A Última Garrafa

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ARTE 1

 

(Num consultório privado)

 

RAUL: Dá licença, senhor doutor?

 

DOUTOR: Faça favor de entrar. Sente-se! (olhando a ficha) Ora, portanto, o senhor Raul Santos.

 

RAUL: Sim, senhor doutor.

 

DOUTOR: E o que é o que o traz por cá?

 

RAUL: Sabe, é uma questão um bocado delicada. Nem sei como dizer.

 

(silêncio)

 

DOUTOR: Estou a ouvir.

 

RAUL: Não é fácil, doutor.

 

DOUTOR: Gostava que tivesse presente que nós, os médicos, temos o dever de não fazer quaisquer comentários acerca daquilo que os nossos pacientes nos contam…

 

RAUL: Pois, o sigilo profissional.

 

DOUTOR: Isso mesmo! Sigilo profissional.

 

RAUL: Mas o que me preocupa não é isso. O que custa é contar-lhe. Aliás, pedir-lhe.

 

DOUTOR: Ó homem, não deve ser nada assim do outro mundo!

 

RAUL: Pois do outro mundo não é.

 

DOUTOR: Então desembuche, homem!

 

RAUL. Bem, doutor, o que aqui me traz é que gostaria muito que o senhor me ajudasse a morrer.

 

DOUTOR: Como!?

 

RAUL: Isso mesmo que ouviu, doutor. Gostava que me ajudasse a morrer em paz. Sei que há comprimidos que se podem tomar e acabar de vez com isto, sem dor, como se nos deitássemos para dormir.

 

DOUTOR: Acabar com isto? Mas o que é que quer dizer com «isto»? O que é que o preocupa? Tem alguma doença?

 

RAUL: Doutor, «isto» é a vida. E é o que me preocupa, e já é doença que sobre.

 

(silêncio)

 

DOUTOR: Vamos lá por partes. Tenho de tentar compreender o seu problema. Há alguma coisa na sua vida que o atormente, que julgue irresolúvel?

 

RAUL: A vida, doutor, a vida. Apenas a vida.

 

DOUTOR: Quer então dizer que, para além da vida, como diz, nada mais o atormenta. Não há nenhum caso em particular que o aflija. A sua relação familiar, profissional…

 

RAUL: Não, senhor doutor. Não sou casado, nem sequer tenho ou tive intenções de o ser. Por outro lado, mantenho regularmente relações sexuais e não tenho qualquer tipo de doença. Tenho uma saúde de ferro. Quanto à profissão, normal. Trabalho num escritório e as minhas relações com os colegas são perfeitamente normais.

 

DOUTOR: Que trabalho faz nesse escritório?

 

RAUL: Sou contabilista.

 

DOUTOR: O senhor está com trinta e…

 

RAUL: Trinta e sete, doutor, trinta e sete feitos o mês passado.

 

(silêncio)

 

DOUTOR: O senhor, vai-me desculpar, mas vou ter de lhe fazer uma pergunta delicada. Alguma vez teve necessidade de tratamento psiquiátrico?

 

RAUL: Nada, doutor. Raramente entrei num consultório médico, e nunca num hospital, senão para visitas.

 

DOUTOR: Diga-me uma coisa. Desde quando começou a ter esta ideia de…

 

RAUL: Querer morrer?

 

DOUTOR: Sim. Desde quando essa ideia o persegue?

 

RAUL: Bem, tanto quanto me lembro, há bastante tempo. Mas, assim, com um carácter mais decisivo, mais planificado, desde há dois anos a esta parte. Mais ou menos. Quando as dores começaram a tornar-se mais insuportáveis.

 

DOUTOR: Nunca lhe ocorreu fazê-lo por sua própria iniciativa? Sei lá, tomar comprimidos, um tiro na cabeça, cortar os pulsos, atirar-se da ponte abaixo?

 

RAUL: Claro que não, doutor. E é precisamente por isso que estou aqui. É que não me quero matar. Quero morrer apenas, não me quero matar. Quero morrer, porque a minha doença não me deixa viver dignamente. Por isso é que pretendo o tal comprimido. Soube que já o utilizam nos hospitais.

 

DOUTOR: Sim, é certo. Mas só é utilizado em doentes terminais e quando se torna evidente qualquer impossibilidade de inverter a situação. Ninguém dá comprimidos apenas porque alguém decide que não gosta da vida.

 

RAUL: Peço desculpa, doutor. Não gostar da vida não foi decisão minha. A decisão que me cabe é apenas pôr-lhe fim. Nada mais do que isso. Não gostar da vida é algo que tenho. É uma doença. E que muito me faz sofrer, garanto-lhe.

 

(o doutor levanta-se e dirige-se a uma das prateleiras)

 

DOUTOR: O que é que o leva a crer que seja uma doença?

 

RAUL: Porque, pelo que me é dado a ver, não é natural. De modo geral, as pessoas gostam de viver ou, se não gostam, tentam pelo menos não pensar nisso e vivem como podem. Com maior ou menor gosto pela vida. Não é assim, doutor?

 

DOUTOR: De facto, parece ser assim. Mas se o senhor julga que se trata de uma doença, então, o que lhe aconselho é que se trate. Eu talvez não possa fazer muito por si, não é minha especialidade, mas há um colega meu, muito bom médico, psiquiatra, que poderá ajudá-lo. Posso falar com ele para que seja atendido o mais rapidamente possível. Talvez mesmo ainda esta semana. (senta-se) O que lhe parece?

 

RAUL: Para ser franco, parece-me que o senhor doutor não me está a levar a sério.

 

DOUTOR: Como não? Estou a tentar ajudá-lo. Você mesmo disse que se trata de uma doença. E, se me permite, assim mesmo com poucos dados, também a mim me parece uma doença.

 

RAUL: Não está em causa se se trata de uma doença ou não. Mas de saber se tem ou não cura. E, neste último caso, se é suficientemente onerosa para permitir que o doente possa pôr termo à sua vida com a ajuda da medicina.

 

DOUTOR: Caro amigo, deve ser muito difícil provar que o seu caso seja terminal e, ainda mais difícil, que seja de tal modo sofrível que lhe permita reivindicar a ajuda da medicina.  (levantando-se de novo) Para não acrescentar que se trataria de um caso de justiça e não de medicina.

 

RAUL: De justiça?

 

DOUTOR: Claro! Seria necessário provar-se que aquilo que diz se enquadra no que está estipulado pela lei para esses casos.

 

RAUL: Mas só a medicina o pode provar, doutor!

 

DOUTOR: Ora, aí é que o senhor se engana. A medicina não prova nada. A medicina constata. Mais nada. O senhor x tem a seguinte inflamação dos brônquios, um problema digestivo provocado pelo mau funcionamento da vesícula, e por aí adiante. E aquilo que o senhor pretende é uma prova. Uma prova para que, então, a medicina possa entrevir a seu contento. A prova cabe ao senhor, não à medicina.

 

RAUL: Como assim, doutor?

 

DOUTOR: Caro amigo, o senhor precisa de provar, não só que está doente, como também que a sua doença se encontra em estado terminal e lhe causa um sofrimento insustentável. Se o senhor conseguir provar isso, então, a medicina poderá intervir legalmente. Até lá não há nada a fazer. Repare que, do ponto de vista clínico, o senhor não tem rigorosamente nada. O senhor mesmo se referiu à sua saúde de ferro. Quanto muito tratar-se-á de uma depressão ou melancolia, que são distúrbios do foro psiquiátrico e passíveis de tratamento. Ou, então, trata-se de um distúrbio psicológico, enraizado na sua infância, e que também é passível de tratamento. Este é o ponto de vista da medicina face  ao seu estado clínico.

(continua)

12 Dez 2017

OI, de Luís Brito (parte 2)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste confronto com o Brasil é decisivo, pois como diz o David de São Paulo, o Brasil é harcore. E a situação torna-se mais radical ao chegar ao Rio, em visita a um amigo que decidiu passar a viver ali, com a sua namorada brasileira. As diferenças sociais no Rio vêem-se, contrariamente a São Paulo, estão expostas a cada esquina, a cada bar junto à praia. O Rio é um abismo permanente. Depois de uma visita a uma favela, e muitas das favelas no Rio estão junto dos bairros nobres da cidade, ele escreve: “Nada é mais autoritário do que uma pele branca e, por eu a usar como uma farda, podia ter levado um balázio nos dentes. (…) Um ou dois mortos por dia não é assim tanto, e só cá vindo se percebe (…).” (p. 37) Mais tarde, no calçadão de Copacabana, quando encontra Milson, o homem que se lavou com livros na prisão, depois de ter morto um polícia, escuta-o dizer que “(…) um dos seus sete irmãos foi assassinado por outro, apenas por se insinuar à sua esposa.”

E eu mesmo, aqui a ler-vos este texto, conheci dois irmãos, do interior da Amazónia, que andaram aos tiros um com o outro, por causa de uma mulher, até que um deles fugiu para os EUA. É como escreve o seu amigo Tó, que gosta de escrever aforismos: “Os Brasileiros pecam por falta de culpa.” Mas no Rio é fácil de esquecer o mal, pelo menos nos primeiros tempos. Em menos de nada, podemos estar a repetir estas frases, que Brito escreve no final do nono arrepio: “Este país faz-me sentir que tudo é possível, todas as árvores dão um fruto e nada me garante que lá dentro não esteja o amor da minha vida.” (p. 44) E imediatamente em contraposição a esta demanda por o amor da sua vida, Luís Brito descreve um carioca de gema, à página 46: “ele anda de tronco nu todos os dias, tem dívidas nos botecos e nos quiosques, cumprimenta a vizinhança, joga futebol e gosta de mergulhar no mar.

De vez em quando tem de ir às cachoeiras, é tarado sexual, come açaí, coxinhas de frango, feijão preto com farofa e toca precursão numa escola de samba.” (p. 46) De facto, um dos lugares mais cobiçados no Rio é o de percussionista numa escola de samba. Por outro lado, todo o mundo joga futebol. Saem do trabalho e vão para uma quadra jogar. Joga o médico junto com o zelador, joga o engenheiro junto com o vendedor ambulante. Ali, na quadra, não tem divisões, não tem classe social. O futebol no Rio é uma religião. E eles praticam. O futebol não é, como para nós, algo a que se assiste. Por isso encontrei, em 2005, muitos flamenguistas que assistiam aos jogos do Fluminense (na Tv, claro), porque gostavam de ver jogar o Petkovic, jogador da Sérvia, que em 1995 tinha jogado no Real Madrid e em 2001 e 2002 jogou no Flamengo. Imaginem, as senhoras e os senhores que gostam de futebol, um benfiquista assistir aos jogos do Sporting, porque joga lá um João Vieira Pinto, e ele é um grande jogador!? O Rio tem adoração pelo futebol, pelo samba e pelo sexo, como fica muito bem claro neste livro.

Livro que é também uma viagem ao sórdido do Brasil, aos lugares que ninguém visita quando vai de férias, como a Vila Mimosa, no Rio, que, e passo a ler, à página 57: “Antes de mais o cheiro. (…) Por outro lado, talvez seja a mistura de esgoto e de suor, de cerveja e de vómito que se espalha pela calçada portuguesa, esburacada e barrenta, acinzentada, onde muitos homens já caíram desmaiados. Tudo tresanda mais por causa do calor, este sítio fede tanto quanto fode.” Mas julgo que é nesta curta passagem, acerca de uma puta de 42 anos, que parecerá ter chegado ali com as caravelas, imagino eu, que melhor explica este lugar, esta Vila Mimosa, este lado escuro do Brasil, como tantos pelo Brasil adentro: “Espreitar o mal dos outros é coisa de ricos, a curiosidade mórbida é um luxo, porém o facto é que Sabrina aprecia a minha companhia, só porque eu não tenho doenças, nem lhe vou bater ou cuspir para a cara, possuo os dentes todos na boca e digno-me a tratá-la como um ser humano.” (p. 60)

Mas há também Vanda. A bela e jovem Vanda, que se aproxima do narrador e diz: “E aí? Vamos namorar bem gostoso?” E esta situação, a da beleza surgir no meio do nada e aproximar-se de nós como uma miragem, como um sonho, como a verdade que não existe, leva o narrador a escrever: “Uma mulher bela dizendo coisas porcas é como se falássemos com nós mesmos.” E depois de Vila Mimosa há o verdadeiro interlúdio deste livro, pois não se trata de um interlúdio formal: os arrepios 14 e 15; os arrepios da Y. Nestes arrepios, onde o narrador tem um caso, que julga ser único, o verdadeiro amor, com essa mulher que “tem uma relação agridoce com o consumismo” (p. 78), a Y, o autor faz-nos ver por dentro o quão ridículo é estar apaixonado e ao mesmo tempo tão diferente, tão especial. No fundo, estar apaixonado é um interlúdio na existência.

E Luís Brito escreve-nos nestas páginas, que são brilhantes em tantos momentos, a infantilidade de querer ver no outro aquilo que ninguém é ou pode ser. Escreve até as frases que dizemos nesses momentos, escreve até as que pensamos, e que se ditas em voz alta, coramos de vergonha, mas aqui fazem todo o sentido serem ditas em voz alta, e eu passo a lê-las: “Esfregar a minha cara na dela foi como voltar à barriga da minha mãe, reunir-me com o Universo, deixar de me sentir mutilado, voltar a ter o que perdi antes de nascer.” (p. 72) Mas ele não escreve apenas o que pensou ou o que disse. Ele descreve esses dias, fazendo-nos continuamente – ao viajar não apenas nas imagens dele, mas nas nossas memórias – ir da saudade à vergonha.

E no início do décimo sexto arrepio já tudo volta à normalidade, a vida encontrou modo de assumir a sua natureza, e Y acaba com uma relação que nem sequer tinha começado, fazendo com que o narrador volte a levar-nos nesta viagem por si mesmo e pelo Brasil. E, um dia depois de Y, no décimo arrepio, aparece Z, uma mochileira que o narrador encontra na estação de ônibus, quando se prepara para viajar para norte. E passo a ler: “Não interessa para onde vou, ou pelo menos por agora. O que interessa é isto: na estação de autocarros, enquanto espero pelo meu, vejo uma mulher com uma mochila de viagens, igual à que guarda as minhas coisas. A mesma marca, o mesmo modelo.” Comento eu agora: se isto não é um sinal dos deuses, então não percebo nada do cosmos. E o narrador escreve: “Aproximo-me para me certificar de que ela é real. Ou melhor, quero saber se ela é bonita, pelo menos o suficiente para lhe poder chamar Z. / Confirma-se. Damos um beijo na boca, ali naquela estação, meia hora depois de nos conhecermos.” E assim termina o décimo nono arrepio.

O livro balança magistral e continuamente entre a comédia e a tragédia. O narrador mais do que viajar nele mesmo, parece viajar de mulher em mulher, como um D. Juan. Mas aqui, neste livro, um D. Juan de papel, um D. Juan que ao invés de seduzir é continuamente seduzido e descartado. Mais do que uma viagem pelo Brasil, por uma pequeníssima parte do Brasil, que também é, evidentemente, é uma viagem pelo feminino, uma viagem pela necessidade de feminino que o narrador tem. E o leitor pressente, talvez erradamente, que ele só não fica numa das letras do abecedário, porque as letras o vão sucessivamente rejeitando. É um livro onde a fragilidade da natureza humana é exposta parágrafo a parágrafo. Não estamos apenas sós, estamos sós e já nem sequer fascinados por um resgate eficaz dessa solidão. Deixamos de acreditar, ao fazer do corpo o único deus que existe. E o Rio, talvez mais do que qualquer outra cidade, é a Meca do corpo. E é precisamente aqui que um homem, o narrador, busca um além-corpo, como um cristão em busca de Cristo na Meca do Médio Oriente. Se o livro é pontuado por paradoxos, quase à exaustão, este é o paradoxo leitmotiv do livro, que já o dissemos no início deste texto: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Depois de um fascinante vigésimo arrepio, em Búzios, onde o narrador reencontra Mariano, um argentino que conhecera cinco anos antes em San Sebastian – remetendo-nos para o seu primeiro livro Alcatrão – o vigésimo primeiro arrepio começa assim: “O abcedário deu a volta. Conheci a letra A. É das mulheres mais bonitas que vi na vida. (…) e dou-lhe a letra A, como quem diz que ela é ‘a mulher’. Ela, a A, a mulher que me cuspiu na cara, e a quem agradeço por isso.” (p. 89) Mas esta mulher, “a mulher”, ele conhece-a através da mãe, dona do hostel onde o narrador fica, em Itacuatiara, lugar das melhores ondas do Brasil, e através da mãe, com quem faz jejum de sete dias, começa a apaixonar-se por uma das filhas, que ainda não conhece. A mãe é Rosângela, macrobiótica convicta, depois de anos e anos nos ácidos. E o narrador escreve: “A partir do sétimo dia, diz a bíblia macro-biótica, os efeitos do jejum alastram-se à mente e ao espírito, curando problemas existências ou traumas, conspirando-se até que é possível chegar ao contacto com vidas passadas, à nossa alma e à amostra da divindade.” Quantos homens já não disseram à sua amada: por ti deixava de comer? Pois o narrador deste livro fá-lo mesmo, e por sete dias. Escreve: “Eu fi-lo para conquistar uma mulher, e o melhor de tudo é não ter conseguido.” (p. 113) Percebemos que o conjunto de poemas, intitulado “Jejum”, foram escritos durante essa provação (que palavra estranha para um jejum de sete dias). O último suspiro, o vigésimo quarto, é belo e triste como um azulejo gasto, onde através dele adivinhamos tudo o que foi, incrustados agora em tudo o que é.

Oi? é um livro belo e triste, uma trágico-comédia, como a própria vida, em que o narrador nos surge tantas vezes como alguém que vive a sua vida a brincar com bonecas, mas que ao invés de as partir, são elas que o partem. E, nesta sua forma de brincar, mostra-nos o mundo à volta dele e dos outros. O mundo à nossa volta. E como ele é grande e diverso, contrariamente ao que as frases que nunca saem de casa, nos dizem. Luís Brito escreve o seguinte, logo à página 25: “Se uma pessoa decidir viajar por causa dos meus livros, para curar angústias, tédios, depressões amorosas ou qualquer comichão inquieta, tudo isto valeu a pena.” E eu termino esta apresentação, parafraseando-o: se depois destas páginas, vocês sentirem vontade de ler o livro, este texto valeu a pena.

5 Dez 2017

OI, de Luís Brito

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]i é o quarto livro de Luís Brito. Três deles de prosa e um de poesia, embora este de poesia esteja dentro de um dos livros de prosa, precisamente o livro que aqui nos traz. Todos os três de prosa são livros imersos na vivência da viagem. O humano abre-se à viagem quando se abre ao outro. Abraçar o outro é começar a viagem. O livro está dividido em vinte e seis partes: vinte e quatro arrepios (é assim que o autor divide os capítulos, por arrepios) e dois interlúdios, um em prosa – “O Ser Português” – e outro em poesia – Jejum (e que teve entretanto uma edição autónoma pelas edições Tea For One).

Mas antes de falarmos sobre o livro, é necessário uma breve nota acerca do título do mesmo. “Oi”, que aqui para nós é apenas o modo como os brasileiros cumprimentam os outros, no Brasil é uma interjeição que pede explicação. Porque no Brasil há “oi” com e sem ponto de interrogação. E o livro refere-se ao “oi” com interrogação. Oi? Quer dizer exactamente, “desculpe, não entendi”. E o não estou a entender, pode ter várias razões: ou porque você está a ser indelicado, “mas o que é isso?”; ou porque você não se fez ouvir claramente, “pode repetir, por favor”; ou porque simplesmente o que você diz parece não fazer sentido, de tão estranho que parece, “pode explicar, por favor?” Oi? Por conseguinte, o autor deixa claro que se trata de um livro imerso no Brasil, na sua cultura, na sua perplexidade.

O livro começa no aeroporto de Lisboa e no de Madrid, muito cedo, de madrugada, quando os voos são mais baratos. E o narrador vai iniciar uma viagem ao Brasil com a sua ex-namorada, a X, com quem tinha já planeado e comprado os bilhetes muito tempo antes do tempo se fazer sentir. Agora a viagem, que deveria ser uma celebração, é uma tortura, uma espécie de pena a pagar. O narrador viaja com X, mas logo à saída do aeroporto de São Paulo, separam-se no táxi, depois dele a deixar em casa de familiares, e de ela o aconselhar a ir alojar-se num hostel em Vila Madalena. Ele está apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por ele. Separam-se no início do livro, e ele irá percorrer todas as páginas com ela na cabeça, com ela no coração, com ela na imaginação, que é o lugar aonde nunca se deve levar uma ex-mulher. Mas como se diz no Rio, “não tem tu, vai tu mesmo”. Ou na letra de uma canção When I need to replace her / I am a eraser / anything goês, repetida ao longo do livro, como um refrão do próprio livro. Começa aqui uma viagem das mais estranhas que, hoje em dia, um homem pode encetar: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Provavelmente todos os livros, desde a Ilíada e a Odisseia, dividem-se entre livros de vingança e guerra, por um lado, e livros de viagem por outro; embora os livros de amor sejam também livros de guerra ou de vingança, e livros de viagem. E neste livro de Luís Brito, que é um livro de viagem, estabelece-se logo desde o início um paralelismo entre a viagem e a relação amorosa. Já não se trata apenas do paralelismo entre a viagem e a aceitação do outro, como em Alcatrão, que é um modo de nos entendermos a nós, aqui a viagem encontra um outro modo de nos fazer ver mais sobre nó mesmos: o nós no outro.

Assim, as relações fortuitas, casuais, as “one night stand” são o modo de se ser turista e as relações duradoiras o modo de se ser viajante. Escreve logo na segunda página (página oito do livro): “O problema não és tu – sou eu –, ou o problema não sou eu, o problema é o mundo. É ele que nos torna incapazes de amar, ou talvez seja a pequenez asquerosa do nosso país que nos põe tão tristes e mesquinhos. Separações e divórcios trocados por envolvimentos efémeros. Shots de prazer que em nada compactuam com aquilo que deve ser uma vida a dois – paciência, perseverança, diálogo e caminho na infelicidade.”

Já desde Alcatrão, o seu primeiro livro, Luís Brito traça uma ontologia do ser viajante em contraposição ao ser turista, mas aqui vai mais longe. Neste seu livro, a viagem é muito mais interior do que exterior, as paisagens traçadas são mais subjectivas do que objectivas, são mais acerca do humano que escreve do que dos humanos que são “escritos”. Não no sentido de um auto-centramento, mas antes no reconhecimento de que o outro descrito é uma extensão nossa, ainda que se faça da própria vida uma contínua viagem pelo mundo. Assim, quanto mais o mundo estica, mais o humano encolhe. Podíamos ler à página 169, de Alcatrão, o seguinte: “Saídos de casa começamos por prestar vassalagem à diversidade.

Admiramos os tons de pele e as culturas, vivendo a excitação do incógnito e os choques dos momentos sempre novos. Depois, com o tempo e a prática, ganhamos profundidade na observação e desvendamos comportamentos mais parecidos com aqueles a que chamamos nossos.” Nesse livro, entendíamos o exercício de  viajar como uma tentativa de se perder de si mesmo, isto é, como um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos. Mas aqui, em Oi?, a viagem é a viagem no outro. E também aqui, nesta terra que nos perdemos e nos encontramos. E viajar é parar. Viajar é ter atenção.

Provavelmente, tudo aquilo que o turista evita, pois – escreve Brito, ainda na mesma página da anterior – “Não há nada mais terrível do que uma evidência erguida à nossa frente.” E esta evidência a que o autor se refere é a nossa própria existência, que assume contornos de factualidade na confrontação com o outro diante de nós, do outro em quem atentamos, realmente. Pois há na existência um tremendo paradoxo: a procura de alguém e a impossibilidade de ficar. Luís Brito começa o capítulo “Segundo Arrepio” com as seguintes palavras: “Porque nos juntamos em rebanhos? De quem estamos à procura quando nos pomos no meio da multidão?” Este ímpeto não é o da viagem, mas o do turista. Ir é o verbo turístico por excelência, ficar é o verbo do viajante. Só fica quem viajou, pois quem nunca partiu não fica, está ali agarrado ao lugar como uma árvore agarrada à terra onde foi plantada. Mas quem viaja, mais cedo ou mais tarde irá ficar em outro lugar.

Desde o início, o narrador está perdido. Perdido de amores e perdido no mundo. E Luís Brito – penso que aqui podemos estabelecer esta intimidade entre narrador e autor – não se perde nele mesmo, porque não há um ele mesmo onde se perder. Ele perde-se no mundo a cada instante, neste caso na noite paulista, vertiginosa, como no exemplo radical de David, um sem-abrigo que tinha sido internado num manicómio pela sua tia, de modo a ficar-lhe com a herança, e que lá, no manicómio, foi violado por um enfermeiro e contraiu HIV. É o Brasil “hardore”, que o põe a duvidar, não apenas de si mesmo, mas da sua existência: “David, o homem que parecia um judeu fugido de um campo de concentração, foi-se embora e eu fiquei sozinho em São Paulo. Se é real nunca saberei. Se eu próprio sou real, também é uma questão sem resposta. Por isso aqui está o livro.” (p. 24)

[continua]

28 Nov 2017

A Sombra de Teseu – Quinto Estásimo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ORO DE MULHERES

Temos no fim o que foi sempre!

Teseu descobre um mal maior

Que a força do Minotauro:

Um amor não correspondido.

CORIFEU

Não era amor, como viu Teseu,

Mas as flechas de Afrodite!

E essa mulher não se opôs

Como ela muito bem diz,

Quase já na boca da morte.

(entra a deusa Ártemis)

ÁRTEMIS

Vós vistes hoje aqui no palco

O poder que a deusa tem

Para destroçar um humano.

Por mais que haja quem duvide,

Afrodite é a sem rival,

N’ arte de virar do avesso

Os pobres mortais indefesos

E arrogantes, a um tempo.

Sou a única deusa sã,

A única que não inveja

O poder destruidor dela.

Até Zeus teme o seu poder,

Pois nem a seu pai ela poupou

Da febre radical da paixão.

Ela não tem nenhum descanso

Da arte vil de enlouquecer

Pelos olhos, mortais e deuses.

Nada é pior que uma imagem

Escavando uma vontade.

Muito foram os seus amantes.

E assim se comportem todos!

Deseja ela ao mundo inteiro.

Serenidade é uma afronta,

No equilíbrio ela cospe.

Afrodite só tem ódio.

A sua vida é a carne,

Não dá aos mortais um bem comum,

Pois dela nunca vem encontro.

Desata os olhos em quem quer,

A ilusão de se ser livre.

Faz correr para uma imagem

E os pobre seres confundem

Um exército de desejo

Com a elevação do amor.

E eu, que me chamo Ártemis,

Digo com pesar a verdade.

Reconheço previamente

A minha derrota p’ra deusa

Afrodite, traiçoeira,

A filha de Zeus e minha irmã.

E mesmo deusa, puta é puta.

Nada tem valor, só a carne.

Só tem olhos para três coisas:

Corpo, rosto, boas erecções.

(Ártemis sai e entra Teseu em cena)

ÊXODO

TESEU

Como continuar? Fedra faz-me matar meu único filho, casto como a sua deusa, incapaz de ofender quem quer que fosse, depois mata-se e ainda me diz que, depois da verdade dita, posso continuar, como se me quisesse matar com as minhas próprias palavras, ou por causa dessas mesmas palavras. Como continuar vivo agora? Como carregar um dia até ao outro e até ao outro e perfazer uma semana, perfazer um mês, perfazer uma vida? Como lutar contra o que não existe mais, único inimigo que nos faz sofrer?

AFRODITE

Como estás enganado, filho de Egeu! Como estás enganado, pobre mortal!

TESEU

Afrodite, és tu? És mesmo tu, ou estou a delirar?

AFRODITE

Sou mesmo eu! Não estás a delirar.

TESEU

E porque dizes que estou enganado?

AFRODITE

Porque tudo isto é culpa de Hipólito, teu único filho!

TESEU

Culpa de Hipólito, como, deusa?

AFRODITE

Por me ter ofendido gravemente, Teseu!

TESEU

E como te ofendeu ele, Afrodite?

AFRODITE

Várias vezes, e até nas salas deste palácio. Ele me diminuiu aos olhos dos outros deuses; principalmente aos olhos de minha irmã, Ártemis. Teu filho foi o mortal mais prepotente que encontrei na minha imortalidade, filho de Egeu! A prepotência dele superava a tua força na horas de combate e de superar dificuldades, Teseu.

TESEU

Era apenas a juventude a falar por ele, deusa. Sabes como os jovens são fortes em demagogia, fortes em não saberem o que dizem. Que sabia ele da vida, Afrodite?

AFRODITE

Não sabia nada da vida, Teseu. Nisso, como em muitas coisas, tens toda a razão! Mas não é desculpa para ofender os deuses. Não se saber o que é a vida não concede a liberdade de procurar desenfreadamente a morte. Porque quem a procura, encontra-a. Só ele tem culpa na sua morte, Teseu. Mais ninguém! A arrogância com que ofendia os deuses que não fossem a minha irmã, Ártemis! Confesso que fui eu que tramei tudo, filho de Egeu, mas não julgues que a tua mão matou por mim o teu filho. Hipólito ofendeu outros deuses! Quem por ti matou Hipólito, posso dizê-lo agora, foi o pai de todos os deuses, Zeus.

TESEU

Zeus?!?

AFRODITE

Sim, Zeus, Teseu! Zeus estava cansado da ousadia de Hipólito, da soberba do jovem, que pensava, por ser o preferido de Ártemis, que era igual a ela. Hipólito era um mortal que não sabia qual o seu lugar, filho de Egeu! Ele morreu às tuas mãos, mas quem o matou foram os deuses. Quem o matou foi Zeus. Ele não aceitaria o exílio de Hipólito, Teseu. Hipólito nunca entendeu que não se pode venerar a um só deus.

TESEU

E Fedra? Fedra é culpada de quê, Afrodite?

AFRODITE

Fedra foi apenas uma pedra atirada contra Hipólito, uma pedra atirada contra esta casa, pela culpa ímpia de teu filho, a quem todos chamavam de casto, mas que, como já te disse, não passava de um arrogante que desprezava todos os deuses, exceptuando Ártemis. Fedra, se culpa tem, é a de não ter tido forças para afastar o desejo pelo corpo de Hipólito, que as minhas flechas incendiaram.

TESEU

E que culpa é a minha, para carregar tamanho castigo?

AFRODITE

Nenhuma, Teseu! Nada podes contra o rumo da vida. Hipólito não se tornou arrogante por tua culpa. Mas os deuses também não podiam desculpar-lhe a impiedade, somente por ser teu filho. No mundo, o que parece ser um grande bem não passa de uma grande miséria. E é fazendo o que não se quer que os deuses ajudam os mortais. Não és tu, Teseu, a maior prova disto que digo? Houve alguém mais posto à prova em sua vida, do que tu, logo desde o nascimento? E houve alguém que mais tenha atirado os males pela borda fora, de todas as embarcações ao longo da vida? És e serás sempre um exemplo para os mortais! A dor é apenas a tua sombra.

21 Nov 2017

A Sombra de Teseu

(assim que a criada sai, vira-se para Fedra)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo explicas que nem a tua criada alguma vez tenha sequer ouvido falar de tal trama? Como explicas que ela sequer tenha sabido do teu desconforto, como dizias, acerca dos avanços de Hipólito? Queres convencer-me que se tal acontecesse, tu não abririas o teu coração, a tua preocupação com aquela que te viu crescer e que te ajudou a chegar com vida até aqui?

FEDRA (como se algo a tomasse, como se não tivesse mão em si)

Porque não confessas que nunca me amaste, como amaste Antíope, a grande amazona, mãe de Hipólito? Porque não acreditas nas minhas palavras, mesmo que os factos pareçam contrariá-las? Mas sabes porque é que não acreditas? Sabes porquê, Teseu, sabes? Porque não me amas e nem nunca me amaste, de verdade! Porque se me amasses, acreditarias sem pestanejar. Acreditarias em mim como se a minha própria voz fosse a voz de uma deusa. Mas não, tratas-me como a qualquer mortal, com justiça! Mas que justiça tem o amor, Teseu? Que justiça? Achas que é por justiça que estremeci em teus braços, com o teu peso sobre o meu frágil corpo? Não, não há um grama de justiça no amor, Teseu!

TESEU

Falas em não te dar ouvidos? Eu, que matei meu próprio filho, meu filho único, porque tomei por certas as tuas palavras?

FEDRA

Mas não foi por mim que o mataste, Teseu! Não te enganes a ti mesmo. Mataste Hipólito, porque como o homem mais forte da Hélade preferes matar teu filho por engano, e assim preservar a tua honra, do que, embora certo, não o matar e com isso manchares a tua honra por todos os gregos. Não te deixes enganar, Teseu, foi por orgulho que mataste teu filho! Não foi por amor, não foi por mim. E nem por justiça… talvez até tenhas morto por ódio, mas não por amor.

TESEU

Não foi por amor, dizes? Por ódio? Que ódio, mulher? Sou um guerreiro! Guerreiro algum traz ódio em seu coração, a não ser que procure a morte na lança ou na espada mais próxima. O ódio é o veneno que mata a concentração, que mata a atenção necessária no combate. Jamais cedi ao ódio, mulher! Jamais! Ódio é coisa de mulheres!

FEDRA

Por amor é que não foi!

TESEU

Não é de amor que falas quando dizes amor, Fedra! Aquilo de que falas é de paixão, falas das flechas de Afrodite, não das flechas de Eros.

FEDRA

Flechas são flechas, Teseu! Quando nos atingem fazem-nos doer.

TESEU

É verdade, Fedra! Mas as flechas de Afrodite são venenosas. Atingem o corpo, mas arruínam todo o senso de uma pessoa. Cegam-nos para a vida! Assim como me parece que tu estás, Fedra!

FEDRA

Cega para a vida, eu?

TESEU

Sim, Fedra! As tuas palavras não são tuas. As tuas palavras nascem do veneno das flechas de Afrodite! Já vi esse veneno a espalhar-se pelo corpo e pelo juízo de muitos, sei identificá-lo quando o vejo. As palavras não mentem.

FEDRA

As palavras não mentem, dizes? (e ri-se como louca) As palavras não mentem, diz o senhor todo poderoso, o rei de Atenas, o mais forte e corajoso dos homens! (e volta a rir-se novamente)

TESEU

O conteúdo delas mente, Fedra! Sou guerreiro, mas os juízos e pensamentos nunca me foram estranhos, como bem sabes. Aquilo que elas dizem ou querem dizer são ou podem ser mentira, mas não o modo como elas são pronunciadas. E o descontrolo com que falas mostra o veneno de Afrodite a percorrer-te as veias, a minar-te o juízo, a arruinar-te a vontade. Vejo-o agora claramente! E como lamento não o ter visto antes.

(silêncio)

Responde-me, por favor: Hipólito também estava apaixonado por ti, ou só tu foste atingida pelas flechas de Afrodite?

FEDRA

E isso muda alguma coisa, Teseu? Qual seja a minha resposta vai insuflar vida naquele corpo que arrefece neste palácio?

TESEU

Nenhuma vida volta da morte sem que os deuses o queiram. Mas uma vida para continuar tem de saber a verdade, tem de saber o que aconteceu. Nenhuma vida segue o seu caminho nas mãos da Dúvida!

FEDRA

Pois então deixa-me dizer-te que irás continuar a tua vida sem continuar, rei de Atenas! Desta boca não sai nenhuma verdade.

TESEU

Que te aconteceu, Fedra, para te tornares uma tão vil criatura?

FEDRA

O que me aconteceu, amado, foi o corpo de Hipólito! A imagem dele em mim, aqueles braços de pequenas árvores, aquele peito de alegria pura, a barriga de escudo de Esparta, as pernas que costumavas usar quando me conheceste. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Todos os dias vê-lo, e vê-lo através da tua ausência, e vê-lo através de nenhuma palavra atirada à minha vaidade. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Não sou apenas a tua mulher, homem! Sou uma mulher! Sim, é verdade, primeiro sou tua mulher e só depois sou mulher. Mas as tuas constantes ausências fizeram com que se invertesse a ordem das coisas.

(pausa)

Ou tu julgas que Afrodite não sabe a quem disparar as suas flechas? Julgas que Afrodite seria capaz de disparar flechas a Hipólito? Julgas que seja capaz de disparar flechas a quem não tem uma falha na existência? Julgas que Afrodite seria capaz de vergar Hipólito, à força de flechas, Teseu? Julgas isso mesmo? Julgas que os deuses têm esse poder todo? Há os deuses e há as nossas falhas, meu amado! Ninguém fortalecido seria derrubado pelas flechas de Afrodite. Julgas que, anos atrás, Afrodite teria poder de me vergar a outro homem? Nem com milhares de flechas, Teseu! A culpa não é só da deusa. A culpa é de todos. Da deusa, minha, tua e até de Hipólito. Sim, de Hipólito, pois embora ele seja imune à paixão, deveria conter-se na sua apresentação, pois a maioria não é como ele. Sem querer, ele mesmo instigou a flechas de Afrodite. E a sua ignorância não o perdoa de nada. Não sabia do que era capaz de despertar numa mulher? Soubesse, pois tinha idade e corpo para isso.

(junto a Teseu, quase cara com cara)

Não sou vil, Teseu, sou mal amada.

(desembainha a espada de Teseu e afasta-se, com ela na direcção dele, para que não se aproxime)

Não venhas ter comigo, Teseu. Há muito que te afastaste. Não venhas agora. Agora é tarde. Dói-me mais a morte de Hipólito do que a minha ou do que a possibilidade da tua. Sim, desejei vê-lo morto por não me querer! Mas a morte dele é um absoluto não.

(silêncio, Fedra dá-se conta do que disse)

Pronto, já podes continuar, homem vivo! Já sabes que ele não me desejou, que ele me recusou, que ele dizia a verdade, naquela sala onde lhe derramaste a vida no chão, pelos intestinos. Sabes tudo, meu amado! Agora sabes tudo e poderás continuar. E não irás carregar nem a culpa, nem a justiça da minha morte Teseu. Pois prefiro matar-me, a ser morto pelo pai daquele a quem amei. E que me importa que não seja amor? Que me importa que não seja amor o que sinto, o que senti por aquele corpo? Importa-me que tenha sido paixão? Importa-me que tenha sido desvario? Importa-me alguma coisa, filho de Egeu? Não me importa nada! Nada. Talvez morta possa ainda encontrar e viver naquele corpo! Aquele corpo era a razão de ser desta minha vida. A razão de ser deste meu desprezo por ti, Teseu. Nenhum homem, nem o Minotauro te derrotou, mas foste derrotado pela imagem do teu filho. Aqui, aqui (e bate no ventre) arde uma vontade pelo homem a quem deste o seu ser! Não foi daqui que ele veio, como o fizeste vir de Antíope. Era para aqui que eu queria que ele viesse, como um dia tu mesmo vinhas! Aqui, Teseu, (e bate no ventre), aqui! Lembras-te? Esta terra, na minha vontade, hoje e para sempre será sempre de Hipólito.

(e cai sobre a espada de Teseu ao encontro da morte; entra o coro de mulheres)

14 Nov 2017

A Sombra de Teseu

TESEU

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara ser justo com os deuses

Tenho também de matar Fedra,

Pois as palavras dela mentem

Tanto ou mais que as de Hipólito.

Lembro bem que ela exigiu

Que meu filho trouxesse provas

De que Teseu estava morto.

Mas dessa prova nunca falou

E só de palavras fabricou

A ciência da verdade.

 

CORO DE MULHERES

E Teseu tem agora poder

Para decidir por si mesmo?

Não basta ter morto seu filho,

Matará ainda a mulher?

E nesta decisão quem faz

O gesto final com as mãos,

Ele ou algum deus perverso?

 

CORIFEU

Só a verdade aqui decide!

A verdade do que é certo

É património de Dikê,

Honrada deusa da justiça.

 

CORO DE MULHERES

Uma deusa é uma deusa!

Sempre há-de fazer de nós

Aquilo que bem ela quer!

Se é Fedra que é culpada,

Também agora será Teseu!

Inocente só Hipólito.

E o coitado está morto.

 

(Teseu entra nos aposentos de Fedra)

 

QUINTO EPISÓDIO

TESEU

Podes dizer-me, Fedra, qual foi a prova da minha morte, que Hipólito trouxe à tua exigência, aquando da sua chegada, que não perfaz ainda uma volta do sol à Terra?

FEDRA

Que dizes, meu amado? (surpresa e amável)

TESEU

Pergunto-te pela prova exigida, onde está essa prova?

 

FEDRA

De que prova falas, meu marido?

 

TESEU

Aquela que exigiste como comprovação da minha morte e que levaria Hipólito à tua alcova.

 

FEDRA

Dei à minha criada para destruir, Teseu.

 

TESEU

Mas viste, antes de lhe dares a prova para destruir. Que prova era essa?

 

FEDRA

Era uma das tuas sandálias, Teseu! Pelo menos pareciam. Ele mesmo se esforçou por mostrar isso mesmo, que era uma das tuas. Disse tê-la encontrado junto a um corpo em decomposição, impossível de identificar, que ele mesmo, com seu criado, enterrou. A sandália tinha aquela marca junto ao calcanhar, que tu sempre fazias, sempre fazes, logo que o artificie tas entrega.

 

TESEU (gritando para fora dos aposentos)

Guardas! Guardas!

 

FEDRA (assustada)

Que foi, meu marido?

 

TESEU

Nada com que tenhas de te preocupar, Fedra.

 

(entra o chefe dos guardas, com mais dois atrás dele)

 

CHEFE DOS GUARDAS

Que deseja destes seus servos, meu rei?

 

TESEU

Ide buscar imediatamente a criada de Fedra e tragam-na aqui!

 

FEDRA

Para que queres a minha criada aqui? Não confias nas palavras que te digo?

 

TESEU

Tenho o dever de escutar todos os envolvidos nesta trama. Meu filho, meu único filho jaz morto neste palácio, devido a esta trama. Para não enlouquecer completamente tenho o dever e a obrigação, para com ele, para comigo e para com a Hélade, de escutar a tua criada. Espero que entendas, Fedra!

 

FEDRA

Compreendo, meu amor. Mas que pode uma criada dizer?

 

(entra a criada)

 

CRIADA

Vós mandaste-me chamar?

 

TESEU

Eu mandei, mulher! Quero fazer-te umas perguntas.

 

(ao ver a criada tentando encontrar os olhos de Fedra, diz)

 

TESEU

Olha para mim, mulher! Para mim! Antes de me responderes, é como se Fedra estivesse morta, não existisse mais. Quando Hipólito chegou de Atenas, que objecto Fedra te entregou, para que lhe desses um fim eterno?

 

CRIADA (sem saber o que fazer, mas depois de algum desconfortável silêncio)

Não sei, senhor! Minha senhora deu-me algo, sim, mas embrulhado num pano, e não desembrulhei para ver do que se tratava. Ela disse-me apenas para me livrar disso, lhe dar um fim eterno.

 

TESEU

Queimaste o que Fedra te deu, foi?

 

CRIADA

Sim, meu senhor, dei-lhe um fim eterno!

 

TESEU

Estou a ver, mulher. Responde-me então a mais uma coisa. E isso foi antes ou depois da tua senhora se deitar com Hipólito? E não olhes para Fedra, se queres continuar viva!

 

CRIADA (muito atrapalhada e balbuciando)

Mas, mas… eu não sei nada sobre isso, senhor! Nunca soube de minha senhora ter-se deitado com Hipólito…

 

TESEU

Nunca deste conta sequer de que Hipólito se insinuasse a Fedra ou mesmo a tenha tentado seduzir?

 

CRIADA (atrapalhada, mas após um curto silêncio, desenvolta)

Meu senhor, é possível que isso tenha acontecido, sim. Fedra continua uma bela mulher. E, Hipólito, pensado talvez que o senhor tivesse morrido… Não sei, pode ter afectado a cabeça dele.

TESEU

Já escutei o que precisava escutar, mulher. Podes ir embora. Sai!

10 Nov 2017

A Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo]

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]IPÓLITO

Muito obrigado, Teseu! Decidiste justamente.

TESEU

Continuo a acreditar em Fedra, Hipólito! Mas estás certo quando referes os diferentes comprimentos do fio de espada. Aguardemos que Fedra chegue.

(algum silêncio e Fedra entra em cena)

FEDRA

Que desejas de mim, meu marido? (vê Hipólito e fica surpresa e contrariada) Que faz ele aqui, meu amor?

TESEU

Fedra, Hipólito lembrou-me os ensinamentos que eu mesmo lhe dei: podemos ajuizar erradamente, mas não podemos ajuizar negligentemente. Por isso, quero exigir de ambos o mesmo comprimento de espada: factos e palavras. Já sei da tua parte do relato, quero agora escutar a de Hipólito e que estejas presente, para contrariar com factos, se possível, ou argumentando acerca da mentira das palavras dele.

FEDRA

Minha parte? Agora aquilo que digo é a minha parte e não a verdade? Desde quando a minha palavra ficou no mesmo chão de um cão sem dono?

TESEU

Por muito que me custe, Fedra, este é o preceito, este é o modo justo de proceder em relação a algo tão grave.

 FEDRA (furiosa)

Não me vou prestar a isto! E se queres saber, Teseu, não me importa se acreditas ou não em mim. Se preferes acreditar nele, acredita, e toma as providências necessárias a essa decisão, mas eu não vou ficar aqui, vou embora. (e sai)

HIPÓLITO

Não achas este comportamento estranho, Teseu?

TESEU

Deixemo-nos de hermenêuticas estéreis. Já escutei a parte dela, conta-me então agora a tua!

HIPÓLITO

Como tentei dizer-te antes, ainda nem o sol deu uma volta completa à Terra e Fedra estava no pequeno jardim do palácio tentando seduzir-me. Acabou mesmo por me dar um beijo na boca. Empurrei-a e fugi. Envergonhado com tudo.

TESEU

Envergonhado com o quê?

HIPÓLITO

Envergonhado com isso ter acontecido. Envergonhado por tudo. Por ti, por mim, por ela, por esta casa…

TESEU

Se o que dizes é verdade, então porque razão Fedra inventaria outra história, em que ela mesma sai prejudicada?

HIPÓLITO

Não vês, Teseu, que ainda que ela saia prejudicada, eu fico muito pior, nessa história que ela conta? Ela pode até acabar com o vosso casamento, mas acaba também com a minha vida.

TESEU

E por que razão ela quereria acabar com a tua vida, se tivesse acontecido aquilo que me contas? Por tê-la empurrado? Por tê-la rejeitado?

HIPÓLITO

Que sei eu do que pensa uma mulher, Teseu?

TESEU

Mas para quem não sabe, adiantas muitas conjecturas…

HIPÓLITO

Não são conjecturas, mas pura dedução.

TESEU

Pura dedução, disseste? Pura dedução? Pura dedução, Hipólito?

(desembainha a espada e rasga os intestinos de Hipólito; entra o coro de mulheres)

QUARTO ESTÁSIMO

CORO DE MULHERES

Pobre desgraçado, Hipólito!

Julgava estar protegido

Pela devoção a Ártemis,

Mas ninguém tem mais artimanhas

Do que a deusa Afrodite.

Contra ela nenhuma razão

Um dia irá ter efeito.

A intempérie duma paixão

Arrasará até amores;

De qualquer pai pelos seus filhos

Ou dum marido pela mulher.

Que mortal pode se defender

Deste tão poderoso ataque,

Se não arrancar os seus olhos?

É sempre por uma imagem

Que a história começa.

Também se conta que escutar

Pode ser mal de Afrodite.

Pois há palavras que não são

Nem neste mundo nem em outro,

Apenas mentira, ilusão.

Com uma palavra se morre,

 Se Afrodite assim quiser.

CORIFEU

Como vós estais enganadas!

Fedra, a única culpada,

É bem pior do q’ Afrodite.

Digo: foi ela e só ela

Que destruiu a sua casa!

A deusa acendeu-lhe o corpo,

Mas não acende a todos nós?

E destes todos, quantos cedem

À tentação de continuar

Até que não haja mais volta?

Nenhum deus tem esse poder

De sem nossa ajuda nos matar.

31 Out 2017

A Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo]

(entra o coro de mulheres)

CORIFEU

Fedra é pior que víbora!

Fedra é pior que víbora!

CORO DE MULHERES

Que culpa tem, se Afrodite

Teceu o destino da paixão?

Ninguém se dá a sua vida,

Ninguém escolhe a sua morte.

CORIFEU

Mas vede como sofre Teseu!

(Teseu entra em cena e fala consigo mesmo)

TESEU

Um pai responde por um filho?

De que adianta tudo o que se faz,

Se os filhos serão sempre o que os deuses quiserem?

Para quê fazer filhos,

Se nos serão sempre menos que a nossa própria sombra?

Quem fará chegar o mal a um coração

E porquê, porquê?

E existirá maior mal do que um pai assistir à sua vida cair na lama

Pela acção de um filho?

Os tempos passados foram iluminados por desastres

E os futuros não serão melhores.

Porque teimamos ainda em prolongar a vida,

Através de novas gerações?

Com que forças hei-de agora mandar prender meu filho,

Condená-lo ao exílio,

Para se arrastar por terras desconhecidas sem nada

E sem ser nada entre essas gentes?

O exílio é pior que a morte!

É morrer todos os dias

E saber que se vai morrer sempre mais no dia seguinte.

Mas não matar um filho que merece a morte,

Concede-nos sempre um horizonte de espera que o mundo mude.

O mundo não muda, mas enquanto se espera pode mudar.

Mando Hipólito para mil mortes,

Mas fico com o coração nas amuradas da espera de que algo mude,

De que nada seja como tem sido.

Estas vãs mãos mortais,

Que nada podem fazer de verdadeiramente importante!

(entram guardas em cena)

CHEFE DOS GUARDAS

Mandaste-nos chamar, rei?

TESEU

Mandei, sim! Vão nos aposentos de Hipólito e prendam-no! E tragam-mo aqui, feito já prisioneiro.

(Hipólito entra em cena, com os guardas, e confronta-se com Teseu)

QUARTO EPISÓDIO

HIPÓLITO

Meu pai, que loucura vem a ser esta? Porque me fizeste prisioneiro em nossa própria casa?

TESEU

Ainda te atreves a perguntar porquê, miserável? Nem coragem tens para assumir perante mim aquilo que fizeste?

HIPÓLITO

Mas que fiz eu, meu pai? Que mal fiz, para ser tratado como um cão que morde o dono?

TESEU

Não escolheste bem a comparação, Hipólito! Um cão que morde o dono é ainda digno de pena, mas tu não! Tu és aquele que ataca no escuro da noite e pelas costas a parte fraca de quem te deu a vida.

HIPÓLITO

Não estou a entender o que minha mãe tem a ver com isto…

TESEU

Não é a tua mãe, mas a minha mulher.

HIPÓLITO

Fedra? Falas de Fedra?

TESEU

Sim, Fedra! Falo de Fedra, minha mulher, tua madrasta, tua rainha…

HIPÓLITO

Mas que mal fiz eu a Fedra? Ártemis é minha testemunha!

TESEU

Nenhuma deusa protegerá um homem como tu!

HIPÓLITO

Mas que fiz eu, meu pai?

TESEU

Não te atrevas a chamar-me de pai mais vez nenhuma, ou serei eu mesmo a acabar com a tua vida, trespassando-te aqui com o fio da minha espada!

HIPÓLITO (sorrindo de espanto)

Não acredito! Não acredito que aquela bruxa conspirou contra mim e que meu pai acreditou nas suas palavras!

TESEU (desembainhando a espada)

Cala-te, ímpio! Cala-te ou teus intestinos irão feder esta sala, agora mesmo!

HIPÓLITO (cala-se e depois volta a falar com moderação)

Teseu, escuta primeiro as minhas palavras, por favor! Nunca foste parco de justiça, não comeces agora.

(perante o silêncio de Teseu, Hipólito inicia a sua defesa)

Ainda nem o sol rodou um dia à volta da Terra, e Fedra tentou seduzir-me, Teseu!

(este joga a mão à espada, novamente, e Hipólito estende a mão, pede)

Espera, Teseu! Espera, por favor. Escuta tudo até ao fim, mesmo que te custe, pois essa é a tarefa de um juiz. Talvez pela ausência de notícias tuas, não sei, ela…

TESEU

És capaz de me dizer que não foste procurar-me em Atenas?

HIPÓLITO

Fui procurar-te, sim. Não era só eu que estava preocupado, mas também Fedra. Fi-lo para lhe dar descanso.

TESEU

Não é então verdade que quiseste tê-la como mulher e foste a Atenas em busca da prova da minha morte, de modo a que ela se entregasse a ti, como te tinha prometido se se confirmasse a minha morte, Hipólito?

HIPÓLITO

O quê? Que loucura é essa, meu… Teseu?  Que loucura é essa? Que renegue a Ártemis se tal enredo aconteceu de verdade! As palavras são capazes de tudo, Teseu. Meu pai sabe bem disso! Mas quererá isso dizer que seja verdade? Agora, aqui mesmo, posso dizer que matei Fedra. E as minhas palavras fazem disso verdade? Está por acaso Fedra morta?

TESEU

Deixa-te de palavreado, Hipólito! Quero factos! Factos!

HIPÓLITO

E exigistes factos a Fedra, quando a escutaste? Exigiste, Teseu? Ou só os exiges a mim?

(Teseu fica um pouco confuso e Hipólito aproveita para continuar)

Porque não chamas Fedra agora, aqui? E exiges de ambos factos. E escutas de ambos as palavras. Um frente ao outro, Teseu. Assim continuarás a ser o bom juiz que sempre foste. Não dês mais valor às palavras de um que às de outro. Ela é tua mulher e eu sou teu filho. Mas ainda que não fôssemos para ti senão estranhos, ou só um de nós o fosse, terias de escutar ambos com o mesmo comprimento de espada. Não te parece que tenho razão, que estou certo? Não foi assim que me ensinaste, desde cedo na vida?

TESEU (para o chefe dos guardas)

Envia alguém aos aposentos de Fedra, e que ela venha imediatamente ao seu rei, que é urgente.

(o chefe dos guardas dá sinal a um dos guardas e ele parte)

24 Out 2017

A Sombra de Teseu

SEGUNDO ESTÁSIMO

 

CORO DE MULHERES

Ai que desgraça vem aí!

E Fedra arde de desejo.

É Afrodite e não Eros,

Quem a desvia do seu rumo.

Não tem mão em si, tudo fará,

Para vingar a sua carne

Que arde no sal da desfeita.

 

CORIFEU

Fedra mentiu sem escrúpulos,

Para seduzir Hipólito.

Não ponham as culpas na deusa.

Mulher com desejo é bicho,

Não respeita nem a si própria.

 

CORO DE MULHERES

Quem faz o que os deuses não querem?

Quem sabe o que é uma mulher?

Nem o tempo que tudo tem

Nos pode ajudar nestas questões.

Que pudemos saber da vida?

De quem é que somos migalhas,

De nós próprios ou dos deuses?

Fará alguma diferença

De onde nos chega não saber?

O que é mulher, que é homem?

Nem Fedra sabe dela mesma!

 

(Fedra volta à cena)

 

FEDRA

Que estou a fazer da minha vida?

Porque a arrasto para o lodo?

Que mal me liga àquele corpo?

 

(Fedra cala-se e anda como louca)

 

Mas Hipólito tem de pagar!

Mas Hipólito tem de pagar!

Mas Hipólito tem de pagar!

 

(novo silêncio e põe as mãos sobre o rosto)

 

Deuses, ajudem-me, por favor!

Que loucura esta que digo.

Que culpa tens tu, Hipólito?

De onde vem esta vontade

De castigar-te, Hipólito?

A virtude é a tua culpa.

 

(cai de novo no silêncio)

 

Esta demanda não tem razão,

Só o sangue pode acalmar-me,

Derramado em qualquer lado.

Nem que o universo rua!

 

(nova pausa, leva de novo as mãos ao rosto)

 

Tudo por causa de um corpo!

 

(Fedra sai de cena; a cena agora representa a chegada de Teseu ao palácio)

 

TERCEIRO EPISÓDIO

TESEU (gritando)

Onde está a minha mulher? Onde está Fedra? Alguém a pode avisar da minha chegada?

 

FEDRA (entrando em cena e sorrindo)

Estou aqui, meu senhor!

(estende-lhe os braços, abraçam-se e beijam-se)

Quantas saudades, Teseu! Quanta saudade! (volta a abraçar Teseu e depois pergunta) Mas que aconteceu, porque tanta demora e nenhuma notícia?

 

TESEU

Contra-tempos, Fedra, contra-tempos! Depois conto-te tudo com mais detalhes. Deixa-me agora olhar bem pra ti! Como estás bela, Fedra! Como estás bela, minha rainha!

 

FEDRA (sorri envergonhada e faz notar alguma preocupação)

Obrigado, meu marido! Mas já não sou a flor da Primavera, que por ti era colhida.

TESEU

Serás para mim sempre a mais radiosa Primavera! E acredita quando te digo que não sou só eu que vejo isso, Fedra! Qualquer homem daria um dos seus braços para estar aqui no meu lugar…

 

FEDRA

Daria, sim, porque nesse caso seria rei. (e riu-se)

 

TESEU (dando as mãos ao riso de Fedra)

Sempre com resposta pronta! Sempre fugindo dos elogios como uma serpente foge do falcão. Mas o que te digo é a mais cristalina água da nascente da montanha. Mas deixa-me perguntar àquele belo jovem que chega, e verás quão certo estou.

 

(Hipólito entra em palco)

 

É verdade ou não, meu filho, que Fedra é tão bela como qualquer rapariga do palácio?

 

HIPÓLITO (algo embaraçado)

Meu pai, não sou homem para adocicar palavras! Tão pouco homem para reparar na beleza dos corpos. Mas como você está? Que lhe aconteceu?

 

FEDRA (com ar irónico)

Hipólito realmente tem mais o que fazer do que reparar na beleza dos corpos, Teseu! Muito mais.

 

(Teseu parece intrigado, mas nada diz, olhando um e olhando outro; Hipólito mantém-se calado, olhando o pai)

 

TESEU

Meu filho nada de importante se passou! Apenas contra-tempos, como já disse a Fedra, mas amanhã contarei tudo com detalhes, ainda que não tenha nada de interessante ou misterioso para partilhar.

 

HIPÓLITO

Sendo assim, meu pai, dêem-me licença, vou retirar-me e deixar-vos a sós.

 

TESEU

Vai, sim, filho, falaremos depois. Agora tenho saudades desta beleza que não vês. (e abraça Fedra, com um dos braços)

 

(Hipólito sai de cena e Fedra e Teseu ficam sós; Teseu tenciona beijar Fedra, mas ela esquiva-se)

 

TESEU

Algum problema, Fedra?

 

FEDRA (mostrando-se preocupada, como se algo a atormentasse)

Nada, Teseu! Não se passa nada. Estou cansada.

 

TESEU

Cansada? Cansada de quê?

 

FEDRA

Cansada de esperar, meu marido! Cansada de esperar. De pensar no que poderia ter-te acontecido, o que estarias a fazer…

 

TESEU

Cansada de esperar, Fedra? Não é a primeira vez que me ausento tanto…

 

FEDRA

Mas assim tanto tempo sem notícias, é. Até mandei Hipólito ir até Atenas ver se sabia de ti…

 

TESEU

Mandaste Hipólito à minha procura? Mas qual a necessidade, a urgência de tal decisão, mulher?

 

(silêncio, Fedra não responde, tenta desviar o assunto)

 

FEDRA

O que importa é que estás bem! Que nada te aconteceu e regressaste na mesma alegria com que partiste.

 

TESEU

Infelizmente parece que sou o único com alegria nesta casa! Que se passou Fedra? Que aconteceu na minha ausência?

 

FEDRA

Já te disse que não aconteceu nada.

 

TESEU

Fedra, conheço-te como conheço o fio da minha espada! Sei bem quando algo te preocupa, quando escondes algum acontecimento que possa perturbar-me. (segurando agora Fedra, pelos ombros) Diz-me, por favor, que aconteceu?

 

FEDRA (depois de algum silêncio)

O que aconteceu, meu marido? O que aconteceu? O que aconteceu é que foste desrespeitado! E em tua própria casa. E por aquele a quem te deve o seu ser. Foi isto que aconteceu.

 

TESEU (afastando-se de Fedra e encarando-a estupefacto)

Que dizes? Que dizes, mulher?

 

FEDRA (encarando-o friamente)

Isso mesmo que pensas, meu marido! Isso mesmo!

 

TESEU

Meu filho tomou-te mulher, Fedra?

 

FEDRA

Inicialmente só se insinuava, Teseu. Mas rapidamente se tornou muito inconveniente. Foi quando tive a ideia… ai como vejo agora ter sido uma tão péssima ideia, meu marido!!!

 

TESEU

Mas que ideia foi essa?

 

FEDRA

Não sabíamos de ti há quase cinco meses e já não suportava as investidas de teu filho. Disse-lhe, Hipólito, se teu pai estiver realmente morto, serei tua, mas terás de trazer-me a comprovação da sua morte. Pois não poderei ser tua com Teseu viva. Pensei em ganhar tempo, e que entretanto tu chegasses, Teseu, entendes? (e agarra os braços de Teseu) Entendes, meu amor, entendes?

 

(o rosto de Teseu endurece)

 

Quando regressou, disse que estavas morto e exigiu de mim a promessa que lhe fizera. Este corpo ainda nem arrefeceu do corpo dele, Teseu. (tapa o rosto) Que vergonha, meu marido, que vergonha!

 

(o silêncio ocupa  a cena por algum tempo)

 

Entendes agora a minha preocupação, meu marido? Que devo fazer, meu amor, que devo fazer, dizes-me?

 

TESEU (que parece ter vindo da longínqua terra dos mortos, de Hades)

É Hipólito que tem de se retratar, não tu!

 

FEDRA (violenta)

Retratar, Teseu? Retratar? Pedindo desculpas, talvez, não?

 

TESEU (segurando-a e tentando acalmá-la)

Calma, mulher! Calma. Este crime pede exílio ou morte, como retratação.

17 Out 2017

A Sombra de Teseu

[dropcap style≠'circle'](A[/dropcap] cena representa o jardim do palácio de Trezena; Fedra e Hipólito acabaram de jantar e estão sentados num pequeno jardim privado do palácio)

 

(SEGUNDO EPISÓDIO)

FEDRA

Parece que recuperaste do cansaço da viagem, Hipólito! Pelo menos, é isso que aparentas. Estou certa?

 

HIPÓLITO

Está certa, sim, Fedra. As palavras que disse acerca das más e das boas notícias acabaram por me dar algum ânimo.

 

FEDRA

Fico contente por ter ajudado. Nesta tua viagem aconteceu alguma coisa de diferente?

 

HIPÓLITO

Como assim, de diferente, Fedra?

 

FEDRA

Uma experiência nova. Um olhar novo acerca do mundo.

 

HIPÓLITO

Continuo sem entender, Fedra. Que experiência nova poderia acontecer numa viagem?

 

FEDRA

Hipólito, meu querido, tanta coisa pode acontecer numa viagem! E para alguém jovem e belo como tu, não é somente tanta; tudo pode acontecer. Vives precisamente o tempo de todas as possibilidades, o tempo do infinito que habita os mortais por um período determinado. És hoje esse infinito determinado dos mortais, Hipólito. Que pode acontecer numa viagem, perguntas tu! É como se perguntasses, o que pode acontecer numa vida? Pode acontecer tudo, querido Hipólito.

 

HIPÓLITO

Parece-me que estou a entender o que diz, minha madrasta, mas isso não se aplica a mim.

 

FEDRA

Não se aplica a ti, porquê, Hipólito? Por acaso és um deus, aos quais as leis que regem os mortais não se aplicam?

 

HIPÓLITO (um pouco embaraçado)

Não sou um deus, Fedra, mas sou um devoto obstinado da melhor das deusas, Ártemis. E isso, só por si, faz com que onde quer que eu ande, ou com quem quer que ande, não haja senão a mesma possibilidade de devoção a ela e à sua castidade.

 

FEDRA

E por que dizes que Ártemis é a melhor das deusas, Hipólito? Conheces todas as deusas, todos os deuses para te pronunciares dessa maneira tão peremptória, tão pouco conveniente a um mortal?

 

HIPÓLITO

Não, Fedra, não conheço. Mas do mesmo modo que não preciso de conhecer tudo o que existe, para saber aquilo que me convém, também não preciso de conhecer todas as deusas e deuses para saber aquela que me convém, e que é para mim a melhor.

 

FEDRA

Entendo-te, Hipólito! Mas não podemos julgar os deuses pela nossa medida. O que é um bem pode ser um mal e um mal pode ser um bem, vindo dos deuses e aos nosso olhos. Não achas que o amor entre um homem e uma mulher possa ser um bem, um grande bem?

 

HIPÓLITO

Se for um amor carnal, não. Nenhum amor carnal pode ser entendido como algo superior. Por isso te digo, sem quaisquer dúvidas acerca deste assunto, Afrodite nunca poderá igualar-se a Ártemis; ser-lhe-á sempre inferior.

 

FEDRA

Cuidado com as palavras, Hipólito, os deuses são-nos superiores, mas também padecem de paixões. E não te parece que sem Afrodite, nós mortais, não poderíamos procriar, e assim perpetuar-nos pelo tempo? Não te parece que a nossa imortalidade, ao contrário da dos deuses, passa através do corpo, da união dos corpos?

 

HIPÓLITO

Fedra, minha madrasta, não quero ofender nenhuma deusa, mas não posso deixar de pensar o que penso e assim dizê-lo, se mo pedirem. Esses são os ensinamentos de Ártemis. Quanto à união dos corpos, não vejo nisso nenhuma elevação. Vejo antes uma maldição que nos concederam, aos sermos obrigados a descer ao corpo, para fazermos de deuses e originarmos um filho. Na realidade vejo isso como um grande embuste, Fedra. Os deuses concederam-nos uma pequena imitação deles mesmos, a um preço muito elevado: o de termos de não ser somente alma e espírito. Termos de descer ao corpo para procriar é uma rocha presa ao pé, que não nos deixa voar. Trocava facilmente essa imitação dos deuses por mais uma dívida aos deuses, Fedra.

 

(fica com o olhar longe)

 

FEDRA

E que dívida é essa, que querias contrair com os deuses, em troca da procriação, Hipólito, posso saber?

 

HIPÓLITO (regressando desse olhar longe e fixando agora Fedra nos olhos)

Que os deuses, eles mesmos, nos dessem os filhos, sem que precisássemos de nos deitar com uma mulher.

 

(faz-se silêncio)

 

FEDRA

Hipólito, tens assim uma imagem tão terrível do amor?

 

HIPÓLITO

Do amor, não, Fedra. Do amor carnal! Do amor que Afrodite semeia nos mortais, necessário até para o nascimento dos filhos, mesmo que não exista qualquer elevação entre os pares que se juntam para a concepção dos mesmos. O nascimento dos filhos, hoje, tanto pode ser entre as piores pessoas quanto entre as melhores. E pode até ser entre ambos cruzados, um bom e outro mau. Um filho, Fedra, por si só, não prova nada. Até, ao que parece, nos deuses há os bons e os maus. Olha o exemplo de Zeus que fez uma filha de excelência, Ártemis, e outra…

 

(Fedra tapa-lhe a boca, com furor)

 

FEDRA

Por favor, querido, não digas mais nada!

 

(ficam por momentos nos olhos um do outro e a mão de Fedra entre eles; por fim, Fedra recua um pouco e continua a falar)

 

Há amor carnal, Hipólito, que é realmente como tu pensas que é todo o amor carnal; mas há amor carnal que é elevado, meu querido. Vê o caso de Eros, filho de Afrodite! Não te parece que ele promove verdadeiros encontros, que o amor que nasce de suas flechas é elevado, apesar de despertar um desejo avassalador entre os amantes? Não há um verdadeiro encontro entre dois mortais sem uma atracção fulminante pelo finito e infinito de cada um, Hipólito; uma atracção pelo corpo e pela alma. Este é o amor de Eros! Este é o amor que sinto, Hipólito!

 

(cala-se, de repente, fica ainda um pouco a fixar os olhos de Hipólito, que também a fixa, mas depois desvia-os e vira-se de costas)

 

HIPÓLITO (depois de algum silêncio)

Mas como pode o desejo ser bom, Fedra? Explica-me isso, por favor! Como, se ele mesmo é um alheamento de nós próprios?

 

FEDRA (voltando-se para Hipólito, sorrindo um pouco)

Meu querido, tudo neste mundo pode ser bom e mau, dependendo de nós e do uso que fazemos do que sentimos. Não direi tudo, Hipólito, mas quase tudo. Para ti, nesta vida, o mundo todo é terra ou água, céu ou fogo. Mas devo dizer-te que poucas coisas são assim tão completamente estanques na vida, meu querido. E porque para ti não há nada senão os opostos, como se o mundo não passasse de uma eterna guerra, não consegues ver que o amor carnal de que falas é a paixão sem medida, a paixão sem nada em comum, que não seja o corpo. E que o verdadeiro amor carnal, o amor que nasce das flechas de Eros, é o fim da guerra, a paz entre os opostos; o reconhecimento por parte do corpo de que o desejo só existe mesmo, só existe com tamanha intensidade, porque o corpo viu a alma fora de si, e a alma reconheceu nesse corpo que não é o seu, a imagem perdida com que sempre sonhou.

 

HIPÓLITO

Dito assim, Fedra, parece bonito. Parece até que é verdade, e até dá vontade de senti-lo…

 

FEDRA (aproxima-se de Hipólito, toca-lhe no rosto, olha-o, fala)

E é verdade, querido! É tão verdade como estarmos agora aqui os dois, sozinhos, e sentindo tudo isto, como se o sentimento fosse as asas das palavras que vamos dizendo um ao outro; olhos que falam, meu querido! O que sinto por ti, Hipólito, é amor, é verdade. (e beija o enteado na boca; o beijo dura algum tempo, até que Hipólito empurra Fedra, que se desequilibra)

 

HIPÓLITO

Que vergonha! Que vergonha!

 

(acaba a cena e entra o coro de mulheres)

10 Out 2017

A Sombra de Teseu

[dropcap style≠’circle’](P[/dropcap]RIMEIRO EPISÓDIO)

FEDRA (para si mesma)

Por Zeus, mulher, não voltes a pensar nisso!

(entra a sua criada)

CRIADA

Que diz a minha senhora? A que fantasmas se dirige?

FEDRA

Não são fantasmas, são tristezas. Ainda não se sabe de Teseu.

CRIADA

Já lá vão quantos meses?

FEDRA

Sete meses!

CRIADA

Não haverá mulher nessa história, minha senhora?

FEDRA

Que mulher, mulher? Que mulher? O rei já passou a idade. Afrodite gosta de jovens mortais e de deuses, não iria agora perder o seu tempo e a sua arte com Teseu. Já lá vai o tempo em que Teseu, através de Afrodite, ardia.

CRIADA

Desculpai-me! A minha senhora é rainha e sabe mais do que eu, mas, e que a deusa não nos oiça, ela é muito traiçoeira. Não podemos confiar que a idade seja um escudo capaz de proteger das flechas de Afrodite. E a rainha reparou como o príncipe se parece cada vez mais com o pai, quando Teseu era novo?

FEDRA (disfarçando, como se estivesse distraída)

Quem?… Ah, o príncipe! Não, não reparei. Mas se assim for, não é de estranhar, é a ordem natural das coisas.

CRIADA

Será que Hipólito tem muitas amantes, como seu pai tinha, antes de conhecer a senhora?

FEDRA

Pelo que oiço falar, é devoto da deusa Ártemis. Casto como uma jovem virgem de Esparta, e muito virtuoso.

CRIADA

Que a deusa Ártemis ou Hipólito não provoquem a ira de Afrodite, com tamanha desdenha em relação ao poder do corpo!

FEDRA

Porque dizes isso?

CRIADA

Minha senhora, o mundo está cheio de histórias que se contam, e nenhuma delas boas…

FEDRA

Mas que poderia correr mal, mulher? O príncipe é casto. E é seguramente um jovem equilibrado e dedicado, não iria cometer a imprudência de ofender deuses ou deusas.

CRIADA

Se a minha senhora o diz… Mas que ele é um bonito homem, é. E Afrodite não gosta de perder homens desses para a sua irmã, Ártemis.

FEDRA

A beleza dele só dá mais valor à sua devoção! Virtude e caça perfazem o todo da sua vida. Que mal poderia uma deusa desejar a um homem assim? Ele pode ser muito igual a Teseu, fisicamente, mas no resto todo ele é diferente.

CRIADA

Mas não deixa de ser triste, ver um homem tão belo e pormo-nos a imaginar que nunca fará alguém feliz no leito, que nunca dirá palavras sussurradas ao ouvido de uma mulher, como aquelas que a senhora me contou que Teseu lhe disse, um ano após o vosso primeiro encontro: “Em todas as mulheres belas te vejo, em todas as mulheres feias o medo de te perder.

FEDRA

Não invoques fantasmas, mulher!

CRIADA

Teseu ainda não foi dado como morto, senhora, ainda não é fantasma.

FEDRA

O fantasma da minha juventude. O fantasma das palavras que os homens me diziam e dos beijos que empurravam embarcações. Há quanto tempo não vivo isso! tanto tempo passou, que já morreu. É um fantasma.

CRIADA

Mas atormentam a senhora, essas lembranças?

FEDRA

Não são lembranças, são fantasmas! E a vida dos fantasmas, outra não é, senão atormentar aqueles a quem aparecem.

(pausa)

Julgas que é possível alguém mudar completamente de vida por outra pessoa?

CRIADA

Completamente, como, senhora?

FEDRA

Completamente. Abandonar as suas crenças; deixar o seu lar, ignorar o seu sangue…

CRIADA

Neste mundo, minha senhora, o que não faltam são misérias e dores. Que ninguém nos oiça, mas se aquilo a que se refere é aquilo que eu penso ser, não falta aí nada para a desgraça. E desgraça, minha senhora, é o que é mais possível de acontecer. Fosse eu a minha senhora, e desejaria antes que o impossível, neste caso, se sobrepusesse ao possível.

FEDRA

E que possível é esse, mulher?

CRIADA

As coisas correrem bem. Ninguém mudar de vida. Pois esta, como está, é mais do que os deuses podem prover.

FEDRA

Vamos preparar-nos para o jantar.

CRIADA

Vamos, sim, minha senhora. Há muito que aprendi que aquilo que os deuses querem, os mortais não contrariam.

(saem de cena; entra o coro de mulheres)

(PRIMEIRO ESTÁSIMO)

CORO DE MULHERES

A vida não importa nada.

Um deus destrói a cidade,

Dois arrasam o mundo todo

E a paixão é muitos deuses.

Vejam como Fedra caminha

Para a sua perdição total.

A imagem é uma prisão.

Escravos que somos para nós.

A beleza de Hipólito

Lembrou um tempo que não viveu

Senão em seus belos sonhos.

O tão desejado amado,

E não passa de uma imagem,

Que em nós temos desde sempre.

E não adianta perguntar

Porque é este e não outro,

Pois outro é sempre o mesmo.

A matriz inscrita na alma

Como um brasão nos diz o corpo,

E o resto que perseguimos,

Quando um homem nos faz derreter.

Hipólito é o mais belo,

Se em ti isso está inscrito;

Não o nome, a imagem.

CORIFEU

Mulheres, não falai crispado,

Como o mar em dias de chuva!

Fedra resistirá se quiser.

Por mais forte que seja a deusa,

A vontade é mais que tudo.

E ninguém pode desculpar-se

Dizendo que foi pelo vinho

Ou por arte de Afrodite.

CORO DE MULHERES

Como os homens desconhecem

A força da deusa Afrodite!

Facilmente destroem vidas,

Mas não escapam da sua sorte.

Como sobreviver à vida,

Se ela é em nós imagem

Corpo ideal nunca visto,

Uma figura para sempre,

Pela qual se morre, se vive?

Enlouquece-se por tão pouco

E tão pouco é quase tudo.

Há mulheres enlouquecidas

Por um verso ou uma frase,

Que são outras formas de corpo.

Pois muito sofrem as mulheres,

Até para nascerem homens.

26 Set 2017

A Sombra de Teseu (1)

PERSONAGENS

Afrodite

Ártemis

Chefe dos Guardas

Corifeu

Coro de mulheres

Criada de Fedra

Criado de Hipólito

Fedra

Hipólito

Teseu 

(A acção passa-se nos limites da floresta, junto à cidade de Trezena, no Peloponeso)

CRIADO

A rainha Fedra, mulher de seu pai, o rei Teseu, aguarda-nos. Que dirá ela por regressarmos a Trezena sem ele, meu príncipe?

HIPÓLITO

Que posso dizer, senão a verdade? Tenho obrigação de dizer a verdade, assim me ajude a minha deusa de devoção, Ártemis.

CRIADO

Sei bem, senhor, das suas enormes virtudes, pois acompanho-o desde criança. Mas neste caso, o que é a verdade?

HIPÓLITO

A verdade, aqui neste caso como em qualquer outro, é ser conforme aos factos, se falamos do que é exterior, ou conforme à pureza do coração, sem mancha de egoísmo, de desejo, de interesse, de maldade, se falamos do que é interior. Por isso, e com a ajuda da mais virtuosa da deusas, direi à rainha que meu pai, o seu rei e marido, continua desaparecido. Que infelizmente, e após meses de procura, continuamos sem resposta ao que lhe terá sucedido. Não o podemos dar nem como vivo nem como morto. Pois aquele que está ausente, e sem dar notícias por si próprio ou que cheguem relatos por outrem, está refém da mais poderosa das deusas e a mais vil: a Dúvida.

CRIADO

E que pena tenho, meu príncipe, que em todos estes meses pela Hélade, não tenha encontrado amor! Nenhuma mulher virtuosa…

HIPÓLITO

Sabes bem que não há e nem pode haver mulher nenhuma em minha vida. Pois sirvo apenas à deusa Ártemis, que me instiga à castidade, às purezas das acções e do coração. Nenhuma mulher irá mudar esta minha genuína afeição, este meu modo de vida. E que poderia uma mulher fazer, senão levar-me a esbanjar o tempo em futilidades, em prazeres mundanos, por muito virtuosa que fosse? Procura o amor se queres perder-te; mantém-te casto se queres encontrar-te.

(Hipólito e o criado saem de cena e entra o coro de mulheres)

(PÁRODO)

CORO DE MULHERES

Ai como a juventude é senil!

Diz saber o que é a vida

E nem sequer do amor sabe.

E muito pior que o amor

É sem dúvida uma paixão.

Tragam-nos um jovem sábio

E nós fá-lo-emos imortal.

Porque não aprendem os jovens

A humildade e o recato

Já que nada sabem da vida?

Julga Hipólito que está salvo

Pela devoção a Ártemis?

Esta mesma teme sua irmã

E agora também por ele.

Hipólito nem se dá conta

Que essa palavras provocam

A pior de todas as deusas.

Não se pode ofender o poder

A quem varre existências.

Afrodite toca os cabelos

E faz cair um exército.

(saem de cena; agora a cena passa-se na sala do trono; chega Hipólito e ajoelha-se perante Fedra)

FEDRA

Levanta-te e dá-me notícias de Teseu!

HIPÓLITO

Minha rainha, o rei, meu pai e seu marido, não deu sinal de vida. Nem de vida e nem de morte; a sua vida está refém da deusa Dúvida.

FEDRA (levanta-se e dirige-se ao jovem príncipe, com olhos de quem é escrava de uma imagem, e toca-lhe num dos ombros)

Hipólito, não esmoreças. Teu pai é forte e capaz. Não haver notícias é boa notícia. Os males sempre arranjam maneira de saírem do claustro do anonimato, de aparecerem onde menos se esperam, e na sua aparição intempestiva são sempre mais rápidos que os cavalos de Zeus; é o bem que se esconde ou dificilmente se deixa ver.

(Hipólito anui, um pouco por resignação, um pouco por cansaço, e Fedra pede que ele se refresque, que descanse duas horas antes de ser servido o jantar. Fedra suspira ao ver o jovem afastar-se)

19 Set 2017

O Primo Basilio – Continuação da quarta e última parte

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]as como é que se pode acreditar no tudo? Como é que se pode acreditar em Deus? Precisamente porque está-se deposto no vício da justificação. Desejar Deus mostra-nos claramente que todo o vício é uma justificação para nada. Viver é justificar-se de nada. Justificar-se do nada que somos. E a grandiosidade do vício está em fazer de nós animais justificativos. Só isto bastava. Isto era suficiente para nos dobrarmos perante O Primo Basílio de Eça de Queirós. Mas isto não fica por aqui. É agora, aqui, que vamos encontrar finalmente a grande passagem para a tragédia grega. Perguntemos então agora: porque é que Luísa morre? Porque o vício deixa de ter poder sobre ela. Mas como é que isso pode acontecer, como é que o vício deixa de ter poder sobre o humano? Quando o humano não consegue mais suportar a vergonha. A vergonha é o calcanhar de Aquiles do vício ou, se preferirem, a kriptonita do Super-Homem. Quando a vergonha se apossa de uma alma humana, o vício acaba e, com ele, a própria vida. Não quero com isto dizer que a toda a vergonha que sentimos tenha esse poder de acabar com o vício. Há vergonha e vergonha. Uma coisa é a vergonha social e outra a vergonha ontológica, constitutiva. Ter-se vergonha do que fizemos a alguém dói muito, mas não é por aí que o vício vai às filhoses, não é por aí que o vício morre. Isso com o tempo passa. O problema é quando a vergonha não tem direcção, não tem acusativo, não tem complemento directo. Não temos vergonha de termos feito o que não devíamos, de ter agido mal, de não termos dito o que devíamos ou de ter dito o que não devíamos. Nada disto. A vergonha no seu esplendor máximo não acusa nada senão o nada que somos, isto é, temos vergonha. Mas como é que se pode ter vergonha de nada? Voltemos então ao livro do Eça. No penúltimo capítulo do livro, é-nos descrita a revelação de Jorge a Luísa. Jorge diz-lhe que sabia de tudo, a aventura dela com o primo e de ter sido escrava da Juliana. Nesse mesmo momento ela sofre um choque, pela surpresa, pois passou grande parte do romance atormentada com isso, tentando escondê-lo de Jorge e, agora, que Juliana já tinha morrido, que ela se julgava finalmente libertada, vem Jorge dizer que sabe de tudo. Mas ele não diz apenas que sabe de tudo, como ainda diz que não tem importância que lhe perdoa e que continua a amá-la como sempre amou. Efectivamente, e também aqui Eça não perde o seu jeito de acertar na natureza humana, só quem nos ama nos pode perdoar, mais ninguém. Por conseguinte, Luísa estava perdoada. Jorge acabava de perdoá-la. A partir daqui, que parecia então tudo ir ficar em bem, pelo menos para uma pessoa normal assim seria, Luísa adoece e definha até à morte. Luísa morre de vergonha. Reparem que ela não morre de vergonha do que fez, pois sem a revelação feita por Jorge e o seu perdão, Luísa viveria até à velhice sem vergonha. Ela não tem vergonha do que fez, mas de si. Luísa morre por vergonha de si mesma, vergonha do que é. Não se trata de uma impossibilidade de ver Jorge, depois do que ela lhe fez, em contraposição à magnanimidade dele. Através de Jorge, Luísa vê o seu próprio nada. Chegado aqui, a este ponto, ou se dá um salto para Deus, e este nunca depende do próprio, pois a graça da fé é-nos concedida, não é uma escolha, ou abriga-se na morte. Ou seja, Luísa vai ao encontro do seu próprio nada que lhe foi revelado na vergonha de si mesma, através da revelação de Jorge. E, agora, sim entremos na tragédia. Dois pontos fundamentais:

1) Como verificámos, só a vergonha de si mesmo tem poder para destruir o vício e, com ele, a vida; é aqui que a vergonha se assume como Herói trágico, como verdadeiro herói desta Tragédia. Édipo fura os olhos perante o conhecimento de ter assassinado seu próprio pai e desposado sua própria mãe, concebendo filhos com ela, Luísa deixa-se morrer. A vergonha assume assim, em O Primo Basílio a dimensão do conhecimento em Édipo Rei, fazendo de Jorge o arauto da má notícia. Há uma diferença clara: Édipo desejava saber e Luísa não desejava a vergonha, a vergonha aconteceu-lhe, mas ao acontecer-lhe ela viveu-a com a dignidade de um personagem de Sófocles.

2) Vejamos a diferença entre o Jorge da reunião social em sua casa, antes de partir para o Alentejo, no início do livro, e o Jorge que perdoa a esposa, no fim do livro. No início ele jurava a pés juntos que, em situação de adultério, matava impiedosamente a esposa. Na realidade, o que aconteceu é que ele acaba por perdoá-la. E, ao fazê-lo, ela morre. Bom se isto não é LITERALMENTE um tema maior de uma tragédia grega, então eu não sei o que é uma tragédia grega.

Mas a tese mais radical de Eça de Queirós neste livro é a de que todo aquele que escreve é para os outros como Basílio, porque no fundo todo aquele que escreve só pode pensar em si, em mais ninguém; é um condenado à fraqueza mais próxima, nasce para si mesmo como uma flor para o fico lugar onde despontou.

Basílio, e por isso o livro se chama O Primo Basílio, é o humano irredutível ao outro; o humano no seu esplendor máximo de egoísmo. O egoísmo é uma espécie de autismo moral; no egoísmo o humano não consegue ver para além dos seus interesses, por mínimos que sejam; no egoísmo fica-se fechado em si mesmo para sempre. No egoísmo, a morte de outrem pode muito bem ser apenas um contra-tempo nos nossos planos, e não a morte de alguém, e não o fim da vida de alguém e o começo do sofrimento dos outros que o amam. E a tese mais radical de Eça de Queirós é mostrar-nos que o escritor se comporta, não só enquanto escreve, mas na vida, como o primo Basílio, completamente e inteiramente para ele. Como se irá ver mais tarde em Fernando Pessoa, ou se vive ou se escreve. E escrever, enquanto contraposição a vida, surge como a impossibilidade de sair de si mesmo, a impossibilidade de ver o outro como outro. Para o escritor o outro será sempre a possibilidade de uma personagem, o outro será sempre uma extensão do seu interesse pessoal. Isto nunca é dito no livro, mas é intuído, na contraposição que existe entre o livro que se acaba de ler e o outro que Eça escreve através do Ernestinho, para crítico ler. Ernestinho faz precisamente um livro “mais natural”, um livro que vai ao encontro do outro, um livro que pede para fazer amigos. O livro de Eça, que termina com a flor bela e rara e para sempre da imagem máxima do egoísmo, na frase última de Basílio “Que ferro! Devia ter trazido Alphonsine.”, não pede para fazer amigos, pelo contrário, choca-nos a existência de tal personagem, quer seja pela criação, quer seja pelo retrato. Basílio é a vida tal como não a suportamos ver; a vida tal como nos esforçamos para não ver. E, assim, o autismo do escritor, contrariamente ao autismo de Basílio, traz-nos a verdade do humano, enquanto o autismo de Basílio traz-lhe a inexistência do humano. No fundo, tanto para Basílio quanto para o escritor, o humano não existe. Para Basílio existe apenas ele mesmo, mais ninguém (pois todos são extensões do seu prazer ou do seu desprazer), para o escritor existem apenas caracteres, personagens. Cabe ao leitor, decidir se as personagens dos livros reflectem ou não os humanos. Cabe-nos a nós a difícil tarefa de reconduzir o escritor à humanidade, que ele não tem, nem pode ter, ainda que o homem que faz de escritor, possa, aqui e ali, ser humano, ou quase humano.

Terminamos assim aqui a nossa viagem ao coração de O Primo Basílio, no preciso momento em que o pior dos personagens se encontra com o seu criador, no momento em que Eça de Queirós se reconhece Basílio, pois só quem é se pode reconhecer.

12 Set 2017

O Primo Basílio | Quarta parte

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma estreita relação entre desejo e vício, que é preciso apurar agora. O desejo, havíamo-lo visto anteriormente, traz em si mesmo a sua própria destruição e, se torna a voltar, é através de um renascer (ou com a ajuda da memória ou da necessidade). O vício, contrariamente ao desejo, esforça-se por permanecer. Melhor seria dizer que o vício esforça-se por fazer permanecer, permanecendo. De que modo permanece o vício em nós e que faz ele permanecer? Tínhamos visto que a multiplicação do desejo ao incrementar o nada, recebia a contrapartida da diversão. O vício não precisa de nada. O vício basta-se. O vício não se autodestrói como o desejo, pelo contrário, a cada instante que passa, o vício se torna mais forte, mais senhor de si e de quem ele tomou. O vício, a cada instante que passa, torna-se mais senhor do seu escravo, do humano que a ele se submete. O vício esforça-se por fazer permanecer o humano do qual é senhor; esse é o seu esforço. Manter o escravo vivo é manter-se vivo e mais forte a cada instante. O viciado em heroína, a cada instante que passa, é mais escravo do seu vício, a cada instante que passa está mais enredado nas teias do seu senhor. O vício faz-se sentir como se de um desejo se tratasse, mas não tem fim, como este. O vício é um desejo sem fundo, um desejo quase infinito. Este desejo sem fundo, que é o vício, é um desejo sem prazer, sem promessa de prazer. O vício é na realidade a antítese do prazer, a incapacidade de produzir qualquer bem estar, a incapacidade de sentir-se saciado. No desejo e no vício não há liberdade, no primeiro as escolhas estão reduzidíssimas, isto é, o desejo quer quase tudo, impõe-se assim, e no vício não há mesmo liberdade nenhuma, não há escolha. Inclusivamente, quando alguém é apanhado a fazer algo que não devia estar a fazer, embora não seja nada de grave, por exemplo a jogar no computador, usa uma expressão que traduz bem isto que queremos dizer: “é o vício!” De facto, o vício não nos deixa escolha. Nem nos deixa escolha, nem nos dá prazer. Bom, algum prazer dá, mas que vai sendo cada vez menos, até que o vício se sinta como uma obrigação, um “temos que fazer”, um “tem de ser”. Se alguém aqui conhece ou conheceu um viciado em heroína ou viciado no jogo, sabe bem do que estou a falar. Para além do momento em que se acalma o vício (a palavra é essa, acalmar, acalmar momentaneamente esse animal em nós), quase todo o tempo da vida daquele que está deposto no vício é ocupado a pensar nele ou em como irá alimentá-lo. O vício é uma animal enorme, dentro de nós, que exige continuamente em ser alimentado; o viciado não tem mais tempo para si, mas para esse animal, o tempo dele é o tempo que dedica a cuidar do seu animal interior.

Do desejo, enquanto estrutura constitutiva do humano, vimo-lo anteriormente, ninguém está a salvo dele, e do vício, será possível escapar do vício? Esta parece-me ser a tese forte de Eça de Queirós, neste seu livro, mostrar que a generalidade do vício é parte integrante da condição humana. Não há humano sem vício. Eça mostra que o vício não é uma degenerescência do humano, mas uma constituição do mesmo. Enquanto estrutura ontológica, constitutiva do humano, o vício é dar sentido às coisas. O vício enquanto degenerescência pode assumir múltiplas formas: o jogo, a heroína, o álcool, o sexo, etc., mas enquanto constitutivo do humano ele é um: dar sentido às coisas. O vício não é um hábito que se adquire é uma natureza que se tem. O vício, ao fazer de nós a sua sombra, faz com que queiramos dar sentido a tudo e a todas as coisas. O vício é a substância que nos mantém vivos, que nos faz continuar, que nos impele a continuar esta vida que nos foi concedida. Querer estar vivo é um vício. Se o vício dá sentido às coisas, põe razão em tudo o que toca, é somente porque necessita de nós para continuar. E, obviamente, por essa alucinação de entendimento – todo o vício é uma alucinação – exerce a sua vontade sobre nós. Porque a fome de entendimento é universal. O mais miserável dos humanos julga entender o que se passa dentro dele e ao seu redor. Pergunto: porque é que, mesmo nas condições mais indignas de vida, o humano não se mata e teima em manter-se vivo? Porque o vício exerce sobre ele o seu poderoso poder. Dar sentido às coisas não é a verdadeira essência do vício. Dar sentido às coisas é um entretenimento, uma derivação do vício, a verdadeira essência dele é fazer com que o humano não queira abdicar do que nunca teve. O desejo impede-nos de abdicarmos do que já tivemos e agora já não temos, mas o vício impede-nos de abdicar do que nunca tivemos. Que é isto, não abdicar do que nunca tivemos? Passo a explicar. Vejamos o caso de Leopoldina, do que ela não consegue abdicar não é dos homens ou do sexo, do que ela não consegue abdicar é de um Absoluto que  não consegue, que não tem. Não conseguir abdicar do Absoluto que não tem, que quer isso dizer? Esse Absoluto pode assumir diversas formas, por exemplo a forma da Felicidade. Usualmente as pessoas vivem sem felicidade, mas não abdicam dela, isto é, não abdicam de estar numa tensão continua com ela, em perseguição dela, e a felicidade passa então a ter o mesmo efeito sobre a pessoa que tem a heroína: vive-se pr’àquilo. O vício de estar vivo permanece mesmo contra a solidão, mesmo contra a evidência da solidão. Mais do que fazer o que quer que seja, o vício é ser, resistir no tempo que passa, quando se sabe que passa para nada. Mas vai-se ficando como se esperássemos que ele passasse para alguma coisa. Ficar para quê? Para mais um poema, para mais um email, para mais um lucro, para mais um noite de prazer, para mais um filho ou para mais um golo do Fc Porto? Nada cala o labirinto que somos. Ainda que se possa fazer de tudo uma ilusão para calá-lo. Se Deus não nos receber, toda e qualquer vida é nada, se nos receber é tudo.

5 Set 2017

Análise acerca de O Primo Basílio – Terceira parte

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra “vício” é usada apenas onze vezes ao longo de todo o livro. Tentemos entender a importância desta palavra na economia geral do texto. A primeira vez que a palavra aparece no texto é usada para acusar Leopoldina de um desvio comportamental à boa regra: “Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios.” A segunda vez é acerca de D. Felicidade, que se queixava de estar doente: “Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e desmoralizando como um vício.

A terceira vez, ainda acerca de D. Felicidade: “Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa “linda posição”. O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício!” A quarta vez que vemos a palavra ser usada é em referência a Juliana: “Eram o seu vício, as botinas!” Quinta vez, ainda em referencia a Juliana: “e satisfazia o seu vício – trazer o catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.

Na sexta vez, através dos pensamentos de Sebastião, amigo dedicado de Jorge, a palavra aparece pela primeira vez referindo-se a Basílio: “Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios.

A sétima vez recai sobre Luísa: “Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!… Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez… Estava doida, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício; ela fora por paixão… Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!…

A oitava vez é pelos pensamentos de Basílio, em relação a si e à sua prima, após rejeitar fugir com ela: “Basílio saiu do Paraíso muito agitado. As pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha quase vontade de não voltar ao Paraíso, calar-se, e deixar correr o marfim! Mas tinha pena dela, coitada! E depois, sem a amar, apetecia-a; era tão bem feita, tão amorosa; as revelações do vício davam-lhe um delírio tão adorável! Um conchegozinho tão picante enquanto estivesse em Lisboa… Maldita complicação!” Nona vez, no meio de uma conversa entre Leopoldina e Luísa: “Aquela conversação enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.

Na décima vez, a palavra é usada por D. Felicidade para Luísa, na ópera, acerca de uma cantora famosa: “Mas quando o pano subiu, ficou sentado por trás de Luísa começando logo a explicar – que aquela (Siebel, colhendo flores no jardim de Margarida), posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil réis por mês… – Mas apesar destes ordenadões morrem quase sempre na miséria – disse com reprovação. – Vícios, ceias, orgias, cavalgadas…” Por fim, a palavra é usada pelo médico Julião, dizendo a Sebastião: “Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí quatro princípios? Ninguém; têm dívidas, vícios secretos, dentes postiços; mas princípios, nem meio!

Na primeira vez que a palavra surge, ficamos a saber que é algo de que as pessoas falam, e não em forma de elogio, dizia-se que tinha vícios. Vício aparece como uma doença, como que uma maldição de um dos deuses das convenções sociais, é algo que desmoraliza – desmoralizando como um vício, diz na segunda vez. Por outro lado, a palavra aparece também com uma conotação menos moralmente acusativa em relação ao humano: uma pequena vaidade – em Juliana, nas duas vezes em que a ela a palavra é empregue – ou em relação à paixão não correspondida da D. Felicidade pelo Conselheiro Acácio. Eça usa ainda a palavra com alguma cirurgia, como no dia em que Luísa pensa acerca de do seu envolvimento com Basílio, contrapondo as outras, que têm amantes por vício, a ela, que está com Basílio por paixão.

Vício aparece claramente em oposição a paixão. Ainda cirurgicamente, através da voz de D. Felicidade em conversa com Luísa, na ópera, ficamos a saber que o vício é responsável por conduzir a vida humana à miséria, a uma miséria maior do que a ontológica: uma miséria que traz a ontológica e a carrega com uma miséria acrescida: social e económica. Em Basílio, segundo Sebastião, o socialmente aceite Sebastião, o dinheiro em uma pessoa moralmente baixa servirá apenas para um crescimento dos vícios. Há ainda dois modos que são de uma acutilância e de uma pertinência extraordinárias: 1) vício enquanto generalidade, como algo comum na cidade, na sociedade, fazendo com que o vício de cada um pareça não ter importância; a generalidade do vício acaba mesmo por justificar a particularidade do vício; 2) vício enquanto um dos contrapontos aos princípios morais,.

A palavra vício não pode ter sido usada aleatoriamente pelo escritor Eça. Um escritor com o génio de Eça, num romance de trezentas e muitas páginas, não vai usar um termo como vício, apenas onze vezes, se não for de modo perfeitamente adequado e de forma a fazer-nos ver para além do uso indistinto de termo. O vício está em todo o lado na sociedade, generalizado. Luísa, já sendo vítima da chantagem da Juliana devido ao seu caso com Basílio, dá-se conta disso mesmo. Luísa, no extremo da sua preocupação, dá-se conta de que a sua situação é tão geral que os seus contornos se tornam indistintos. Quero dizer: o caso dela, que afecta toda a sua vida, que a torna completamente infeliz, miserável, não é diferente de tantos outros casos, a sociedade está cheia de “Luísas” e de cidadãs e cidadãos bem mais viciosos do que ela.

Se alguém fizer um assalto à mão armada em Helsínquia, na Finlândia, será seguramente um caso especial, um caso digno de atenção, pois será um caso raro. Se alguém fizer o mesmo ataque em São Paulo, pelo contrário, nenhuma atenção especial será dada a esse caso, tal é a generalidade desse tipo de crime. Em São Paulo, o criminoso armado não tem direito à sua identidade, o criminoso torna-se indistinto. Na generalidade do crime armado, o criminoso encontra até a sua própria justificação, isto é, a generalidade do crime armado acabava de funcionar como justificativa para o indivíduo. A mesma generalidade que lhe retira o direito à sua diferença, à sua distinção em relação a outros.

Quando Eça faz Luísa ter consciência disso – “numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.” – faz com que a sua tragédia assuma um ponto fundamental: a sua impiedade social deixa de ter necessidade de expiação ou arrependimento.

De outro modo, não há um deus para ofender, através dessa sua atitude, porque a sociedade se comporta quase toda desse modo; se quase todos ofendem um deus, a noção de impiedade deixa de fazer sentido. Se todo o mundo rouba, roubar deixa de ser uma ofensa, para se assumir como prática corrente. Luísa age em concordância com a sua sociedade, não com a sua convicção. Esta é a tese forte de Eça de Queirós: numa sociedade corrupta, o cidadão acaba por agir pela vontade desse deus, ao invés de agir com a sua própria consciência. De algum modo, ouvem-se ecos de Marquês de Sade.

A sociedade, os deuses não querem que os humanos ajam bem, mas que pareça que agem bem. Os princípios, como Julião dizia a Sebastião, são a aparência que esconde a verdade do que se passa, a moral é a parte visível do iceberg. A sociedade é uma aparência. Os deuses são uma aparência. Viver em sociedade apresenta-se, segundo Eça de Queirós, não só neste livro, mas em quase todos, como uma hermenêutica de cálculo da acção. Há que interpretar a cidade onde estamos, ver o que se esconde sob o manto da aparência e medir, calcular as acções que devemos praticar, de modo a não sermos castigados, nem por nós mesmos, nem pelas convenções sociais da aparência. Ou seja, Luísa está imersa numa situação bem mais complexa do que Antígona.

Ao aumentar a complexidade da sociedade, a complexidade das decisões aumentam, a tragédia complica-se. Mas Eça parece querer dizer mais do que isto, parece querer mostrar que a natureza humana está desde sempre imersa no vício, que o vício é constitutivo do humano.

Temos falado em vício, tal como ele se apresenta em O Primo Basílio, mas ainda não fizemos a pergunta acerca do que é o vício. O que é o vício? O vício apresenta-se numa dualidade: responsável pelo incremento desmesurado de uma acção; e pela degenerescência do humano.

À compulsão em relação a um objecto ou a uma actividade chamamos vício, mesmo que essa actividade ou esse objecto nada tenham de viciante. Alguém que não seja desportista e corra 20 km por dia é viciado em correr; dizemos que ele tem pancada. Mas a corrida, só por si, não é um vício. Uma pessoa que compre compulsivamente livros é um viciado em livros. Podemos dizer que todo o coleccionador é um viciado.

Alguém que fume ocasionalmente maconha não é um viciado em maconha, mas se vive a fumar maconha é viciado em maconha. O vício apresenta-se por um exagero em relação a algo, uma compulsão. Por outro lado, nem todos os vícios, ou aquilo que possa ser considerado de vícios, causam degenerescência no humano. Por exemplo, o viciado em correr estará seguramente a salvo, o seu vício não será causador de uma degenerescência para além da natural. Poderemos dizer o mesmo em relação ao viciado em comprar livros, a única degenerescência que pode acontecer é a económica.

Já em relação ao viciado em drogas ou em bebidas alcoólicas os resultados são bem diferentes. Vício não é apenas uma compulsão, mas uma compulsão capaz de desviar o humano do seu curso normal, capaz de fazer com que ele deixe de ser quem era, quem costumava ser; vício é uma compulsão que tem o poder de fazer do humano uma coisa. Um humano viciado em jogo, pode chegar a um estado em que não passa de uma coisa que joga. Um coisa compulsiva que joga.

Mas há vícios que, embora se façam sempre sentir, têm uma zona de tempo específica, como por exemplo os vícios sexuais (ainda que também possam vir a tomar todo ou quase todo o tempo do humano. O que a hermenêutica de cálculo da acção parece então querer indicar é o seguinte: nesta sociedade, é necessário saber controlar os seus próprios vícios, isto é, mantê-los privados, manter os vícios longe do olhar dos outros, longe da aparência que rege a convenção social. O vício, que faz de nós um outro, deverá manter-se privado. Aprender a manter os vícios no foro privado é a grande aprendizagem que esta hermenêutica nos mostra.

29 Ago 2017

O Primo Basílio de Eça de Queirós

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]uísa e Juliana (segunda parte)

O que nos traz aqui é a Luísa e a Juliana, a senhora e a sua criada. Em sentido hegeliano, no início do romance ambas são escravas, pois ambas não têm consciência de si. Mas com o avançar do romance, com o avançar da trama, com a queda de Luísa isso não vai ser assim. Mas comecemos pelo princípio:

Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! O numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: – em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera…

Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.

Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo de Escócia de esmeraldas e diamantes.”

Estas são as primeiras acções e os primeiros pensamentos de Luísa no romance, acções e pensamentos de uma mulher sem pingo de consciência de si, da sua vida, do que é a sua condição humana. “Que seca ter de se ir vestir!” diz ela para si mesma, arranjando imediatamente um périplo de diversões de modo a ir adiando o projecto de se vestir, arrastando-se pelo sofá languidamente. Lembra episódios antigos e até se entretém a imaginar o que a sua vida teria sido se tivesse casado com o seu primo, imagina o que a sua vida seria se não fosse a sua vida. Ou seja, tudo a leva para longe de si, longe da sua consciência de si. O que ela não quer é estar consigo. Prefere pensar no que nunca poderá ser do que pensar em si, do que consciencializar a sua vida, o que ela mesma é.

Mas não seria necessário termos avançado tanto nas páginas do livro, embora sejam tão poucas, para entendermos isto que estamos a dizer. Lembremos a primeira frase que Luísa pronuncia no livro, em resposta à pergunta de Jorge, quando são já onze horas e depois de terem acabado de almoçar, se ela não se ia vestir: “Logo.”, isto é, mais tarde, depois, agora não. A primeira frase de Luísa é uma palavra de adiamento, de trespasse do que tem de fazer, trespasse do agora para mais tarde. E este é o modo como vive todas as variantes de sua vida. A sua vida é um eterno adiamento, a sua vida fica para depois, logo. Custa-lhe até tomar banho. Há, contudo, um momento claríssimo no romance onde podemos ver que Luísa mudou, que Luísa começou a ter consciência de si. Mas antes de mostrarmos esse momento, mostremos uma das reuniões sociais e culturais em casa de Luísa, antes da ruptura operada na sua consciência. O episódio começa com o começo do capítulo dois e fecha-o. Veja-se apenas o início, que lhe dá bem o tom:

Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O “Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava.”

Não custa imaginar o desinteresse completo, a falta de vida neste quadro. Pelo contrário, veja-se uma dessas mesmas reuniões, após a consciência de si de Luísa, depois de se ter tornado criada da usa criada.

Que alívio para Luísa quando eles saíram! O que ela sofrera, lá por dentro, toda aquela noite! Que maçadores, que idiotas! – E a outra sem vir! Oh, que vida a sua!

Já não é a mulher do croché, que vamos aqui encontrar, mas aquela que luta pela sua própria vida, isto é, que tem muito bem consciência de que a sua vida vai mal. Esta consciência dá-lhe consciência da sua condição humana, condição que sempre desprezara, que sempre tudo fizera para não vê-la. A “outra” é a Juliana a criada sua senhora, que tinha ido ao teatro.

A verdade é que ainda não se entende de modo é que a consciência de si e a dialéctica do senhor e do escravo têm a ver com Juliana. Sim, é certo que através desta, da acção desta ao transformar sua senhora em sua criada, Luísa acaba finalmente por ter consciência de si, de se tornar sua própria senhora. É uma bela ironia esta que Eça nos arranjou: ao tornar-se escrava de Juliana, Luísa torna-se senhora de si, ao tornar-se escrava, liberta-se. Mas nem esta pérola, nem a consciência de si por parte de Luísa mostram qualquer grandeza ao personagem Juliana, de modo a fazer dela um deuterogonista trágico, como começamos por afirmar no início. Falta qualquer coisa para mostrarmos a verdadeira dimensão do personagem Juliana e justificar a nossa extensa citação anterior acerca dele. O que está em causa na consciência de si, como vimos anteriormente, é a superação da condição natural, da condição animal do humano, que seria então a consciência de si para si. Assim, deixar a animalidade é caminhar no sentido de uma consciência senhora de si. Mas não é possível uma consciência ser senhora de si ocupando-se a toda a hora das necessidades biológicas, vivendo no mundo sensual e animal o tempo todo. A guerra de Juliana com Luísa é a guerra do reconhecimento de si própria, a guerra da supressão de si mesma, enquanto consciência, através do emprego do seu tempo, de si, em actividades outras que não as biológicas e de conservação da vida. O que está aqui em causa, nesta guerra doméstica, e que é também a guerra de Eça neste livro, é a necessidade do humano em viver para além da vida, isto é, a necessidade do humano em libertar-se da vida do plano natural, a necessidade do humano em libertar-se da vida. Ou seja, o que Eça nos mostra é que se não nos libertarmos da vida não vale a pena viver. Luísa e Juliana, no início do romance, são ambas prisioneiras da vida, prisioneiras do plano sensual, animal. Juliana desde sempre sentiu em si uma necessidade de ser mais do que era, como pudemos ver pela descrição alargada de Eça, e sempre teve dificuldade em aceitar a sua condição de criada. Juliana queria ser mais do que era e para ser mais tinha de ter tempo, tempo para si, para actividades outras que não as da criada presa à vida. Juliana ao querer ser mais do que é, traz já em si um ser mais do que é, traz já em si um horizonte de ser, ela mesma, mais do que ela mesma é. Não se trata aqui de querer ser mais no sentido da vida, de querer ser mais para ter mais bens, naquele sentido em que tantas vezes ouvimos dizer “eu ainda vou ser alguém na vida”. Sem dúvida, quem diz isso poderá vir a ser alguém na vida, mas não será certamente um senhor, uma consciência de si e para si. Pois o que importa a essa consciência que quer ser alguém na vida é a vida, é fugir da morte. A chantagem de Juliana a Luísa é a oportunidade que ela entrevê de modo a ter uma segurança financeira que lhe permitisse fugir da vida, não ter medo da morte; que lhe permitisse, por exemplo, ir ao teatro. Juliana não quer ser alguém na vida, quer ir ao teatro, que é muito diferente. Juliana quer ser uma senhora, uma consciência de si e para si (não que ir ao teatro, de per si, resulte nisso, trata-se apenas de um exemplo de contraposição aos que querem ser alguém na vida e serem reconhecidos pelos objectos enquanto coisas). Há aqui, no personagem Juliana, uma violenta posição social e política por parte de Eça de Queirós. No fundo, ele mostra-nos duas coisas: por um lado, ninguém é culpado de não ser ninguém no mundo (não na vida), de não ser uma consciência de si e para si, pois há os deuses, que estão acima de nós, que nos fazem nascer nesta família ao invés da outra, com estas características, ao invés de outras, e também os deuses sociais que nos obrigam a um comportamento determinado por parte de cada um, consoante o papel dele (e ao tempo do romance, ser mulher era muito diferente de ser homem); mas por outro lado, aqueles a quem os deuses mais favoreceram acabam, muitas vezes, por não querer ser ninguém no mundo. Este não querer ser ninguém no mundo, tendo tudo para poder ser, é o que cabe a Luísa. Luísa, que tinha tempo para não temer a morte, para libertar-se da vida, para ser alguém no mundo, vivia presa num marasmo de sensualidade.

Mas com a inversão dos papéis entre ela e sua criada, embora não completamente, elas passam a querer ultrapassar-se a si mesmas, tendo um ganho de consciência de si que antes não tinham. A luta delas é a luta para serem alguém, no mundo. Que ambas (e é discutível) tenham morrido escravas, segundo o ponto de vista hegeliano, não retira em nada o que está em causa neste livro de Eça, através da guerra entre Luísa e Juliana: a necessidade de se tomar consciência de si e para si, a necessidade de se ultrapassar. Luísa passa a ver-se a si mesma como um objecto de consciência, passa a pensar na sua vida, não na vida, mas na sua vida, isto é, ela passa a concentrar-se naquilo que é; e aquilo que é, obviamente, nãos e resume á vida, ao sensorial, ao sensual, onde ela habita usualmente. A necessidade de Juliana de se ultrapassar a si mesma, conduz Luísa a fazer o mesmo por si. Estamos então, aqui, num dos centros gravíticos desta obra magna de Eça de Queirós: a guerra de duas mulheres por serem alguém no mundo.

22 Ago 2017

O Primo Basílio de Eça de Queirós – Luísa e Juliana (primeira parte)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeçamos hoje, e durante quatro semanas, a análise de dois conceitos chave em O Primo Basílio de Eça de Queirós: superação de si, na esteira da fenomenologia de Hegel, e de modo a mostrar a complexa relação entre Luísa e Juliana; e vício, de modo a mostrar o nervo central deste romance.

Assim, o conceito que aqui nos importa aprender inicialmente, com Hegel, é o de consciência de si. Foi Hegel que mostrou ao mundo o que é apreender uma coisa ou, se preferirmos usar a linguagem de Hegel, percebê-la. Não se pretende aqui um curso sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e muito menos sobre Hegel; não tratamos aqui de Hegel com autoridade filosófica, apenas lhe pedimos ajuda para melhor entender o que se passa em O Primo Basílio de Eça de Queirós. Para tal, para que Hegel nos possa ajudar, é preciso ouvi-lo e para ouvi-lo há que entende-lo minimamente. É este minimamente que se pretende mostrar aqui. Não vamos reduzir Hegel, mas circunscrever o que dele precisamos para a nossa tarefa hermenêutica. Apreender ou perceber o que quer que seja é negá-lo. Que quer dizer então “negar”? Negar é ter o que se quer em nós. Esse ou isso que se quer, ao ser em nós passa a ser a negação do que era: passa de sujeito a objecto. A passagem de sujeito a objecto é a negação. Negar é transformar um sujeito em objecto. Avancemos com um exemplo. Deus, sujeito de tudo e de todas coisas, passa a objecto a partir do momento em que o penso, a partir do momento em que me aproprio dele. Apropriar-se de Deus não é ser Deus, mas negá-lo, transformá-lo em objecto. Negar Deus não é dizer que não acredito em Deus, mas fazer dele um objecto: um objecto de consciência. Quando Deus entra em mim, se consciencializa em mim, passa a ser objecto. Objecto da minha consciência, objecto da minha subjectividade, objecto do meu sujeito (do meu Eu, diria Hegel). Por maioria de razão, o que é válido para Deus é válido para todos e todas as coisas. Ao caminharem na rua, se acaso se lembrarem destas minhas palavras, deste artigo, transformam-me em um objecto vosso. Objecto da vossa subjectividade, da vossa consciência e, no entanto, eu agora aqui a escrever sou um sujeito. Mais: serei ainda um sujeito mesmo que não me há transformem em objecto. Podem perguntar-me: então para quê negá-lo? Ter consciência do que quer que seja é negar isso mesmo que se consciencializa ou de que se toma consciência. Ou seja, sem negar não se pode ter em nós um objecto de consciência, não se pode ter nada em nós mesmos, é isso que está aqui em causa. Para se ter consciência de uma coisa é preciso começar a negá-la. Para ser mais exacto, nem devo dizer “é preciso”, pois isso pressupõe que depende de mim, da minha vontade. Não, tomar consciência é independente da minha vontade. Permanecer naquilo que consciencializo é que já depende da minha vontade. Assim, o que se torna consciente em mim é, em mim, a negação daquilo que é fora de mim. Usando a linguagem de Hegel, na sua assombrosa Fenomenologia do Espírito, o outro passa a estar em mim. O outro em mim é a negação do outro. Uma negação do outro é, em mim, a consciência do outro. Mas a negação é dupla. A negação não é somente negação do objecto, negação do outro. A negação também nega o sujeito da negação, isto é, ao negar estou também a negar-me. Ao negar Deus, ao se tornar consciente em mim, nego-me também a mim, pois transformo-me no objecto que nego. Deixo-me, deixo de estar em mim para estar em Deus. A consciência de Deus, em mim, nega-me, torna-me objecto de mim mesmo, torna-me um outro de mim mesmo. Imaginai que pensais em Hegel – apesar de tudo, ainda é mais fácil pensar em Hegel do que em Deus, pouco mais fácil, mas ainda assim, mais fácil –, ao pensardes em Hegel estais concentrados, focalizados nele, Hegel, isto é, vós estais fora de vós mesmos, estais , fora de vós, em Hegel. Mas este fora de vós não acontece senão em vós mesmos. Ou seja, vós tornai-vos um outro para vós, tornai-vos a vossa própria negação. Aqui, não se trata da negação do objecto, mas da negação do sujeito. Por conseguinte, parece mais do que evidente que sem negação não há consciência do que quer que seja, não há conhecimento. Pois somente apreendo, somente conheço o que quer que seja se me con-centrar, se me con-centro naquilo que quero apreender. A língua portuguesa aqui, com a ajuda do latim, é feliz e ela mesmo diz o que eu estou a dizer. Concentrar é centrar com. Isto é, eu centrado em alguma coisa. Eu centrado em alguma coisa é a negação do eu, a negação do sujeito. Eu concentrado sou eu negado. Podeis perguntar: “e se você estivesse concentrado em si mesmo, concentrado em você, pensando em você, já não se negava, pois não?” Errado. Eu concentrado em mim mesmo sou eu negado enquanto objecto, isto é, eu negado na primeira forma de negação que apresentei aqui. Pois eu pensando em mim, este mim não sou eu mas um objecto de eu. Eu concentrado em mim é o mesmo que eu concentrado numa cadeira, em Deus ou em Hegel. Eu concentrado em mim, como a própria palavra diz, vimo-lo atrás, terei de ser eu com alguém. Eu concentrado em mim sou eu com o objecto de eu. Para usar a linguagem de Hegel: O espírito se torna objecto por esse movimento de fazer-se um outro para si mesmo – um objecto para seu próprio si. Por mais voltas que se dê, não há forma de conhecer, ter consciência de sem negar. Não há forma de conhecer sem sair de si mesmo, isto é, não há conhecimento sem objecto. E, pronto, já disse. É isso mesmo, tão simples, tão básico que não há quem não saiba: não há conhecimento sem objecto; não há conhecimento sem aquilo que se conhece. Sem dúvida, a negação é parte integrante do processo de conhecimento, mas este último acontece imediatamente através do fenómeno da negação? Não. É preciso um outro fenómeno ulterior. Com a negação, o que acontece, como vimos, é que passa a haver consciência em nós daquilo que consciencializamos, isto é, passa a haver, em nós, aquilo que aparece. Passamos a ter em atenção, a ter diante de nós aquilo que aparece. Mas uma coisa apresentar-se-nos é insuficiente para produzir conhecimento. Se alguém me estende a mão e se apresenta, pronunciando o seu nome (eventualmente a sua profissão), isso não me dá um conhecimento dele, mas uma apresentação dele, uma consciência da existência dele, uma consciência de que há ele, ele há. Ou seja, produz-se em mim, a dupla negação de que falei anteriormente. Que é então necessário para que haja efectivamente conhecimento? A repetição, a permanência, ou, em linguagem mais hegeliana, sofrer uma acção contínua do desejo, isto é, o desejo deixa o mundo natural, da Natureza, para assumir o mundo da consciência, o desejo deixa de ser desejo para ser entendimento e, mais tarde, espírito. Ou seja, passamos de uma apresentação de algo ou para um conhecimento desse mesmo algo através da repetição trazida à consciência do objecto que queremos conhecer. Repetir a apresentação do objecto não é cumprimentá-lo todos os dias, mas trazê-lo continuamente à consciência de formas diversas. A esta relação que se estabelece entre um sujeito e um objecto, Hegel chama-lhe desejo. Por conseguinte, o desejo provoca que o objecto apareça, provoca que a consciência se dê conta dele, do objecto, e queira cada vez mais desse objecto (como é próprio do desejo). Mas o desejo, em Hegel é do mundo animal, apenas nos pode trazer à consciência a sensualidade do mundo; no desejo o mundo é o mundo sensível. Somente na acção o desejo, na direcção do mundo, se pode transformar em conhecimento. Realizar, agir é atirar para as coisas, para o mundo e trazer delas, de lá, a diferença que nos separa delas, isto é, entender em nós que o objecto é em nós. Este entendimento faz toda a diferença: é a consciência da consciência. Assim, não basta negar o objecto para que se produza conhecimento, a negação é a apresentação do objecto à consciência, o conhecimento é a continuação dessa apresentação através de um querer cada vez mais, cada vez mais de modo diferente até que nada mais haja para conhecer. A este cada vez mais chamamos acção ou realização. Por conseguinte, o que nos vai distanciar do plano natural, e trazer-nos até à consciência de nós mesmos, é a consciência da acção. Não é apenas a acção, nem a consciência, mas a consciência da acção, isto é, trata-se da negação da negação do positivo. A acção nega a consciência passiva do plano natural, animal, sensual e, depois, a consciência dessa acção é que produz conhecimento. Trata-se do regresso a si próprio depois de agir sobre o mundo. Obviamente, o objecto tem tanto mais para apresentar quanto maior for o desejo do sujeito. Podemos aqui citar, com toda a propriedade, o estafado verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não for pequena.” Ou seja, se o nosso desejo for grande, sempre há o que ver, sempre há o que conhecer. Ou, como se diz em relação aos papéis no teatro, não há objectos pequenos, há sujeitos pequenos.

Depois de ficarmos a saber de que modo se conhece, os mecanismos pelos quais uma consciência agarra algo, e de termos destacado o papel fundamental da negação em todo esse processo, e da negação da negação, passemos então ao que aqui nos traz com mais urgência: a relação entre o uma consciência de si e o outra consciência de si, isto é, a relação entre duas consciências de si. Apresentemos então a célebre distinção hegeliana na dialéctica do senhor e do escravo. Sempre que duas consciências de si se encontram, o que se passa é uma luta feroz para que uma delas se assuma perante a outra como sua senhora e, concomitantemente, a faça de sua escrava. Uma consciência torna-se escrava da outra pelo medo da morte, escreve Hegel. Mas que quer dizer aqui morte? O que é a morte da consciência? A morte da consciência é ver-se a si mesma como objecto e não conseguir voltar a si, não encontrar o regresso a si mesma. Uma consciência de si escrava não vive para si mesma, mas para outra.

De outro modo: uma consciência de si escrava é uma consciência de si presa à vida. Presa à vida indica, desde logo, medo à morte e, consequentemente, a inevitável queda na sua escravidão ou, melhor seria dizer, a óbvia não ascensão à sua libertação, à sua liberdade, ao não medo da morte. Uma consciência de si escrava não está em si, mas fora de si. Estar em si, para uma consciência é supressumir o plano natural. Supressumir é a casa da consciência. E é onde ela, enquanto senhora, gosta de estar, isto é, a consciência de si enquanto senhor é uma consciência em contínua supressão de si e do mundo. A consciência escrava anda na rua, isto é, vivendo num plano natural. Dorme e alimenta-se na rua, fora de casa, fora de si. A consciência escrava alimenta-se do que o mundo lhe dá, do que a consciência sua senhora lhe dá, mais nada. A consciência escrava é ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho, beber nos intervalos que tenha e aproveitar ainda para ter mulheres (ou homens). Viver numa consciência escrava é viver sem perguntar por si, pela própria vida, não fazer do mundo todo um objecto para si. Para melhor se compreender estes dois modos distintos de apreender o mundo, por parte de uma consciência, imaginem que estão apaixonados por uma pessoa de má índole, e que sabem perfeitamente que essa pessoas não vos convém, mas apesar dessa consciência de si do outro, entregam-se a ela pelo prazer que ela vos dá, isto é, deixam de ser senhores de si para se tornarem escravos; o conhecimento deixa de ser importante, deixa de fazer efeito e passam a viver como se ele não existisse. Passam a ter medo da morte, medo da morte que foi revelado através do prazer enorme que essa pessoa vos dá, independentemente do conhecimento que tinham dela e do qual abrem mão. Aceitam ser escravos por medo da morte, por um desenfreado amor à vida, ao plano natural, sensual, animal da vida. O medo da morte é querer viver, é pensar que deixar o plano do sensual é caminhar para a morte. Quem tem medo da morte, afoga-se de vida, de sensual, de animal, e morre escravo. Ter consciência do que nos está acontecer e fazer disso um objecto, fazer de nós e da nossa vida um objecto é a vida de uma senhora consciência. No fundo, esta senhora consciência é, em última instância, a própria filosofia. Mas adiante, que não é isto que nos traz aqui. O que nos traz aqui é a Luísa e a Juliana, a senhora e a sua criada. Em sentido hegeliano, no início do romance ambas são escravas, pois ambas não têm consciência de si. Mas com o avançar do romance, com o avançar da trama, com a queda de Luísa isso não vai ser assim.

(Continua)

15 Ago 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio Parte quatro e última

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]as então porque continuamos a multiplicação do desejo, sabendo que isso nos faz mal, que isso nos enche de nada? É o próprio Eça nos dá a resposta, através de uma conversa, muitas páginas antes, entre Luísa e Leopoldina:

– Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras…

Leopoldina estacou:

– O quê?

– Não te podem fazer feliz!

– Está claro que não! – exclamou a outra. – Mas… – procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: – Divertem-me!

Eis então aqui diante de nós a resposta à pergunta que fizemos antes: divertimento. Leopoldina sabe bem que a multiplicação do desejo a conduz a nada, a uma aumento de nada, mas continua a fazê-lo pela simples razão de que a diverte. Cá estamos de volta a este nosso tempo, e como Eça de Queirós tão bem o descreveu: o nosso tempo é o tempo da multiplicação do desejo e do divertimento.

O que é o divertimento ou a diversão? E qual a relação entre ele e o desejo? Na sua obra Pensamentos, Pascal separa as estruturas do amor e da diversão ou divertimento. Pascal usa o termo divertissement em sentido etimológico, isto é, em sentido de distracção, de diversão. Cair no divertimento é cair para fora de si mesmo, perder-se num alheamento de si próprio, deixar de se importar com a sua própria vida. Aquele que se diverte, esquece-se de si. Diz Pascal: “Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para serem felizes, de não pensar nisso tudo.” Ora, o divertimento é o ambiente natural do esquecimento. O ambiente natural do esquecimento de si próprio e da vida, das dificuldades da vida. Por conseguinte, um amante a seguir ao outro não concede felicidade a Leopoldina, mas concede-lhe um bem muito precioso: “ficar fora de si”, não se lembrar que existe, com todas as preocupações que daí advêm. Um amante a seguir a outro e a outro e outro dá a Leopoldina a possibilidade de não se ver a si mesma, de viver sem si mesma. E aquela que vive sem si mesma precisa de algo ou alguém que a preencha, isto é, não só não a aborreça, mas fundamentalmente a afaste do aborrecimento. Ou seja, da angústia não me livro, mas livro-me de senti-la. Livro-me de me sentir a mim mesma, diz, sem dizer, Leopoldina. Ao fim de alguns anos de amantes, chega à conclusão de que nenhum homem tem poder para fazer isso. Nenhum homem pode erradicar de vez o aborrecimento que a assalta continuamente e cada vez mais. Leopoldina espera na multiplicação do desejo, no incremento contínuo de nada, a salvação da sua vida, um sentido para ela, algo que a faça viver como se viver fosse um bem e não um mal. Leopoldina vive como se fosse preciso inventar fugas da própria vida. Pascal escreve ainda que a melancolia – que invadia Luísa na ópera, ao lembrar Jorge, por exemplo – é a diminuição da estima de si, diminuição da estima de si pelo esvaziamento da pessoa e a incapacidade de descrever o objecto perdido. Caídos aqui, e ainda segundo Pascal, resta ao humano a volúpia, a volúpia é uma adesão aos prazeres dos sentidos. E esta é a atitude própria de quem perdeu a estima de si. O divertimento produz um esvaziamento do humano e do sentido do amor. Divertimento e desejo são irmãos. Ambos lutam dentro de nós contra nós próprios. Divertimento e desejo é nós contra nós, nós a comermo-nos a nós próprios, a enchermo-nos de vazio, a enchermo-nos de nada. Mas enquanto o desejo nos empurra para a angústia, seu irmão, o divertimento, tenta fazer-nos esquecer dela, através de uma técnica semelhante à da terra queimada, isto é, o divertimento queima qualquer lembrança que possamos ter de nós mesmos, qualquer lembrança da nossa condição humana. Leopoldina sabe que não é feliz, mas diverte-se, isto é, enche-se mais e mais de nada, até que tudo se acabe. Melhor seria dizer: até que ela se acabe. Pois o que lhe custa na vida não é a vida, mas ela mesma na vida. O que lhe é insuportável é ela mesma. Assim, e reconhecendo isso, embora de modo um bocado enevoado, isto é, sem toda esta reflexão que aqui fomos seguindo, ela diverte-se. Para Leopoldina, viver é divertir-se, isto é, viver é esquecer-se, ir caindo continuamente para fora de si. Quanto mais se enche de nada, mais necessidade tem de se divertir, pois mais necessidade tem de se esquecer do nada a crescer. E esta experiência de Leopoldina, Luísa sente-a precisamente naquele momento que causa tanta perplexidade ao leitor Machado de Assis, em que ela ao arrumar a sua mala para sair de casa e deixar o marido, se dá conta de que o desejo de Basílio não chega. O desejo de Basílio não lhe chega. Ali, naquele momento, Luísa dá-se conta de que o desejo não chega para nada, embora nos coloque em presença de nada e do nada.

8 Ago 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de “O Primo Basílio” (3)

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á vimos que Eça deixa bem claro em O Primo Basílio que a multiplicação do desejo, ao incrementar o nada, enche-nos de aborrecimento. Um aborrecimento do tamanho do mundo. Um aborrecimento do tamanho do mundo, bem que deve ter uma outra palavra, palavra mais forte do que aborrecimento. De imediato, passaremos a analisar este aborrecimento do tamanho do mundo, o que esconde ele, e qual a sua relação com o nada e com a multiplicação do desejo.

Será necessário então tentarmos entender um pouco melhor o que é o nada. Que se quer dizer quando se diz nada? Antes de mais, devemos fazer uma distinção fundamental, para a qual Heidegger já nos alertara, no seu célebre curso de 1929, Was ist Metaphysik? [Que é a Metafísca?], entre nada e nulo, se quisermos ser bem sucedidos na compreensão do nada. Segundo Husserl, o nulo é uma “indeterminação determinada”. Que se pretende dizer com isto? Imagine-se que estamos em casa e alguém toca à campainha, sem que esperemos. Do outro lado da porta está alguém indeterminado, um nada que não se pode saber, até que se pergunte “quem é?”, a campainha toca e abre um mundo de possibilidades: “será o carteiro?”, “será um vendedor?”, “será um amigo inesperado?” “será publicidade?”; por fim, nas sua mais indeterminada formulação, “quem será?” Ora, este “quem será?”, esta pergunta é nada para nós, isto é, apresenta-nos um nada de saber acerca de quem está do outro lado da porta. É o indeterminado. Mas este indeterminado tem ainda assim um determinado, isto é, não sabemos quem é, mas sabemos que é alguém, sabemos que não é um cão ou um gato, sabemos que muito provavelmente não é o Presidente da República Portuguesa – se bem que o actual presidente possa muito bem contrariar isso – ou o filósofo Edmund Husserl. Cães e gatos não tocam à campainha, os mortos também não (Husserl) e a probabilidade do Presidente da República Portuguesa nos tocar à porta é ínfima. Por outro lado, as hipóteses adiantadas anteriormente, do carteiro ao amigo inesperado ou ao vendedor são também determinações. Estas determinações indeterminadas são o nulo e não o nada. Ou seja, são qualquer coisa, mas que nós não sabemos o quê ou quem. O nulo é um nada do ponto de vista epistemológico, um nada de conhecimento.

O nada também não é uma negação. Quer seja uma negação do ponto de vista lógico-predicativo, por exemplo, “p não é q” ou “o homem não é imortal”, quer seja do ponto de vista de um juízo existencial, por exemplo, “não há cerveja”, pondo como possibilidade pedir mais ou ir comprar. A negação, o não, tem como horizonte de sentido um sim, o haver que não há. Neste sentido, o não, a negativa é também um nulo, uma nulidade. Não é aqui que podemos perguntar pelo nada. De qualquer modo, perguntar, seja pelo que for, implica necessariamente uma informação acerca do que se pergunta. Imagine-se alguém que na Avenida da Liberdade nos faz esta pergunta: “desculpe, pode dizer-me onde fica o Teatro Dona Maria?” De uma coisa podemos estar certos, ele não sabe onde fica o teatro pelo qual pergunta. Mas podemos também ficar igualmente certos de que ele sabe o que é um teatro, e que existe em Lisboa, e que é perto da Avenida da Liberdade. Ele sabe algo acerca do que não sabe. Por isso pergunta. Perguntar é ter já um conhecimento prévio e indefinido do que não se sabe e pelo que perguntamos. Ou seja, o não saber tem um horizonte de saber, ainda que cheio de imprecisão, cheio de indeterminação. Uma indeterminação determinada, diria de novo o nosso amigo Husserl.

Mas qual é então a situação hermenêutica que nos deporá no nada? Se ele não é o nulo, nem o não, nem a negação? Todos estes são sombras de sim, sombras de afirmação, sombras de existências, sombras de saber ou, se preferirmos, são negativos de afirmações, negativos de predicados atribuídos, negações de coisas. E o que pretendemos saber é o que é o nada, que nos invade através da multiplicação do prazer. O nada não pode ser encurralado como o fazemos em relação às estruturas de negatividade. O nada não pode ser interrogado como fazemos em relação à ausência de uma coisa, de um conhecimento, de um predicado. O nada só pode ser interrogado em relação ao seu todo. Por conseguinte, como saber o que é o todo do nada, o que é o nada e não o nada disto ou daquilo ou daqueloutro que, como vimos anteriormente, não é nada, mas nulo, estruturas de negatividade. Perguntar pelo nada é perguntar pela possibilidade do ser; esta é que é a grande visão de Heidegger. Não se pode perguntar pelo nada isolado do ser. Do mesmo modo que não se pode perguntar pela negativa isolada da afirmativa, ou do não isolado do sim, ou do não há isolado do há. O nada só pode ser encurralado em nós. Só identificando em nós o nada, podemos responder ao nada. Só nós podemos responder ao nada, porque só nós somos nada.

O problema do nada é que ele é. O nada é expansionista, tem tendência para alargar, para crescer, para tornar em nada tudo o que toca. Heidegger diz: “das nichten des Nichts; nichten não existe em alemão, pertence ao heideggerês, que traduzindo para português, seria qualquer coisa como nadadar (nada-dar), no sentido em que o nada se torna verbo e actua sobre o mundo. O nada traz um todo de ausência ao todo da presença. Para quem tiver mais dificuldades com esta incursão fenomenológica cerrada, imagine a namorada, o namorado, a esposa ou o marido abandoná-lo ou abandoná-la, quando ainda fervilham de amor. O mundo, literalmente, transforma-se num todo de ausência, isto é, o mundo, onde quer que se vá, fica preenchido com a falta de quem nos abandonou. Os carros, o café, a cerveja, a música, os livros, a comida, a cama (essa então…), os outros com quem nos cruzamos na rua ou ocasionalmente falamos, tudo isso traz até nós quem não está. Quem não está, e só esse ou essa deveria estar, é o nada. O nada que somos. O nada é a ausência materializada em tudo o que vemos, sentimos, pensamos, tocamos. E, agora, para usarmos a metáfora que Heidegger usa: através do nada – a ausência em presença – o mundo fica com um ambiente de cortar à faca. O nada só não existiria se conseguíssemos controlar o destino da nossas vida. Usemos antes a palavra que Heidegger usa, Stimmung, disposição, em inglês seria mood. A palavra vem de stimme, voz, e Heidegger usa metáforas musicais, de ritmo e meteorológicas, de diferentes climas, de o tempo a mudar. De facto, não dificilmente a nossa disposição muda. Ou seja, estamos expostos à intempérie, quem anda à chuva molha-se, humano que anda na vida leva com o nada em cima do lombo. E esta experiência de nos faltar o mundo, da nossa própria vida se estreitar, aquando do abandono a que fomos votados, sem que pudéssemos sequer ter uma migalha de decisão nessa história, é a angústia. A angústia é a vida a ficar cada vez mais estreita, cada vez mais estreita… tão estreita que até parece que nos custa a passar por ela com o que somos ou com o que já não somos. O nada, em suma, não é passível de interrogação à laia do que quer que seja, senão através da nossa experiência no mundo connosco. Não se pergunta pelo nada como se perguntássemos pela terceira lei da termodinâmica ou como se perguntássemos onde é o teatro Dona Maria ou porque caiem os corpos. Pergunta-se pelo nada do mesmo modo que se pergunta a quem se ama, se nos ama. Pergunta-se pelo nada, não à espera de saber, mas à espera de vida, à espera de se conseguir viver. Por conseguinte, multiplicar o desejo é estar mexendo com o fogo, estar mexendo com o fogo do nada. Porquê? Porque muito simplesmente um corpo a seguir ao outro traz em si mesmo a ausência de uma presença, um vazio total de permanência. Ninguém passa da loira para a morena, da morena para a ruiva, da ruiva para quem quer que se siga, sem que traga no seu pobre coração um aborrecimento do tamanho do mundo. Com o nada a nadadar em alta rotatividade, nada nos chega. Esperemos que a nossa digressão pelo nada e seus derivados tenha sido profícuo para a compreensão da conexão entre a multiplicação do desejo e o crescimento do nada. Porque, podemo-lo dizer agora, este nada é a angústia. Talvez se possa dizer, junto com a Leopoldina, que a angústia é um aborrecimento do tamanho do mundo.

Mas então porque continuamos a multiplicação do desejo, sabendo que isso nos faz mal, que isso nos enche de nada? É o próprio Eça nos dá a resposta, através de uma conversa, muitas páginas antes, entre Luísa e Leopoldina:

– Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras…

Leopoldina estacou:

– O quê?

– Não te podem fazer feliz!

– Está claro que não! – exclamou a outra. – Mas… – procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: – Divertem-me!

Eis então aqui diante de nós a resposta à pergunta que fizemos antes: divertimento. Leopoldina sabe bem que a multiplicação do desejo a conduz a nada, a uma aumento de nada, mas continua a fazê-lo pela simples razão de que a diverte. Cá estamos de volta a este nosso tempo, e como Eça de Queirós tão bem o descreveu: o nosso tempo é o tempo da multiplicação do desejo e do divertimento.

1 Ago 2017

Pelin Esmer | A cineasta de Istambul 

Pelin Esmer (1972, Istambul) estudou Antropologia e é uma conceituada realizadora turca, galardoada com vários prémios.

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azes filmes documentários e filmes ficcionais, e és cineasta premiada em ambos. O que diferencia uns dos outros? Para mim, os teus filmes documentários não se diferenciam dos filmes ficcionais.
Há vários tipos de filmes documentários, de facto. Hoje o filme documentário já não se restringe a sua função informativa, embora ainda seja assim que a maioria das pessoas entendem o documentário. O que faz com que os meus filmes documentários não sejam filmes ficcionais, mas filmes documentários, é que os personagens são reais. Se eu não filmasse aquelas pessoas, ainda assim elas continuavam vivas e a terem a mesma vida que eu retrato. Este é, para mim, o argumento maior para dizer que os meus filmes documentários são filmes documentários e não filmes ficcionais. Evidentemente, os meus filmes documentários não são filmes informativos, não tem essa missão, como por exemplo os filmes documentários que se pode assistir em vários canais da TV cabo. Mas o que hoje em dia determina a diferença entre o ficcional e o documentário é precisamente a não criação de uma realidade. Eu não crio uma realidade nos meus filmes. A realidade já existe, mesmo que eu a não filme; mesmo que eu não existisse.

Nos teus filmes ficcionais não crias uma realidade, mas crias um modo de ver. Se preferires, mostras o que estava escondido.
Isso, sim. Pelo menos, é o que pretendo fazer com os meus filmes documentários. Pretendo mostrar sentimentos e condições das estruturas do humano que muitas vezes nos estão vedadas no nosso quotidiano. Por outro lado, mais do que dar respostas, os meus filmes são modos de fazer perguntas.

E essa é precisamente a razão pela qual eu julgo os teus filmes, a que chamas de documentários, como não documentários.
Entendo, mas não posso esquecer que a existência dos meus personagens não dependem da minha criação ou da criação de um escritor, eles existem. Há ainda uma outra diferença, que faz com que esses meus filmes sejam determinantemente filmes documentários: nos filmes de ficção, primeiro escreve-se o roteiro (script) e só depois se filma; no modo como trabalho o documentário há apenas um roteiro imaginado por mim, que é mais uma espécie de índice do que um roteiro, e quando vou filmar não forço a realidade que vou filmar para que actue de acordo com o meu roteiro imaginário. Só escrevo o roteiro no final, depois de ter tudo filmado, na montagem e usando o material filmado, isto é, usando o real e não o imaginário.

Depois de Oyun (A Peça de Teatro), que saiu em 2005, nunca mais filmaste documentários. E Koleksiyoncu (O Coleccionador), o teu primeiro filme, saira em 2002. Quer isso dizer que abandonaste os filmes documentários e que eles foram apenas um modo de chegar ao filmes de ficção, 11’e 10 kala (Das 10 às 11), em 2009, Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia), em 2012 e mais recentemente Ise yarar bir sey (Uma Coisa Útil), em 2017?
Não, de maneira nenhuma. Não deixarei de filmar documentários, aliás estou neste preciso momento a filmar um novo documentário, fora de Istambul, e nem vejo este tipo de filmes como algo para chegar aos filmes de ficção. Não penso que o filme documentário seja inferior ou superior ao filme de ficção. Fiz filmes de ficção, porque há já um tempo que tinha a ideia de os fazer. Agora, que encontrei novamente um bom assunto para fazer um documentário, regresso a esse tipo de filme. O que me interessa não é o filme documentário ou o filme de ficção, o que me interessa é o filme. Se existir algum personagem ou alguma história reais que me interessem bastante, filmo como documentário; se encontrar histórias ou personagens, quer seja eu que invente ou quer sejam outros que inventem, e que me interessem, filmo como ficção. Para além das questões técnicas, que não podem ser esquecidas, não faço distinções entre filmes documentários e filmes de ficção. Interessa-me fazer filmes.

E o que é isso “fazer filmes”?
Para mim, fazer filmes é fazer perguntas. Só faz sentido fazer um filme se tiver uma pergunta para fazer. Mas essa pergunta não vem apenas em palavras, já que se trata de usar uma câmara que capta imagens e sons. Posso até fazer essa pergunta ou perguntas sem qualquer palavra, ou com muito poucas palavras, mas sem imagens não será nunca um filme.

Depois de tantos prémios internacionais e nacionais, e em especial o de Tribeca, em Nova Iorque, que foi entregue pelo próprio director do festival, Robert de Niro, que mudou na tua vida profissional?
Deu mais visibilidade ao meu trabalho, mais oportunidades de encontrar outros directores e actores. Por outro lado, tornou-se um pouco mais fácil arranjar dinheiro para os outros filmes. E, também por causa disso, desse primeiro prémio em Tribeca, Oyun foi o primeiro filme documentário turco a ser exibido nos cinemas comerciais na Turquia.

Podes adiantar algo acerca deste novo filme documentário que estás a filmar?
Há 14 anos filmei “A Peça de Teatro”, que era um filme acerca de um grupo de mulheres numa aldeia no leste da Turquia, que resolveram fazer uma peça de teatro e com isso falar dos seus maridos, como elas os viam. A sociedade nestes lugares é demasiado fechada e esta peça constituí uma verdadeira revolução na aldeia e, por causa do filme, na sociedade turca. Agora regressei à aldeia e estou a filmar uma digressão que eles foram convidadas a fazer, por toda a região de Mersin. Por exemplo, amanhã elas irão actuar nas montanhas, para os nómadas.

Estás familiarizada com o cinema português ou brasileiro?
Do cinema português, do que conheço, o que mais me interessa são os filmes de João Rodrigues e o Tabu, de Miguel Gomes. Mas não conheço assim tanto dos novos realizadores. Quanto ao Brasil, embora não possa dizer que estou familiarizada, conheço alguns filmes. Gostei muito de Cidade de Deus, os filmes documentários de Eduardo Coutinho, o documentário Ônibus 174, o Estamira, de Marcos Prado, o Che Guevara e a Central do Brasil, de Walter Salles. Haverá mais que me estarei a esquecer… De resto, é muito difícil os bons filmes, que não tenham uma grande produtora, chegarem às salas de cinema, seja onde for. Esse é o problema do cinema, hoje, em qualquer parte do mundo.

Excerto de Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia)
31 Jul 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que vou dizer agora, em verdade não foi dito em O Primo Basílio, mas só o amor poderia estancar de vez essa multiplicação contínua do desejo. Aliás, amar a Deus é o amor por excelência, é isso que Leopoldina muito bem vê, já que não acredita no amor entre um homem e uma mulher. No mesmo sentido que em Santo Agostinho: só se pode amar aquilo que não muda. Tudo aquilo que muda, pela sua própria condição de mutabilidade não é solo seguro para fincarmos o amor ou um projecto de amor. O amor é, em si mesmo, a possibilidade da permanência, da imutabilidade. A imutabilidade é o horizonte de sentido do amor. Por isso, Santo Agostinho dizia que só se pode amar a Deus.

Há ainda uma característica fundamental no estrutura do desejo, tal como ele é apresentado em O Primo Basílio, que não só passou completamente ao lado do espírito do senhor Machado de Assis, como ainda fez questão de afirmá-lo: “Luísa resolve fugir com o primo; prepara um saco de viagem, mete dentro alguns objectos, entre eles um retrato do marido. Ignoro inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de ternura conjugal: deve haver alguma; em todo caso, não é aparente.” Ora, trata-se de um dos vários toques de génio de Eça, onde não só nos mostra mais acerca da operacionalidade do desejo, mas também de como a sua multiplicação está intimamente ligada ao nada. Porque o desejo tem muitas dificuldades de deixar aquilo que experimentou e que gostou. Luísa pode não querer Jorge, querer Basílio, mas o desejo dela tem muita dificuldade em deixar Jorge, em deixar de ter Jorge. O desejo quer tudo. Uma vez despertado, consciente do seu objecto, o desejo não quer deixar nada para trás, não quer abdicar do que já teve. O desejo transforma tudo em possibilidade de se vir a ter. Nada mais difícil para o desejo do que fechar possibilidades. Para o desejo de Luísa, o retrato de Jorge significava o não fechamento da possibilidade de Jorge ser seu objecto. Não se pode querer entender o desejo com moral. O desejo é do foro do natural, e se quisermos compreendê-lo temos de esquecer os deuses modernos, as convenções sociais. Páginas atrás, que remetem para a manhã desse mesmo dia que produz indignação no senhor Machado, há uma outra passagem muito mais esclarecedora em relação a este ponto. Quando decide fugir, nessa manhã, Luísa pensa em Jorge e, depois de lembrar os cuidados extremos que ele teve quando ela esteve doente de cama, com pneumonia, pensa ainda: “E agora, quando ele soubesse, quando ele voltasse! Quando ao entrar ali na alcova – visse as duas almofadas, ainda! Ela iria longe, com outro, por caminhos estranhos, ouvindo outra língua. Que horror! E ele ali estaria, naquela casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memórias dela para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinelinhas, os seus pentes, toda a casa! Que vida triste, a dele! Dormiria ali só! Já não teria ninguém para o acordar de manhã com um beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: “É tarde, Jorge!” Tudo acabará para ambos. Nunca mais! – Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama…” Ela não chora pela antecipação da dor dele. É o seu desejo que chora, por ter de deixar algo que lhe pertence. O seu desejo também quer aquilo que já teve, os cuidados de Jorge, o seu amor, mesmo o amor dela por ele, embora não abdique do amor de Basílio. É esta a miséria. O poder sobre nós começa a perder-se em nós pela fome do nosso desejo. O desejo impele-nos a querer tudo o que queremos. E este querer tudo não se dá com a vida. O desejo é  selectivo, mas não o suficiente. Luísa quer o amor aventuroso de Basílio e quer o amor cuidadoso de Jorge, mas certamente não quer o amor de Julião, por exemplo. Mas este querer tudo-selectivo do desejo implica ter de escolher, ter de perder alguma coisa do que se quer. E isso dói-nos muito no desejo. Quem aqui é que já não experienciou isto em si mesmo? Quem ao deixar para trás uma relação, muitas vezes complicada, não mantém consigo, no seu computador, as fotografias de um outro tempo, a imagem daquele ou daquela que já deixámos, do tempo em que o desejo era efectivo? É o querer tudo do desejo a fazer-se sentir em nós. E este querer tudo do desejo, a sua impossibilidade ou dificuldade de deixar o que já foi seu, está intimamente ligado à experiência do nada pelo humano. É neste querer tudo do desejo, a um mesmo tempo – e não uma coisa a seguir à outra e outra, como é normalmente compreendido como sendo característica dele –, que o nada se tornar uma experiência e uma verbalização humana. O querer tudo do desejo, a um mesmo tempo, traz o nada à boca. Veja-se a cena:

– Al pallido chiarore

Dei ostri d’oro…

Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em São Carlos, num camarote com Jorge; uma luz eléctrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: “Que lindo!” E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

– Al pallido chiarore

Dei astri d’oro…

E apertava-a contra si…

Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado. Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. Em que estava a pensar?

– Nada.

É o desejo a exigir o que lhe pertence, a exigir o que é dele. O desejo – com a ajuda da memória – expondo à consciência de Luísa que não quer perder o que é dele, que não pode perder Jorge. Jorge e Basílio fazem sentido, a um mesmo tempo, para o desejo de Luísa. É neste preciso momento, ao escutar a terceira ária do Fausto, que Luísa passa a ser refém da multiplicação do desejo. Pois até aqui o desejo ainda não se multiplicara, esta singular experiência não se fazia realmente sentir, ela e o desejo só tinha olhos para Basílio, mas a partir de agora ela entende que Basílio não chega. O desejo quer Basílio, mas nem por isso quer perder Jorge. O desejo quer tudo o que tem. E o desejo de Luísa já teve Basílio. Teve Basílio e teve Jorge. É extraordinária a frase que Eça põe na boca de Luísa para responder à pergunta de Basílio, acerca do que ela está a pensar: “Nada.” Precisamente. Ela não está a pensar em nada, ela está em nada, centrada no nada, na consciência do finito nada humano. Nesse momento ela é nada, é um imenso nada que se verbaliza a si próprio, um imenso nada a dizer o seu nome. Quando em situações semelhantes nós respondemos às nossas parceiras ou parceiros, nada, para além disso querer dizer que não queremos contar, é também um reflexo daquilo que verdadeiramente se está a passar em nossa alma: nada, isto é, o nada a aumentar através da multiplicação do desejo. Nesse momento ficamos melancólicos, porque estamos reféns de nós mesmo, reféns do imenso nada que nos habita e que subiu até à boca, verbalizado. A melancolia advém da suspeita – para não dizer mais – de que nada nos chegue. Se aprendêssemos a escutar o desejo nas suas múltiplas apresentações, talvez não fossemos mais felizes, mas seríamos seguramente mais capazes de entender o que nos acontece e o que poderíamos esperar que venha a acontecer. Não podemos evitar o desejo, mas podemos aprender a interpretá-lo e agir em concordância a essa mesma interpretação.

È fundamental que se entenda a diferença desta passagem do livro de uma outra, que apresentaremos em seguida, passada no dia seguinte nos aposentos de Luísa:

Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito, desde a véspera; não a assustava, nem a torturava; estava ali, imóvel mas presente, sem lhe fazer medo, nem lhe trazer remorso; era como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não pudesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesma se espantava de se sentir tão tranquila. E todavia impacientava-a ter constantemente aquela ideia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se instintivamente a acumular as justificações: não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!…

Aqui, o desejo não se faz sentir, o desejo não age. Luísa está antes tomada pela necessidade de justificativa para o seu acto de impiedade social. Há aqui uma tentativa de reduzir o nada da noite anterior, há um esforço para racionalizar o que se está a passar com ela, o que lhe aconteceu, que foi à sua revelia, ou, como ela mesma diz, não caiu nos braços do primo voluntariamente. Ela tenta encontrar no desejo um destino, tenta inverter o nada da noite anterior.

25 Jul 2017

“Há material para saciar todo o tipo de sede”, Luís Gouveia Monteiro

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rabalhaste em muitos lugares da chamada comunicação social, desde os jornais até à televisão, e nesta em diversas posições. Vens ainda de um período em que fazer directos implicava uma boa soma de dinheiro e de recursos, contrariamente aos dias de hoje. Queres falar-nos destes diversos momentos da tua vida profissional e apontar-nos as diferenças que encontras entre o início e hoje (sendo tu ainda um jovem de 40 anos)?

Se compararmos com a década de 90, há duas diferenças fundamentais. A primeira é tecnológica. Mudaram radicalmente – e para melhor – as condições de produção, distribuição e consumo de comunicação e informação. Estão-se a cumprir muitas das promessa que então se faziam, como a possibilidade de cada um de nós produzir ou consumir exactamente e apenas os conteúdos que desejam. Lembro-me de pensar, quando estive pela primeira vez na SIC, em 1997, que se quisesse trabalhar em televisão por conta própria, comprar uma câmara e montar uma sala de edição, precisaria de vender a casa. Hoje tenho no escritório condições técnicas superiores às com que trabalhávamos nessa altura. Basta-me uma pequena câmara e o computador que tenho em casa. A comunicação já não precisa de um grupo económico. Ora nós ainda somos do tempo em que se comia o que nos punham no prato. As vantagens cognitivas de uma dieta de conteúdos que já depende quase só dos nossos gostos e interesses e não dos do poder político ou económicos são imensas. E já são muito evidentes nos alunos que passam pelas universidades e que trazem no bolso, dentro do telemóvel, várias bibliotecas de Alexandria. Por enquanto a grande curiosidade das massas tem estado especialmente centrada em vídeos de gatos irrequietos e de hipopótamos a comer melancias. Mas há cada vez mais oferta e, no mercado global e hiper-segmentado da internet há material para saciar todo o tipo de sede. Vive-se muito melhor assim e é preciso muita má vontade para uma pessoa se aborrecer.

A segunda diferença grande diferença é de clima económico. Nos anos 90, em Portugal, vivia-se uma fase eufórica com a explosão da televisão privada, com redacções de jornal vibrantes e prósperas (Público, Independente, Expresso) e com muito dinheiro a circular. Hoje, em todo o mundo, o jornalismo ainda está a aprender as novas regras da vida em rede. Ainda está a aprender como é que se ganha a vida online. Nesta espécie de infância de um novo modelo negócio os media têm corrido mais atrás dos vídeos de gatinhos do que das bibliotecas de Alexandria. Mas uma vez mais há muitos sinais de que estão a caminho coisas novas e excitantes. O jornalismo de dados é um bom exemplo da procura pelas respostas que se escondem na floresta de números que a realidade produz em constante aceleração. Outro bom exemplo é o cada vez mais enérgico jornalismo lento que está a surgir como resposta ao jornalismo light (aquele que pratica o copy/paste, anda obcecado com os gatinhos e publica artigos de investigação sobre as 50 maneiras de aumentar a auto-estima). São jornalismos que procuram a criação de públicos a longo prazo por oposição à actual lógica de tráfico de atenção, que corre atrás da remuneração rápida de curtos picos de entusiasmo, e depois o olvido.

 

 

Neste momento estás a ensinar, na Universidade de Coimbra, e em Lisboa, na Nova, na Faculdade de Ciências Sócias e Humanas. É um trabalho mais recompensador?

Sim, muito recompensador, mais do que nas redacções. Nos últimos anos em que fiz jornalismo comecei a sentir com uma frequência preocupante que teria sido mais ecológico ficar em casa. A grande fatia do trabalho passou a ser sobre o efémero insignificante, sobre aquilo que passa e não sobre aquilo que fica. Em cima disso comecei a sentir-me a perder tempo e a perder faculdades. Voltando à metáfora da dieta: quando se trabalha todos os dias usando o efémero como principal alimento do espírito, corre-se o risco de estar apenas a engordar uma espécie de vazio, cujo exemplo podem ser aqui os despachos das agências noticiosas, cujos prazos de validade são muito curtos, por vezes desactualizam-se em quinze minutos. Sentia-me a transformar-me numa daquelas pessoas que falam com facilidade e energia sobre todo e qualquer assunto, nada sabendo de coisa nenhuma, um especialista em banalidades, dono de uma competência apenas performativa, mas sem capacidade de transformar informação em conhecimento. É claro que há grandes jornalistas, tanto especialistas como generalistas, que fazem de facto a diferença, melhoram a vida da gente. Mas eu comecei a sentir que era quase sempre melhor para o ambiente ficar em casa. E a grande verdade é que desde os primeiros passos na redacção do Público em 1993 – com dezoito anos, ainda de calções e muito vagamente alfabetizado – o que eu queria era escrever, era dar um ar da minha graça. Informar era um ganho colateral. Isso foi-se tornando claro ao longo dos anos e julgo que esteve numa lenta deriva que começou há mais de uma década e que me está a levar da realidade para a ficção.

 

Podes explicar melhor, essa deriva da realidade para a ficção?

Acho que tudo se resume a esse pecado original de, desde o início, ter estado sempre mais comprometido com o artesanato de contar histórias (com texto, com imagens) do que com o direito e o dever de informar. Ora o jornalismo é demasiado importante para ser entregue a diletantes. E eu sinto-me melhor neste lado civil da ficção e acho que sou mais útil aqui, na companhia dos filósofos e dos poetas.

E como está hoje a universidade em geral e em particular as de comunicação?

A universidade está muito bem e recomenda-se, sobretudo por causa dos alunos. Têm as tais bibliotecas no bolso e são hoje pessoas mais avançadas do que éramos, exactamente naqueles cursos, há vinte anos. Quanto ao resto da instituição, como em todos os universos, há dias bons e dias maus, mas em todos eu sei porque não fico em casa. Mesmo quando as condições de trabalho são duras e há um dramático subfinanciamento o que se sente de forma muito dura nos cursos que precisam de aparato tecnológico, como é o caso. O João César Monteiro dizia que a maturidade lhe tinha ensinado que o cinema não precisa de equipamento, precisa apenas de um pouco de luz dentro de uma cabeça. Digamos que nos últimos anos temos levado este conceito às últimas consequências, mas sempre vão existindo umas câmaras e uns estúdios, tanto em Coimbra como na FCSH. E há cada vez mais luzes dentro de cabeças e, César tinha razão, isso é o fundamental.

24 Jul 2017

O erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio (I)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma passagem da célebre crítica de Machado de Assis a Eça de Queirós, e mais particularmente a O Primo Basílio, lemos: “Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral.” Ora, é precisamente isto que Eça não dá, nem quer dar. O que Machado de Assisquero deixar bem claro que me refiro ao senhor Machado de Assis enquanto leitor e não ao escritor Machado de Assis. Não se trata aqui do escritor Machado de Assis, mas sim do leitor, da leitura que Machado de Assis fez do romance do escritor Eça de Queirós O Primo Basílio – não via, não conseguia nem ver nem aceitar, era que Eça concedesse à pessoa, na figura do personagem, tão pouco valor. Mas para Eça, é isso que é o mais importante. Para Eça, o importante é mostrar o quanto a nossa vida está longe de ser nossa; o quanto a nossa vida está longe de nos pertencer e de respondermos inteiramente sobre ela. E, neste sentido, Eça é profundamente ontológico. O humano sabe muito pouco de si, da sua condição, daquilo que lhe está acontecer, das forças que decidem o seu destino. Isto é o que Eça de Queirós – o escritor, talvez não o homem – viu muito bem. Pois se o humano é assim, porque têm os personagens de ser diferentes? O que importa a Eça não são bons ou maus efeitos literários, bons ou maus episódios, sequer moral, que parecia ser tão importante para o leitor Machado de Assis, o que importa a Eça é o humano. O humano na sua situação no mundo.

Comecemos então por apurar as estruturas do humano que ardem em O Primo Basílio, as fundamentais, de modo a entender melhor a célebre passagem de Luísa, a que Machado de Assis se refere. As estruturas a analisar são: desejo, prazer e nada.

Encetemos então, e primeiramente, a distinção entre desejo e prazer, através de uma passagem do livro, onde Leopoldina conversa com Luísa, já muito perto do fim do livro. Leopoldina era uma mulher casada, um pouco mais velha do que Luísa, 27 anos, muito bela, “o corpo mais perfeito de Lisboa”, reputada de mulher viciosa, de ter vários amantes e com quem o marido de Luísa, Jorge, proibira esta de se encontrar. Luísa tinha crescido com Leopoldina e tinha admiração por ela, pela sua beleza e, de algum modo, pela forma decidida com que vivia. E gostava muito de ouvir o que a outra lhe contava acerca dos seus amantes. Antes de avançarmos para a passagem que se pretende analisar, veja-se outros episódios com Leopoldina. O primeiro, ainda Jorge está em Lisboa, de partida, embora não esteja em casa, e Leopoldina fala-lhe de Basílio, que ele havia chegado a Lisboa. Depois, o que não deixa de ser curioso, aliás bastante curioso, já com o marido fora, quando Luísa se preparava para ir visitar Leopoldina, e estava contente por isso, seu primo, Basílio, apresenta-se pela primeira vez desde o regresso, fazendo com que ela se decida a já não visitar a amiga, mas antes a ficar em casa com o primo. Era como se o Eça fizesse com que, ao invés das conversas da Leopoldina acerca dos seus amantes, ela iniciasse também um caminho de fazer as suas próprias conversas. Mais tarde, sendo já amante do primo e num ataque de arrependimento, querendo e não querendo acabar, pensa em falar com Leopoldina acerca do assunto, escreve Eça:

Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era!

Quando Eça escreve “consultar Leopoldina”, obviamente não quer que pensemos que se trataria de uma procura de começar a trilhar o curso do arrependimento. O que ela pretendia, seguramente, com essa hipotética consulta era uma concordância fora dela com os seus desejos dentro dela. Ou seja, o que ela pretendia de Leopoldina era que esta lhe falasse dos enormes benefícios de se ter um amante e de como isso não traz mal nenhum ao mundo, pelo contrário. Luísa queria duas coisas que lhe pareciam irreconciliáveis: sossego, paz de alma, como se usa dizer, e satisfazer seu desejo no corpo do primo. Trata-se, portanto, de uma situação que todos nós aqui presentes conhecemos bem. Não necessariamente em relação a um amante, mas em relação a alguém com quem costumamos dormir e queremos ouvir de uma amiga ou de um amigo que devemos continuar a fazê-lo, contrariamente a um possível fim. Não é que Luísa não continuasse amante de Basílio, sem a hipotética consulta – como nós não deixamos de continuar a ficar com alguém, se outros não nos apoiarem nessa nossa decisão –, mas depois da consulta com Leopoldina, sempre continuaria a sua aventura mais aconchegada, isto é, não continuaria sozinha, levaria consigo para o seu amante um “não sou só eu que penso assim”. Este “não sou só eu que penso assim” é de extrema importância para quem sabe que está a cometer uma falha ou apenas suspeita disso. Que essa consulta nunca se realize, não tem aqui importância, pois o que está em causa, o que importa mostrar é como Leopoldina, na economia do texto, aparece sempre ligada a uma agressão contra a convenção social. Pensar em consultar tal pessoa, só pode significar não querer se pôr de bem com o status quo, com o que é convencional. Por outro lado, quando diz “Jesus, que infeliz que sou!” está a dizer a verdade, a verdade que atinge a natureza humana nessa situação em que Luísa se encontra, isto é, sentir dentro de si, em si mesma, dois quereres contraditórios: um a exigir dela que se comporte como seria de esperar de uma senhora da sua condição; outro a exigir dela a satisfação do desejo pelo primo. A infelicidade dela, aqui, na frase acima, resulta da sua vida estar a ser assaltada pelo desejo, à sua revelia. O desejo que sente faz com que não tenha mão nela, não tenha possibilidades de se segurar, isto é, Luísa não tem o controlo da sua vida. Esta é a sua infelicidade. Aqui, a infelicidade não é o desejo. A infelicidade são duas coisas: o desejo agindo sobre ela de modo a tomar-se senhor dela, seu dono; e ela sentir, saber que não o deve fazer devido à sua condição de mulher casada. E que diz então Leopoldina a Luísa de tão relevante para a nossa análise? Estas seguintes e extraordinárias palavras, quase no fim do livro:

Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar – ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata… Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!

E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada:

– Aborreço-me! Aborreço-me!… Oh, céus!

Ficaram um momento caladas.

Iniciamos então aqui a nossa distinção entre desejo e prazer, na economia do texto de Eça e na apresentação da situação humana. O desejo, já havíamos mostrado anteriormente, com Luísa, tem o poder de nos transformar em escravos. Luísa, através do desejo, deixa de ter poder sobre a sua própria vida – quando estamos sobre esse efeito, costumamos dizer “deixei de pensar” –, Luísa deixa de ser ela no desejo. Mas agora, com Leopoldina, dá-se uma avanço na compreensão do desejo e seus mecanismos. O desejo é auto-fágico, ele traz em si mesmo a vontade de acabar, de se comer a si próprio. O desejo devora o desejo. Depois do desejo saciado, devorado, o prazer termina. Mas o desejo traz também em si, além da vontade de se acabar, uma promessa de prazer. O desejo promete prazer. É essa promessa de prazer, esse canto da sereia, que o humano não suporta ouvir, acabando por ceder ao que o desejo quer. Desejo e prazer não são o mesmo. Desejo é uma coisa que promete outra. Desejo promete prazer. Promete e dá (pelo menos, a maioria das vezes). O prazer é a morte do desejo, é o desejo a acabar-se, o desejo a comer-se a si próprio. No fim, acaba-se tudo: o desejo e o prazer. Por isso, tantas vezes acontece dizermos a nós próprios que o melhor é cair logo naquela mulher de uma vez (ou naquele homem), para depois termos sossego; pois o desejo por saciar não nos deixa sossegados, mas uma vez saciado acabou-se, voltamos a nós; e a mais das vezes é mesmo o melhor que temos a fazer, pois a promessa de um enorme prazer anunciada no desejo acaba-se por se tornar apenas fracções dessa promessa, pequenas fracções de um prazer, que faz com que isso não volte a acontecer e, quanto a esse assunto, ficamos sossegados. Mas o desejo renasce das suas próprias cinzas através de um aliado poderoso: a memória. A memória traz até nós o desejo e a sua promessa de prazer. A memória traz até, nesse trazer, aquilo que se não passou, se for caso disso, mas principalmente a idealização do que se passou. Um update do passado, daquilo que se passou. Seja com ou sem update, a verdade é que a memória devolve-nos o desejo, instiga em nós uma vontade de repetir o prazer. É assim que o desejo se tende a multiplicar. Tende a multiplicar-se em nós numa procura vã de encontrarmos um prazer que se não acabe, um prazer que veja o fundo ao desejo. Tudo isto porque a memória não nos dá descanso e permite uma entrada livre, ao desejo, em nós. A multiplicação do desejo acabará sempre, no seu melhor, numa frase assim: “E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!” De facto, uma vez caídos na multiplicação do desejo, nenhum homem (ou mulher) nos pode salvar, só Deus. (continua)

18 Jul 2017

Ricardo Ben-Oliel (continuação)

Como é que um judeu de família da Europa central nasce em Cabo Verde e cresce e forma-se em Portugal?

Tudo por força do acaso . Minha mãe, nascida na Alemanha, encontrava-se em Milão, na companhia da irmã e do cunhado, quando Mussolini deu aos judeus ordem de expulsão. Teriam de abandonar a Itália dentro de um mês, sob pena de repatriamento. Por sorte, um familiar deles que à data se encontrava em  Cabo Verde, conseguiu obter-lhes licença de entrada. Meu pai, também judeu, que tinha negócios em Cabo Verde, encontrava-se no porto do Mindelo quando o navio em que minha mãe viajava aí chegou. Ainda por força do acaso, conheceram-se logo após o desembarque. Meses  depois estavam casados. Passados anos, já meus pais tinham três filhos, e por razões de escolaridade decidem mudar-se para Lisboa. Aí estudei desde a primária até ao final da licenciatura em direito.

O que te levou a deixar Portugal e passar a viver em Israel?

Esta é uma das mais  complexas  respostas a dar. E que respeita à mais  difícil decisão da minha vida. Não fui para Israel por razões económicas ou políticas, que são as que geralmente dão origem à  emigração. A razão foi ideológica. Corpo aqui (Lisboa), espírito lá (Israel), até que decidi reencontrar-me, partindo. Foi em Dezembro de 1973. Sabes que estou a escrever uma novela em que tento responder a esta tua pergunta?

Isso é uma boa notícia! A propósito do que me respondes, de não haver uma razão politica na tua mudança para Israel, qual era a relação do Estado Novo com os judeus?

O Estado Novo, é sabido, sempre teve uma relação ambígua para com muitos. Até  para com a  Igreja. Não admira que, em certa medida, o mesmo tenha sucedido com os judeus. Mas há que distinguir entre dois períodos diferentes: até ao final da Guerra e o pós-guerra. Grosso modo, diria que na primeira fase, apesar de sérios ziguezagues e mesmo graves deslizes, houve uma relação de cooperação. Judeus chegaram de comboio dos países ocupados. As autoridades criaram vários locais de acolhimento. Lisboa torna-se um porto de passagem para milhares que buscam outras bandas. A minha própria família materna encontra um abrigo em Portugal. Estes factos não podem de modo algum ser ignorados. Terminado o conflito, o relacionamento é de franco, bom entendimento. Eu conheci de perto a comunidade israelita de Lisboa, na década de sessenta e princípios dos anos setenta, nela também tive certas funções directivas. O presidente da comunidade,  Prof. Moisés Amzalak, que veio a ser presidente da Academia das Ciências, foi íntimo de Salazar. Contou-me que Salazar chegou a consultá-lo para efeito de nomeação de ministros. O Prof. Kurt Jacobson chegou a vice-reitor da Universidade de Lisboa. O doutor Samuel Ruah, se bem me recordo, foi médico de Salazar. Tratava-se de uma pequena comunidade, julgo que não teria mais de mil membros, onde vários se distinguiram no mundo da medicina, do direito, da economia. Intramuros não se falava de política. Nem bem, nem mal. Tal não impediu que só em 1977 tenham sido estabelecidas relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel, e que só em 1991 venha a ser instalada a primeira embaixada de Portugal em Telavive. Aí as considerações já eram completamente outras, e Portugal diligenciou em não afectar os seus interesses no mundo árabe.

E como foi todo o processo de adaptação a Israel, à língua, à escrita, pois tornaste-te um académico respeitado nesse país?

Vê que colocas a questão em termos de passado , como se o meu processo de adaptação tivesse já terminado. Não é assim. Ele está ainda em curso, e assim será. Apesar dos meus quarenta e tal anos em Israel, e de me ter tornado um académico conhecido como  catedrático de direito, tenho ainda muito a aprender. A aprendizagem da língua, da escrita – e isto apesar de ter muitíssimas centenas de páginas publicadas em hebraico – da cultura, dos costumes das várias etnias que habitam o país, exigem um trabalho constante, perseverante. Sou um imigrante, terei de aceitar a minha função de ponte entre o passado e as gerações futuras. Os meus filhos já estarão integrados. Os meus netos ainda melhor.

Quando começaste a escrever?

Tinha os meus doze, treze anos. Fazia-o um tanto às escondidas. Escrevia histórias curtas que às vezes dava à minha irmã para ler. Nunca publiquei o que quer que fosse nos jornais juvenis à data existentes.

E conhecias a tradição literária judaica ou somente a ocidental?

No  período que precedeu a aliá (emigração) a minha leitura visou essencialmente  a compreensão da Torá, do Talmud, da Kabalá. Interessava-me captar o máximo sobre a identidade judaica, a Weltanschauung do povo judeu. No campo estritamente literário, certamente que me eram muito familiares os nomes de Chaim Bialik, Shmuel Agnon, Amos  Oz, entre outros. Mas não nego que muito aprendi sobre a particular sensibilidade e olhar crítico judaico  lendo escritores judeus ocidentais, tais como Stefan Zweig, Isaac Babel, Saul Bellow, Hannah Arendt , Elie Wiesel , Salinger, Philip Roth, e tantos  mais, sobretudo o grande Kafka.

17 Jul 2017