Carlos Morais José Editorial MancheteFestival Rota das Letras | Uma baixa, uma derrota [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] cancelamento da vinda de três escritores ao Rota das Letras, por ser considerada uma presença “inoportuna”, foi imposto ao director do festival através de um “conselho” oriundo do Gabinete de Ligação, que alvitrava a hipótese de lhes ser recusada a entrada na RAEM. Quer o Secretário Alexis Tam (responsável pela área da Cultura), quer o Secretário Wong Sio Chak, afirmaram desconhecer o assunto. Este último falou mesmo de um “rumor”. Certo é que os escritores não vêm e estamos perante um precedente perigoso e inexplicável. Ou seja: desde quando é que o princípio “Macau governado pelas gentes” caiu em desuso e o Gabinete de Ligação explica aos serviços de imigração quem deve ou não deve entrar na região? Quem governa realmente Macau? E a não ser o Executivo de Chui Sai On, deveremos ouvir o Gabinete de Ligação ou o Ministério dos Negócios Estrangeiros? Quem podemos responsabilizar por decisões como esta que, infelizmente, mancha a imagem de Macau no exterior e desassossega intelectuais e criativos aqui na terra? Na verdade, e poderá ser coincidência, no seu último discurso referente à RAEM, o primeiro-ministro Li Keqiang insistiu no princípio Um país, Dois Sistemas mas ter-se-á esquecido de invocar, como sempre tinha feito, a garantia de que Macau seria governado pelos seus residentes e não por Pequim. Será que algo mudou e não nos disseram nada? Ontem, em pleno segundo dia de programação, o ambiente no Rota das Letras era pesado e, obviamente, o tema geral das conversas passava pelo cancelamento da vinda dos escritores. Uma sombra vergava o ânimo das pessoas e muitas questões sobre o futuro dos nossos quotidianos em Macau, inevitavelmente, foram colocadas. A própria existência do Rota das Letras, um dos mais significativos eventos culturais da RAEM, perante esta baixa, foi questionada e posta em causa. E todos já saímos derrotados: a organização do evento, o público, os escritores, o Governo, o Gabinete de Ligação, a população da RAEM e, sobretudo, a imagem internacional da cidade. Que Macau é este e com que linhas nos cosemos? A Lei Básica é para cumprir ou vai ser alterada? O segundo sistema só existe no plano económico a partir de agora? E o que fazem Chui Sai On e os secretários, que poder realmente detêm? Se as mudanças constitucionais em Pequim já bastavam para causar apreensão, a actual situação em Macau também apresenta contornos inéditos e, porque estamos perante repressão, preocupantes. Precisamos de saber: até quando continuará a liberdade a passar por aqui?
Carlos Morais José EditorialSer lobo [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] Ano de Galo não foi, por muitas razões, de feição. Que o animal era bravo, bem o sabíamos, mas o aviso não evitou os sobressaltos, as convulsões, as guerras, as doenças, os desatinos. Os de nós que ainda aqui estão lembrar-se-ão de um ano de Trump, de Putin, de Xi Jinping. Noutro plano, de Duterte, Maduro, Kim Jong-un. Um ano a antever perigos, catástrofes, aniquilações massivas, secas e cheias, escândalos e, sobretudo, uma sensação de impotência perante o espectáculo do mundo. Neste século XXI não existem baias. Tudo parece ser possível, mesmo o que há muito pouco tempo se julgava impossível. E isto deixa-nos náufragos de bóia em bóia, no ciberespaço ou na vida. O Galo deixa-nos de crista murcha. Foi um ano que não prestou. Entra agora o Cão, de cauda hirta, desconfiado, a cheirar os cantos e a manter precavida distância. Há que o mimar, estender-lhe a mão e guloseimas, brindá-lo com festas sem de afagos o submergir. O Cão gosta de donos, não de mordomos. É um animal que num ápice nos sente e nos entende. Ele sabe o que aí vem. Raramente tem dúvidas e nunca se engana. Às vezes, mas só às vezes, é o dono que o leva ao engano, ao disparate, à dentada cega. Como escreveu Ptolomeu, a astrologia nada diz, mas já disse tanta coisa. Quanto mais não seja, elaborou uma lista de tipos, de carácteres, de previsibilidades. Errada ou certa, ela está aí para consulta. Melhor que o destino, é a fé. Avançar sem medo de rosnadelas ou de latidos da cãozoada. Acreditar em tudo e em nada, mas não nos contentarmos com o osso. Uivar à Lua. Esquecer a coleira. Numa palavra, ser lobo.
Carlos Morais José EditorialElla Lei e a obsessão [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]lla Lei tem, claramente, uma obsessão com os trabalhadores não residentes. Para a deputada, todos os males de Macau têm neles a sua origem. Os autocarros funcionam mal: a culpa é dos TNR. A internet é uma bosta: a culpa é dos TNR. As rendas atingem preços astronómicos: a culpa é dos TNR. Ou seja, em todas as suas intervenções, Ella Lei lança as culpas de qualquer situação para os TNR, uma táctica que Hitler usou com os judeus. Longe de mim querer comparar os dois, até porque me parecem ter motivações muito diferentes e a deputada não ter sequer metade da cultura geral do ditador alemão. Ao satanizar as pessoas que mantêm esta região especial em andamento, Ella Lei fomenta a xenofobia e o racismo, pretende instituir uma maior separação entre cidadãos de primeira e de segunda, enfim, esquece-se de todos os conceitos que enformam a cultura chinesa, dos quais destacamos a benevolência/humanidade (仁 ren) e a rectidão/justiça (義 yi). Por outro lado, dá muito jeito aos verdadeiros culpados das situações mais infelizes pelas quais passa a população, pois deste modo há sempre ali um bode expiatório que, ainda por cima, ninguém têm que os defenda. A deputada está sempre ali, pronta para lhes dar e atirar o ónus para outras costas. É estranho, aliás, no século XXI uma deputada chinesa ter esta obsessão. Para mim, devido à constante insistência na culpa dos TNR pelos males deste e do outro mundo, a razão deste comportamento foge da área das convicções políticas e refugia-se talvez na psicologia ou na psiquiatria. Ella Lei deve ter, de facto, um problema. Nestes casos, quando alguém odeia de forma tão irracional outrem, tal esconde, se calhar, uma atracção fatal pelo que se diz odiar. Será que no caso de Ella Lei, Freud explica e é dos seus sonhos que ela tem realmente medo?
Carlos Morais José Editorial MancheteEleições: Um derrotado chamado Governo [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau foi ontem a votos e não se pode dizer, desta vez, que as coisas tenham ficado na mesma. Não ficaram e a próxima legislatura provará que a correlação de forças se modificou, nomeadamente na ocupação do espaço mediático. Repare-se que vamos ter a maior representação de sempre de deputados “fora do sistema”: Ng Kuok Cheong, Au Kam San, Pereira Coutinho, Sulu Sou e, finalmente, à terceira tentativa, Agnes Lam. Se, por um lado, é preciso estar plenamente consciente de que estes deputados não terão força política para “mudar”; por outro lado, é quase certo que serão eles a ocupar a maior fatia do espaço mediático, interferindo na formação ideológica da população. Será então nesse espaço que a sua voz se fará ouvir com uma outra densidade e propagação, graças ao facto de serem deputados. Este facto não agradará ao Governo e, provavelmente, não agradará a Pequim. Contudo, se tivermos em conta o grau de descontentamento que a acção do Executivo (ou a falta dela) tem provocado na população, poderão agradecer aos céus a existência de “distracções” que roubam votos aos candidatos “fora do sistema”. Sem elas os resultados seriam ainda mais sintomáticos dessa crescente (ainda que silenciosa) insatisfação. E que “distracções” são essas? Trata-se, por um lado, das listas de “estrangeiros”, quer sejam de Fujian ou de Guangdong. Neste sufrágio, sobretudo o comportamento de Song Pek Kei teve consequências desastrosas e o grupo liderado por Chan Meng Kam perdeu um deputado. A menina Song continua na Assembleia Legislativa mas a sua credibilidade sofreu um rude golpe, que ela mesmo infligiu. Mak Soi Kun e Zheng Anting conseguiram a reeleição e pouco mais. Por outro lado, temos as listas dos “revoltados” por isto ou por aquilo, que querem qualquer coisa muito específica, como a malta do Pearl Horizon. Imagine-se que esta soma de insatisfações e revoltas dirigia votos para os candidatos “fora do sistema” e os resultados poderiam ser bem diferentes. Apesar dos “estrangeiros” e dos “revoltados”, que servem interesses muito específicos, não esquecendo igualmente Angela Leong, que consegue a reeleição, a presença de vozes dissonantes na AL é agora maior. E não só é maior como nos parece mais qualificada se acrescentarmos à existente na anterior legislatura os nomes de Sulu Sou e Agnes Lam. Mais jovens e melhor preparados do que a maior parte dos seus pares espera-se que tragam alguma inteligência e bom senso aos debates. Não poderemos falar de vitória nem derrota dos chamados tradicionais (Kaifong e Operários), embora Ella Lei tenha sabido manter os votos que a saída de cena de Kwan Tsui Hang poderia ter dispersado. São máquinas velhas mas ainda bem oleadas. Se olharmos com algum distanciamento, verificamos nestas eleições que o grande derrotado acaba por ser o Governo, as suas políticas e atitudes. O tufão Hato já não foi sintoma do distanciamento do Executivo em relação aos interesses da população: foi a prova. E isso caiu muito mal no goto de muita gente, deixando um sabor amargo difícil de apagar. A prisão e julgamento de Ho Chio Meng já tinham sido um descrédito mais do que evidente das autoridades da RAEM — lembremo-nos que já foram detidos e condenados um alto membro do poder executivo e agora um dos mais altos cargos do poder judicial. A inexistência de planos concretos para resolver as dificuldades da cidade exasperam o mais paciente dos cidadãos que não compreende, por mais discursos que lhe façam, por mais justificações que enumerem, como uma cidade tão rica está tão mal organizada e como os seus cidadãos não desfrutam de uma melhor qualidade de vida. E, de facto, é difícil de compreender. Por isso, é caso para ainda irem abrindo as garrafas de espumante: poderia ter sido pior. Mas preparem-se para enfrentar uma barragem de vozes diferentes na AL. Não sei é se essas vozes terão capacidade para mudar alguma coisa além acrescentarem barulho no ar. Esperemos que sim.
Carlos Morais José Editorial Manchete16 anos do jornal Hoje Macau [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os tempos actuais, a palavra “jornal” começa a ter um sabor arcaico. Face às novas tecnologias, este objecto de papel parece ter perdido grande parte da sua importância e, dizem, cada vez menos pessoas se dão ao trabalho (ou ao prazer) de desfolhar estas páginas impressas. No “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, ninguém tinha acesso a jornais, muito menos a livros. Apenas o líder tinha acesso a uma biblioteca e é comovente (e perigoso) o efeito num cidadão das obras completas de Shakespeare. Mais ou menos o mesmo se passa agora: a informação netificada, instantânea, de origem obscura, ultra-efémera, de importância menor, por um lado; e por outro os jornais sobreviventes, enquanto espaço de jornalismo, análise e crítica. Claramente, o Hoje Macau, no dia em que faz 16 anos, assume-se como pertencendo à segunda categoria. Queremos ser um jornal e não uma fonte anódina de informação em segunda mão. Queremos reflectir sobre os factos, analisá-los, de modo a abrir ao leitor a possibilidade de pensar neles ou mesmo de os recusar. Queremos exercer um pensamento crítico no fluxo incessante de notícias e estender essa crítica, sem rodriguinhos, aos que entendem colocar os seus interesses pessoais acima dos interesses colectivos. Queremos servir Macau e as suas gentes do modo que entendemos mais eficaz, no limite das nossas possibilidades: fazendo um produto digno, capaz de não envergonhar a comunidade que por aqui se exprime em português, seja como primeira ou segunda língua. É inegável que a língua portuguesa faz parte integrante e fundamental da identidade de Macau, mas cabe-nos a nós garantir a sua importância, a sua permanência e futuro. E queremos, sobretudo, que o Hoje Macau seja uma referência cultural activa (no sentido lato), na medida em que se assume como bastião da língua portuguesa e das culturas lusófonas. De algum tempo para cá, este jornal tem dedicado parte significativa das suas páginas a assuntos literários, artísticos e culturais, no sentido de desafiar os nossos leitores a arriscarem os seus passos por caminhos belos e profundos. Há mais de dez anos que publicamos semanalmente traduções de clássicos chineses, de poesia, de ensaios fundamentais para a compreensão do País do Meio. É um trabalho inovador, arriscado e, como quase sempre, talvez mal compreendido. Mas é esta a via pela qual pretendemos prosseguir. São 16 anos desiguais que se confundem com a existência da RAEM, também ela perturbada por inúmeros acontecimentos paradoxais e bastas contradições. Mas hoje sentimos estar mais certos do que nunca das nossas capacidades de existir por aqui como um produto singular, único, irrepetível, incopiável, e de mostrar uma outra cidade ao mundo — esta amálgama de culturas, tradições e modernidade que Macau encarna sem pudor nem consciência. É este, finalmente, o seu encanto e esperamos trazer alguma dessa magia para estas páginas. Sob pena de espelharmos um mundo baço, onde a escolha vacilaria entre a estupidez e o tédio.
Carlos Morais José EditorialCamilo Pessanha, 150 anos | Porquê celebrar? [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] muito estranho tudo isto. E contra os meus princípios: sempre disse detestar o aproveitamento póstumo dos poetas, dos escritores, dos artistas. Normalmente, são os políticos que o fazem. Eles citam, eles trauteiam, eles aproveitam, na maior parte os versos de gente que lhes voltaria a cara na rua. Milionários ou os seus servos não cessam de citar Camões, que morreu na miséria. Por exemplo, mas os exemplos seriam muitos, demasiados. Então por que razão me encontro no centro de uma celebração de Camilo Pessanha, se tenho uma opinião tão negativa dos que habitualmente cavalgam na obra alheia, por que razão me atrevo assim, despudoradamente, a montar a mesma sela? Pensei sobejamente sobre isto, até que entendi pôr de lado a minha repugnância egoísta e vaidosa. Afinal, o nome de Camilo Pessanha e a sua obra merecem ou não ser celebrados, lembrados, revificados? É claro que sim. E não será que a celebração deste poeta ultrapassa o campo da literatura, na medida em que a sua figura se espraia por vários universos? Obviamente. Camilo foi também cidadão português, naquela que era no seu tempo a mais distante colónia e aqui desempenhou diversos papéis, tornando-se num dos membros mais respeitados da sociedade de Macau. Isto apesar dos seus hábitos peculiares e da sua figura que, na altura tal como hoje, na pequena chuchumequice local, muitos haviam de considerar demasiado excêntrica. Camilo era, de certo modo, um maldito. Alguém de quem se diz mal. Alguém que é criticado pelos seus mores privados. E também pela sua intolerância face à estupidez, à cupidez, à maledicência que, infelizmente, ontem e hoje, grassa nesta e noutras terras. Ontem um guarda de uma empresa privada contratada para guardar o antigo tribunal, onde estou a montar este evento, insultou-me, ameaçou-me de porrada, porque eu não estava de gravata mas de calças de ganga e a trabalhar. Era chinês e foi estimulado por uma rapariga que eu não conhecia de lado nenhum mas que se achou no direito de me dizer que eu não podia estar ali. Fui paciente. Expliquei. Até que tive também de explicar, menos cortês, quando ela foi arrogante, que ela não me conhecia de lado nenhum para me dirigir a palavra. Aí o guarda avançou. Só que… eu podia estar ali. A trabalhar para a cultura de Macau. Às dez da noite. Faz parte das regras. Azar. Chegou um outro guarda, creio que filipino. De uma cortesia admirável. A partir daí e do momento em que mostrei o meu cartão, a coisa sossegou. O guarda chinês era daqueles que gosta de chutar para baixo e lamber para cima. Afinal podíamos trabalhar até à meia-noite. Claro. Foi uma cena lamentável e foi pena. Mas é isto. É preciso fingir, armar-se em bom, é preciso representar para se dar ao respeito nesta e noutras terras. Não basta fazer um trabalho honesto e limpo. Isso ninguém ou poucos reconhecem. E é também por isto que é necessário celebrar homens como Pessanha cuja dignidade não se mede pelo fato mas pelas obras. E isto é fundamental para nós como para todos os habitantes de Macau. E por isso é importante lembrar e celebrar.
Carlos Morais José Editorial VozesA próxima vez [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]oderíamos estar a falar de um governo paternalista, na boa tradição confuciana, em que os pais/Estado impulsionam os filhos/cidadãos no caminho de uma vida excelente. Mas não. Aqui o paternalismo traduz-se em dinheiro, como o pai que para não aturar os problemas do filho lhe dá do patacame para ele “ir ao cinema”. Ora isso significa que o Estado se esquiva a uma deriva educacional, preventiva, solidária, socialmente sustentável, para realizar o sonho de qualquer fanático ultraliberal: não intervir e ainda por cima dar dinheiro. Faz bem, faz mal? Ou antes pelo contrário? Perdoem-me os leitores, que isto não tem piada nenhuma, nem rabo de tufão por onde se lhe pegue. Uma catástrofe é uma coisa séria, que tem efeitos inesperados nos indivíduos e nas massas. Consideremos os aspectos positivos: uma catástrofe une as pessoas e motiva a acção. Nestes momentos, um governo precisa apenas de liderar, orientar, planificar, supervisionar, para que os esforços não se dupliquem, para maximizar a eficácia dos salvamentos e a celeridade das reconstruções. Um governo deve assegurar a continuidade dos serviços públicos com a rapidez que a sua importância justifica. Água, electricidade, telefones, internet, televisão, rádio, não podem permanecer inoperantes mais do que um breve espaço de tempo. E este é um trabalho do governo, junto com as concessionárias. Um governo tem de garantir a ordem e a normalidade nas ruas: não pode, por exemplo, assobiar para o lado quando táxis, mercearias ou hotéis se resolvem aproveitar da situação, demonstrando uma abjecta falta de solidariedade. Um executivo “normal” não faz ouvidos moucos a estas situações, não as ignora: protege o cidadão. No dia seguinte, um governo deve minimizar os efeitos perturbadores da catástrofes, ou seja, efectuar com rapidez a remoção de árvores caídas e de lixos diversos, reerguer as estruturas tombadas, garantir a circulação nas estradas e nas ruas, numa palavra, assegurar o regresso da ordem com a maior brevidade possível. Um governo que se defronta com uma situação deste tipo deita a mão a todos os recursos possíveis e a outros imaginários, perguntando-se, por exemplo, o que faz o destacamento do Exército da RPC no seu quartel e porque razão os garbosos soldados não aparecem a dar uma mãozinha. Como todos sabemos o governo da RAEM tem apenas 17 anos de experiência — em que, por exemplo, o actual Chefe do Executivo foi parte a tempo inteiro — e por isso não lhe podemos exigir que cumpra a sua responsabilidade com eficácia e determinação. Levantam-se dúvidas. Não há tempo para encomendar estudos? A população rosna, os deputados agitam-se. Há uma crise no Gabinete de Ligação. O que fazer? Investir a sério na prevenção e na educação a propósito de tufões? Fazer cumprir a lei no caso da qualidade das janelas? Criar um serviço de meteorologia “normal”, que consiga içar os sinais atempadamente? Avisar seriamente população e turistas da seriedade do evento, evitando-se com isso o deslizar de pessoas nos braços do vento? Punir severamente todos os que abusaram ou pretenderam abusar da situação? Não. Isso é tudo muito complicado, complexo, intrincado, polémico. O melhor é… Olha, dá-se dinheiro. O que se viu durante este tufão foi dramático, desgraçadamente dramático. Havia gente escondida em esquinas, acocorada em portas, no momento em que a força do vento atingia o seu apogeu. Parece que ninguém lhes disse que vinha ali um momento perigoso para as suas vidas. Não tinham cara de aventureiros em busca de emoções fortes. Estavam transidas de medo, molhadas, algumas eram arrastadas pelo vento. Ninguém os avisou e retirou das ruas? Não existe um veículo preparado para esse efeito? A água alagou “normalmente” o Porto Interior. Até quando temos de viver com esta “normalidade”? Mas a coisa não é fácil, já nos disseram. Possível, mas complexo. São obras complicadas, percebe. E, provavelmente, o dinheiro é necessário para qualquer outra coisa. Resta-nos exprimir a nossa melhor compreensão. Na China Antiga, rei que não entendia a Natureza nem sabia cuidar dos seus cidadãos em necessidade, corria o risco de perder o Mandato do Céu. O governo de Macau não corre esse risco: o Céu está confuso e o dinheiro tudo lava. Menos as vidas perdidas e as que se vão perder da próxima vez.
Carlos Morais José EditorialFórum Macau: Cartões não chega [dropcap]O[/dropcap] Fórum Macau foi uma iniciativa de Pequim de uma extraordinária importância para a RAEM. Não tanto por aquilo que até hoje tem sido feito por aqui, mas porque definiu, no longo prazo, uma estratégia para Macau. E, por muito que isso ainda possa custar a alguns dos actores desta praça, esta decisão da capital catapultou a região especial para fora de si mesma, obrigando-a à internacionalização. Macau não pode, aos olhos de Pequim, viver apenas do Jogo, pois tal não é conveniente para o país e pode ser fatal e desinteressante para a população. E também não chega a especulação imobiliária que tem feito a riqueza de alguns. É cumprindo a sua vocação de sempre (porta para a China) que Macau serve o país desde o século XVI. É pena que pessoas menos informadas, talvez aqui chegadas há pouco tempo, não metam de uma vez na cabeça que este é o caminho, que ele não é novo e que está aqui para lavar e durar. A ponte para os países lusófonos é uma óbvia fonte de diversificação, uma das poucas exigências de Pequim. Por outro lado, Portugal está em ano abençoado. Ele é o campeonato da Europa de futebol e a ONU; a geringonça, o turismo e o investimento estrangeiro. Mas o que me surge como mais curioso na relação com a China é o facto das empresas chinesas compreenderem a importância de terem quadros portugueses para as suas relações com os países lusófonos. Os portugueses, quando chamados pelos chineses, têm dado bem conta do recado e isso parece estar a dar os seus frutos. Ora esta mudança de paradigma tem a vantagem de ultrapassar o mero domínio dos números para se centrar nas pessoas. Como sempre dissemos, não existe cooperação entre países que possa ser reduzida a negócios. As relações interpessoais são fundamentais para estabelecer confiança, metas comuns, situações interessantes para ambos os lados. Como disse muito bem Fernanda Ilhéu, não basta trocar cartões, coisa que o Fórum Macau tem levado demasiado tempo a perceber. É preciso trocar ideias, analisar contextos, detectar os pontos de interesse comuns e as eventuais complementaridades. É preciso um maior conhecimento mútuo e esse surge através da cultura e das pessoas. Os números não têm país, não têm cara, nem vão à bola ao domingo. Os cartões, sozinhos, também não.
Carlos Morais José EditorialVenham mais 15 [vc_row][vc_column][vc_column_text] O Hoje Macau publica-se na RAEM há 15 anos [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]etesto aniversários e ainda mais elegias em moto próprio. É assim: sou mal disposto, nos padrões contemporâneos. Aliás, compreendo-os pouco. Não percebo, por exemplo, como hoje existem reverências a deuses que se sabem falsos, como nos submetemos a ditames que julgamos, ainda que intuitivamente, abomináveis. É, contudo, isso que vejo um pouco por todo o lado e, inclusivamente, neste jornal. É verdade: não somos imunes ao que classifico de universais da estupidez e da cupidez. Divulgamo-los, aceitamo-los, escrevemos inocuamente sobre eles. E tenho vergonha por isso mas não suficiente para fazer qualquer coisa, além de um suspiro, e evitá-lo. Somos, como é óbvio, obrigados a sobreviver neste oceano de inanidade a que se chamava “comunicação social”. Hoje já deve ter outro nome, qualquer coisa esquisita e desculpabilizável do que não fazemos ou não podemos fazer. Mas, sinceramente, Macau é um universo relativamente aparte. Daí ainda termos a convicção de que fazemos jornalismo – algo que no mundo real acabou no século XX – no limite da nossa capacidade de interpretar o local. Talvez seja mesmo essa nossa incapacidade que nos permite uma visão fresca do que encontramos e um dinamismo quantas vezes absurdo em relação ao que observamos.[/vc_column_text][vc_separator color=”custom” style=”dotted” border_width=”2″ el_width=”20″ css_animation=”fadeIn” accent_color=”#dd3333″][vc_column_text]Dezembro de 1999. Muitos auguraram o pior, em relação à sobrevivência do jornalismo em Português na recém-criada RAEM. Mas, desta vez, as cassandras não tinham razão. Ao invés de minguar, crescemos e ficamos mais fortes. Na verdade, talvez tenha sido a partir dessa altura que nos começamos a debruçar com outra vivacidade sobre a vida real desta terra. Até então talvez os jornais vivessem demasiado dependentes do que acontecia à volta da Praia Grande e pouco mais. Com a transferência de soberania, muito mudou. E no nosso interior também. Por exemplo, as redacções passaram a com jornalistas chineses e a sua presença veio iluminar muitos dos disparates que fazíamos, como veio fortificar a nossa certeza a propósito do rumo tomado a nível editorial. Não façamos confusões: isto é a China. A mesma China que nos acolheu pela nossa diferença no século XVI e que até hoje ainda não nos expulsou. Que nos abriga e nos embala. Entre portugueses e chineses sempre existiu a compreensão imediata do “vive e deixa viver” e isso é fundamental para a nossa meta-existência. Sem ela nada disto existiria. Os portugueses são, de facto, tão insuportáveis que só os chineses, com a sua paciência (leia-se interesse prolongado e deferido) nos aturariam. Pior que nós só os ingleses, os franceses, os holandeses, os alemães, os russos e, ultimamente, os americanos e os australianos. Macau, dizem, mudou muito nos últimos quinze anos. Não me parece. O meu Macau está ali onde o quiser encontrar. Nos erros sucessivos do governo – iguais a antes de 1999 –; na ambição desmedida dos recém-chegados – sobretudo dos que há pouco atravessaram a fronteira terrestre –; na euforia palerma dos portugueses – desembarcados há momentos do jetfoil. E existe, como sabemos, um outro Macau que nem de longe nem de perto se reconhece no que hoje ciframos como RAEM: a cidade verdadeira, egoísta, metida consigo, fantasmagórica, palmilhável, inesgotável, sorvida como uma sopa de fitas ou junto à boca como uma malga de arroz. Há mais dinheiro. Vejo mais luzes. Há mais confusão. Vejo mais gente. Mas nada disto me interessa. Sou director de um jornal que pretende ver além do óbvio e informar além do sensível. E é este o nosso desafio: ler o ilegível, soletrar o indecifrável. Bem sei tratar-se de uma tarefa impossível por isso é digna de nós. Menos seria pouco, mais seria divino. Ficamos, portanto, por aqui. Pelo menos mais quinze anos.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
Carlos Morais José EditorialOs TNR e o fracasso da diversificação económica [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e um extra-terrestre aqui caísse de pára-quedas ficaria confuso quando se começasse a informar sobre certos aspectos da economia de Macau. Por exemplo, a tal propalada diversificação económica. Que é difícil. Que o peso do Jogo torna a tarefa impossível. Que isto e que mais aquilo. E, plano após plano, Governo após Governo, Secretário atrás Secretário, a diversificação económica não arranca, muito menos se consubstancia. Entretanto, Pequim vai batendo na mesma tecla. Resmunga que é precisa, zurze que é necessária. A cada subida do Chefe ao Norte ou a cada descida de um dignatário ao Sul, lá se repisa a mesma tecla: a malograda diversificação económica, em tom de marcha fúnebro ou de ralhete bem medido. Não parecem por isto corar as faces dos nossos governantes. E diga-se, de passagem e com toda a franqueza, que não têm sobre os ombros tarefa de invejar. E isto porque, para além de muitas razões, deparam-se com situações que raiam a esquizofrenia. Por exemplo. É vox populi, enraizada nalgum bom senso e conhecimento da economia, que as Pequenas e Médias Empresas (PME) terão um lugar importante, senão vital, na diversificação. Todos os anos o Governo anuncia um pacote de estímulo, que ee aplaudido mas que, no fim, revela sempre a sua ineficácia. Contudo, não se poderá dizer que existe má vontade do Executivo em relação às PME. Só que o que dão com uma mão tiram com outra. É que a maior parte das PME precisa de trabalhadores não-residentes (TNR) como de água para a sede. Mas, verifica-se, cada vez é mais difícil, quando não impossível, a sua contratação. Isto é o que dizem os responsáveis por essas pequenas empresas. O mercado laboral de Macau, constituído por residentes, nem de perto nem de longe pode fornecer mão-de-obra suficiente para as necessidades das PME. Estas exigem qualificações pelas quais os residentes esperam salários elevados, algo que as PME não podem realmente pagar, sobretudo se atendermos ao actual preço das rendas. Só os TNR podem realmente dinamizar, constituir o sangue que fará girar a economia da RAEM. Afirmar o contrário é condenar ao fracasso qualquer tentativa de diversificação económica.
Carlos Morais José EditorialA única coisa que tenho para te dar é o mundo [dropcap style=circle’]S[/dropcap]ó há uma solução: avançar. Não parar. Não soluçar. Seguir em frente. Eis o único movimento digno desse nome, eis a única saída. O resto são desculpas. Todos as temos, todos as proferimos e todos nos arrependemos. Qual a mais-valia da inércia? Qual o lucro que preside ao sossego? Que vantagem tiramos da repetição? Cada leitor terá a sua resposta, cambada de imbecis, como se não existisse apenas uma e uma única, solitária, desdenhosa, impante de glória e desejos de vitória: seguir em frente, andar avante, deslizar sobre os carris sem tergiversar. Nunca um passo atrás, como queria Lenine, porque esse só me permitirá meio passo em frente. Nunca a contemplação, ainda menos as crenças em visões ou segredos esotéricos. O único esoterismo que vale a pena é o de minha mãe. O resto são mitologias bacocas. Vamos em frente. Sem hesitações, baias ou devoluções. Não devolvas o que compraste; não empenhes o que não é teu. Não olhes para trás porque as causas das coisas não existem. São uma factura que, ainda por cima, te obrigam a pagar. Diz que não. Não vás por aí. É que ele existem melhores caminhos. Ainda que se façam sozinhos. Dá-me a tua mão. Não te levarei a nenhum lado porque também não sei qual a via, onde pára afinal essa estrada. Só quero a tua mão, porque gosto de ti e me apetece a tua companhia. Nada nos diria que a vida é mesmo assim. Atrapalhada e confusa, desgastada velha de cabaré. Oficiante das noites e dos dias, do nevoeiro, do sortilégio dos odores. Mas é. Assim mesmo: dotada de todos os sentido que lhe quiseres proporcionar. Vem comigo, por favor. Não esperes demais. A única coisa que tenho para te dar é o mundo. O resto, sinceramente, pode esperar. Eu não posso. Falece o tempo. E nele se dissolve esta partícula a quem num dia de desespero ensinaram a dizer “eu”.
Carlos Morais José EditorialGanância pessoal: a fonte da desarmonia [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í está o que Pequim tanto temia: a possibilidade de existirem em Macau manifestações como a que a tentativa de aprovação do regime de garantias deu origem. Só que desta vez é mais grave. Com efeito, a manifestação contra o regime de garantias dizia respeito a uma indignação motivado pelo facto dos senhores do poder quererem mordomias depois de abandonarem os seus cargos. Mas a que aí vem é muito pior. Agora não se trata das mordomias alheias mas da nossa própria vida e sobrevivência, o que justificará uma maior indignação. Mas terá razão o povo se vier para a rua porque, desta vez, dói-lhe mesmo na pele. E isto por quê? Porque a ganância dos nossos oligarcas não tem limites. Esta semana começou com o inenarrável discurso de Fong Chi Keong, no qual, com todas as letras, teve a lata de confessar ser contra o investimento na Saúde Pública porque tal traria menos lucros ao seu Kiang Wu. Agora é esta mania de mudar a Lei do Arrendamento porque, já todos perceberam, o mercado está a cair. Quer dizer: quando o mercado sobe não se pode intervir, mas quando desce já é obrigação do Governo proteger os senhorios. É preciso, no mínimo, ter lata e falta de medo da prisão. E isto vindo de deputados nomeados pelo Executivo… Ora esta pretensão dos deputados/senhorios pode, de facto, ter repercussões sociais desastrosas. Nomeadamente, grandes manifestações na rua. E tudo isto porque o interesse egoísta de alguns se sobrepõe ao tão apregoado patriotismo. Só estão preocupados com os seus lucros. E com isto são não apenas capitalistas mas capitalistas selvagens, disposto a sacrificar o bem comum pelos seus interesses. Não se percebe como é que Pequim tolera estes comportamentos. Será que ainda não pagou as contas todas, quinze anos depois, a estas famílias que só pensam no seus próprios interesses e nunca na população? Tudo o que estes senhores amam de Macau e da China é o conteúdo das suas algibeiras e contas bancárias. Quanto ao resto, é para panda ver… A ganância bem que poderá vir a ser a causa da desarmonia na RAEM. Occupy Leal Senado, remember… Há quem só esteja à espera de um pretexto e estes oligarcas dão-nos quase todos os dias.
Carlos Morais José EditorialÀ espera do Vento Norte [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Cimeira de Paris sobre o clima terminou com um acordo no qual a China desempenhou um papel fundamental. É nestes momentos globais que o País do Meio se afirma como parceiro incontornável e disposto a assumir as suas responsabilidades, enquanto maior poluidor e segunda maior economia. Para crescer, a China exagerou. Compreende-se mas agora é tempo de voltar atrás e verificar o que é ainda possível salvar de duas décadas de um capitalismo tão selvagem como o da Revolução Industrial – a mesma que deu origem ao smog, fenómeno que hoje afecta as cidades chinesas como no século XIX afectava as cidades inglesas. Mas a China acordou e parece ter vontade de se curar da febre de crescimento, cujas doenças colaterais estão a afectar de forma séria a sobrevivência condigna de milhões de pessoas. Hoje a questão da poluição é um tema nacional, que exige, para recuperar dos excessos cometidos, um empenhamento de todos, sob pena de redundar num fracasso. Nesta contexto, é óbvia a pergunta: que papel poderá a RAEM desempenhar? A resposta mais evidente seria: dotada de um orçamento várias vezes superior ao de qualquer cidade chinesa (per capita, entenda-se), Macau teria a obrigação de ser pioneira na questão ambiental. Mas é isso que por aqui vemos? Muito pouco ou quase nada. Macau não recicla, não limita o uso de sacos de plástico, não existe legislação para a circulação de veículos eléctricos, os transportes públicos e os autocarros dos casinos são extremamente poluentes, etc., etc.. Obviamente também, a segunda pergunta seria por quê? Vale a pena perguntar. Todos sabemos a resposta. Para a riqueza de meia-dúzia – e pela inércia dos que nos governam, incluindo os deputados – sofre a população e compromete-se o futuro, para além de não se desempenhar o papel patriótico de mostrar novos caminhos ao país. É pena mas é assim. Até que um vento forte sopre de Norte e afaste da cidade esta incómoda poluição, continuaremos a respirar este permanente fedor que dificulta a respiração e, talvez, no limite, impeça a cidade de verdadeiramente crescer.
Carlos Morais José EditorialA universidade torta [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]actual Universidade de Macau não nasceu ontem e alguns dos seus problemas talvez estejam relacionados com um erro histórico e não meramente com as desconformidades do presente. Fundada sob o nome de Universidade da Ásia Oriental, uma instituição privada comprada mais tarde pelo Governo, mudando o nome para Universidade de Macau, foi sempre estruturada a partir de modelos anglo-saxónicos de ensino, se exceptuarmos o curso de Direito. Ainda hoje, o reitor e a sua equipa estão muito mais perto dos modelos americanos e britânicos, do que dos praticados no continente europeu, em países como a Alemanha, França, Itália, Espanha ou Portugal. Ora Macau nunca foi anglo-saxónico. Disso, no seu ADN, tem apenas a língua (?) e alguns maneirismos. O modo de ser e de fazer não se aproxima nem se assemelha. É distinto em inúmeras vertentes. De um modo subtil, em Macau a cultura chinesa operou muitíssimo bem no cenário que lhe foi proporcionado pelo enquadramento europeu, prosperando e tomando, desde há muito, conta da cidade. Talvez porque o estabelecimento de ensino olha o mundo através de uma lente americana, com outros ritmos, exigências (ou falta delas) e valores diferentes, sempre tenha existido este desajuste entre a universidade e a cidade que alberga. Ambiente agravado pela falta de entendimento das políticas estratégicas da RAEM, que atingiu um lamentável pico nas últimas semanas a propósito da Língua Portuguesa. Uma vez mais, um desajuste entre visões do mundo, cuja justificação economicista, no seu imediatismo, pouco fica a dever ao espírito chinês e parece beber, sobretudo, noutras influências. Sempre e desde o início, anglo-saxónicas. Aqui temos um caso em se aplicaria o ditado popular: “o que nasce torto, nunca se endireita”; se não encontrássemos nos actuais e futuros responsáveis pelas políticas de ensino locais a capacidade de entender as especificidades de Macau e a sua identidade, encontrando medidas que permitam ter uma universidade homóloga da sociedade para a qual foi criada. Por enquanto, está torta.
Carlos Morais José EditorialDa divulgação do Direito local [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m absorvente manchete do Jornal Tribuna de Macau, o deputado e membro do Conselho Executivo Leonel Alves proclamava ontem a necessidade de uma maior divulgação do Direito de Macau. Entende o também enorme causídico da nossa praça que o Governo deve assumir responsabilidades nessa área. Não podemos estar mais de acordo. Parte integrante da autonomia da RAEM, o Direito merece uma atenção redobrada por parte de todos os que erigem o dístico “Amar Macau, amar a Pátria” como farol das suas acções e da sua ética. A própria existência dessa especificidade – o corpus jurídico local – constitui uma mais-valia para a China, enquanto fomento de diversidade e compreensão/inserção no mundo global. O funcionamento da máquina judicial da RAEM é, de igual modo, (ou deveria ser) um laboratório para os que na RPC procuram os modos legislativos e operativos para a ciclópica mudança que se opera nos contextos jurídicos/judiciais do continente. Enquanto parte constitutiva da RPC, o Direito de Macau acrescenta-lhe uma perspectiva humanista, bem mais interessante que a Common Law de Hong Kong, por, pelo menos, duas ordens de razões: primeiro, porque se trata de um corpo jurídico “irmão”, na medida em que segue, tal como a RPC, o modelo romano-germânico por contraste com o que vigora na ex-colónia britânica; segundo, porque introduz no Direito chinês conceitos inexistentes como a abolição da pena de morte, da prisão perpétua, do respeito inalienável das liberdades individuais, etc.. E tudo isto num contexto, por assim dizer, “familiar”. É por isso que são de louvar as iniciativas que contribuem para a divulgação do Direito local, partam elas do Governo ou da iniciativa privada. Leonel Alves entende que o Governo deve assumir a condução da viatura. Contudo, como o próprio refere tal não tem acontecido de forma brilhante ou sequer eficaz. De facto, talvez seja o momento em que, por razões da mais variada ordem, a sociedade civil se organize e, de acordo com os ditames do segundo sistema, se substitua ao Estado na divulgação e promoção de assuntos que lhe dizem respeito. Não se poderá dizer que os operadores do Direito – juízes, delegados do MP, advogados, etc. – careçam de meios para o fazer. Seria injusto não dar o exemplo da Fundação Rui Cunha, cujo trabalho na área do Direito local tem sido exemplar e um modelo a seguir, sobretudo por outros igualmente afortunados mas cujo contributo para a sociedade tem sido significativamente mais discreto ou invisível. Certamente que Leonel Alves tem participado nos debates e discussões que por lá se desenvolvem e poderá mesmo tomar o projecto como excelente para desenvolver noutros contextos, lugares e patronos. Alguns ficam-se pelas palavras e esperam que o Governo actue. Outros entendem que podem realmente fazer qualquer coisa pela RAEM, sem esperar pelo que a RAEM pode fazer por eles. Certamente que todos os operadores do Direito de Macau compreendem que a sua própria sobrevivência está intimamente ligada a esta questão.
Carlos Morais José EditorialAs dívidas históricas [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om o segundo mandato de Chui Sai On, a RAEM entrou na fase final de um ciclo que terá a duração de 20 anos. Depois, dizem-me, tudo será diferente. Não sei se para melhor, se para pior, mas diferente. Até lá o destino de Macau e dos seus cidadãos continuará nas mãos dos mesmos. Durante este período, iniciado com a transferência de soberania, conhecemos um crescimento económico ímpar na Ásia e no mundo. Contudo, esse crescimento não se traduziu numa vida mais fácil para os residentes. Se existe algo a apontar à administração, será o facto de não ter previsto o impacto que as mudanças na área do Jogo (a liberalização) trariam à cidade. E a verdade é que não nos apresentarão nenhum modelo que inspire confiança no futuro. Parece existir uma estranha barreira que impede o dinheiro de realmente frutificar. O Governo insiste em dar o peixe, ao invés de criar condições para pescar. Assim, reconhece-se neste procedimento uma espécie de paternalismo confucionista que o povo aceitará até ao momento em que as suas vidas enveredem por caminhos cada mais difíceis. As LAG para 2016 inscrevem-se nesta linha. Existe realmente uma continuidade na não-acção do Executivo, que parece correr atrás das queixas da população, prometendo aquilo que se sabe que não cumprirá. O caso da habitação é onde tudo realmente se desvenda. Por mais que Chui prometa habitações públicas, nada fará oscilar os interesses dos proprietários de imóveis e, portanto, não nos parece que a situação encontre meios de melhorar. Até 2019, tudo deverá ficar na mesma. Depois, talvez se entenda que as dívidas históricas estão pagas e bem pagas. O que se passará a seguir, ninguém sabe.
Carlos Morais José EditorialObrigado, campeão [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão tem sido fácil a carreira de André Couto, nem a sua vida pessoal, marcada pela trágica perda de um filho. Mas o piloto de Macau reuniu sempre forças, nas curvas mais difíceis, nas paragens mais complicadas de engolir, nos momentos mais delicados de viver, para tudo ultrapassar. Essa é a fibra de campeão que nele existe e que nos faz sentir orgulho dele nos representar. André Couto é, antes de mais, um exemplo de perseverança e coragem. De alguém que transformou a dor numa causa, numa missão, levando-o a viver ainda mais intensamente a sua vida. Um piloto cuja excelência só a má sorte (e talvez a falta de apoios em momentos cruciais) terá impedido de chegar à prova-rainha do automobilismo. Macau tem de lhe agradecer o facto de ter conseguido levar o seu nome a um pódio internacional, como o pode homenagear pelo conjunto da sua carreira, durante a qual representou a cidade com dignidade e valor. Ser um campeão é muito mais do que ganhar provas. É ter uma alma enorme e um coração incansável; é conseguir juntar a humildade a uma vontade irreprimível de vencer. E André Couto não precisaria de ter vencido este campeonato para nos dar conta da sua estirpe. Aqui em Macau, conhecemo-lo deste e doutros circos. Vimo-lo crescer, tornar-se adulto, maturar. Quando demos por ele, ganhava o Grande Prémio. Sempre capaz de surpreender quem não está habituado à sua capacidade quase constante de regeneração. E assim tem sido ao longo dos anos. Por isso sabemos poder ainda esperar por mais desse olhar, que espelha loucura e determinação. Obrigado, campeão.
Carlos Morais José EditorialAs folhas do Outono acumular-se-ão nas mesmas portas [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s astronómicos lucros do Jogo criaram em Macau uma espiral estranha. Não se pode dizer que tenha existido um sentido, uma direcção efectiva e racional para o crescimento. Ao invés assistimos ao desenrolar de algo que anda às voltas, num estranho e lento movimento ascendente, satisfazendo aqui, melhorando acolá, descuidando muito, piorando amiúde. Esta espiral, impulsionada pela avalanche de patacas, levou-nos de onde estávamos em 2003 até este ponto onde estamos em 2015. De algum modo, trata-se de uma espiral algo suicidária, no seu aparente distanciamento da mais óbvia racionalidade — o que deixa para trás, o que deixa cair, o que não acontece, mais do que qualquer outra coisa, revelam-se, ano após ano, fardos mais difíceis de carregar, de explicar, por quem detém o poder. Poder-se-ia julgar que a formal espiralada derivaria da “falta de experiência”, da “complexidade da região”, do “carácter único de Macau”, do “crescimento desenfreado”, etc.. Contudo, provavelmente, o percurso escolhido foi o único encontrado, num constante tactear da melhor solução, para uma divisão pacífica da riqueza. Deste ponto de vista, Macau parece ser um sucesso. Ao contrário de Hong Kong, a população permanece pacífica e sem agenda. A grande maioria das pessoas tem-se contentado com o cheque anual e outros benefícios efémeros que o Governo tem concebido. Isto enquanto se assistiu à degradação da Saúde, dos Transportes, da Habitação, entre outros sérios problemas que afectam o quotidiano dos residentes, independentemente da sua etnia. Macau tornou-se uma cidade repleta de gente, que se desloca em torvelinhos, remoinhos de turistas. A falta de intervenção estatal, o laissez faire, transformou o centro da cidade, património da UNESCO, num mercado de segunda linha, ao invés de espelhar a identidade e a cultura da cidade. Também do ponto de vista ambiental, tudo se transformou sem obedecer a um plano racional, numa espiral galopante de construção/especulação. O que Macau é hoje, ninguém previu, há 10 anos ninguém o sabia, como não sabemos o que daqui a 10 anos irá ser. É estranha esta espiral. Impossível de prever, impenetrável à adivinhação. As coisas giram e voltam a girar. À volta de um centro, é certo, mas imperscrutáveis. O vento poderá soprar por ora mais fraco. Por enquanto, as folhas do Outono acumular-se-ão nas mesmas portas.
Carlos Morais José EditorialO calcanhar de Aquiles [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]anifestação por causa da habitação. Mil pessoas não são vinte mil. A habitação ainda não é a alcavala dos altos cargos, que tanta gente escandalizou. Mas ainda assim, para uma cidade tão pequena, não deixa de ser muita gente. E sendo que poderá transformar-se em muitos mais, o Governo apressou-se a dizer que se preocupa com a questão e que respeita o sentimento de quem quer uma casa e esbarra com os preços absurdos que actualmente se praticam (ainda) em Macau. O que a população da RAEM tem de perceber é que a situação não vai mudar no médio prazo. Todos sabemos que as habitações públicas não satisfazem os padrões mínimos e ninguém lá quer morar. Parece ser mais dinheiro deitado à rua, atravessado por pérolas como o preço dos parques de estacionamento nos prédios das ditas habitações. Se o Governo pensa que resolverá o problema desta maneira, está enganado porque existe uma larga fatia de classe média que não tem dinheiro para uma casa “normal” e não quer viver na economia miserabilista daqueles prédios inomináveis. Só que, como sabemos, será muito difícil que os interesses por detrás das outras permitam que os preços caiam. Os investimentos em imobiliário constituem uma fatia importante dos portfolios locais e de Hong Kong, o que torna basicamente impossível a descida do preço das casas, mesmo em termos de arrendamento. Ora o Governo, se realmente tivesse unhas para tocar esta guitarra, há muito que tinha colocado algum travão na especulação, sobretudo ao nível do arrendamento, não permitindo por lei os aumentos selvagens (de 100, 200 e 300% ao ano) que os senhorios fazem a seu bel-prazer, perturbando de sobremaneira a vida das famílias. Quem repara nos discursos de Chui Sai On sabe que ele foge do tema como Maomé do toucinho. E foge porque sabe não ter outra solução senão andar à volta, dizer que vai fazer qualquer coisa (leia-se habitação económica), quando não tenciona mexer numa palha que seja no processo especulativo que assombra Macau. Há muito que se diz ser a habitação o problema mais sério que afecta a população da RAEM. Contudo, o Governo continua a enterrar a cabeça na areia e a pensar que poderá encontrar um caminho em que os especuladores não saiam prejudicados. Não parece ser fácil e a questão arrisca-se a transformar-se no calcanhar de Aquiles deste Executivo: uma porta certa para quem o quiser questionar, incluindo a sua actual legitimidade.
Carlos Morais José EditorialA última traição do PS [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]povo português votou maioritariamente contra a coligação PSD-CDS, contra as mentiras sistemáticas e compulsivas, contra a austeridade e a falsa recuperação económica do país. É certo que não votou de forma ordeira, alinhada, porque a nossa esquerda é um saco de individualidades cujos egos, paradoxalmente, os impedem de se juntar sob a mesma bandeira. No entanto, se abstrairmos as concepções teóricas mais longínquas, existe um fundo comum entre o Bloco de Esquerda, a CDU, o Livre, o Agir e etc. Esse fundo comum passa, por exemplo, pela salvação do que resta do Estado Social, pelo fim da sangria das privatizações incompreensíveis, pelo aumento do salário mínimo, a reposição das pensões, a fiscalização severa da actividade bancária, entre outras medidas. Esta esquerda não terá dúvidas quanto à necessidade, para salvar a economia das pessoas (não as finanças dos corruptos) de implementar uma série de medidas que, na sua “radicalidade”, não irão além de algum keynesianismo. O fantasma da colectivização, da saída inconsequente do Euro, o papão do “comunismo” já não colhem junto de mentalidade contemporâneas esclarecidas e servem apenas para assustar espectadores de algo similar à Fox News. Hoje ser de esquerda significa muito, para além da solidariedade e da igualdade de oportunidades, ser por uma fiscalização democrática dos processos político-estatais, das compras e das vendas, dos negócios e das negociatas e, sobretudo, colocar um freio nos desmandos que a alta finança tem provocado nas economias, com o conluio dos boys dos partidos do arco da governação, para não ir mais alto. Os resultados eleitorais são claros: o povo português votou contra aquilo que entende ser uma política de direita neo-liberal, subvencionada pelos poderes europeus para deixar Portugal à mercê dos investidores e das corporações estrangeiras, pela criação de um país de salários baixos e propriedade em queda. O povo português votou na esquerda e deu-lhe uma maioria. Só que esse mesmo povo (ou grande parte dele) considera o PS um partido de esquerda, cuja acção não poderia nunca ir contra o Estado Social e que estaria obviamente de acordo com as medidas que acima expusemos como sendo consensuais ao resto da esquerda. Para o eleitorado, o PS não poderia nunca pactuar com esta política de austeridade mais merkeliana que a Merkel, com este desprezo absoluto pelas condições de vida dos cidadãos. Por isso, trinta e tal por cento ainda deram o seu voto a António Costa. Qual não terá sido a desilusão geral quando o chefe do partido mais votado da esquerda, vem à ribalta no pós-eleitoral reconhecer uma derrota e, mais grave, mostrar-se disposto a permitir um governo de direita, ao invés de negociar um governo à esquerda, contrariando assim a vontade expressa do povo. Terá isto alguma coisa a ver com a passagem de António Costa pelo Bilderberg? Esta “traição” à vontade popular atira de vez o PS para a insignificância política pois deixa bem claro a todos que, sob a liderança de António Costa, não é alternativa à direita, na medida em que não pretende deixar de comer da farta gamela do arco da governação. PSD-CDS e PS são actores de uma e mesma política: a dos tachos, a do segura-te ao poder a todo o custo, já lá voltamos mas tudo ficará na mesma — alheios que estão os valores, as ideias e as visões de uma sociedade mais justa. Se Costa alinhar com a direita, ao invés de ser primeiro-ministro de um governo de esquerda, estará a trair os seus eleitores e não se auguram bons tempos para o PS. Os elementos mais direita rapidamente verão as vantagens de alinharem com o PSD-CDS, enquanto que os outros, as bases, preferirão votar no Bloco de Esquerda ou na CDU. Ou seja, está no horizonte a “pasokisação” do Partido Socialista, na medida em que condiciona a sua presença a ser cada vez mais irrelevante no espectro político nacional. Afinal, é natural: os fenómenos europeus tendem a chegar tarde a Portugal. Mas, em geral, chegam. Esta poderá ter sido mesmo a última vez em que o PS teve oportunidade para trair.
Carlos Morais José EditorialA coisa [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o fim de Setembro, este Governo cumpre os seus primeiros nove meses. Ainda não se percebeu se foram de gestação de qualquer coisa outra ou se apenas discurso para tudo ficar na mesma. Seja lá o que for, alguma coisa há-de sair destes nove meses de governação. É esperar para ver, dizem, que Roma e Pavia não se fizeram num dia. Realmente não, mas aqui ninguém pensa em dias, mas em anos, em lustros, em décadas. Já lá vão quase duas e a coisa arrasta-se. Mas o que é a coisa? Ora a coisa é a qualidade de vida dos cidadãos de Macau, cuja pioria tem sido uma constante geométrica, com a agravante de ter acelerado nos últimos anos. Ainda estamos à espera de ver quando é que a cidade vai, finalmente, deslizar sobre os famosos “carris para o futuro”, prometidos por Edmund Ho e Chui Sai On. No começo, toda a gente percebeu que o crescimento tinha, inevitavelmente, dores. Só que essas dores, essas doenças, deveriam ter sido prevenidas à partida e não ter sido livres de explodir e de se espalhar a seu bel-prazer. Não foram e as pessoas compreenderam: os governantes eram inexperientes e blá, blá, blá, blá… tudo bem, segue que o Jogo prometia mundos fabulosos e inesgotáveis fundos. E o povo aguentou, na jubilosa esperança de ver um raio de bem-estar ao fundo deste interminável túnel. Mas tudo o que viu foram os cheques que o Governo generosamente distribuiu, na sincera constatação de que não sabia o que fazer com o dinheiro. Como se sabe, a doação não resolveu problema nenhum. O valor do peixe, nem de perto nem de longe, pode ser comparado ao da cana. Além do mais, trata-se de um mau exemplo. Mas adiante. Década e meia depois, chegámos a uma espécie de limite: a cidade está sobrelotada de turistas (sobretudo porque são mal conduzidos e — uma vez mais — não se criaram condições para os receber), o trânsito e a poluição tornaram o ar difícil de respirar, a Saúde não melhorou, o preço da habitação é o que se sabe, os grandes projectos do Governo não funcionam, os taxistas impõem a sua vontade na cidade. A compreensão popular esmoreceu, uma nova geração, mais educada, apareceu e a coisa não mostra modos de melhorar, a não ser no discurso deste Governo, agora grávido não se sabe de quê. A desarmonia está à vista. O “paraíso” não, nem os “carris para o futuro”, cuja realidade é mais intangível que os do metro ligeiro. Custa a crer que a coisa não interessa ao Governo. Ou custa a crer que o Governo ponha os interesses de alguns acima da coisa. Mas terá o Executivo capacidade para impor os seus planos sobre a coisa? E essa eventual incapacidade terá origem no seu desconhecimento da coisa ou na oposição das forças xiaoren (gente menor, em mandarim) deste território? O Governo terá de estabelecer que a coisa mais importante é a coisa. Se não o fizer, por mais que coisifique, em ânsia científica, por mais que dê voltas à coisa, não chegará a coisar seja o que for digno de qualquer coisa. Pois não há causa que supere a coisa, nem outra coisa que a suplante em importância e fundamentalidade para a harmonia desta jovem mas ambiciosa região.
Carlos Morais José EditorialO que se ganha, o que se perde [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Associação Novo Macau é um excelente case-study para quem estiver interessado em compreender a sociedade chinesa local e o modo como se tem, descontinuamente, modificado. Fundada algures em finais de 80 por Ng Kuok Cheong, a associação tornou-se conhecida por assumir posições pró-democracia, na ressaca de Tiananmen. Juntou-se-lhe Au Kam San, que surgiu com um discurso ainda mais radical. Os dois marcavam o espaço público pelas referidas posições políticas e pelo facto de não estarem ligados a nenhum dos núcleos de poder tradicional. Foi um sucesso. Com o passar do tempo, surgiram novas caras na ANM, gente mais nova que rapidamente assumiu funções importantes na associação, começando a vocalizar e agir de modo diferente. E quais foram essas as grandes diferenças? Basicamente duas: primeira, a defesa de causas fracturantes do ponto de vista moral, como o casamento gay, os direitos dos transexuais, entre outras; e, segunda, os métodos de acção mais públicos e frequentes, muito influenciados pelo ambiente agitado de Hong Kong. Como se sabe, a ANM teria algum apoio de sectores católicos da sociedade chinesa, nos quais não caem certamente bem alguns “excessos” de activistas como Jason Chao. Por outro lado, é algo estranho que não tenham surgido personalidades de charneira, mesmo em termos de idade, entre os actuais rapazes fortes da ANM e os deputados que acabaram de fundar uma outra associação, marcando de vez uma linha muito clara entre eles e os outros. Parece estarmos perante um gap geracional, de difícil explicação. Contudo, se pensarmos bem, facilmente concluiremos que a sociedade de Macau conheceu uma fortíssima ruptura, nos anos 90 e seguintes, o que fez com que uma geração tivesse crescido muito distante da que a precedeu. Daí que Ng Kuok Cheong e Au Kam San não se entendam nem concordem com Jason Chao e Scott Chiang. É certo que todos continuam a desejar mais democracia, mais responsabilização dos titulares dos cargos, eventualmente sufrágio universal. Ou seja, em termos de política pura e dura não me parece que os objectivos sejam muito diferentes. E, no entanto, não se entendem… Parte desta falta de entendimento passará, creio, pela própria linguagem e referências, que são basicamente muito diferentes nas duas gerações. São estilos que não convivem bem na mesma sala. A ver vamos como, nas próximas eleições, se vai organizar o baile. Mas o mais interessante disto tudo é que este fenómeno não se deve limitar à ANM, a uma única associação mas ser transversal em Macau. Deve ser vivido no seio das famílias, nas empresas e no próprio Governo. Resta saber o que se ganhará. O que se perde é diário nas nossas vidas.
Carlos Morais José EditorialFrancisco e o essencial [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m plena Idade Média, um jovem aristocrata foi tomado pela febre de Deus. Desfez-se de todos os seus bens materiais e partiu para a floresta, onde fez jura de viver até lhe ser concedida a prova última da existência do Ente Supremo. Francisco comeu bagas e conviveu com lobos, a quem achou maior humanidade que aos homens e chamou-lhes irmãos. Os jejuns, as dietas radicais, as vigílias e a muita oração teriam de surtir efeito. Depois de uma crise mística, Francisco acorda santo, crismado com os estigmas de Cristo: na sua carne tinham-se gravado as feridas divinas, infligidas na Crucificação, por escorria o Sangue que haveria de verter perdão no mundo. O novo santo estava decidido a imitar o exemplo de Jesus: levar uma vida de prédica, na qual estaria ausente qualquer bem material, à excepção do burel castanho, atacado com um simples baraço, que passou a ser o uniforme da sua Irmandade. Os franciscanos tornaram-se, com o passar dos séculos, uma das mais importantes ordens monásticas da Cristandade. O exemplo de Francisco ressoa fundo no coração dos verdadeiros cristãos e, por isso, foi com alegria que assistiram ao cardeal Bergolio adoptar este nome, de significado muito concreto, quando foi eleito Supremo Pontífice. Restava saber se conseguiria e estaria mesmo disposto a fazer jus ao exemplo escolhido ou se tal não passaria de um gesto de boas intenções, dos quais está o Papado cheio. Dentro do contexto católico, as acções do Papa Francisco têm sido, de uma forma geral e com uma ou duas excepções, realmente merecedoras do santo que as inspira. Exemplo de humildade, de tolerância e de inclusão, este papa enfrenta vários combates no seio da sua própria Igreja. Por um lado, estão os tradicionalistas que se escandalizam quando é dito que de ateus e homossexuais também pode ser o reino dos Céus. Depois existem os ritualistas, a quem choca a humildade e a falta de pompa e circunstância dos rituais sob a vigilância de Francisco. E temos ainda a “organização”, prenhe de escândalos financeiros e de pedofilia escondida, que este papa decidiu abanar. Todas as suas acções têm sido (ou parecem ser) no sentido de credibilizar e modernizar a Igreja, uma instituição religiosa que cada vez enfrenta mais dificuldades no terreno e sofre os ataques de inúmeras seitas cristãs que, praticando uma religião de proximidade, atraem cada vez mais fiéis. Mas o que me parece mais importante na acção do Papa é a sua tentativa de recuperar a palavra e o exemplo crístico, como modelo para o comportamento da sua Igreja e dos que a seguem. Fazer do amor, da tolerância, da compreensão e da compaixão pela dor alheia os vectores centrais de uma vida, em tempos do deus Dinheiro. Francisco sabe que, quando tudo parece perdido ou em vias de se desmoronar, temos de voltar atrás, ao tempo original, e lembrarmo-nos, uma e outra vez, com fé e com esperança, daquilo que é realmente essencial. Na religião e na vida.
Carlos Morais José EditorialAndar na vida [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje andamos pelas redes sociais, pelos avatares do ecrã, mais do que pelos cafés ou pelas ruas. Tal pode ser entendido como um alívio: de facto, nem sempre o contacto humano é salutar, desejável ou sequer suportável. Desse ponto de vista Macau é exemplar pela forma rápida como nos fartamos uns dos outros. Mais do que Coimbra, Macau é realmente uma lição. Ora, como todas as lições, nem sempre é bem entendida pelo “estudantes”. Ele há melhores e piores alunos e há mesmo aqueles que desistem dos estudos e vão pairar por outras paragens. Por exemplo, alguns não admitem a fluidez excessiva do real que aqui se organiza. Não admitem, nem entendem, como aquilo que ontem era amarelo hoje pode ser quase azul, e como em pleno tufão se aclimata uma bonança. É difícil para quem não está disposto a perder as penas e ser gente. O que é isso de ser gente? Talvez aquilo que Álvaro de Campos definiu como o desejo de ser todos e toda a parte e, por isso, criar uma arte da sobrevivência a toda a sela. É o credo do exilado, daquele marcado de lonjura e estesia. A isso se chama andar na vida. Ou por ela. Evitar a brida, recusar os freios e, na imensidão das coisas e dos mundos, ir andando, a nosso trote ou a galope, mas em carta ainda por navegar. Andar na vida: passar sempre com o compromisso de passar e nunca deixar nada para trás que não se carregue como um remorso. Como as saudades de um regresso impossível, de uma odisseia sem Penélope final — todo o exilado enferma do síndroma do tapete inacabado… E queremos ou não andar? Sabem bem os estimados leitores, lá bem no seu íntimo de crente, que só há realmente uma vida e que esta não deve ser perdida em entretantos e outros quebrantos de aflições. Não valemos nada, a não ser o nosso caminho. Como diria o Padre Teixeira: “Anda, queres vir daí?”. Sim: a vida deve ser, sobretudo, passada a andar.