências de Hong Kong enquanto centro financeiro é impossível. Para isso acontecer seria necessário modificar a lei e a forma de passagem de bens e acções das empresas, que é muito importante para os empresários. Em Hong Kong, baseado na common law, é muito fácil haver transacção e passagem das acções das empresas e é por isso que as pessoas gostam muito de usar as leis e os tribunais de Hong Kong. Para nós modificarmos estes tópicos, que estão tão bem entranhados na lei continental europeia, seria extremamente difícil. Para quem fica para os próximos 20 anos, que futuro esperar? O futuro é sempre incerto, mas tanto por parte do Governo central como do Governo de Macau, há vontade de manter a estabilidade sociológica, política e económica e dar as oportunidades devidas à população. Se utilizarmos as nossas vantagens que passam por aproveitar as duas línguas que temos, aproveitar tudo o que relaciona a China com os PLP em termos de negócio, cultura e economia, vamos ser campeões nessa matéria. A partir dessa área podemos alastrar a outras áreas complementares e trabalhar muito, porque a sorte também vem para aqueles que estão bem preparados e prontos para agarrar as oportunidades.
João Luz EntrevistaLam U Tou, presidente da Associação da Sinergia de Macau: “Não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão” Lam U Tou, um dos mais jovens líderes chineses de Macau, partilha a sua visão acerca dos assuntos que marcaram a região nos últimos vinte anos, fala de liberdade de expressão e antevê as principais questões e desafios do novo Executivo Como foram os últimos vinte anos após o retorno de Macau para administração chinesa? [dropcap]N[/dropcap]asci em Macau e nunca pensei que em vinte anos pudessem existir tantas mudanças. Ainda me lembro dos dias em que o Hotel Presidente e o Hotel Lisboa eram os mais luxuosos e em que, ao abrir a janela, podia olhar directamente para o mar, sem ver outros edifícios pelo meio. 15 anos depois, apareceram resorts como o Sands, o Wynn ou o MGM, que me impressionam muito. Outra parte interessante foi que, a partir de 2007, foi realizado pela primeira vez o NBA China Game no Fórum de Macau, até mesmo antes de ir para Hong Kong. Tudo isto foram para mim sinais de que o desenvolvimento económico de Macau se estava a tornar cada vez melhor, mas isso não significa que não tenhamos sofrido. Em 2003, por exemplo, por causa da epidemia do Síndroma Respiratório Agudo Severo (SARS), a economia ressentiu-se muito, sendo que o salário era apenas de 3.000 patacas para um administrativo recém-licenciado ou de 3.800 patacas para um engenheiro. Muito diferentes eram também a maioria dos procedimentos relacionados com o Governo, que eram complicados e confusos. Na época da administração portuguesa, aqueles que não sabiam português, não se atreviam a apresentar as suas dúvidas aos funcionários públicos e era assim o ambiente na altura. Depois do retorno de Macau para a administração chinesa, voltando a usar o cantonês, tudo se tornou mais cómodo. Na sua opinião, quais os assuntos que mais preocupam os cidadãos de Macau? A maioria dos problemas são derivados do crescimento acelerado, feito sem pensar no bem-estar da população e da questão da habitação. Apesar de não ser tão preocupante quando comparada com Hong Kong, a questão da habitação não permite aos jovens, adquirir a sua própria casa no futuro. O preço de uma residência semi-nova é bastante elevado, não sendo compatível com os seus salários. Falando sobre a lei das habitações públicas, às vezes parece que é preciso lutar para ver quem é o mais miserável ou quem tem mais sorte, para obter uma habitação. Para evitar este tipo de problemas, o Governo deve ter uma política e um planeamento específico para as habitações públicas, disponibilizando uma quantia anual de fracções aos cidadãos. Acho que o Governo tem sempre dificuldade em ver a realidade na discussão das suas políticas, pois defende que o arrendamento das habitações sociais, podem ter lucros. No entanto, os custos de operação, recursos, reparação e manutenção das instalações, entre outros elementos que é preciso manter para assegurar o seu normal funcionamento, custam ao Governo mais de mil milhões de patacas, valor esse, não recuperado pelo baixo valor da renda recebida mensalmente. Já a situação da habitação económica é totalmente oposta, pois os custos de construção do edifício, estacionamento, valor do terreno, despesas relacionadas com a consulta de especialistas, avaliação ambiental, e todos os outros gastos necessários para a concretização de uma fracção são mais baixos, sendo que a área da obra tem apenas o custo de 1600 patacas por metro quadrado. Além disso, existem, no total, 40 mil habitações públicas que podem ser construídas nos terrenos recuperados pelo Governo. No entanto, nos últimos anos, foram apenas construídas 4.100 fracções. Por isso, espero que as autoridades possam acelerar o processo de planeamento dos terrenos, de forma a construir 4 mil habitações por ano, e ter as 40 mil fracções públicas prontas ao fim dos próximos 10 anos. Outro problema que é urgente resolver diz respeito à expansão da linha do metro ligeiro. Nos próximos cinco anos Ho Iat Seng deve ser capaz de construir a linha leste do metro ligeiro juntamente com a quarta travessia marítima Macau-Taipa. O que pensa sobre a juventude de Macau ao nível do sentido patriótico? Licenciei-me na Universidade de Jinan e fiz o meu mestrado na Universidade de Pequim. Não rejeito o patriotismo, sou de Macau, mas também sou chinês. Não vou rejeitar a minha identidade chinesa e os trabalhos de educação sobre o amor patriótico. No entanto, os jovens têm agora de saber quais são os prós e contras do país, e ser eles a avaliar o que é bom e o que é mau, para depois, decidir a sua própria visão do país. Mas tenho de dizer que é inegável que a China está a fazer esforços para liderar a população rumo ao crescimento social e está a conseguir. Ainda assim existem problemas que devem ser resolvidos o mais rapidamente possível, relacionados com a justiça social e a extrema disparidade entre ricos e pobres. O que espera dos próximos 30 anos? Não sei o que vai acontecer nos próximos trinta anos, mas temos de enfrentá-los com optimismo. Actualmente existem políticas que não acompanham a evolução dos tempos e que podem estar na base da origem de conflitos sociais semelhantes à situação de Hong Kong. Mas é positivo pensar que, se forem lançadas políticas favoráveis neste período de transformação social, muitas situações negativas poderão ser evitadas. Espero, por isso que o futuro governo, possa construir um sistema baseado na mudança da regulamentação em vigor. O que mais contribuiu para a sua decisão de concorrer às eleições legislativas? Comecei a trabalhar, primeiro, como assistente de Kwan Tsui Hang, ex-deputada à Assembleia Legislativa e, a partir daí, tanto a Federação das Associações dos Operários de Macau (FAOM) como a ex-deputada ofereceram-me muitas oportunidades. Fui aos bairros para falar com os cidadãos e conhecer quais os problemas a que a sociedade deve prestar atenção. Mas durante os anos em que estive na FAOM, descobri que existem temas que não estão a ser abordados, portanto, achei que era importante ter um espaço independente das associações e decidi criar a Associação da Sinergia de Macau. Foi tudo decidido rapidamente. Comecei a falar com os interessados em Dezembro de 2016, tendo a associação sido estabelecida logo em Março do ano seguinte. Depois, candidatei-me às eleições legislativas. Confesso que não esperava garantir um lugar no hemiciclo, mas sinto-me muito grato pelos 7.162 votos que obtive. Revelámos somente o nosso programa político à imagem das “linhas de acção governativa”, o qual tinha mais de 18.000 caracteres chineses, fornecendo formas de resolver os problemas sociais. Sente que existe liberdade de expressão em Macau? Em Macau, não me sinto restringido em termos de liberdade de expressão, mesmo falando inúmeras vezes sobre assuntos onde considerei a acção do Governo insuficiente. Eu sei que há pessoas que pensam que existe “terror branco” ou um “tecto transparente” na cidade que não permite que as pessoas expressem livremente as suas opiniões sobre o Governo ou outros temas relevantes. Mas tenho de dizer que, até agora, ainda não recebi nenhuma chamada ou alerta para não falar acerca de casos específicos. Talvez seja porque estou mais preocupado com os factos e não particularmente com os indivíduos. Para mim, o mais importante é alcançar medidas para solucionar as questões. Sobre a liberdade de expressão, desconheço situações de censura mas, de facto, nunca me senti visado. O nosso papel na sociedade é servir de ponte entre os cidadãos e o Governo para, juntos, encontrarmos soluções. É impossível resolver um problema apenas por nós próprios.
Andreia Sofia Silva EntrevistaGarcia Leandro, ex-Governador de Macau (1974-1979): “Macau foi a antecipação do futuro” A sua Administração criou as bases para muito do que Macau tem hoje, incluindo a composição da Assembleia Legislativa. O trabalho foi tanto, com a implementação do Estatuto Orgânico de Macau, que o General Garcia Leandro teve um esgotamento. Duas décadas depois da transição, o ex-Governador defende que houve um certo desconhecimento por parte de alguns negociadores chineses face às especificidades de Macau, enquanto que, da parte dos portugueses, houve falta de estabilidade política. Hoje é presidente da Fundação Jorge Álvares [dropcap]O[/dropcap] início desta fundação ficou marcado por uma polémica, pois Jorge Sampaio não concordou com a sua criação. 20 anos depois, a fundação ainda vive à sombra disso? Tenho muito pena que essa polémica tenha existido, principalmente por ter envolvido duas pessoas que trabalharam muito por Portugal: o último Governador, general Vasco Rocha Vieira, e o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio. Mas a fundação também sofreu com o que vinha detrás, ou seja, a polémica com a Fundação Oriente (FO). Mas não me incomodam nada essas coisas conjunturais de há 20 anos. O que me interessa são os objectivos da fundação e estes passaram por criar um conjunto, composto pela fundação e outras instituições, que permitisse reforçar as ligações com Macau e com a China para o futuro. Na perspectiva do último Governador de Macau, [a fundação olhava para] o trabalho que foi feito até ao dia 20 de Dezembro de 1999, mas também servia projectar o futuro. Até porque, de todos os antigos territórios ultramarinos, Macau foi aquele cuja saída foi feita da melhor forma e com mais dignidade, com uma relação óptima entre Portugal e a China que foi um exemplo para o mundo. Não tem comparação com o que se passou em Hong Kong. Criou-se uma uma instituição científica, histórica e académica aqui, [o Centro Cultural e Científico de Macau], o Instituto Internacional de Macau (IIM) e a fundação. Temos vindo a reforçar muito as relações com a China e Macau. Os chineses, na Administração da RAEM, têm estado todos connosco. A senhora O Tin Lin [chefe da delegação económica e comercial de Macau em Lisboa] trabalhou connosco, e agora vem o novo representante da RAEM em Lisboa, o doutor Alexis Tam, que tem uma influência local muito importante. Macau foi, ao longo da história, a antecipação do futuro, porque foi sempre uma mistura de toda a gente. Fazia parte do império comercial do Oriente, composto por Goa, Malaca, Macau, Cantão e o Japão. Durante muito tempo só se entrava na China através de Macau, e não se passava de Cantão. Isso só se perde quando os ingleses, depois da Guerra do Ópio, em 1841 ou 1842 ocupam Hong Kong e começa-se a perder a influência portuguesa, e Macau começou a perder importância. O que é espantoso é que volta a ganhar importância depois do 25 de Abril de 1974. Como? Foi o que eu vivi, numa época muito, muito difícil politicamente, financeiramente… tudo era difícil. Havia instabilidade, medo. O Estatuto Orgânico de Macau (EOM) de 1976 é o que dá a grande estabilidade porque deu autonomia administrativa, política, financeira e económica a Macau. Criaram-se condições para localmente se poder gerir os interesses de Macau sem ter de pedir tudo a Lisboa. Isso através do Governador e da Assembleia Legislativa (AL). Isso fez de Macau um novo interposto comercial. Sim. Por exemplo, as corridas de cavalos, a universidade, ambos na Taipa. Foram ambos contratos meus. Eu não tive de pedir a Lisboa, mas se tivesse de pedir nunca mais tínhamos cavalos nem a universidade. O EOM nunca foi alterado e teve sequência ao longo dos anos através dos governadores portugueses e muita coisa nunca foi alterada pelos chineses. O EOM trouxe uma AL semi-eleita, com o presidente eleito pelos seus pares. Fez-se a indexação da pataca ao dólar de Hong Kong e foi a questão da Autoridade Monetária e Cambial. E fiz uma reforma tributária, em 1977 e 1978, que não cheguei a acabar. Quando fui lá em 2011 ainda não tinham mudado. As forças de segurança também continuam com as mesmas bases. Mesmo a Lei Básica foi beber muito ao EOM, com as devidas actualizações. A grande alteração que o Governo da RAEM fez foi a liberalização do jogo. O Governo da RAEM não resolveu todos os problemas sociais, nomeadamente a habitação, que ainda é muito complicado, porque ou há um tecido urbano que está muito envelhecido ou há um tecido urbano mais moderno sujeito a uma grande especulação imobiliária. Numa recente palestra em Lisboa, onde esteve presente, Jorge Rangel, presidente do IIM, falou da possibilidade de ocorrência de protestos em Macau caso não haja soluções para a habitação. É. Ele aqui já tinha alertado para o facto de os problemas de Hong Kong serem, antes dos estudantes e da lei da extradição, a especulação imobiliária e o descontentamento daquelas pessoas perante a impossibilidade de pagar rendas. Esse problema pode surgir em Macau se não for resolvida a questão da habitação e julgo que o Governo de Macau já percebeu isso, tal como também não vai fazer uma proposta de lei da extradição. São coisas que perceberam que não podem fazer. Voltando ao EOM. O deputado Sulu Sou chegou a defender o fim da composição do hemiciclo instituída com a sua Administração. Vinte anos depois haverá espaço para um aumento dos deputados eleitos pela via directa? Não me quero meter em assuntos que são responsabilidade do Governo local. Mas posso explicar porque é que fiz daquela maneira. Quando se dá o 25 de Abril e depois se faz o EOM, há um grande choque, com a comunidade portuguesa e chinesa. Em primeiro lugar a comunidade chinesa não estava habituada a entrar na vida política activa. Não havia votos, na altura? Havia um partido único, a Acção Nacional Popular, e antes do 25 de Abril a União Nacional, e apenas os portugueses votavam. Quando disse “vamos votar”, consultei todos os que podia consultar e diziam-me que as pessoas não iam votar a sério se fosse pelo sufrágio directo, que tinha de se inventar outra maneira de levar os chineses para a política. Os chineses têm uma grande actividade associativa, e foi através das associações que se conseguiu trazer as pessoas para votar. Arranjaram-se então uns votos por sufrágio directo, outros votos pelas associações em representação de interesses económicos, culturais. Depois sou avisado de outra coisa, de que não iriam aparecer jovens, mulheres ou pessoas independentes em relação ao poder económico”. Para os lugares que ficaram para o Governador nomear, escolhi pessoas realmente independentes. Mas isso foi feito no tempo da Administração portuguesa quando aquela gente não estava habituada a votar e os portugueses estavam habituados a um partido único. Isso manteve-se até final da Administração portuguesa, e a diferença que fizeram foi aumentar o número de deputados. A estrutura é a mesma. Com a Administração chinesa é mais uma situação que ainda não mudaram. Porquê? Não vou comentar porque é estar a meter foice em seara alheia. Vamos esperar. Muito se fala das diferenças em termos de civismo e cultura política entre Macau e Hong Kong. Essa ausência de eleições foi o grande contributo para esse alheamento existente em Macau? Em Hong Kong era pior, não havia votos. Os membros dos Conselho Legislativo e Executivo eram todos nomeados por escolha do Governo ou por inerência, só havia dois lugares eleitos nas câmaras municipais. Fizemos o EOM em 1976 e quando Hong Kong tenta ter um parlamento eleito é 20 anos depois, quando os ingleses estão quase a sair de lá. Então como explica estas diferenças? Hong Kong tem uma maior massa crítica pois são sete milhões de pessoas. Além disso, Hong Kong tem uma grande presença de empresas estrangeiras e de turistas. A população jovem na China, Macau e Hong Kong está a ser cada vez mais educada. E os jovens são relativamente fáceis de mobilizar para ideais colectivos e sentem que querem ter alguma independência da China. Eles têm uma autonomia mas não deixam de ser parte da China. O acordo assinado entre o Reino Unido e a China, bem como entre Portugal e a China, determina que os territórios são China, com autonomia, mas isso não significa que não se devam ter boas relações com o país. A China evoluiu muito rapidamente e deu um salto muito grande com “Um País, Dois Sistemas”. Não só começa a afirmar-se como potência mundial, com a política “Uma Faixa, Uma Rota”, como começa a ter inimigos e a China percebe isso. Como deve ser a resposta a isso? Nunca houve na história mundial um Governo a governar 1,4 milhões de habitantes. E como raciocinam? De uma maneira simples: a China pensa que ninguém vai atacar o país frontalmente, mas podem actuar nos pontos fracos, que são as economias mistas e autonomias mistas, e aí Macau e Hong Kong aparecem como áreas sensíveis. Os chineses estão extremamente preocupados com o que pode acontecer aí. Tudo estava bem até o Governo de Hong Kong decidir apresentar a proposta de lei da extradição. Querem eleger também o Chefe do Executivo pelo sufrágio directo e universal. Tudo bem, mas é um problema que não é nosso, nem temos de andar a fazer comparações ou a extrapolar. Até porque a Lei Básica de Macau não prevê o sufrágio universal. A de Hong Kong também não. Aliás, as negociações sobre o futuro de Macau começaram depois das de Hong Kong. Os chineses quiseram copiar muitas coisas do processo de Hong Kong e foi através de nós que as coisas foram corrigidas, mas aí não se deixou de manter o sistema de que não eram eleitos. [O Chefe do Executivo] pode vir a ser [eleito pelo sufrágio universal], mas dentro de regras que não sabemos quais são. Mas uma coisa é certa: a China vai-se enquadrando cada vez mais no mundo e adaptando-se. No período de descolonização, em 1975, consta que elaborou um relatório sobre o facto de algumas forças partidárias em Portugal defenderem a entrega de Macau. Confirma isso? Comigo não houve diálogo nenhum. Não produzi qualquer relatório sobre o assunto. Nunca o assunto foi falado comigo, nunca Macau entrou na comissão de descolonização da ONU, onde havia representantes para o antigo Ultramar. Há mais de 40 anos que ando a tentar saber quem é que teve essas conversas. Não sei, não encontro. Um dia falei com duas pessoas que estão citadas no meu livro, o professor Veiga Simão, embaixador da ONU em 1974-1975, e perguntei-lhe se tinha tratado de alguma coisa. Disse-me que não. Anos mais tarde, em 2009, apareceu um professor chinês do Canadá que me parecia ser um especialista sobre o assunto, e perguntei se existia alguma conversação. Ele disse-me que não sabia de nada. Se houve alguma coisa foi de modo informal na ONU. Até porque os representantes portugueses tinham bem a noção, quer Almeida Santos quer o General Costa Gomes do caso muito específico de Macau. E a China, em 1972, tinha dito que Macau e Hong Kong não eram assunto para o comité de descolonização, que eram um assunto para resolver com o tempo, através das relações bilaterais entre Portugal e a China. O dizer que não entrava para o comité de descolonização queria dizer: “isto [Macau e Hong Kong] não será independente, é nosso”. Os dois casos de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até na sua história. Em que sentido? Entrámos em Macau no século XVI, a maioria da população era chinesa, mas Hong Kong foi ocupada depois de uma guerra. Não existia nada em Macau, era terra de ninguém. Pagávamos renda e em 19877 deixámos de pagar e ficámos sem futuro definido. Quando é que aquilo acabava? Não estava escrito. Os ingleses conquistaram Hong Kong e depois Kowloon mas esse espaço era relativamente pequeno, então ocuparam os Novos Territórios. Mas deixaram no contrato com a China de que a sua permanência nos novos territórios só durava até 1 de Julho de 1997. A senhora Tatcher, em 1982, vai a Pequim pedir para continuar além deste período, mas Deng Xiaoping deu-lhe a resposta óbvia: “nem pense nisso”. As duas histórias de Macau e Hong Kong são completamente diferentes, até no relacionamento com a população, não tem nada a ver. Por isso é que as nossas negociações correram melhor, também porque nós Portugal não tínhamos grandes interesses económicos a defender em Macau. Não tínhamos grandes empresas portuguesas, apenas tínhamos o BNU. Mas os ingleses tinham muitos interesses económicos e por isso são mais difíceis as negociações. A transição fez-se então no momento certo. Os chineses estavam muito interessados em resolver o problema de Taiwan, Hong Kong e Macau. E por uma questão de respeito e consideração pelos mais pequenos, a vontade deles era resolver Taiwan primeiro, mas as coisas não correram bem porque foi muito apoiado pelos americanos, muito desenvolvido economicamente e armado e tornou-se muito autónomo da China. Com Hong Kong tinham o limite de 1997. Quando as negociações começam, o doutor Mário Soares, na altura Presidente da República, queria passar o final para o ano 2000. Os chineses disseram que tudo aquilo tinha de acabar antes do ano 2000. Foi na altura possível, dentro de uma lógica histórica que são as mudanças da história, que não é imutável. Se tivesse de apontar erros de parte a parte, quais apontaria, no processo de transição? Os erros que houve da nossa parte foi alguma instabilidade da governação. Alguns escândalos que houve. O caso do fax de Macau, por exemplo. Sim, mas antes disso. O Governador Almeida e Costa dissolveu a AL, Pinto Machado esteve lá pouco tempo. Houve vários problemas e houve sempre um certo rumor e desconfiança de escândalos financeiros, corrupção. Da parte da China houve estabilidade mas houve um erro de percepção, pois os negociadores queriam tratar do processo da mesma maneira que trataram em Hong Kong, mas foram corrigindo a pouco e pouco. Nós mantivemos, com os últimos governadores, começando por mim, uma sequência de governação. Depois com acidentes de percurso, as pessoas e os problemas mudam. A China tratou cuidadosamente de Portugal mas com algum desconhecimento de qual era a especificidade de Macau e dos portugueses e estavam a tentar copiar o modelo de Hong Kong. Ficou sempre essa ideia de uma administração portuguesa corrupta em Macau? Há muita coisa feita pela comunicação social. Pode-se ter 40 pessoas muito boas, mas se tiver duas ou três que falham são essas que aparecem nos jornais. Isso passou-se em Macau e em Portugal também. A imprensa é livre, e controlar a imprensa é das piores coisas que se pode fazer, porque acaba sempre mal.
Hoje Macau EntrevistaRAEM 20 anos| Garcia Leandro, ex-Governador, separa as águas entre Macau e Hong Kong O actual presidente da Fundação Jorge Álvares e Governador no período entre 1974 e 1979, Garcia Leandro defende que que a crise política que se vive em Hong Kong não é “extrapolável” a Macau por estarmos perante dois territórios completamente diferentes. Para o ex-Governador, o Governo Central quer muito que Macau seja um caso de sucesso e defende uma “identidade própria” para as quatro comunidades que existem no território [dropcap]O[/dropcap] primeiro governador de Macau em democracia defende que Pequim quer fazer da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) um caso de sucesso e considera que a crise em Hong Kong não é extrapolável para este território. “Eu julgo que o regime chinês quer fazer de Macau um caso de sucesso”, declarou à agência Lusa o general Garcia Leandro, que governou Macau entre 1974 e 1979. Questionado sobre se os protestos que há seis meses ocorrem em Hong Kong se podem estender à RAEM, Garcia Leandro começou por dizer que se tratam de duas realidades diferentes em termos históricos, de massa crítica e de população. “A situação não é paralela, não se pode extrapolar de Hong Kong para Macau”, afirmou o general, presidente da Fundação Jorge Álvares, uma estrutura criada no quadro da transferência da administração que tem como objectivo promover o diálogo intercultural entre Lisboa e a RAEM. Hong Kong é palco de manifestações desde Junho, em protesto contra uma proposta legislativa que permitiria a extradição de suspeitos para a China continental. O Governo de Hong Kong acabou por retirar a proposta, cedendo a uma das exigências dos manifestantes, mas a decisão não foi suficiente para travar os protestos anti-governamentais em prol de reformas democráticas e contra a alegada crescente interferência de Pequim no território. Face aos protestos em Hong Kong, “Pequim tem tido uma grande contenção”, para evitar tomar uma posição de força, considerou Garcia Leandro. O general, apesar de não querer entrar em especulações, disse que “dá a sensação” que “há ali uma mãozinha do exterior a empurrar”. “De onde é que essa mãozinha do exterior vem não sei nem quero especular (…), mas é evidente que pode haver ali Taiwan, pode haver ali os Estados Unidos [país em guerra comercial com a China]”, comentou. Em declarações ao HM concedidas em Junho, relativas à implementação da política “Uma Faixa, Uma Rota”, Garcia Leandro comentou um possível impacto dos protestos de Hong Kong, uma vez que a independência do sistema jurídico e judicial das regiões administrativas especiais “envolve grandes empresas internacionais que necessitam de ter uma base fiscal e jurídica sólida e estável e não se podem arriscar a ter pessoas extraditadas para a China e a serem julgadas lá. É uma situação que espero que venha a ser bem resolvida, mas que demonstrou algumas fragilidades”, acrescentou. Garcia Leandro defendeu também que há o risco de a China enfrentar resistências na hora de negociar de forma bilateral ou multilateral com os países, mas que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, na sua essência, “não se vai alterar”. No entanto, “é preciso ter cuidado com a situação e os estatutos, porque as pessoas e as empresas que estão nas regiões administrativas especiais têm estatutos registados para um período de 50 anos, com um quadro jurídico local e a independência dos tribunais. A reacção da população de Hong Kong, que foi muito grande, tem a ver com uma habituação da população a um determinado sistema que seria alterado (com a lei da extradição), criando uma perda de confiança de que a China não poderia beneficiar”. Sobre as questões de cibersegurança na China, Garcia Leandro chegou a defender ao HM que “não [devem tirar o sono às pessoas]”, por serem “questões que resultam da ciberguerra e das necessidades cibersegurança, que actualmente acontecem em todo o lado”. “A China percebe que não lhe vão fazer uma guerra, porque tem uma grande massa crítica para aguentar, mas pode ter intervenções do exterior através da via digital para tentaram destruir alguma coisa por dentro. É evidente que Hong Kong é um sítio fácil para essas pretensões e Macau acaba por ser arrastado”, acrescentou. A herança portuguesa Quanto à RAEM, Garcia Leandro referiu que “as autoridades chinesas de Macau têm demonstrado uma grande capacidade de compreensão na relação com a história portuguesa e a herança portuguesa, as associações e instituições portuguesas”. Garcia Leandro fundamentou a sua opinião sobre a situação de Macau com o que viu em sucessivas visitas que fez à RAEM nos últimos anos (2011, 2018 e 2019). “Visitei tudo e nunca vi aquelas associações, instituições tão bem tratadas como agora”, constatou. “Interessa a Pequim que o caso de Macau seja um sucesso” e o novo Chefe do Executivo, que toma posse esta semana, Ho Iat Seng, e os membros do seu Governo são “um sinal de grande esperança na manutenção desta linha de comportamento”, considerou. O general, de 79 anos, destacou ainda a visita do Presidente da China e líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, “a Macau para as comemorações” dos 20 anos da RAEM. A agência noticiosa oficial Xinhua confirmou a visita de Xi Jinping a Macau entre 18 e 20 de Dezembro, para participar nas comemorações e na cerimónia de inauguração do quinto Governo da RAEM. Integrar as comunidades Na mesma entrevista, o general Garcia Leandro afirmou que o território “tem quatro comunidades etnicamente, socialmente e culturalmente diferentes”. “São os macaenses, ou seja, os portugueses de Macau, são os portugueses da Europa, são os chineses de Macau e são os chineses do continente. O que interessava era criar uma identidade própria com esta gente toda”, declarou. Segundo o general, já existe entendimento entre os chineses de Macau e os portugueses de Macau: “Existe entendimento, sempre viveram ali em conjunto”. Já quanto aos chineses que vêm do continente, “têm vivido num mundo fechado” e têm “alguma incompreensão” em perceber a realidade de Macau. “Eles não têm, como os chineses de Macau, um conhecimento do passado histórico, da relação social que havia, porque há muitos casamentos mistos e muitas ligações, mesmo sem ser através do casamento, há muitas ligações mistas”, notou. Relativamente a Portugal, o general destacou que a China tomou nos últimos tempos “atitudes muito significativas”. Uma foi ter proposto em 2005 que o centro histórico de Macau fosse classificado património mundial da humanidade pela UNESCO, o que aconteceu em 2006. Outra, em 2003, foi a criação do Fórum Macau e, em 2005, a parceria estratégica com Portugal. “O Fórum Macau é [no fundo] as relações da China com os países de língua portuguesa que têm como base Macau. E ali existe um representante de cada um dos países, tipo cônsul ou embaixador que está ali a trabalhar, além de fazer encontros de advogados, de empresários, de estudantes”, descreveu. Portanto, “esta relação com a China nunca deve ser desperdiçada”, defendeu. “Deve ser aproveitada sabendo nós defender os nossos interesses, porque os chineses também defendem os seus interesses e a relação connosco é não só histórica, mas também é uma relação de interesses, também nos países de língua portuguesa como é evidente”, disse.
admin EntrevistaRAEM 20 anos| Garcia Leandro, ex-Governador, separa as águas entre Macau e Hong Kong O actual presidente da Fundação Jorge Álvares e Governador no período entre 1974 e 1979, Garcia Leandro defende que que a crise política que se vive em Hong Kong não é “extrapolável” a Macau por estarmos perante dois territórios completamente diferentes. Para o ex-Governador, o Governo Central quer muito que Macau seja um caso de sucesso e defende uma “identidade própria” para as quatro comunidades que existem no território [dropcap]O[/dropcap] primeiro governador de Macau em democracia defende que Pequim quer fazer da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) um caso de sucesso e considera que a crise em Hong Kong não é extrapolável para este território. “Eu julgo que o regime chinês quer fazer de Macau um caso de sucesso”, declarou à agência Lusa o general Garcia Leandro, que governou Macau entre 1974 e 1979. Questionado sobre se os protestos que há seis meses ocorrem em Hong Kong se podem estender à RAEM, Garcia Leandro começou por dizer que se tratam de duas realidades diferentes em termos históricos, de massa crítica e de população. “A situação não é paralela, não se pode extrapolar de Hong Kong para Macau”, afirmou o general, presidente da Fundação Jorge Álvares, uma estrutura criada no quadro da transferência da administração que tem como objectivo promover o diálogo intercultural entre Lisboa e a RAEM. Hong Kong é palco de manifestações desde Junho, em protesto contra uma proposta legislativa que permitiria a extradição de suspeitos para a China continental. O Governo de Hong Kong acabou por retirar a proposta, cedendo a uma das exigências dos manifestantes, mas a decisão não foi suficiente para travar os protestos anti-governamentais em prol de reformas democráticas e contra a alegada crescente interferência de Pequim no território. Face aos protestos em Hong Kong, “Pequim tem tido uma grande contenção”, para evitar tomar uma posição de força, considerou Garcia Leandro. O general, apesar de não querer entrar em especulações, disse que “dá a sensação” que “há ali uma mãozinha do exterior a empurrar”. “De onde é que essa mãozinha do exterior vem não sei nem quero especular (…), mas é evidente que pode haver ali Taiwan, pode haver ali os Estados Unidos [país em guerra comercial com a China]”, comentou. Em declarações ao HM concedidas em Junho, relativas à implementação da política “Uma Faixa, Uma Rota”, Garcia Leandro comentou um possível impacto dos protestos de Hong Kong, uma vez que a independência do sistema jurídico e judicial das regiões administrativas especiais “envolve grandes empresas internacionais que necessitam de ter uma base fiscal e jurídica sólida e estável e não se podem arriscar a ter pessoas extraditadas para a China e a serem julgadas lá. É uma situação que espero que venha a ser bem resolvida, mas que demonstrou algumas fragilidades”, acrescentou. Garcia Leandro defendeu também que há o risco de a China enfrentar resistências na hora de negociar de forma bilateral ou multilateral com os países, mas que o projecto “Uma Faixa, Uma Rota”, na sua essência, “não se vai alterar”. No entanto, “é preciso ter cuidado com a situação e os estatutos, porque as pessoas e as empresas que estão nas regiões administrativas especiais têm estatutos registados para um período de 50 anos, com um quadro jurídico local e a independência dos tribunais. A reacção da população de Hong Kong, que foi muito grande, tem a ver com uma habituação da população a um determinado sistema que seria alterado (com a lei da extradição), criando uma perda de confiança de que a China não poderia beneficiar”. Sobre as questões de cibersegurança na China, Garcia Leandro chegou a defender ao HM que “não [devem tirar o sono às pessoas]”, por serem “questões que resultam da ciberguerra e das necessidades cibersegurança, que actualmente acontecem em todo o lado”. “A China percebe que não lhe vão fazer uma guerra, porque tem uma grande massa crítica para aguentar, mas pode ter intervenções do exterior através da via digital para tentaram destruir alguma coisa por dentro. É evidente que Hong Kong é um sítio fácil para essas pretensões e Macau acaba por ser arrastado”, acrescentou. A herança portuguesa Quanto à RAEM, Garcia Leandro referiu que “as autoridades chinesas de Macau têm demonstrado uma grande capacidade de compreensão na relação com a história portuguesa e a herança portuguesa, as associações e instituições portuguesas”. Garcia Leandro fundamentou a sua opinião sobre a situação de Macau com o que viu em sucessivas visitas que fez à RAEM nos últimos anos (2011, 2018 e 2019). “Visitei tudo e nunca vi aquelas associações, instituições tão bem tratadas como agora”, constatou. “Interessa a Pequim que o caso de Macau seja um sucesso” e o novo Chefe do Executivo, que toma posse esta semana, Ho Iat Seng, e os membros do seu Governo são “um sinal de grande esperança na manutenção desta linha de comportamento”, considerou. O general, de 79 anos, destacou ainda a visita do Presidente da China e líder do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping, “a Macau para as comemorações” dos 20 anos da RAEM. A agência noticiosa oficial Xinhua confirmou a visita de Xi Jinping a Macau entre 18 e 20 de Dezembro, para participar nas comemorações e na cerimónia de inauguração do quinto Governo da RAEM. Integrar as comunidades Na mesma entrevista, o general Garcia Leandro afirmou que o território “tem quatro comunidades etnicamente, socialmente e culturalmente diferentes”. “São os macaenses, ou seja, os portugueses de Macau, são os portugueses da Europa, são os chineses de Macau e são os chineses do continente. O que interessava era criar uma identidade própria com esta gente toda”, declarou. Segundo o general, já existe entendimento entre os chineses de Macau e os portugueses de Macau: “Existe entendimento, sempre viveram ali em conjunto”. Já quanto aos chineses que vêm do continente, “têm vivido num mundo fechado” e têm “alguma incompreensão” em perceber a realidade de Macau. “Eles não têm, como os chineses de Macau, um conhecimento do passado histórico, da relação social que havia, porque há muitos casamentos mistos e muitas ligações, mesmo sem ser através do casamento, há muitas ligações mistas”, notou. Relativamente a Portugal, o general destacou que a China tomou nos últimos tempos “atitudes muito significativas”. Uma foi ter proposto em 2005 que o centro histórico de Macau fosse classificado património mundial da humanidade pela UNESCO, o que aconteceu em 2006. Outra, em 2003, foi a criação do Fórum Macau e, em 2005, a parceria estratégica com Portugal. “O Fórum Macau é [no fundo] as relações da China com os países de língua portuguesa que têm como base Macau. E ali existe um representante de cada um dos países, tipo cônsul ou embaixador que está ali a trabalhar, além de fazer encontros de advogados, de empresários, de estudantes”, descreveu. Portanto, “esta relação com a China nunca deve ser desperdiçada”, defendeu. “Deve ser aproveitada sabendo nós defender os nossos interesses, porque os chineses também defendem os seus interesses e a relação connosco é não só histórica, mas também é uma relação de interesses, também nos países de língua portuguesa como é evidente”, disse.
Hoje Macau EntrevistaRocha Vieira: “Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa” O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade [dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China. Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”. “Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou. Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu. Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse. FOTO: Mário Cruz | LUSA Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou. Asfaltar a estrada Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”. Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu. Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar. Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu. A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou. Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou. A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”. Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”. Individualidade preservada “Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira. O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu. No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou. A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”. No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”. O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou. Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.” No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou. Poder do yuan “É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira. Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu. Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”. Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou. Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20. “O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português. Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”. Visão de jogo Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”. Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”. Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador. O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse. Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.
admin EntrevistaRocha Vieira: "Tive mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa" O último Governador português em Macau recorda que teve, durante as funções, mais problemas com a parte portuguesa do que com a chinesa, mas salientou que o “rumo” a definir para a transição contou com uma “grande compreensão” do poder de então em Portugal. Quanto ao futuro de Macau, Rocha Vieira espera que mantenha a sua identidade [dropcap]T[/dropcap]ive mais problemas com a parte portuguesa do que com a parte chinesa (…) muitas vezes, por falta de percepção. Normalmente, as pessoas estão longe, em Lisboa – isso é uma coisa histórica, que não é só de agora – e acham que sabem melhor as soluções do que aqueles que estão em Macau”, afirmou Vasco Rocha Vieira, numa entrevista à Lusa a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território para a China. Porém, assegurou que quando foi necessário definir “o rumo, os objectivos fundamentais das políticas para Macau, foram discutidos pelo Governo de Macau, em Lisboa, com quem deviam ser discutidos, com o Presidente da República e com o primeiro-ministro” e houve “sempre” sobre isso “uma grande compreensão por parte dos órgãos de soberania portugueses e uma grande prova de confiança em relação a quem estava no território”. “Isso foi fundamental” para que todo o processo de transição de Macau para China “corresse bem”. Nos primeiros anos “em que era preciso saber o que é que se queria, marcar objectivos e ter confiança em quem lá estava (…) isso aconteceu”, sublinhou. Quando questionado sobre a relação com o Presidente Jorge Sampaio, de quem são conhecidas algumas críticas a Rocha Vieira, o general limitou-se a dizer: “foi aquela que tinha de ser e que o Presidente da República entendia que devia ser”. “Nunca tive nas minhas funções problemas institucionais, porque nunca pessoalizei as coisas”, concluiu. Da sua parte, enquanto governador de Macau, assegura que “houve sempre a assunção das responsabilidades”. “De acordo com o meu papel, as minhas funções e para aquilo que fui nomeado e quando se é assim não se tem problemas”, disse. FOTO: Mário Cruz | LUSA Rocha Vieira explicou que foi nomeado para o cargo de governador de Macau pelo Presidente Mário Soares, na altura em que o primeiro-ministro era o professor Cavaco Silva. “Quero dizer que [a relação] correu de uma forma exemplar. Vinha a Lisboa, punha os pontos, o Presidente da República perguntava-me se queria que falasse com o primeiro-ministro por qualquer problema”, especificou. E continuou: “falava com ele, apreendia da parte dele quais eram as preocupações do Dr. Mário Soares. Tinha reuniões alongadas com o professor Cavaco Silva e as coisas ficavam sempre esclarecidas”. “Nunca houve nenhum conflito”, garantiu, realçando que “as grandes linhas de orientação da administração portuguesa em Macau foram definidas nessa altura”. “Portanto quando, depois, mudou o Presidente da República (…) não houve grande problema” afirmou. Asfaltar a estrada Na época, tudo quanto “era importante em toda a área de códigos, legislação do que quer que seja, dos funcionários públicos, tudo isso estava resolvido, ou no caminho já decidido”. Na ocasião, o que estava a ser definido era como minorar a dependência de Macau de Hong Kong, transferindo-a mais para o Interior da China, para a zona de Cantão. E “isso não é uma subordinação em relação à China. É defender os interesses de Macau. E isso foi compreendido pela parte chinesa, e as coisas correram bastante bem”, referiu. Rocha Vieira recordou que havia uma preocupação na altura, com o facto de a transição de Hong Kong terminar antes, em 1997, portanto dois anos e meio antes da transferência de Macau, e não se saber o que aconteceria, inclusivamente no panorama internacional, porque muitas coisas estavam a mudar. Foi na década de 1990 que houve o desmembramento da União Soviética, que começou o grande crescimento da China e a crise financeira asiática, pelo que o propósito da administração portuguesa de Macau foi “ter as coisas resolvidas antes do processo de transição de Hong Kong terminar”. “E conseguimos isso”, referiu. A experiência de Hong Kong também não trazia ensinamentos ao território: “Não podíamos, porque Hong Kong e Macau são realidades completamente diferentes”, considerou. Desde logo pela escala de Hong Kong e depois pela maneira como as administrações procederam, explicou. Além disso, “Hong Kong, quando começou o processo de transição tinha tudo localizado, os quadros eram bilingues (…), tinham todos os tribunais, tinham universidades, tinham escolas, tinha os códigos. Macau não tinha”, frisou. A falta de investimento da metrópole nas periferias ao longo dos séculos foi particularmente sentida no território: “Macau foi deixado muito longe”. Por outro lado, a China esteve muito tempo fechada ao exterior, pelo que era curto o aproveitamento de Macau ou do papel que poderia desempenhar na zona e nas ligações regionais. Por isso, a percepção desse novo papel de Macau só “passou a existir a partir do momento em que a China começou a abrir-se ao exterior e a ter uma preponderância muito grande como potência cada vez mais global”. Individualidade preservada “Passados 20 anos, aquilo que acho (..) mais importante é ver que há uma continuidade em relação àquilo que foi a política portuguesa durante a sua administração. Porque aquilo que se fez tinha sempre como interesse e como propósito a continuidade e o futuro”, de Macau, afirmou Vasco Rocha Vieira. O ex-governador, sublinhou que a parte portuguesa nunca achou que a transferência da administração fosse “o fechar de uma porta”. Nem que ali acabava “a nossa relação com Macau ou as nossas responsabilidades”. Pelo contrário, entendeu, “sempre”, que “era um novo ciclo que se iniciava”. E esse ciclo “iniciou-se”, defendeu. No novo contexto, “a identidade é o mais importante para Macau”, defendeu, porque naquele território existe “uma situação perfeitamente original e única no mundo. Ali existe um entendimento entre culturas, que se respeitam. Não é uma mistura de culturas, como em muitos outros sítios”. As duas culturas, a portuguesa e a chinesa, muito diferentes, é que formam “essa identidade de respeito e de trabalho mútuo, de prevalência relativamente às dificuldades e aos problemas que aparecem”, sublinhou. A diferença pode ser assumida num aspecto de complementaridade ou de antagonismo, referiu, mas “em Macau sempre houve a complementaridade (…) e é um exemplo muito grande, até para outras situações no mundo, de como devem ser as relações”. No caminho da transição, destacou o trabalho feito pela administração portuguesa, “para que o segundo sistema, prometido a Macau, fosse uma realidade”, mas também a posição da China, que “tem cumprido aquilo que nós também cumprimos na Declaração Conjunta, fazendo com que Macau permaneça no segundo sistema, com as liberdades, as garantias, códigos de matriz portuguesa que deixamos, e que são no fundo a maneira de gerir a relação das sociedades”. O propósito “era convergente”, e consistia em “respeitar aquilo que ficou combinado e acordado na declaração conjunta, que foi um país dois sistemas, com Macau pertencendo ao segundo sistema e com essa identidade (…), de respeito de culturas”. Por isso, “há problemas que estão noutros sítios, como Hong Kong, que não são vistos da mesma maneira em Macau”, assegurando que ali estão salvaguardados os direitos dos cidadãos chineses que vivem no território. “O Tribunal de Última Instância está em Macau. Portanto, tudo aquilo que se passa, como crimes ou outros aspectos, que têm de ser julgados e apreciados, passa-se em Macau”, afirmou. Quando questionado se Pequim pode pedir a extradição de pessoas que queira ver julgadas de acordo com o regime chinês, responde: “Não, não vejo porque há de pedir.” No tempo da administração portuguesa, recordou que “os cidadãos que eram extraditados – de acordo com garantias que a China dava de que não havia pena de morte nem prisão perpétua – eram cidadãos chineses da China que se resguardavam em Macau e que vinham fugidos”. “Isso é completamente diferente em relação aos cidadãos de Macau, sejam chineses ou portugueses”, afirmou. Poder do yuan “É importante que haja investimento em Portugal. Agora, grande parte do investimento que tem sido feito [no país], nomeadamente o chinês, resulta muito das fragilidades que temos tido”, considerou Vasco Rocha Vieira. Para o ex-governador, a sobreviver a uma crise económica que obrigou o país a recorrer à ajuda externa (‘troika’), “Portugal não teve, nessa altura, o espaço de manobra suficiente para poder definir também o que é que queria em contrapartida”. “O contexto da nossa fragilidade, do ponto de vista financeiro, obstou a muitas coisas”, referiu. Naquela altura “a razão principal, não a única” que terá levado o país a negociar a estes investimentos, foi “minorar a dívida, conseguir melhorar o défice, conseguir que a situação difícil, do ponto de vista financeiro, melhorasse”. Esse objectivo era necessário referiu Rocha Vieira, mas “é pontual. De curtíssimo prazo” e “o investimento chinês deve ser visto no longo prazo”, afirmou. Além disso, na opinião do ex-governador de Macau, investimentos da China, devem ser também entendidos como investimento do Estado chinês. “Grande parte do investimento chinês, vem de empresas do Estado. O Estado tem o capital. E, portanto, o Estado chinês não faz as coisas por acaso. Tem objectivos”, sublinhou na entrevista à Lusa, a propósito do 20.º aniversário da transição da administração do território de Macau de Portugal para a China, que se celebra no próximo dia 20. “O Estado chinês tem muitos objectivos, tem objectivos de aprender com os outros, de conseguir áreas fundamentais que lhe interessam para o seu desenvolvimento e para a sua presença no mundo em expansão, como seja o caso da energia, ou dos seguros, ou da saúde, onde estão, ou da própria banca. Tem esses objectivos”, enumerou o também general do exército português. Por isso, defendeu que “em qualquer dos casos (…) se deve acautelar, o volume, as áreas desse investimento e fazê-lo de uma forma em que haja contrapartidas, e em que os nossos interesses se conjuguem com os interesses dos chineses”. Visão de jogo Para Rocha Vieira, Portugal pode “beneficiar do grande crescimento da China”, quer pela relação que teve com Macau, e com aquele país em geral, quer porque em Macau continuam a viver portugueses, com “a nossa memória e o nosso conhecimento”. Lembra, porém, que no momento em que se deu o processo de transição de Macau para a China, “Portugal estava mais preocupado com África e em restabelecer as relações que tinha tido, e que com o processo de descolonização se alteraram um pouco”. E, naquele contexto, “Macau era a segunda prioridade (…) e não houve a percepção de que a China ia ter este desenvolvimento”. Rocha Vieira conta que quando Deng Xiaoping fez uma visita de Estado à província de Cantão, em 1992, “estava a dar um grande sinal ao mundo de que ali ia ser o grande polo de desenvolvimento” do país. “De Macau dissemos isso para Lisboa, mas Lisboa estava preocupada com outras coisas, o que é compreensível”, referiu o antigo governador. O ex-governador também lembrou que, durante o tempo da administração portuguesa havia muitas empresas portuguesas em Macau, às quais se dizia para que criassem laços e parcerias chinesas, para ficarem depois da transição. Mas muitas não o fizeram. Hoje “temos de aprender com os erros e não desperdiçar oportunidades”, disse. Em relação a Macau, quando questionado sobre o que ainda podemos fazer no território nos próximos 30 anos que nos restam de período de transição, Rocha Vieira salientou que “importa que [o território] não seja descaracterizado”. “É uma opinião minha e não são sugestões, mas haver uma grande integração de pessoas da China em Macau – que já tem uma densidade imensa – tem que ser feita de maneira a que essa identidade não se perca”, afirmou.
Andreia Sofia Silva EntrevistaCarlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: “China teve uma relativa contenção em Hong Kong” Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia. [dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos. O que mudou? Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal. No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje? O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China. Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China. Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada. Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também? Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida. Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan. Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão. Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente. Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996. De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong? Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção. Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen. Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção. Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho? Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong. Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia? Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais. Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia? As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo. Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas. A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros. Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países? Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também. Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia? Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.
admin EntrevistaCarlos Gaspar, autor do livro “O Regresso da Anarquia”: "China teve uma relativa contenção em Hong Kong" Outrora única potência mundial indiscutível, os EUA deixaram de lado a manutenção de uma ordem internacional liberal e priorizam hoje a competição entre potências, olhando sobretudo para a relação entre a China e a Rússia. Deste triângulo estratégico há um risco de surgirem conflitos armados em zonas como Taiwan e a Ucrânia. É o que defende Carlos Gaspar, presidente do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, que lançou esta segunda-feira o livro “O Regresso da Anarquia – os Estados Unidos, a Rússia e a China e a ordem internacional”. Sobre Hong Kong, o autor diz que houve uma “relativa contenção” por parte da China e que a opinião do povo, revelada nas eleições distritais, é soberana Apresenta neste livro a ideia de um triângulo estratégico composto pela China, EUA e Rússia. E este regresso à anarquia. [dropcap]S[/dropcap]ão duas coisas diferentes. Quando fazemos a análise da história internacional desde o fim da II Guerra Mundial constatamos que o triângulo estratégico das relações entre a China, EUA e Rússia são centrais na política internacional, antes e depois da Guerra Fria. Não são sempre centrais com a mesma intensidade, mas há um padrão de continuidade na importância dessas relações das principais potências internacionais desde 1945. O regresso da anarquia é uma questão diferente, é conjuntural, tem a ver com o triângulo, na medida em que os EUA, a China e a Rússia continuam a ser os actores principais da política internacional. Mas no período a seguir ao fim da Guerra Fria, desde 1990 ou 1991, os EUA tinham uma posição muito mais forte do que a Rússia e a China. Eram até mais fortes do que esses países em conjunto, que não eram capazes sequer de contrabalançar o poder excessivo que os EUA tiveram naqueles anos. Isso permitiu aos EUA impor o seu modelo de ordem internacional, uma ordem liberal, de globalização, quer a China ou a Rússia quisessem ou não. E conseguiram mesmo, a partir de certa altura, integrar a China e a Rússia, as duas economias, na Organização Mundial de Comércio (OMC) e de certa maneira fazê-los estar dentro desta ordem liberal internacional. Quer a China quer a Rússia beneficiaram com o facto de terem entrado na OMC. Mas a partir de uma certa altura os EUA mudaram de política, por um lado, e por outro lado o equilíbrio entre os EUA, a China e a Rússia já não é o que era há 30 anos. O que mudou? Hoje a China e a Rússia voltaram a ser grandes potências em competição com os EUA e é por causa dessa competição que a questão principal para a política internacional dos EUA não é manter a ordem liberal, mas conter a ascensão da China e evitar uma aliança entre a China e a Rússia. É nesse sentido que os EUA voltaram a ter como prioridade a competição entre as grandes potências e não o ordenamento internacional. Pode-se falar com propriedade de um regresso à anarquia no sentido de competição entre as principais potências, algo que passou a ser o centro da política internacional e não a construção de uma ordem liberal. No livro fala de erros que os EUA cometeram nesse processo. Estes erros agravaram-se com a presidência de Donald Trump, que defende cada vez mais políticas proteccionistas e nacionalistas? Como é que estes erros nos trouxeram ao que vivemos hoje? O erro mais grave dos EUA foi, a seguir ao 11 de Setembro, ter uma estratégia de expansão e de democratização do Médio Oriente e também a sua decisão unilateral de invadir o Iraque que não tinha nada a ver com o 11 de Setembro, pois também não tinha as armas de destruição maciça que era urgente neutralizar. Esse erro principal marca o abuso do poder internacional dos EUA e também dividiu a Aliança Atlântica, e a relação entre os EUA e os seus aliados. Fez com que os EUA tenham perdido legitimidade internacional como o garante da estabilidade da ordem liberal e dividiu internamente a comunidade política norte-americana. Nem os EUA nem a Aliança Atlântica recuperaram ainda dessa divisão. Desde 2008 que há uma divisão profunda e uma polarização crescente na comunidade política norte-americana que tem como consequência um retraimento dos EUA e uma menor disponibilidade para intervir internacionalmente. Isso já era verdade no caso do Presidente Barack Obama, que perante a Primavera Árabe achou que os EUA não tinham de fazer nada de especial, deixou que a guerra civil da Síria degenerasse como degenerou, num conflito grave e perturbador para a estabilidade regional, e a seguir o Presidente Donald Trump agravou esse recuo estratégico dos EUA demarcando-se das suas responsabilidades como garante da ordem liberal. Essa é uma viragem nacionalista e proteccionista que acelera o regresso da anarquia. Mas tão importante como os erros dos EUA é a força da ascensão da China e a convergência estratégica entre a Rússia e a China. Ainda relativamente aos EUA, o livro fala de uma “guerra inevitável” com a China. Há uma tese sobre isso, o autor não sou eu. O que eu digo é que é mais provável que existam confrontos militares delimitados e localizados entre os EUA e a China, designadamente nos mares costeiros da China, face ao que aconteceu no passado. Durante toda a Guerra Fria as forças militares dos EUA e da URSS nunca tiveram nenhum choque directo. Essa é uma mudança perigosa, porque no cenário menos mau esses conflitos militares são localizados e delimitados, mas há sempre um risco de escalada. Esses conflitos podem ocorrer em torno da questão de Taiwan, também? Certamente, ou a questão da Ucrânia. Foram identificadas desde 1991 como os cenários de conflito mais perigosos da política internacional. No caso da Ucrânia, por causa da grande minoria russa, que poderia pôr em confronto a Rússia, a Ucrânia e eventualmente a aliança ocidental, como em parte aconteceu depois de 2014 com a anexação da Crimeia e a guerra híbrida na Ucrânia Oriental. Outro ponto, mais importante ainda, é a questão de Taiwan. É crucial para a China. O país mantém a sua estratégia de unificação e o Presidente Xi Jinping impôs uma data: até 2049 a questão tem de estar resolvida. Xi Jinping falou inclusivamente da adopção do modelo “Um País, Dois Sistemas” para Taiwan. Esse modelo foi desenhado, em primeiro lugar, para Taiwan, como está no livro. E faz parte das estratégias de reformas e de liberalização de Deng Xiaoping. Esse princípio surge depois de ter sido anunciada a nova política para Taiwan, em 1980. Precede a questão de Hong Kong e de Macau e é um princípio desenhado para abrir caminho à unificação pacífica de Taiwan com a China, mantendo a sua autonomia e as suas instituições, e mesmo uma parte das forças militares. Há ali um compromisso que mais tarde ou mais cedo entra em choque com os compromissos dos EUA em garantir a capacidade de Taiwan resistir a uma ameaça de invasão. Mas Taiwan é um território cada vez mais isolado internacionalmente. Sim e não. É uma questão que já se começou a discutir nos EUA: vale a pena? Mas se os EUA não cumprirem as suas obrigações como aliado em relação a Taiwan, o que acontece no dia seguinte com a sua aliança com o Japão? Há uma perda de credibilidade, não é apenas a questão em si de Taiwan que pode ser desvalorizada. Embora seja mais difícil desvalorizar a questão de Taiwan a partir do momento em que Taiwan é uma democracia pluralista e um Estado de Direito e, portanto, é verdade que cada vez menos micro Estados mantêm relações diplomáticas oficiais com Taiwan, mas também é verdade que a democratização de Taiwan compensa largamente esses sinais de isolamento, não só em relação aos EUA, mas também em relação ao Japão, que assumiu responsabilidades para a defesa de Taiwan no quadro dos acordos com os EUA assinados em 1996. De que forma é que o dossier de Taiwan tem uma ligação ao que está a acontecer em Hong Kong? Nas sondagens há uma força crescente das forças em Taiwan que se opõem à unificação com a China, mas esse é um efeito conjuntural. Provavelmente explica a relativa contenção das autoridades chinesas perante estes seis meses de protestos. Uma relativa contenção. Houve sinais de presença militar chinesa em Shenzen. Pior do que isso, há a mobilização das tríades e, portanto, uma estratégia subterrânea de violência além das prisões e da identificação de numerosos manifestantes. Mas isso é tudo uma relativa contenção. Depois das eleições distritais e da larga vitória do campo pró-democrata, qual será o caminho? Depende em grande parte da resposta das autoridades de Pequim, que têm uma certa margem de manobra para responder aos protestos e já mostraram que possuem uma certa flexibilidade perante a conjuntura, desde logo para corrigir o erro que foi a introdução da proposta de lei da extradição. Houve um recuo importante aí, e se calhar amanhã vai haver um recuo também em relação ao Chefe do Executivo. No essencial, os Chefes do Executivo existem para serem substituídos, isso não é nada de extraordinário. Mas os resultados das eleições municipais mostram de que lado é que está a grande maioria dos cidadãos de Hong Kong. Voltando à China. O livro diz que a sua grande prioridade é a hegemonia do país na Ásia Oriental, mantendo uma parceria estratégica com a Rússia. De que forma Macau e Hong Kong podem ajudar a esta hegemonia? Não sei se são instrumentos decisivos. De qualquer maneira, a própria integração pacífica e diplomática de Hong Kong e Macau na China é uma demonstração de força, um reconhecimento internacional da China como uma grande potência. Qualquer que seja a evolução em Hong Kong e em Macau as duas regiões são parte integrante do Estado chinês como regiões administrativas especiais. Neste triângulo fala dos laços que unem a Rússia e a China em várias matérias, incluindo o não cumprimento em matéria de direitos humanos. Como é que a comunidade internacional deve responder, incluindo a própria União Europeia? As questões de direitos humanos voltaram a ser relevantes nos dois casos por erros ou excessos cometidos pelos regimes autoritários na Rússia e na China. No caso da Rússia, por exemplo, o mau hábito de mandar assassinar os seus dissidentes em países europeus, é um pouco excessivo. Isso teve um impacto forte nas relações entre a Rússia e a Grã-Bretanha, mas também na opinião pública, e mostra o lado brutal do regime de Vladimir Putin. No caso da China, as coisas são bastante mais sérias, porque a repressão das minorias muçulmanas em Xinjiang tem uma escala absolutamente impressionante, é a maior perseguição religiosa do século XXI. Pouco a pouco esse tema começou a ter relevância na opinião pública americana e europeia e isso força os Estados e a UE a tomar uma posição, mesmo que esse não seja o primeiro reflexo. Afirma no livro que a China quer rever o traçado das suas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas. A China, de uma maneira muito unilateral, quer fazer o país maior, e está a rever as fronteiras da sua soberania chinesa no caso das ilhas do mar do sul da China e também na zona de demarcação com a Índia. Há uma vontade da China em projectar a sua soberania em territórios onde ela não é reconhecida e não o será facilmente. A Rússia também, com a Crimeia e a Nova Rússia. Há sinais de que há um revisionismo do espaço soberano destas duas grandes potências continentais. Essa é uma relativa novidade na política internacional. No caso da Crimeia foi a primeira anexação pela força desde 1945 e no caso do mar do sul da China há uma expansão efectiva com a construção dos aterros. Antecipa uma relativa estabilidade internacional, mas podemos falar de uma paz podre, com a existência deste triângulo de países? Não sabemos o que vai acontecer, mas pode haver uma tendência para estas grandes potências definirem as suas próprias esferas de influência e delimitarem os seus conflitos às periferias dessas esferas. Todas elas são potências nucleares, e duas delas são grandes potências nucleares, os EUA e a Rússia, e isso obriga as elites políticas e militares a um regime de responsabilidade correspondente à capacidade destrutiva das suas armas. Nesse sentido podemos imaginar que os conflitos, além da sua dimensão económica ou política, se possam reduzir aos espaços que fazem a separação dos espaços dominados pela China, EUA e Rússia. Mas isso tem um pressuposto que é a fragmentação da ordem internacional em três ordens competitivas entre si. Mas olhando para a história e ascensão da China, é muito claro que a China tem uma concepção política e ética da ordem mundial que é radicalmente diferente da concepção política ou ética que tem os EUA. A Rússia é um caso à parte no sentido em que é mais clássica, tem uma concepção do que é o ordenamento internacional mais próxima do registo da balança do poder, no sentido em que a Rússia deixou de ser uma potência revolucionária, não quer reconstruir a ordem internacional. Mas na minha opinião isso não é verdade em relação à China, que quer reconstruir a ordem internacional na Ásia, uma nova ordem congruente com os seus valores, história e princípios e os EUA também. Onde fica a Coreia do Norte nessa tentativa de hegemonia? Todos os casos são depois problemas interessantes. Os norte-coreanos começaram a desenvolver as suas capacidades nucleares no fim da Guerra Fria, quando sentiram que estavam cercados por três potencias nucleares. Os EUA retiram as suas armas no fim da Guerra Fria, mas resta a Rússia e a China. Os norte-coreanos não têm medo dos americanos, sabem que não vão atacar, mas têm medo dos chineses e dos russos.
Hoje Macau EntrevistaEmbaixador Santana Carlos recorda as dificuldades para manter o português A questão “mais sensível” na conclusão das negociações entre Portugal e a China sobre a transferência da administração de Macau foi a regulamentação oficial das duas línguas, segundo o embaixador António Santana Carlos, que liderou o processo. O diplomata jubilado destaca ainda a forma como a contestação em Hong Kong fortalece a posição de Taiwan [dropcap]O[/dropcap]s chineses sabem muito bem o que querem e para alterarem uma decisão é extremamente complicado, porque há vários centros de decisão: no partido, no Governo, e muitas vezes na Presidência”, afirmou. Em entrevista à Lusa, em Lisboa, o diplomata jubilado recordou as 39 viagens que fez para Macau durante os três anos e meio em que chefiou o Grupo de Ligação Conjunto (GLC) em representação de Portugal, a partir de 1996. “Tenho um razoável conhecimento da maneira de ser dos nossos amigos chineses, não só porque vivi intensamente o final do processo de transição, como depois estive quatro anos em Pequim”, referiu. Actualmente conselheiro diplomático na Câmara Municipal de Lisboa, Santana Carlos considerou que, apesar das dificuldades, os objectivos foram cumpridos, no processo de transição. “Como é habitual, aqueles assuntos mais complicados ficam, normalmente para o fim”, reconheceu, referindo-se à insistência da parte portuguesa para que o português e o mandarim ficassem ambos consagrados como línguas oficiais, por forma a assim vigorarem na Assembleia Legislativa, na administração e nos tribunais. A medida, defendeu, foi “muito importante para a defesa da língua portuguesa”, uma premissa “fundamental”. Este foi o assunto “mais sensível” que teve em mãos, dada a oposição da China: “Foi um processo difícil”. Preferindo valorizar o resultado final, o embaixador admitiu que foi necessária “alguma combatividade” e que a discordância entre as partes levou à suspensão de uma reunião plenária do GLC, devido à falta de acordo quanto à agenda. “A China opunha-se à regulamentação oficial das duas línguas. Nós queríamos incluir esse ponto na agenda para começar a ser debatido e a China não tinha instruções e, portanto, dizia que não ou, pura e simplesmente – que é uma boa maneira que os chineses têm de manifestar uma opinião negativa – não respondia e o assunto ficava pendurado”, lembrou. “Não foi fácil de conseguir, foi preciso insistirmos muito e mantermos uma coerência ao longo de todo esse processo”, sublinhou, considerando positivo o resultado, já que mais tarde viria a ser criado o Fórum Macau, uma plataforma que acabou por ligar a China aos países de expressão portuguesa. Entre poderes António Santana Carlos deparou-se com a diferença de culturas e de regimes. “Nós, ocidentais, por vezes temos consultas duplas Governo – Presidência, mas não com essa linha tradicional que é o partido”. Na China, prosseguiu, o partido “pronuncia-se sobre tudo. Sobre tudo o que é importante. E é preciso conciliar esses três centros de decisão no processo. Portanto, houve alguns assuntos que demoraram um pouco mais de tempo a resolver”. Para Portugal, era importante “preservar a identidade e a singularidade” de Macau para que não fosse “absorvido de uma forma total e rápida” pela China. “Era fácil! Macau não é um território muito grande. Esses assuntos foram, talvez os de mais difícil resolução”, constatou. Apesar de já não ter acompanhado o processo, o diplomata destacou também a construção do aeroporto de Macau como um passo importante para “dar uma maior autonomia” ao território administrado por Portugal até Dezembro de 1999. “Esse foi um dossier importante, já estava resolvido quando cheguei a Macau”, declarou. Questionado sobre o cumprimento das bases que ditaram o acordo entre Portugal e a China fez um balanço positivo, com uma ressalva: “É claro que Macau não tem uma lei da greve, mas com a administração portuguesa essa lei também não existia”. Portugal conseguiu também que não vigorasse a pena de morte em Macau e que as forças militares chinesas não entrassem no território logo à meia-noite do dia 20 de Dezembro de 1999, mas no dia seguinte. “Entraram oito horas depois, mas a transição foi completamente civil. Como não existiam forças militares em Macau, esse foi o nosso argumento para não ser uma coisa simultânea, com o final do processo de transição”, relatou. Questão de opinião As manifestações em Hong Kong estão a “dar força a Taipé”, segundo António Santana Carlos que considera que a China tem “efectivamente um problema” com a situação na antiga colónia britânica, algo que não se estende a Macau. “Para já o território é muito diferente de Macau, a região tem outra dimensão, outra economia. Tem um peso muito importante, os grandes trunfos da área financeira de Pequim são Xangai e Hong Kong”, afirmou. Questionado sobre as diferenças verificadas ao nível da consciência política nos dois territórios, Santana Carlos respondeu: “Hong Kong tem uma massa crítica que às vezes cria problemas à China, como agora está a acontecer, porque tem uma opinião pública – até por ser maior – que não tem a atitude da opinião pública de Macau”. “Não quero dizer que há interferências, mas eles criaram uma situação complicada para a República Popular da China em Hong Kong”, acrescentou. O problema, está a “reflectir-se nas relações entre Pequim e Washington”, porque “quer o Senado, quer a Câmara dos Representantes norte-americana aprovaram decisões apoiando o lado de manifestações em Hong Kong e criticando a China”, observou. “E essa posição foi posteriormente utilizada pelo Presidente Donald Trump, o que criou dificuldades à China”, acrescentou. Na análise do diplomata, a China não só pensa na estabilidade de Hong Kong e Macau, como essa estabilidade é “muito importante para aplicar o objectivo de ‘Um País, Dois Sistemas’ a Taiwan”. “Essas manifestações, no fundo, acabam por dar força a Taipé, porque é fácil perceber, não é? A República Popular da China tem, efectivamente, um problema com a situação que decorre neste momento em Hong Kong”, declarou. Festas inclusivas Já em Macau, “a opinião pública é muito mais pequena, a massa crítica é menos activa”, disse o ex-responsável pelo Grupo de Ligação, frisando que Portugal conseguiu manter uma “relação de amizade e cooperação” com as autoridades chinesas diferente. “Tanto no processo de Macau, como no de Hong Kong, houve primeiro uma festa portuguesa antes da meia-noite, depois da cerimónia de transição, com as duas partes presentes ao mais alto nível e depois, finalmente, uma festa chinesa”, recordou. Em Hong Kong, contou, “nem nenhum representante da China foi à despedida britânica, nem nenhum representante do Reino Unido foi à festa chinesa, depois da transição”. Em Macau, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês foi à despedida portuguesa e o homólogo português, Jaime Gama, também esteve presente na celebração dos chineses. “Conseguiu-se um entendimento que julgo que é mais do que simbólico”, considerou Santana Carlos, para quem a postura das duas partes “valorizou e continua a valorizar o relacionamento Portugal – China”.
Andreia Sofia Silva EntrevistaDanielle da Silva, fundadora da ONG “Fotógrafos sem Fronteiras” | A vida em Sumatra Há exactamente dez anos a luso-descendente Danielle da Silva fundava em Toronto a “Fotógrafos sem Fronteiras” [Photographers without Borders (PWB), na sigla inglesa], uma organização não governamental que, através da fotografia e do storytelling, visa ajudar comunidades em todo o mundo nas mais diversas áreas de intervenção. Filha de mãe portuguesa e pai indiano, Danielle da Silva tem contado a história dos estragos causados a famílias, orangotangos e meio ambiente devido à extracção massiva do óleo de palma na ilha de Sumatra, na Indonésia [dropcap]Q[/dropcap]uando criou a ONG “Fotógrafos sem Fronteiras”, em Toronto, o que tinha em mente? Sempre estive ligada a projectos de desenvolvimento sustentável, e depois de ter trabalhado com grandes organizações como a ONU e respectivos parceiros, como é o caso do Programa Alimentar Mundial [World Food Bank], descobri que havia muitos problemas [na forma como os projectos eram desenvolvidos], com estrangeiros a direccionar a forma como o desenvolvimento é feito, sem sequer compreenderem a cultura e as pessoas, a religião e essas nuances das comunidades. Por essa razão, vemos que 80 por cento dos projectos falham, sobretudo aqueles que estão relacionados com a agricultura, mudanças climáticas ou direitos das mulheres. Estes projectos não têm sido bem sucedidos, mas há muito dinheiro investido. Queria trabalhar com pequenas ONG e já tinha tido alguma colaboração com elas, e foi aí que percebi o contraste face às ONG maiores e a forma como trabalhavam com as organizações comunitárias, e como lidavam com os problemas desde a sua origem. Percebi essas disparidades, e que as coisas não dependem apenas de quem tem o dinheiro, mas também de como as coisas funcionam de forma mais global. Fiz um projecto na Índia, não como fotógrafa, mas a distribuir medicamentos, e essa organização era liderada por indianos e também ajudava a comunidade a nível da educação. DR De que forma é que esse projecto na Índia influenciou a PWB? Muitas vezes estas comunidades estão distantes das grandes cidades e quando as crianças são enviadas para as escolas deparam-se com a separação consoante as suas castas. Então o que esta organização fazia era levar as escolas para as comunidades, levar os professores para as aldeias a fim de resolver o problema, uma vez que havia um grau de iliteracia muito grande nestas comunidades. Vi o quão incrível isso era e tirei fotografias. Voltei à universidade e tentei explicar o que tinha visto. Comecei a mostrar as fotografias e as pessoas compreenderam, vi que a comunicação através da imagem era muito mais efectiva. Foi aí que percebi a importância do storytelling, porque era uma académica e explicava as coisas através de documentos, e tinha de ser credível. Mas através do storytelling havia uma grande ligação às emoções, com uma grande conexão às pessoas. Com essas imagens conseguir reunir dinheiro suficiente para essa organização criar mais nove escolas. Ao invés de pensar “deveria obter mais dinheiro para construir mais escolas”, decidi apostar no poder do storytelling e tentei criar esta ONG que poderia ajudar estas organizações através dessa vertente. Esteve na Indonésia, na ilha de Sumatra, e lidou de perto com a problemática da destruição de florestas e do habitat natural dos orangotangos devido à extracção do óleo de palma. Que ambiente encontrou quando chegou à ilha? A primeira vez que fui à Indonésia foi em Janeiro de 2015. No início estava como muitas pessoas, muito zangada com a questão da extracção do óleo de palma. Quando chegamos à Indonésia a primeira coisa que vemos são palmeiras e mais palmeiras. Ao início parece bonito, mas depois percebemos a quantidade de água que está a ser retirada e de como essa extracção está a destruir as florestas e o meio ambiente. Para mim o mais importante era a forma como essa extracção estava a afectar as pessoas. Na Indonésia, da perspectiva da preservação biológica e da conservação, não olham para as pessoas, mas sim para as florestas e a vida selvagem. Se virmos televisão, percebemos que os indonésios que estão ligados à extracção do óleo de palma dizem que é necessário fazer uma escolha, ou seja, preocupar-se com as pessoas ou com os orangotangos. Claro que a decisão vai para as pessoas. Percebi que as comunidades que vivem no meio das plantações de óleo de palma têm problemas com o acesso à água e não fazem muito dinheiro. Estas pessoas vivem rodeadas pela natureza, em pequenas aldeias, e não deveriam ter de comprar água. Se houver um boicote ao óleo de palma isso vai resultar na devastação destas famílias. Sumatra ainda enfrenta uma guerra civil ligada às províncias muçulmanas e existem ainda problemas a outro nível criados pela colonização. A última coisa que os locais precisam é que os estrangeiros lhes digam que a indústria do óleo de palma tem de ser alvo de um boicote. Os países estrangeiros que compram o óleo de palma contribuíram para a destruição de paisagens e tornaram-se ricos… o que eu gosto da organização local que está ligada a este projecto [Orangutan Information Center] é que não é liderada por estrangeiros ligados à área da conservação, mas é uma entidade gerida por locais que lutam muito por obter credibilidade e obter fundos. Tentam ajudar as pessoas ligadas à sua terra, levando-as a participar em acções de reflorestação e fazê-las ver que, dessa forma, a água regressa, e que também podem fazer dinheiro assim, que é a solução. Não é perfeita, mas é o que está a acontecer, o que é incrível. Sente que mudou em muito a vida da comunidade com este projecto? Os fotógrafos e outros expedicionários com os quais trabalhei reuniram dinheiro suficiente para preservar mais de 10 hectares de terreno, e também conseguimos mais atenção mundial de empresas, como é o caso da Lush [marca de sabonetes naturais], que se envolveu com o nosso trabalho e devido a essa parceria uma grande dimensão de palmeiras que tinham sido destruídas com a extracção do óleo de palma voltaram a ser plantadas. Neste momento o foco é juntar dinheiro, através das fotografias e do projecto de storytelling, para restaurar esses hectares destruídos. Eles fazem um trabalho sob vários ângulos e também é dada atenção aos orangotangos, a fim de encontrar pessoas que concedam patrocínios para apoiar estes animais. Temos uma longa parceria com esta entidade e o trabalho nunca está terminado. Nesse projecto teve ligação com as autoridades locais? Sempre, tudo o que fazemos tem de ser assim, porque na Indonésia a situação política é muito difícil. O advogado de uma das associações foi assassinado e há dois meses dois jornalistas foram assassinados por escreverem sobre a extracção do óleo de palma. É um lugar muito difícil para trabalhar se não cooperarmos. Tem algum projecto pensado para a China? Já estive na China, mas neste momento não temos nenhum projecto a decorrer no país porque a situação política é muito difícil. É perigoso e há poucas ONG na China com as quais possamos cooperar, e também mesmo que queiramos trabalhar com elas corremos o risco de ver projectos rejeitados ou sermos presos, ou não obtermos o visto de entrada no país. É difícil para os locais começarem novas ONG ou algum tipo de movimento a esse nível. Ainda assim, quais são as problemáticas que considera mais prementes no país? Sem dúvida a questão dos direitos humanos e as mudanças climáticas. Penso que estão interligadas. Teríamos de ter uma boa ONG local a trabalhar connosco, algo mais comunitário.
admin EntrevistaDanielle da Silva, fundadora da ONG “Fotógrafos sem Fronteiras” | A vida em Sumatra Há exactamente dez anos a luso-descendente Danielle da Silva fundava em Toronto a “Fotógrafos sem Fronteiras” [Photographers without Borders (PWB), na sigla inglesa], uma organização não governamental que, através da fotografia e do storytelling, visa ajudar comunidades em todo o mundo nas mais diversas áreas de intervenção. Filha de mãe portuguesa e pai indiano, Danielle da Silva tem contado a história dos estragos causados a famílias, orangotangos e meio ambiente devido à extracção massiva do óleo de palma na ilha de Sumatra, na Indonésia [dropcap]Q[/dropcap]uando criou a ONG “Fotógrafos sem Fronteiras”, em Toronto, o que tinha em mente? Sempre estive ligada a projectos de desenvolvimento sustentável, e depois de ter trabalhado com grandes organizações como a ONU e respectivos parceiros, como é o caso do Programa Alimentar Mundial [World Food Bank], descobri que havia muitos problemas [na forma como os projectos eram desenvolvidos], com estrangeiros a direccionar a forma como o desenvolvimento é feito, sem sequer compreenderem a cultura e as pessoas, a religião e essas nuances das comunidades. Por essa razão, vemos que 80 por cento dos projectos falham, sobretudo aqueles que estão relacionados com a agricultura, mudanças climáticas ou direitos das mulheres. Estes projectos não têm sido bem sucedidos, mas há muito dinheiro investido. Queria trabalhar com pequenas ONG e já tinha tido alguma colaboração com elas, e foi aí que percebi o contraste face às ONG maiores e a forma como trabalhavam com as organizações comunitárias, e como lidavam com os problemas desde a sua origem. Percebi essas disparidades, e que as coisas não dependem apenas de quem tem o dinheiro, mas também de como as coisas funcionam de forma mais global. Fiz um projecto na Índia, não como fotógrafa, mas a distribuir medicamentos, e essa organização era liderada por indianos e também ajudava a comunidade a nível da educação. DR De que forma é que esse projecto na Índia influenciou a PWB? Muitas vezes estas comunidades estão distantes das grandes cidades e quando as crianças são enviadas para as escolas deparam-se com a separação consoante as suas castas. Então o que esta organização fazia era levar as escolas para as comunidades, levar os professores para as aldeias a fim de resolver o problema, uma vez que havia um grau de iliteracia muito grande nestas comunidades. Vi o quão incrível isso era e tirei fotografias. Voltei à universidade e tentei explicar o que tinha visto. Comecei a mostrar as fotografias e as pessoas compreenderam, vi que a comunicação através da imagem era muito mais efectiva. Foi aí que percebi a importância do storytelling, porque era uma académica e explicava as coisas através de documentos, e tinha de ser credível. Mas através do storytelling havia uma grande ligação às emoções, com uma grande conexão às pessoas. Com essas imagens conseguir reunir dinheiro suficiente para essa organização criar mais nove escolas. Ao invés de pensar “deveria obter mais dinheiro para construir mais escolas”, decidi apostar no poder do storytelling e tentei criar esta ONG que poderia ajudar estas organizações através dessa vertente. Esteve na Indonésia, na ilha de Sumatra, e lidou de perto com a problemática da destruição de florestas e do habitat natural dos orangotangos devido à extracção do óleo de palma. Que ambiente encontrou quando chegou à ilha? A primeira vez que fui à Indonésia foi em Janeiro de 2015. No início estava como muitas pessoas, muito zangada com a questão da extracção do óleo de palma. Quando chegamos à Indonésia a primeira coisa que vemos são palmeiras e mais palmeiras. Ao início parece bonito, mas depois percebemos a quantidade de água que está a ser retirada e de como essa extracção está a destruir as florestas e o meio ambiente. Para mim o mais importante era a forma como essa extracção estava a afectar as pessoas. Na Indonésia, da perspectiva da preservação biológica e da conservação, não olham para as pessoas, mas sim para as florestas e a vida selvagem. Se virmos televisão, percebemos que os indonésios que estão ligados à extracção do óleo de palma dizem que é necessário fazer uma escolha, ou seja, preocupar-se com as pessoas ou com os orangotangos. Claro que a decisão vai para as pessoas. Percebi que as comunidades que vivem no meio das plantações de óleo de palma têm problemas com o acesso à água e não fazem muito dinheiro. Estas pessoas vivem rodeadas pela natureza, em pequenas aldeias, e não deveriam ter de comprar água. Se houver um boicote ao óleo de palma isso vai resultar na devastação destas famílias. Sumatra ainda enfrenta uma guerra civil ligada às províncias muçulmanas e existem ainda problemas a outro nível criados pela colonização. A última coisa que os locais precisam é que os estrangeiros lhes digam que a indústria do óleo de palma tem de ser alvo de um boicote. Os países estrangeiros que compram o óleo de palma contribuíram para a destruição de paisagens e tornaram-se ricos… o que eu gosto da organização local que está ligada a este projecto [Orangutan Information Center] é que não é liderada por estrangeiros ligados à área da conservação, mas é uma entidade gerida por locais que lutam muito por obter credibilidade e obter fundos. Tentam ajudar as pessoas ligadas à sua terra, levando-as a participar em acções de reflorestação e fazê-las ver que, dessa forma, a água regressa, e que também podem fazer dinheiro assim, que é a solução. Não é perfeita, mas é o que está a acontecer, o que é incrível. Sente que mudou em muito a vida da comunidade com este projecto? Os fotógrafos e outros expedicionários com os quais trabalhei reuniram dinheiro suficiente para preservar mais de 10 hectares de terreno, e também conseguimos mais atenção mundial de empresas, como é o caso da Lush [marca de sabonetes naturais], que se envolveu com o nosso trabalho e devido a essa parceria uma grande dimensão de palmeiras que tinham sido destruídas com a extracção do óleo de palma voltaram a ser plantadas. Neste momento o foco é juntar dinheiro, através das fotografias e do projecto de storytelling, para restaurar esses hectares destruídos. Eles fazem um trabalho sob vários ângulos e também é dada atenção aos orangotangos, a fim de encontrar pessoas que concedam patrocínios para apoiar estes animais. Temos uma longa parceria com esta entidade e o trabalho nunca está terminado. Nesse projecto teve ligação com as autoridades locais? Sempre, tudo o que fazemos tem de ser assim, porque na Indonésia a situação política é muito difícil. O advogado de uma das associações foi assassinado e há dois meses dois jornalistas foram assassinados por escreverem sobre a extracção do óleo de palma. É um lugar muito difícil para trabalhar se não cooperarmos. Tem algum projecto pensado para a China? Já estive na China, mas neste momento não temos nenhum projecto a decorrer no país porque a situação política é muito difícil. É perigoso e há poucas ONG na China com as quais possamos cooperar, e também mesmo que queiramos trabalhar com elas corremos o risco de ver projectos rejeitados ou sermos presos, ou não obtermos o visto de entrada no país. É difícil para os locais começarem novas ONG ou algum tipo de movimento a esse nível. Ainda assim, quais são as problemáticas que considera mais prementes no país? Sem dúvida a questão dos direitos humanos e as mudanças climáticas. Penso que estão interligadas. Teríamos de ter uma boa ONG local a trabalhar connosco, algo mais comunitário.
João Luz EntrevistaValério Romão, escritor: “Esta é a terra do porque não?” No fim da residência literária que fez em Macau, Valério Romão segue para Lisboa com matéria-prima para escrever. Ainda não sabe bem o quê, nem em que moldes, mas daqui leva o absurdo, o paradoxo e um banho de cantonês, a poética língua que fala um pouco. Depois de escrever sobre temas como autismo e alzheimer, Valério Romão aponta a mira literária à sátira política, ao gozo do “lodaçal” [dropcap]O[/dropcap] que o trouxe a Macau desta vez? Venho numa residência literária, organizada pela Capítulo Oriental, e patrocinada pela Casa de Portugal em Macau e Fundação Oriente. Venho essencialmente porque da primeira vez que estive cá, em 2017, fiquei surpreendido com o meu grau de ignorância em relação à cultura chinesa e maravilhado com o tanto que havia para descobrir. E, de facto, Macau é um sítio seguro, porque tens um pé na China e outro em Portugal e podes mover-te com relativa familiaridade entre mundos e segurança e podes começar a descobrir o que é a China, sem te sentires completamente perdido. Qual o resultado da residência? Vai publicar alguma coisa pela Capítulo Oriental? Quero muito escrever qualquer coisa para o Hélder Beja, até porque sinto que, de alguma forma, lhe devo isso por todo o esforço que ele colocou em trazer-me cá e proporcionar esta residência. Não sei ainda se vai sair alguma coisa ou o que vai sair. Primeiro, a ideia é de digestão. Para um ocidental, há aqui muito estímulo para absorver em tão pouco tempo. Mas, de facto, a ideia é produzir qualquer coisa. Não sei bem em que moldes, se ensaio, memórias, conto, não sei se escreva qualquer coisa focada em Macau, ou com um pé em Macau, talvez um pouco mais abrangente. Tem escrito durante o tempo que cá está? Não. Só tomo notas. Acha que a vida nesta cidade é conducente à escrita? Sim. O problema de Macau é que é tão interessante que não dá vontade nenhuma de estar sentado numa escrivaninha com um computador a perder as coisas que estão a acontecer lá fora. Esse é que é o problema, porque quando queres escrever mandam-te para o Gerês, ficas lá, não há nada para fazer. Macau tem tanta vida que sentes sempre que estás a perder qualquer coisa se ficares a escrever. Portanto, o melhor é andar com um caderno, como eu ando, tirando notas. Aliás, para mim, nem são as notas que me interessam, mas o que fica na memória. Esta estadia foi de… Um mês e uma semana. O que acha da vida nesta cidade. Agrada-lhe a ideia de morar em Macau? Via-me a morar em Macau, mas Macau tem um problema. Mas antes disso, tem a vantagem de ser muito user friendly, os transportes funcionam bem, é uma cidade super segura, consegue-se viver aqui perfeitamente. O meu problema com Macau é que ao nível de diversidade de oferta cultural não é propriamente a cidade mais rica. Mas isso pode ser colmatado. Estamos a uma hora de Hong Kong, a duas horas de Taiwan, muito perto de Shenzhen, ao lado de Zhuhai. Há muita coisa para ser vista. Macau é, basicamente, um enclave a partir do qual se pode ir para muitos sítios. Mas via-me claramente a viver aqui, tirando o Verão que é insuportável. DR O que acha que vai levar de Macau? Já estou naqueles últimos dias em que sinto, por um lado, a vontade de estar com o meu filho e com toda a gente em Portugal e, ao mesmo tempo, a sensação de que os dias estão a acabar e não queria que fosse assim. Sinto que devia ter feito muito mais coisas, mas acho que isso sente-se sempre que vais a algum sítio. Embora eu tenha a sensação também de que aproveitei bastante a minha estadia para ver muita coisa, mesmo que inútil. A colecção integra e tem espaço para o desperdício. Acho que o desperdício também funciona, porque para mim o ponto arquimédico desta cidade e, provavelmente, da China é o paradoxo. Sendo o desperdício integrável nesse paradoxo acho que funciona. Acho que vou daqui com o kitch e com a beleza sofisticada, com as coisas mais banais da rua e com as coisas mais estranhas. Tudo isso, numa espécie de dialéctica que não se resolve, e que é boa porque não se resolve. O que destaca entre as coisas estranhas que compõem este puzzle paradoxal? Acabei de vir de um ensaio de ópera chinesa numa casa de chá. Ontem fui a Zhuhai e encontrei uma cabine para dispensar vinhos. Fazes o scan de um código QR, pagas, abres a porta e levas o vinho. Havia uma daquelas máquinas de agarrar peluches, mas era com Pringles. Porque não? Alguém pensou nisso, porque não? Esta é a terra do porque não?! ‘Ah, a gente não acredita no Natal, mas podíamos fazer um presépio. Porque não? Acha que estes detalhes o vão enriquecer? O García Márquez dizia ‘eu não inventei nada. Tudo o que escrevo, ouvi, vivi, ou vi’. O realismo mágico é, de facto, muito mais fácil de fazer na América do Sul, ou em África, do que propriamente na Europa, onde a convenção científica estruturou o teu pensamento para não acreditar em determinadas coisas, ou achá-las, simplesmente, fantasiosas. Aqui não é bem a convenção científica ou o realismo mágico, mas é todo o sistema de absurdos que, de certa forma, funcionam. Uma pessoa leva isso e leva ferramentas, é como se tu viesses buscar matéria-prima para depois trabalhar. Hoje, na Ilha Verde, um local de grande densidade populacional, apareceu uma vaca no meio trânsito. Também vais ao Mercado Vermelho vês aqueles peixes todos retalhados com o coração a bater. E perguntas-te porquê? E a resposta é porque não? Como se tem dado com o banho de cantonês? Quando voltei para Lisboa depois de ter cá estado a primeira vez, acabei por começar a aprender cantonês. O meu cantonês é fraquíssimo, mas dá para perguntar quanto é que custa, perceber os números, responder, perguntar o que é. Mas isso também é interessante. O cantonês e o mandarim, embora sejam duas línguas diferentes, têm estruturas de formação e de sintaxe muito semelhantes e uma gramática praticamente igual. O que é engraçado nestas línguas, ao contrário das nossas, para além de serem tonais, são contextuais. Qualquer palavra metida num sítio diferente envolve e produz um significado diferente, dependendo da palavra que está atrás, ou que está à frente. A pessoa só percebe a frase no fim, como no alemão. Isto para mim é muito interessante, porque acho que é a língua mais poética que já conheci até agora. Tu não dizes ‘cuidado’, dizes ‘coração pequeno’. Isso é qualquer coisa. Porque quando tu te aproximas de um objecto que te assusta o teu coração encolhe. Podia dar mil exemplos, isto é absolutamente fascinante para uma pessoa que trabalha com palavras, que é como fazer uma tradução do pensamento. Acho que eles conseguiram fazer uma tradução mais imediata, porque não trabalham com palavras, mas sim com imagens. E o pensamento é estruturalmente feito de imagens. Apesar da linguagem estruturar o pensamento. É muito interessante seguir este percurso, este filão da língua chinesa porque isso pode modificar radicalmente a minha forma de escrever. Certamente, alguma da minha forma de pensar. Não há ‘adulto’, há uma ‘pessoa grande’, é como uma criança a falar. Quando pensas que já nos esquecemos do que é ser criança e há uma língua que te permite, de alguma forma, reaproximares-te disso, nem que seja um bocadinho, é fascinante. É uma forma de ligar as coisas de uma forma diferente. Terminou a trilogia das Paternidades Falhadas, o que se segue? São três livros relativamente pequenos, mas que me deram um trabalhão. Parece muito blasé de se dizer, mas esgotaram-me. Foram três livros muito intensos. São temas fortes e que me mantiveram naquela espiral de produção durante bastante tempo. Agora quero fazer uma coisa completamente diferente, muito mais cómica, diria que burlesca. Eu não sou de crítica social ortodoxa, do tipo “a direita é uma merda, porque” e “a esquerda é uma merda, porque”. Acho que a direita e a esquerda, enquanto ideias, têm coisas boas e más, uma e outra. Acho é que a esquerda e a direita portuguesa não existem, são ambas uma merda, porque não têm que ver com ideologia, a ideologia é do partido, da conveniência partidária, da compra de votos e dos lugares para os rapazes. Aquela coisa do jobs for the boys sempre existiu, no Cavaco, no Guterres, no Durão e no Sócrates nem se fala porque é um caso de polícia, claramente, seja ou não condenado. Quero escrever qualquer coisa que vá um bocado no sentido, não de desmascarar esta gente, mas de gozar com eles como eles devem ser gozados. Como devem ser pisoteados de uma forma cómica e maltratados. Fazer uma espécie de caricatura literária de toda essa gente que se arvora em político, em líder e em “ser cá da malta” ao mesmo tempo que é tão patente o narcisismo e egoísmo que essas pessoas até se coçam para dentro. Esse tema não será ainda mais pesado. Mergulhar nesse mundo não será pior que mergulhar no mundo do autismo e alzheimer? A política é um cancro maior. Não vejo um programa de televisão, não leio uma entrevista desta gente. Leio pouquíssimo dos jornais para não me expor à neurose deste lodaçal a que em Portugal se resolveu chamar política. Preferia tomar banho numa pocilga de estrume. Porque isto de facto é uma coisa que ao nível de um país civilizado, qualquer uma destas pessoas ao fim da terceira frase que proferissem já tinham saído do poder. O grau de tolerância em Portugal é enormíssimo. Parecemos uma vítima de violência doméstica, habituada à violência, e que ocasionalmente quando pensa em fazer qualquer coisa para acabar com ela, sente que é culpada por ela. Uma espécie de síndrome de Estocolmo político. É, e nós fomos reféns desta escumalha. O meu sonho é exportar o Parlamento, serem só suecos, dinamarqueses, alemães, franceses. Nem um português. Por mim, não havia um político português em Portugal. Meritocracia em Portugal? Mais facilmente encontrava um unicórnio gay.
Andreia Sofia Silva EntrevistaLeonel Alves, advogado e ex-deputado, sobre novo Governo: “Macau está de parabéns” Leonel Alves considera que os nomes anunciados esta segunda-feira que farão parte do novo Executivo, liderado por Ho Iat Seng, Chefe do Executivo eleito, revelam, sobretudo, grande conhecimento de causa. O advogado, que esteve na Assembleia Legislativa 33 anos, espera que Sam Hou Fai continue a ser presidente do Tribunal de Última Instância. Quanto às políticas adoptadas na área da videovigilância, Leonel Alves assume que é preciso fiscalização não apenas de entidades públicas como de privados em caso de abusos Numa primeira leitura, que comentário faz aos nomes anunciados esta segunda-feira? [dropcap]N[/dropcap]ão há grandes surpresas. Os nomes são todos bons, são pessoas com conhecimento das realidades de Macau em cada um dos sectores, de maneira que Macau está de parabéns, vamos ter bons secretários e bons titulares dos principais cargos públicos, todos eles já conhecedores daquilo que deve ser resolvido nos próximos anos. A nomeação do procurador-adjunto para o CCAC é um bom nome? Chan Tsz King esteve ligado ao processo Ho Chio Meng… E não só, esteve ligado aos processos de Ao Man Long e teve muito ligado a todos os processos quentes, chamemos-lhe assim, a todos os processos de corrupção em Macau. Portanto é um conhecedor da matéria e poderá contribuir para liderar esta importante entidade de Macau. É então um nome que tem o apoio das autoridades não apenas de Macau como da China e é um sinal de uma política de combate à corrupção? Creio que é uma personalidade adequada para o desempenho dessas funções dentro do quadro traçado pelo Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, de haver uma Administração transparente e incorruptível. O secretário para a Economia e Finanças não está muito ligado ao sector empresarial ou do jogo… Mas como ouvi na conferência de imprensa, é um responsável do IAM e com uma ligação bastante directa aos assuntos relacionados com as Pequenas e Médias Empresas (PME). Foi a explicação que ouvi do Chefe do Executivo e é a pessoa adequada para a prossecução de uma política visando também promover e dinamizar este importante sector da actividade económica de Macau constituída pelos pequenos e médios empresários. Em relação a outros assuntos da área financeira, dos jogos de fortuna e azar, obviamente que o senhor Chefe do Executivo terá uma assessoria adequada para dar as informações e os pareceres. Na área da Administração e Justiça entra André Cheong, já com provas dadas. Que expectativas deposita neste nome? Já tive a oportunidade de trabalhar com ele em alguns diplomas jurídicos. É uma pessoa conhecedora do mundo do Direito de Macau, da sua realidade jurídica e das suas carências e das áreas que devem merecer melhoramento. No que diz respeito à Administração Pública, ele próprio diz que é funcionário público há muitos anos, portanto não é um desconhecedor desta matéria e de acordo com as coordenadas do CE obviamente que dentro de um ano ou menos do que isso haverá notícias sobre a tão desejada reforma administrativa de Macau. Que balanço faz do mandato de Sónia Chan à frente da mesma tutela? Desejo-lhe o melhor possível. Houve melhorias na área do Direito e da Administração Pública, é pena que o timing para alguns diplomas não tenha sido suficiente para que determinados diplomas pudessem ser aprovados e entrassem em vigor. Refiro-me à alteração do Código do Processo Civil, por exemplo, e de algumas carreiras específicas na área da Função Pública. Foram trabalho feitos ao longo dos anos e o tempo não foi suficiente para que fossem tornados públicos e discutidos nos órgãos próprios, neste caso, a Assembleia Legislativa. Alexis Tam sai do cargo de secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Foi um governante atento às culturas portuguesa e macaense, acredita que Ao Ieong U poderá seguir o mesmo caminho? Daquilo que ouvi do Chefe do Executivo [eleito], ele escolheu o melhor elemento da Função Pública que deu provas da maior eficiência da nossa máquina administrativa, e tenta usar os conhecimentos da nova secretária para introduzir melhorias funcionais nas áreas desta secretaria, como a assistência social, saúde, cultura e educação. É uma aposta na eficiência e no uso das novas tecnologias. Há uma aposta na manutenção com os nomes de Raimundo do Rosário e Wong Sio Chak, sobretudo no que diz respeito a projectos essenciais a Macau. Houve uma preocupação de continuidade? Há dois aspectos. O primeiro é a capacidade técnica de dar continuidade de concretizar projectos de grande volume para Macau, e por outro lado o Chefe do Executivo salientou o carácter impoluto desta personalidade no desempenho desta função, que exige de facto a presença de uma pessoa com uma grande base de ética e moral a fim de evitar situações que aconteceram no passado relativamente a um dos secretários. É uma tutela permeável e encontrou-se o melhor elemento de impermeabilização (risos). No caso da tutela da Segurança, não teme evoluções mais negativas relativamente à questão da videovigilância? Não tenho receios nenhuns. O uso das novas tecnologias é um factor essencial. Mas as novas tecnologias também podem ter um efeito contraproducente, designadamente no que diz respeito à protecção da privacidade das pessoas. Em Macau temos instituições, tal como a Comissão Fiscalizadora das Forças de Segurança de Macau, temos uma imprensa livre, organizações, cidadãos e deputados que também têm de cumprir o seu dever de evitar que situações de violação à lei aconteçam e que essas notícias sejam encaminhadas para os órgãos competentes a fim de a polícia cumprir rigorosamente o que está escrito na lei. Essas tecnologias existem para combater a criminalidade, ou seja, para servir o interesse público de encontrar quem é o autor de um crime, mas as entidades que têm acesso a essas tecnologias não podem abusar delas, e quem abusa tem de ser devidamente punido. Também tem de haver uma maior fiscalização quer pública quer privada, quer através da Comissão Fiscalizadora quer através dos jornais, por exemplo. Chegou a ser avançado o nome do Ip Son Sang como possível substituto de Sam Hou Fai para a presidência do Tribunal de Última Instância, mas Ip Son Sang mantém-se como Procurador do Ministério Público. Espera uma saída de Sam Hou Fai? Nunca ouvi falar nisso. A nomeação dos juízes, e também do presidente do TUI, está sujeita a um processo próprio, liderado por uma comissão independente de magistrados. Acho que Sam Hou Fai tem servido muito bem o lugar de presidente do TUI, e eu como cidadão e advogado gostaria de continuar a vê-lo exercer essas funções.
Hoje Macau EntrevistaCarlos Monjardino critica a “fraca” sociedade civil de Macau O presidente da Fundação Oriente, Carlos Monjardino, considera que em Macau nunca existirá uma situação parecida com a de Hong Kong, porque a sociedade local é “fraca”, reflexo duma administração portuguesa mais permissiva em relação à China. Além disso, o ex-governante critica a falta de estratégia portuguesa na abordagem à China [dropcap]”E[/dropcap]m Macau não vai haver nunca uma coisa igual ou parecida ao que aconteceu em Hong Kong”, afirmou Carlos Monjardino, em entrevista à Agência Lusa. No território onde desempenhou funções executivas “não há fagulhas” e as sociedades civis dos dois territórios do Delta do Rio das Pérolas não têm nada a ver uma com a outra: “uma é muito forte, a de Hong Kong, a de Macau é fraca”. Para o presidente da Fundação Oriente e antigo número dois do Governo de Macau nos anos de 1980, a diferença tem apenas uma explicação: “os ingleses e os portugueses são completamente diferentes e tudo o que foi implementado em Macau tem claramente a ver connosco e o que foi implementado em Hong Kong tem a ver com os ingleses”. Ora, “os ingleses têm uma mentalidade completamente diferente da nossa”, rematou. Por isso, “a sociedade de Macau aceita mais algumas imposições de Pequim”. E os chineses “acham que Macau é um bom aluno, em contraponto ao que se passa em Hong Kong”. Para Carlos Monjardino, “a questão dos protestos em Hong Kong começou por uma pequena fagulha”, numa referência ao projecto de lei, apresentado em Abril, que permitiria a extradição de suspeitos de crimes de Hong Kong para a China continental e que esteve na origem das manifestações e protestos violentos desde Junho. Essa “decisão de as pessoas de Hong Kong poderem ser mandadas para serem julgadas na China, obviamente foi um disparate”, considerou Monjardino. E para o presidente da Fundação Oriente a medida faz parte de “um processo que o Presidente da China tem como um dos principais objectivos no mandato, a reunificação”. “Só que as coisas não podem ser feitas assim”, defendeu. Para Monjardino, todo o processo “foi bastante mal gerido” pelas autoridades: “A senhora que está em Hong Kong, coitadinha, procura fazer o melhor que pode, mas não consegue, até porque não é ela que decide, quem decide é Pequim”. Para o presidente da Fundação Oriente, Carrie Lam “aguentou o primeiro embate até ao máximo, até que Pequim percebeu que não podia continuar a insistir”. O ex-governante de Macau considera que Macau só poderá retirar a “curto-prazo” benefícios económicos da situação de instabilidade em Hong Kong. “Macau, a curto prazo, acaba por beneficiar” economicamente da crise da cidade vizinha, mas “a médio prazo não, porque a questão de Hong Kong vai-se resolver, espero que sem problemas de maior, mas não tenho tanta certeza”, afirmou Carlos Monjardino. Para o presidente da Fundação Oriente, Macau poderia também aproveitar a situação de instabilidade no território vizinho de Hong Kong “para atrair capitais”, mas esse tipo de mercado “não existe praticamente”. Carlos Monjardino sublinhou, porém, que espera que Pequim não use uma posição de força na resolução da situação em Hong Kong. “Seria um erro para Pequim”, disse, sobretudo “depois de Tiananmen”, referindo-se aos confrontos ocorridos na conhecida praça da capital chinesa, em 1989. O presidente da Fundação Oriente lembrou que hoje é tudo muito mais mediático do que era em 1989, pelo que “toda a gente no mundo inteiro está a ver a reacção de Pequim”. Ora, a China não pode expor-se a uma crítica internacional massiva por uma posição eventualmente mais dura que venha a tomar, considerou. Morte às portas Em Macau, a extradição de cidadãos para serem julgados na China acontece “há muito tempo”, lembrou Carlos Monjardino. “Já nos tempos em que eu estava em Macau (…) havia pessoas que tínhamos de recambiar para a China, alguns ilegais”, recordou. A eventual protecção jurídica aos cidadãos que vivem em Macau para não serem julgados sob o regime continental é algo que “não “está previsto, especificamente”, explicou Carlos Monjardino. Assim, “quando havia um caso de um crime grave perpetuado na China e a pessoa depois se vinha refugiar em Hong Kong ou em Macau, a China tinha razão de pedir a sua extradição”, relatou. “O problema é que se misturam as coisas graves com as que não são graves e há casos que a China quer julgar do outro lado, embora a gente tenha uma justiça completamente diferente deste lado”, sublinhou. Por isso, diz ter sido crítico relativamente a “alguns governos de Macau”, precisamente pela “permissividade com que encararam, sempre, algumas das exigências por parte de Pequim.” No tempo em que esteve em Macau, lembra-se do caso de um indivíduo que Pequim pediu para ser entregue e julgado na China continental. No dia seguinte, o Governo de Macau, ainda sob administração portuguesa, soube que esse cidadão tinha sido julgado sumariamente. “Nós soubemos que naquela noite ele foi morto junto das Portas do Cerco”, na fronteira, afirmou. Porém, assegurou, que um cidadão chinês “não é tratado da mesma maneira” pela China que um cidadão que “tenha passaporte português”. “Como a maioria dos macaenses têm passaporte português, esses têm uma protecção natural. Agora, os chineses que estão a viver em Macau não”, sublinhou. Ponte de passagem O presidente da Fundação Oriente considera também que a China aproveita “muito bem” a relação histórica com Portugal, país “fácil” para investir que a ajuda a alcançar metas na Europa e África. Carlos Monjardino defende que os investimentos chineses em Portugal estão ligados à “hegemonia” que Pequim quer ter nesta parte do mundo. “Agora percebe-se que uma das coisas que os chineses querem são os portos”, num caminho “eminentemente político e económico”, afirmou Carlos Monjardino. “Isto não tem nada a ver com cultura, tem que ver com uma hegemonia, ou com uma influência, que os chineses pretendem ter nesta parte do mundo”, reforçou o antigo secretário-adjunto em Macau com responsabilidades na área da Economia. Para o presidente da Fundação Oriente, a China olha para Portugal como “um país fácil em termos de investimento, em termos de bem-estar”. Sobre o investimento chinês, Monjardino destaca que Portugal tem falta de capital estrangeiro, mas é preciso que Lisboa estabeleça limites. “O que é estratégico não deve ser de chineses, japoneses, franceses, nem de ninguém. Deve ser público”, disse, considerando que “a qualidade do investimento é mais importante que a quantidade”. No entender do líder da Fundação Oriente, a posição de Portugal face à China tem-se mostrado “um bocadinho subserviente”, um comportamento que não é bem visto por Pequim. “Os chineses têm muito respeito pela verticalidade das pessoas, e quando as pessoas são muito subservientes (..,) eles não apreciam. Se calhar gostam porque lhes dá jeito na altura. Mas preferem alguém que seja firme”, defendeu. Além de investirem em Portugal para assegurar uma posição na Europa, Pequim também precisa de Lisboa para ter acesso a África. O reforço do ensino do português mostra hoje a importância de Portugal como instrumento para a influência chinesa em partes do mundo. Segundo Monjardino, em Macau não se fala mais português do que quando a administração era portuguesa. No entanto, “se me disser que se fala mais inglês do que quando lá estávamos eu digo-lhe que sim”, concluiu. Teoria da relativização O presidente da Fundação Oriente avisa Portugal para seleccionar rapidamente áreas de investimento na China, como saúde, ou “muito pouco” ou “nada” sobrará de uma relação de 500 anos entre os dois países. Portugal “tem já muito pouco” para recuperar da relação histórica de 500 anos com a China, e já só conseguirá algum ganho se fizer “um esforço muito grande, e muito bem direccionado para sectores de actividade compatíveis com a dimensão”, oferecendo algo “útil” a Pequim, afirmou Carlos Monjardino. Na opinião de Monjardino, a saúde é um desses sectores da economia portuguesa com capacidade para investir no mercado chinês e com o qual Portugal ainda pode “dar qualquer coisa de diferente”. Para o presidente da Fundação Oriente, a saúde é uma área em que os chineses “estão a vir pedir aqui [conhecimento], comprando empresas portuguesas”. A Luz Saúde foi comprada “porque eles precisam do know how”, exemplificou. Na opinião de Monjardino, Portugal perdeu as oportunidades de negócio que poderia ter ganho antes da transferência da administração do território para a China e “agora é muito mais difícil (…) voltar a apanhar o comboio, porque o comboio já está em andamento há muito tempo”. Porém, para o gestor “há coisas” que Portugal ainda pode fazer em Macau, mas principalmente na China. “Macau é de facto uma plataforma que a gente quer que seja grande e muito importante, mas estamos porventura a dar-lhe importância a mais. Uma coisa é Macau outra coisa é a China. Macau pode servir de uma pontezinha para a China, mas não é garantido que passando por Macau, se entre pela China dentro à vontade”, frisou, defendendo uma maior aposta no vinho, têxteis, produtos farmacêuticos ou novas tecnologias. O que é preciso “é escolher os sectores em que Portugal tenha dimensão para poder chegar a um acordo com pés e cabeça com a China. E já não estou a falar com Macau, estou a falar com a China em geral, porque Macau é um microcosmos”, reforçou.
Hoje Macau EntrevistaAICEP | Exportações para Macau subiram 23,1 por cento até Julho A delegada da AICEP disse à Lusa que as exportações portuguesas para Macau subiram 23,1 por cento nos primeiros sete meses de 2019, face ao período homólogo de 2018, para 17,7 milhões de euros. Além do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras [dropcap]”N[/dropcapos sete primeiros meses de 2019, as exportações portuguesas para Macau somaram um total de 17,7 milhões de euros, mais 23,1 por cento que em igual período de 2018, um sinal positivo para Portugal”, considerou Maria Carolina Lousinha em entrevista à agência Lusa. “O volume das trocas comerciais entre Portugal e Macau ainda tem muita margem de crescimento”, apontou a representante portuguesa, lembrando que “em 2018, o total exportado de Portugal para Macau foi de 27,8 milhões de euros”. Os produtos alimentares, nomeadamente os vinhos, aguardentes e medicamentos, tiveram um peso de 34 por cento do total das exportações portuguesas para este mercado, de acordo com os dados da AICEP, seguido pelos produtos químicos, com um peso de 24,9 por cento. Os produtos agrícolas representaram 18,4 por cento e máquinas e aparelhos valeram 16,1 por cento do total, diz a AICEP, destacando que “nos produtos alimentares o destaque vai para os vinhos, aguardentes e licores, conservas de peixe, azeite, bacalhau e enchidos”. As importações provenientes de Macau foram de 2,9 milhões de euros, mas sofreram nos primeiros sete meses deste ano uma quebra de 33 por cento face ao período homólogo do ano passado, passando de 1,7 milhões de Janeiro a Julho de 2018, para 1,1 milhões de euros nos primeiros sete meses deste ano. O número de empresas portuguesas exportadoras para Macau tem vindo a aumentar sustentadamente desde 2014, quando eram 364 as empresas que vendiam para o território, até chegar a 474 no ano passado, segundo os dados da AICEP. Os produtos químicos ocupam a esmagadora maioria dos produtos que Portugal compra a Macau, valendo 83,7 por cento do total. Além das Ruínas A delegada da AICEP disse também que, para além do tradicional sector do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras. “Sendo o turismo um dos motores da economia de Macau, com um recorde de 35,8 milhões de turistas em 2018, oferecendo serviços de qualidade, não só a nível de hotelaria de luxo, mas também a nível de restauração e serviços, temos aqui um potencial a explorar, nomeadamente, a nível de produtos da Fileira Casa (têxteis lar, porcelanas, cutelaria, mobiliário, iluminação, etc), nos quais Portugal tem empresas com capacidade de oferecer produtos de elevada qualidade, inovadores e reconhecidos internacionalmente”, disse Maria Carolina Lousinha. A responsável frisou em Macau acrescentou que “poderá ter também potencial, tendo em consideração as características deste mercado e a oferta portuguesa, o sector das Indústrias Culturais e Criativas, que abarca vários produtos que vão desde livros, cinema, dança e música, a design, pintura, arquitetura, entre outros”. Por outro lado, acrescentou, “outra área que merece atenção é a da Inovação e Empreendedorismo”, já que “Portugal e Macau, através de um memorando de entendimento, estão a desenvolver esforços no sentido de fomentar o intercâmbio e a cooperação entre os jovens empreendedores da China e dos Países de Língua Portuguesa, bem como de assegurar as instalações básicas e serviços de apoio de qualidade junto dos empreendedores juvenis através do recentemente criado ‘Centro de Intercâmbio de Inovação e Empreendedorismo para Jovens da China e dos Países de Língua Portuguesa’, em Macau”. Mais perto da China Questionada sobre o ponto de vista das empresas que tentam estabelecer-se em Macau como porta de entrada no gigantesco mercado chinês, Maria Carolina Lousinha argumentou que isso “depende muito do tipo de actividade que a empresa pretende exercer em Macau”, mas lembrou que “quem quer trabalhar o mercado chinês tem que estar próximo da China”. Nesse sentido, apontou, “com o projecto da Grande Baía, Macau passa a estar mais integrado na China continental, por isso, as empresas que tiverem presença em Macau, para além da proximidade, acabarão por beneficiar do acesso a um mercado de mais de 70 milhões de pessoas da Grande Baía”. A integração regional foi aliás, uma das vantagens apresentadas pela delegada portuguesa na entrevista à Lusa: “Tivemos, recentemente, uma situação que mostra como Macau pode funcionar como plataforma para as empresas portuguesas na China continental”, disse Maria Carolina Lousinha. “Com a grande procura de carne de porco, por parte da China, algumas empresas de Macau intermediaram o contacto entre empresas portuguesas do sector e importadores do produto em Zhuhai, que faz fronteira directa com Macau”, exemplificou, vincando que “Macau está a apostar na participação ativa na rede de zonas de livre comércio que têm vindo a ser criadas na China”. Por isso, acrescentou, “as zonas de livre comércio de Tianjin, Guangdong-Hong Kong-Macau, bem como a de Fujian, podem constituir oportunidades para as empresas portuguesas, caso sejam reunidos e cumpridos uma série de pressupostos que confiram vantagens comparativas, nomeadamente do ponto de vista da flexibilização das políticas alfandegárias, de um ambiente mais aberto ao investimento exterior de acordo com as práticas internacionais”. A participação portuguesa, via Macau, nestas zonas de comércio livre, “alicerçadas em sólidos planos de negócios e de marketing, podem conferir às empresas portuguesas o acesso facilitado ao mercado chinês”, concluiu a delegada da AICEP em Macau.
admin EntrevistaAICEP | Exportações para Macau subiram 23,1 por cento até Julho A delegada da AICEP disse à Lusa que as exportações portuguesas para Macau subiram 23,1 por cento nos primeiros sete meses de 2019, face ao período homólogo de 2018, para 17,7 milhões de euros. Além do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras [dropcap]”N[/dropcapos sete primeiros meses de 2019, as exportações portuguesas para Macau somaram um total de 17,7 milhões de euros, mais 23,1 por cento que em igual período de 2018, um sinal positivo para Portugal”, considerou Maria Carolina Lousinha em entrevista à agência Lusa. “O volume das trocas comerciais entre Portugal e Macau ainda tem muita margem de crescimento”, apontou a representante portuguesa, lembrando que “em 2018, o total exportado de Portugal para Macau foi de 27,8 milhões de euros”. Os produtos alimentares, nomeadamente os vinhos, aguardentes e medicamentos, tiveram um peso de 34 por cento do total das exportações portuguesas para este mercado, de acordo com os dados da AICEP, seguido pelos produtos químicos, com um peso de 24,9 por cento. Os produtos agrícolas representaram 18,4 por cento e máquinas e aparelhos valeram 16,1 por cento do total, diz a AICEP, destacando que “nos produtos alimentares o destaque vai para os vinhos, aguardentes e licores, conservas de peixe, azeite, bacalhau e enchidos”. As importações provenientes de Macau foram de 2,9 milhões de euros, mas sofreram nos primeiros sete meses deste ano uma quebra de 33 por cento face ao período homólogo do ano passado, passando de 1,7 milhões de Janeiro a Julho de 2018, para 1,1 milhões de euros nos primeiros sete meses deste ano. O número de empresas portuguesas exportadoras para Macau tem vindo a aumentar sustentadamente desde 2014, quando eram 364 as empresas que vendiam para o território, até chegar a 474 no ano passado, segundo os dados da AICEP. Os produtos químicos ocupam a esmagadora maioria dos produtos que Portugal compra a Macau, valendo 83,7 por cento do total. Além das Ruínas A delegada da AICEP disse também que, para além do tradicional sector do turismo, as Indústrias Culturais e Criativas e a Inovação e Empreendedorismo são apostas com potencial para as empresas portuguesas exportadoras. “Sendo o turismo um dos motores da economia de Macau, com um recorde de 35,8 milhões de turistas em 2018, oferecendo serviços de qualidade, não só a nível de hotelaria de luxo, mas também a nível de restauração e serviços, temos aqui um potencial a explorar, nomeadamente, a nível de produtos da Fileira Casa (têxteis lar, porcelanas, cutelaria, mobiliário, iluminação, etc), nos quais Portugal tem empresas com capacidade de oferecer produtos de elevada qualidade, inovadores e reconhecidos internacionalmente”, disse Maria Carolina Lousinha. A responsável frisou em Macau acrescentou que “poderá ter também potencial, tendo em consideração as características deste mercado e a oferta portuguesa, o sector das Indústrias Culturais e Criativas, que abarca vários produtos que vão desde livros, cinema, dança e música, a design, pintura, arquitetura, entre outros”. Por outro lado, acrescentou, “outra área que merece atenção é a da Inovação e Empreendedorismo”, já que “Portugal e Macau, através de um memorando de entendimento, estão a desenvolver esforços no sentido de fomentar o intercâmbio e a cooperação entre os jovens empreendedores da China e dos Países de Língua Portuguesa, bem como de assegurar as instalações básicas e serviços de apoio de qualidade junto dos empreendedores juvenis através do recentemente criado ‘Centro de Intercâmbio de Inovação e Empreendedorismo para Jovens da China e dos Países de Língua Portuguesa’, em Macau”. Mais perto da China Questionada sobre o ponto de vista das empresas que tentam estabelecer-se em Macau como porta de entrada no gigantesco mercado chinês, Maria Carolina Lousinha argumentou que isso “depende muito do tipo de actividade que a empresa pretende exercer em Macau”, mas lembrou que “quem quer trabalhar o mercado chinês tem que estar próximo da China”. Nesse sentido, apontou, “com o projecto da Grande Baía, Macau passa a estar mais integrado na China continental, por isso, as empresas que tiverem presença em Macau, para além da proximidade, acabarão por beneficiar do acesso a um mercado de mais de 70 milhões de pessoas da Grande Baía”. A integração regional foi aliás, uma das vantagens apresentadas pela delegada portuguesa na entrevista à Lusa: “Tivemos, recentemente, uma situação que mostra como Macau pode funcionar como plataforma para as empresas portuguesas na China continental”, disse Maria Carolina Lousinha. “Com a grande procura de carne de porco, por parte da China, algumas empresas de Macau intermediaram o contacto entre empresas portuguesas do sector e importadores do produto em Zhuhai, que faz fronteira directa com Macau”, exemplificou, vincando que “Macau está a apostar na participação ativa na rede de zonas de livre comércio que têm vindo a ser criadas na China”. Por isso, acrescentou, “as zonas de livre comércio de Tianjin, Guangdong-Hong Kong-Macau, bem como a de Fujian, podem constituir oportunidades para as empresas portuguesas, caso sejam reunidos e cumpridos uma série de pressupostos que confiram vantagens comparativas, nomeadamente do ponto de vista da flexibilização das políticas alfandegárias, de um ambiente mais aberto ao investimento exterior de acordo com as práticas internacionais”. A participação portuguesa, via Macau, nestas zonas de comércio livre, “alicerçadas em sólidos planos de negócios e de marketing, podem conferir às empresas portuguesas o acesso facilitado ao mercado chinês”, concluiu a delegada da AICEP em Macau.
Andreia Sofia Silva Entrevista(Des) Conexões | A nova liberdade de Guilherme Ung Vai Meng Mais de uma dezena de pessoas quiseram ouvir Guilherme Ung Vai Meng no Museu Berardo a explicar uma exposição fora do comum, feita a quatro mãos com o artista Chan Hin Io. Com (Des) Construção, o ex-presidente do Instituto Cultural assume ter feito coisas que nunca imaginou fazer. Agora resta continuar a pensar e a descobrir em novas formas de contar Macau [dropcap]S[/dropcap]ábado à tarde, Museu Berardo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Mais de uma dezena de pessoas reúnem-se para acompanhar a visita guiada à exposição (Des) Construção, com dezenas de peças onde se inclui a fotografia, a instalação e vídeo, da autoria de Guilherme Ung Vai Meng e Chan Hin Io, que formam o colectivo YiiMa. Mas antes de explicar uma exposição que revela o que Macau foi e que está, aos poucos, a deixar de ser, Ung Vai Meng, antigo presidente do Instituto Cultural (IC), começa com uma maneira de original de explicar aos interessados parte do que vão ver, ao ensinar os visitantes a trabalhar pedaços de bambu como tradicionalmente se faz no sector da construção civil em Macau. Os dedos enrolam a ráfia à volta de pedaços de bambu que é oriundo do Alentejo, e não da China. Ung Vai Meng vai explicando uma prática muito comum em Macau, mas que poucos das gerações mais novas querem aprender. A arte de trabalhar o bambu é retratada em duas imagens da exposição, bem como numa grande instalação presente numa das salas. “Há dois anos, quando visitei o Mosteiro da Batalha, que é lindíssimo, vi que ao lado havia um túmulo, e pensei em usar algo oriental e construir um pórtico”, contou aos visitantes. Pelo meio, há um ou outro comentário que escapa sobre as decisões do Governo, nomeadamente no que diz respeito à imagem dentro da antiga Central Termoeléctrica da Areia Preta, destruída para dar lugar a habitação pública. “É pena”, disse. (Des) Construção quase que pode ser chamado de símbolo da liberdade criativa que Guilherme Ung Vai Meng conseguiu desde que deixou a presidência do IC, num processo envolto em polémica, sobre o qual não quer falar. Reformado e a dar aulas de arte na Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau, Ung Vai Meng assume que a política nunca foi algo de que gostasse muito. “Penso que a vida artística não tem fim, sempre quero aprender e ver coisas novas. Antes da minha reforma nem pensava nisso. Desde que me reformei sou muito mais livre, também posso pensar em muitas coisas, ao nível da instalação, escultura, antes nunca tinha feito”, contou ao HM depois da visita guiada. Apesar de ter estado 34 anos no IC, Ung Vai Meng conta que nunca ambicionou cargos de topo como aquele que desempenhou. “Sou uma pessoa natural, não sou ambicioso. Se aparecer, tudo bem, se não aparecer, tudo bem na mesma. Quando me reformei nunca pensei que fosse fazer algo no Museu Berardo. Se nada aparecesse iria continuar a desenhar ou a pintar.” Imagens que ficam Visitar (Des) Construção é depararmo-nos com algo nunca antes feito. Em templos budistas com estruturas de bambu, em antigas casas chinesas com cartazes na parede, nas Ruínas de São Paulo, repousam fotografias com detalhes em que ninguém repara. Há depois o olhar dos próprios artistas cujos corpos se transformam em anjos. Ung Vai Meng explica ao HM que é como se fossem omnipresentes num território em constante mutação. “Sou pintor e registo paisagens, incluindo as de Macau. Também escrevi um livro sobre a Macau passada. Mas vivemos no século XXI e temos de procurar maneiras novas, ao invés de pintar ou escrever, para contar como era Macau. Por isso utilizámos os nossos corpos como testemunha para olhar o nosso mundo.” “Sabemos que o anjo tem características muito especiais, consegue aparecer em qualquer sítio, entrar, seja no século XIX, XVI, dentro de casa ou ao ar livre. Somos testemunhas que olhamos, pois os anjos são neutros, nem são maus, nem bons”, relatou. Esta descoberta constante faz parte da nova vida de Ung Vai Meng. “Trabalhei 34 anos como funcionário do IC e fiquei um bocado cansado. Quis procurar novamente a minha vida de artista. Continuei a pintar e a desenhar, mas em vez de só pintar tenho procurado maneiras de mostrar Macau.” O facto de a Macau mais tradicional estar a desaparecer não assusta ou afecta Ung Vai Meng, que considera esta mudança natural em muitas cidades, quer sejam asiáticas ou europeias. “Foi ideia do nosso curador, João Miguel Barros, de olhar para os espaços antigos de Macau. Tínhamos de encontrar uma lógica para organizar esta exposição e penso que isso não acontece só em Macau, mas também na Europa, em Portugal. Por isso em vez de escrever um livro para contar como era Macau, penso que a imagem visual tem mais poder. Por isso fiz este projecto.” Para o ex-dirigente político, “é normal que sítios ou coisas desapareçam”. “Ontem visitei amigos cá em Portugal e cada pessoa, ou família, em cada sociedade, as coisas estão a desaparecer. É normal, sou testemunha, não tenho respostas. Se algo desaparecer, vão aparecer coisas novas. Sempre olhei para a frente e muitas vezes o passado é um background para conhecer melhor o futuro”, frisou. Ung Vai Meng prefere não comentar as actuais políticas na área da cultura, numa altura em que o IC é liderado por Mok Ian Ian, depois de várias mudanças na liderança. Mas o artista assume que as especificidades culturais fazem de Macau um território especial. “Macau é um sítio onde a cultura é algo muito importante e não é fácil, pois nem todas as cidades lidam com esta profundidade cultural, incluindo o património. Para mim a cultura é um recurso que precisa de ser desenvolvido.” Questionado sobre o que poderia ter feito melhor enquanto esteve à frente do IC, Ung Vai Meng prefere nada apontar. “Fiz aquilo que tinha de fazer. Cabe ao público avaliar se o meu trabalho foi bom ou mau. Penso que tentei o meu melhor, não sei se é bom ou mau, cabe aos cidadãos avaliar. Mas em qualquer área, para um funcionário público, deve ser assim, não apenas na área da cultura.”
Hoje Macau EntrevistaRiqueza está mal distribuída em Macau, apesar do elevado PIB, diz Paul Pun Numa entrevista concedida à agência Lusa, a propósito dos 20 anos da RAEM, o secretário-geral da Cáritas lembrou as enormes desigualdades sócio-económicas que persistem apesar de Macau ter um dos maiores Produtos Internos Brutos do mundo. Paul Pun falou ainda das dificuldades para manter a Cáritas a funcionar [dropcap]O[/dropcap] secretário-geral da Cáritas Macau defende que o território possui um dos maiores Produto Interno Bruto (PIB) ‘per capita’ do mundo, mas que a riqueza está mal distribuída. “Somos muitos ricos ‘per capita’ mas a riqueza não está distribuída de acordo com o nosso desenvolvimento”, lamentou Paul Pun, responsável da instituição desde 1991, primeiro enquanto assistente do director, depois de 2000 na qualidade de secretário-geral. Para ilustrar a disparidade, Paul Pun deu o seguinte exemplo que respeita à evolução do território desde a passagem da administração para a China: “O Governo aumentou em 14 vezes, desde 1999, [a despesa] na área social, mas o preço da habitação cresceu 21 vezes”. Ou seja, concluiu, “não se conseguiu acompanhar a inflação, por isso não conseguimos alcançar o progresso”. Contudo, ressalvou, “hoje temos menos gente pobre porque com as políticas do Governo tem-se feito um esforço imenso para reduzir a pobreza e aqueles que têm menores rendimentos, e não apenas aqueles que mal podem sobreviver”. Isto porque “foram estendidos os limites a quem poderia beneficiar de apoio e hoje mais pessoas podem ser ajudadas”. O responsável da Cáritas Macau afirmou não defender um aumento dos impostos para garantir mais e melhor apoio social à população, especialmente um que incidisse sobre a exploração do jogo. “Aumentar os impostos podia ser uma forma, mas também poderia desencorajar o investimento. Acho que a situação actual está bem. Não estou a falar em nome da indústria do jogo”, ressalvou, com um sorriso. É que, frisou, “ao receber um terço do jogo, Macau já é o segundo território mais rico ‘per capita’ do mundo”. “Não devemos ser gananciosos”, disse, preferindo outra aposta: “Temos de saber como podemos usar melhor o dinheiro, isso é importante. Temos de planear como gastar dinheiro e construir infra-estruturas, estabelecer prioridades para não ter de suportar um fardo no futuro”. Dificuldades de gestão A Cáritas Macau providencia serviços sociais que abrangem os mais idosos e deficientes, passando pelo apoio dos mais jovens e menores, até às vítimas de violência doméstica. Com um orçamento anual na ordem dos 400 milhões de patacas, a instituição conta com 1.300 colaboradores. Destes, 90 são enfermeiros, 200 são assistentes sociais, sete são médicos e 20 têm funções como fisioterapeutas, terapeutas da fala e ocupacionais. Dos utentes, cerca de 800 são idosos que se encontram em lares e 500 pessoas portadoras de deficiência, sendo proporcionado cuidados ao domicílio a mais de 200 pessoas. Outros 600 idosos que vivem sozinhos, que mantêm alguma autonomia, são apoiados pela instituição, que providencia ainda um serviço de refeições ao domicílio a 500 pessoas na Taipa, Coloane e na zona norte da cidade. Perante estes números, Paul Pun disse faltar pessoal à instituição para enfrentar os futuros desafios e para garantir a expansão dos serviços de apoio social no território. O responsável sublinhou que a maior carência é ao nível do pessoal médico, nomeadamente de enfermeiras. “Não temos enfermeiras suficientes para enfrentarmos os desafios do futuro, pelo que não podemos expandir os nossos serviços. Precisamos de quem se dedique a servir as pessoas no âmbito da missão da Cáritas, seja remunerada [a prestação do serviço] ou em regime de voluntariado”, acrescentou. Paul Pun explicou que essa foi a razão pela qual a Cáritas já fez um apelo à comunidade das enfermeiras “para que se voluntariassem ou fizessem parte do pessoal em regime parcial”. O secretário-geral explicou que a expansão dos serviços passa não só pela admissão de mais utentes, mas em reforçar a resposta aos que já se encontram na instituição, com um foco, por exemplo, nos mais idosos e naqueles que apresentam constrangimentos ao nível da mobilidade. “O envelhecimento da população é uma realidade, mas não temos tempo para nos preocuparmos, temos que nos preparar e ensinar a nova geração a cuidar dos mais velhos, como o estamos a fazer”, frisou. Contudo, o maior desafio estrutural para o secretário-geral da Cáritas Macau passa pela capacidade de a instituição definir e reforçar a sua missão que integre “diferentes fés e etnicidades”. Se no passado a Cáritas era maioritariamente constituída por portugueses e chineses e respondia às suas necessidades, “agora há que contar com os migrantes, porque há cerca de 190 mil em Macau”, observou.